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eXílio
Fernando Kinas
Para citar este texto dramatúrgico:
KINAS, Fernando.
eXílio
.
Urdimento
– Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0601
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eXílio
Fernando Kinas1
Resumo
Roteiro cênico do trabalho teatral
eXílio
, produzido pelo Coletivo Comum,
grupo sediado na cidade de São Paulo. O trabalho, com texto e direção de
Fernando Kinas, estreou em abril de 2024 e cumpriu temporadas no Teatro
de Contêiner e Teatro Arthur Azevedo.
Palavras-chave
: Roteiro cênico. Coletivo Comum. Dramaturgia. Exilio.
eXile
Abstract
Scenic script of the theatrical work "eXílio," produced by Coletivo Comum, a
group based in São Paulo. The work, with text and direction by Fernando
Kinas, premiered in April 2024 and had runs at Teatro de Contêiner and
Teatro Arthur Azevedo.
Keywords
: Scenic script. Coletivo Comum. Dramaturgy. Exile.
eXilio
Resumen
Guion escénico de la obra teatral "eXílio", producido por el Coletivo Comum,
grupo con sede en la ciudad de São Paulo. La obra, con texto y dirección de
Fernando Kinas, se estrenó en abril de 2024 y tuvo temporadas en el Teatro
de Conteiner y el Teatro Arthur Azevedo.
Palabras clave
: Guion escénico. Coletivo Comum. Dramaturgia. Exilio.
1 Doutorado em Teatro e Artes do espetáculo pela Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3, PARIS 3, França, e
Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Théâtre et arts du spectacle., pela Université Sorbonne
Nouvelle - Paris 3, França, Graduação em Théâtre et arts du spectacle, Université Sorbonne Nouvelle - Paris
3, França,. Diretor e pesquisador teatral. integrante do Coletivo Comum desde sua criação.
fkinas@yahoo.com
http://lattes.cnpq.br/4512681924125284 https://orcid.org/0000-0002-0286-8079
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Nota sobre eXílio
O roteiro que publicamos aqui é o resultado de um longo projeto, apoiado pelo
Programa de Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo, que expressa
algumas das principais questões que mobilizam o Coletivo Comum. Desde nosso
surgimento, em 1996 e ainda com o nome de Kiwi Companhia de Teatro,
trabalhamos na intersecção entre criação artística e intervenção social. Arte e
política, portanto, são os fundamentos de um trabalho que se inspira no teatro
documentário crítico, afastado de vertentes que, apesar de certa rebeldia
temática e ousadia formal, negligenciam a compreensão dos fenômenos sociais,
flertando com o niilismo ou acomodando-se aos circuitos artísticos hegemônicos.
No caso específico de
eXílio
, trabalho teatral que estreou em abril de 2024 e
realizou duas temporadas na cidade de São Paulo (Teatro de Contêiner e Teatro
Arthur Azevedo), reunimos uma grande quantidade de materiais - livros teóricos
e de ficção, canções, produções audiovisuais e iconográficas, depoimentos
pessoais, estudos de campo, além de uma viagem de pesquisa à França -, para
apresentar cenicamente o estado atual do exílio, do refúgio e das migrações
forçados, no Brasil e em âmbito internacional.
eXílio
, para nós, é um termo ao mesmo tempo poético e político, que reúne
experiências íntimas e coletivas, mas que faz sentido em perspectiva histórica.
O tema se declina em múltiplos aspectos e concentra impasses e contradições
(daí a utilização deste X em letra maiúscula) típicos das sociedades atuais, que
estão sujeitas à lógica mercantil, aos desequilíbrio coloniais e pós-coloniais, à
iminência de um colapso ambiental e climático e que sofrem as consequências
de injunções furiosas da indústria do entretenimento e das novas tecnologias.
Fernando Kinas
Diretor e pesquisador teatral. Doutor em Artes do Espetáculo (Sorbonne Nouvelle
e USP), integrante do Coletivo Comum desde sua criação.
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eXílio - Roteiro final [2024]
Fernando Kinas (com a colaboração de Beatriz Calló e do elenco)
Em cena
Fernanda Azevedo
Maria Carolina Dressler
Renan Rovida
Renata Soul
Roberto Moura
O espaço
A área de jogo deve ser preferencialmente circular, o público envolve o espaço
cênico.
A cena está vazia. Exceto pela memória.
Pequenas variações de luz.
1. Ausência e presença
[
Sem ocupar o espaço da cena, o elenco canta: Quero voltar pra Bahia, Saudade
da minha terra, Tenere den, Male Betulia, Alguém me avisou etc. O público pode
ser estimulado a cantar
.]
2. Três palavras estranhas
[
Lampedusa, de Toumani Diabaté + Szymborska relida
.]
quando eu pronuncio a palavra futuro
a primeira sílaba já se perde no passado
quando eu pronuncio a palavra silêncio
eu suprimo o… silêncio
quando eu pronuncio a palavra exílio
alguma comunidade se forma
porque
se o futuro já está no passado
se o silêncio não suporta o silêncio
o exílio exige um comum
como hipótese
como antítese
como complemento
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exílio
exílio
exílio
exílio
o exílio é político
é o avesso
uma longa insônia
vidro moído comido todos os dias
é um equívoco: porque é preciso voltar, ou pelo menos tentar voltar
- pensar no retorno -
porque não pensar, já não é exílio, é só emigração
imigrante ou emigrante
depende do lado da barreira em que se está
cidadão ou estrangeiro
depende do lado da barreira em que se está
colono ou colonizado
depende do lado da barreira em que se está
desempregado ou mão de obra
depende do lado da barreira em que se está
o exílio é uma história de fronteiras de racismo e de poder
muralha da babilônia, muralha da china, tordesilhas, commonwealth, westphalia,
lebensraum, nakba, congresso de viena, tratado de berlim, cortina de ferro,
apartheid, muro de berlim, espaço schengen
fronteiras externas
fronteiras internas
refugiado no mundo
no país
no próprio corpo
o êxodo do povo hebreu
josé e maria no egito
a fuga de meca para medina
a odisseia, gilgamesh, o ramayana
gulliver, marco polo, on the road, paris-texas, terra sonâmbula, palmares,
gonçalves dias, tinta branca
o tema é complicado
« partir es siempre partirse en dos. » (disse a poeta uruguaia cristina rossi).
outro poeta disse (o chileno huidobro)
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os quatro pontos cardeais
são três
o sul e o norte
e nosso norte é o sul
ou um mapa de cabeça para baixo (como desenhou torres garcía)
ou ainda
- porque o assunto realmente é complicado -
talvez leste e oeste seja só um norte-sul que se deitou
o mundo
na verdade
é um!
vários, são os pontos de vista
[
Tempo.]
obrigado/a pela presença.
sem vocês aqui
aqui
seria só passado
só o ensaiado
aqui, justamente, existe um campo - a cena
campo de refugiados
de imigrantes
de exilados
de deslocados
campo de retenção
de internamento
de triagem
de concentração
campo de passagem
de inspeção
de identificação
de registro
de espera
de controle
de trânsito
de averiguação
de repatriação
campo de deportação
e campo de batalha
rebeliões motins greves de fome petições atos ocupações suicídios mutilações
destruição de barreiras corte de arame farpado fugas enfrentamentos com a
polícia solidariedade ajuda mútua canções poemas…
refugiados, deslocados, sinistrados, evacuados, degredados, migrantes, asilados,
apátridas, indocumentados, clandestinos, tolerados, retidos, rejeitados,
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indesejados, expulsos, desterrados, banidos, expatriados, repatriados,
retornados…
sem terra, sem teto, sem trabalho, sem direitos
campo
[
Música Church of anthrax, de Terry Riley e John Cale. Elenco faz "o passo
suspenso da cegonha". Indefinição, hesitação, indeterminação, suspensão. "entre
dois". Olhar para trás
.]
[
No microfone, ainda com a música.]
o exílio é o mundo mais as fronteiras: avesso, insônia, racismo, xenofobia,
dinheiro, passaporte, conquista, diáspora, vidro moído
[
Fim da música. Tempo
.]
fim da introdução
nós temos duas maneiras para continuar
para ocupar o exílio da cena
uma delas é em forma de jogo
a outra através de depoimentos, cartas
todas as cenas foram ensaiadas
vocês decidem a ordem
um, jogo
dois, cartas
[
Público vota levantando a mão
.]
3. Exílio fiscal - O jogo
[
Jogo de tênis simulado entre frança e suíça. Som de partidas. Elenco a caráter
.]
Em novembro de 2014, a Suíça jogou contra a França a final da Copa Davis de
tênis. Foi um evento esportivo, mas também político: a equipe francesa, treinada
por Arnaud Clement, era composta unicamente por jogadores que moravam na…
Suíça. Incluindo o técnico.
Foi uma final "100% suíça". Por quê? Por causa dos privilégios fiscais deste
maravilhoso país europeu. Todos os jogadores eram exilados fiscais! Aliás, 80%
dos jogadores profissionais de tênis da França moram na Suíça.
Mas a vida de um exilado fiscal é muito difícil. O exílio nunca é fácil. Você deixa
para trás seu país, seus amigos, às vezes sua língua, seus restaurantes favoritos,
suas lojas de grife, sua mansão, seu campo de golf…
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Além disso, o simpático e montanhoso país europeu - a Suíça - agora anda
endurecendo a legislação e tem gente que defende - vejam - a equidade fiscal.
Mas sempre uma solução, os jogadores franceses podem contar com a Grã-
Bretanha, Luxemburgo, Irlanda, Portugal. Países com tradição de solidariedade,
que sabem acolher com dignidade os exilados.
Eles também podem buscar refúgio em Liechtenstein e Andorra, que antes é
preciso descobrir onde exatamente ficam estes países.
Deste lado do mundo, no sul global, nós temos o Uruguai, que além da excelência
do doce de leite, é reconhecido pela solidariedade… com os milionários.
Portanto, os exilados fiscais podem dormir tranquilos. E ficar acordados
tranquilos. É o que dizem os advogados e tributaristas especializados na
"deslocalização de ricos".
Sim, isso existe: deslocalização de ricos. Eles emigram e não precisam de coletes
salva-vidas…
Um exemplo: aqueles que não querem pagar nenhum centavo de imposto, "tarifa
zero", podem morar em paraísos fiscais. O piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton,
que é um defensor da equidade… racial, deixou a Suíça em 2012 para se
estabelecer no Principado de Mônaco. Ele paga zero porcento de imposto.
Ele também poderia ter optado por destinos mais exóticos, como Bahamas e
Belize. Ou por países mais conhecidos: Canadá, Estados Unidos, Marrocos, Hong
Kong, Singapura, Israel, China, Japão e Tailândia, que também fazem grandes
esforços para acolher os exilados.
Todos estes países demonstram solidariedade… fiscal para atrair os estrangeiros
e seus muitos zeros.
Exílio é uma questão de classe.
[
Prossegue o jogo de tênis simulado, com a finalização do ponto e a vitória da
Suíça
.]
NOTA
: A Suíça ganhou a Copa Davis de 2014. Foi a primeira vez. Os suíços ficaram
muito contentes. Também os exilados fiscais, todos eles.
[
C’est ailleurs, de Anouar Brahem. A cena é preenchida: raquetes de tênis, mantas
térmicas, taco de beisebol, binóculo, casacos de inverno, boneca da Minnie,
óculos com lentes amarelas, produtos de limpeza doméstica, cones de sorvete,
entre outros objetos que serão usados nas cenas seguintes. Chaves são
distribuídas ao público
.]
4A. "Aqui estamos bem."
Olá, tudo bem? Espero que as coisas estejam bem por ai!
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Aqui estamos bem.
Hoje eu quero contar um pouco do que vivi por aqui, neste país que me acolheu
e que agora acolhe a minha nova família: o meu marido e o meu filho.
No início foi muito difícil porque a saudade era enorme e eu chorava muito!
Comprava um cartão telefônico e todos os dias ia para a cabine falar com um de
vocês. Fazia isso para amenizar a falta que sentia daqueles que eu deixei no Brasil.
Houve um tempo em que nós falávamos e nos víamos pela internet, sempre nos
fins de semana. Hoje é ainda mais fácil e rápido porque tenho o
WhatsApp
do
grupo da família, daí falamos com mais frequência, várias vezes ao dia, vejo
fotografias de todos, participo de todos os assuntos, é muito divertido.
Muitas vezes eu quis voltar, mas fui acostumando com a beleza dos lugares. Tinha
as facilidades do transporte, mas sabia que o frio chegaria, que seria muito forte
e eu estranharia muito. Foi o que aconteceu. Colocava muitas roupas para me
agasalhar, coisa que na minha cidade não precisava.
Foram muitos meses de depressão porque as pessoas eram muito reservadas,
fechadas, pareciam tristes e distantes.
Mas depois encontrei pessoas boas e agradáveis. Tinha vários trabalhos, um
sempre diferente do outro. Durante o dia trabalhava num salão de beleza fazendo
algumas horas e à noite trabalhava num lar de idosos. Era tudo muito corrido,
saía de um e ía para o outro, sem intervalo para descanso.
Eu amava ver da janela de onde morava o caminhão do lixo fazer a coleta, o
funcionamento, os carros estacionados na rua, as roupas penduradas nas janelas,
lugares parecidos com Belo Horizonte.
Ao longo destes anos tive amizades boas, tive um amor português que terminou
em sofrimento, pois ele faleceu.
Felizmente conheci um novo amor e agora estou casada, tenho um filho e estou
realizada. Continuo trabalhando em vários sítios (lugares), participo de trabalhos
voluntários. Estou legalizada e em busca da nacionalidade portuguesa.
O país está em crise mas o povo luta, tenho confiança no povo português!
A saudade da feijoada é muita, por isso vou todo ano ao país que amo. Família
Maravilhosa.
Beijos e abraços com saudade de todos…
Glauciene
4B. "Palavras cruzadas."
Papai,
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faz mais de uma década que eu deixei os teus braços, os meus hábitos e as
minhas referências. Os teus olhos, que me mostravam orgulho, as tuas mãos que
me consolavam e me guiavam. Aos doze anos eu percebi que ir embora para
longe de ti, para longe do meu Congo, seria a partida rumo a uma nova vida: não
necessariamente melhor, nem pior.
Aqui, o tempo passou sem ruído.
As lembranças se atenuaram, a tua voz se confundiu com as outras. Até hoje não
sei como eu fiz para enganar a saudade e o tempo, que sempre fez com que eu
me perguntasse se você me reconheceria, se você veria em mim a filha que eu
sempre fui.
Alguém tem uma foto na carteira? Você pode me emprestar, por favor? Eu
promete que devolvo. [
Pega e olha com carinho a foto.]
Durante mais de dez anos, eu não recebi nem sequer uma foto tua, para guardar
na memória o teu rosto. [
Olha novamente a foto
.] Teus pequenos olhos
amendoados, ao mesmo tempo negros e meigos. E o teu sorriso vivo e franco,
tão bonito, que eu nunca esqueci.
Eu sempre repetia a mim mesma os conselhos que você me deu no nosso último
encontro, naquela prisão que mais se parecia com uma colônia de férias, com
amigos de longa data. Você me disse: “Não se feche diante das pessoas. Seja
sempre aberta, o máximo possível. Cresce, minha filha, cresce…”. [
Pausa.]
Eu sempre procurei terminar as palavras cruzadas, como você costumava fazer.
Você, “o invencível”, eu te desafio agora quando você quiser, meu pai querido!
Eu cresci encontrando pessoas que mudaram para sempre a minha vida. Pessoas
que têm as mesmas falhas que eu, as mesmas dificuldades aqui na França.
Apesar disso, as ruas e os ruídos do Congo me fazem muita falta. Eu sinto
saudades até mesmo das coisas que me irritavam: os atrasos de sempre, a
letargia de algumas pessoas…
Hoje, com vinte e dois anos, eu sei que nós vamos nos rever em breve. Eu sei que
nada mudou de verdade, ao mesmo tempo eu sei que nunca mais será como
antes.
Eu quero resgatar o que nunca se perdeu, foi posto entre parênteses. Eu quero
me sentir completa. Eu quero voltar a ganhar cores.
Tua filha, Douce, que te ama
[
Olha com carinho a foto e, com relutância, devolve-a
.]
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4C. "Colamos no telefone."
Hoje foi um dia maravilhoso. Depois de quase um ano de luta consegui, graças a
um primo na Venezuela, comprar um telefone que permite fazer chamadas de
vídeo. Pude ver meus pais, meus filhos mais velhos e meu irmão.
Eu os vi, os vi ao vivo, e eles me viram. Colamos no telefone como se pudéssemos
entrar e nos abraçar.
Foi difícil, mas consegui, e o melhor, consegui não chorar na frente deles. Ao
terminar a chamada, fiquei pensando no tanto que quero dizer e no muito que
devo calar.
Sempre há um evento que nos marca. No meu caso, foi o dia em que minha filha
ficou doente.
Ela tinha acabado de fazer dois anos. Teve febre durante toda a noite. Saí
procurando um medicamento com ela nos braços e terminamos chorando juntas.
Eu, pela impotência. A febre não cedia.
Depois de caminhar por mais de duas horas em uma cidade onde o sol é
inclemente e o transporte público inexistente, na única farmácia onde encontrei
o remédio, o dinheiro que tinha não era suficiente para comprá-lo. Graças a Deus
uma pessoa se aproximou, me indicou uma antiga farmácia onde alguns
medicamentos tinham preço antigo.
Quase grito quando consegui. Voltei para casa e, ao chegar, por pouco não
desmaiei. Lembrei que não tinha comido nada o dia todo.
Parece estranho como coisas tão importantes nos passam batido quando alguém
mais nos preocupa. Ela se recuperou, mas meu coração se partiu nesse dia.
Francis
4D. "Em breve, minha filha, vamos realizar juntos os sonhos mais loucos."
Envio esta carta, minha filha, para finalmente te dar notícias.
Aqui está tudo mais ou menos bem, espero que tudo esteja bem contigo e toda
a família. Acredite que eu não esqueci as promessas mais íntimas, sinceras e
importantes. O nosso compromisso absoluto, que consiste em nos encontrarmos
e vivermos juntos, faz com que eu me sinta determinado a superar todas as
provações mais difíceis que eu encontro aqui na França.
De fato, minha filha, a vida na Europa não é fácil para um imigrante, entre os
problemas com os documentos, de trabalho e de moradia. Durante um ano
inteiro eu lutei numa batalha sem misericórdia com a prefeitura para conseguir
regularizar minha situação. Hoje tenho, enfim, uma autorização de residência que
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me permitirá voltar a Kita, no Mali, para te rever, pois esta é a única ambição que
anima o meu coração. Agora só resta encontrar um trabalho, o que não está fácil.
Tenho pequenos contratos de trabalho precários, o que não ajuda a minha
integração social. Neste país, a vida é muito cara, entre o preço da casa e as
despesas, como as contas de água, gás e energia elétrica.
Quando estamos na África, somos enganados em relação à realidade da vida na
França. Aqui, a maioria dos imigrantes vive em plena miséria social, a situação se
degrada diariamente por causa da crise econômica e não tem trabalho suficiente,
como a gente acreditava. Neste momento, somos rejeitados por uma grande
parte da sociedade por causa dos acontecimentos terroristas. Novas medidas
drásticas são tomadas para complicar a nossa integração e o acesso ao emprego.
Porém, minha filha, tenho muitas esperanças neste país, pois também há muitas
pessoas dignas, sociáveis, amáveis e humanas que lutam para defender os nossos
direitos. Espero estar à altura de, finalmente, conseguir concretizar o que nos une,
você e eu, “viver em família e ser feliz para sempre”. Somente isso poderá fazer
com que eu consiga superar o meu estresse e as minhas angústias de todos os
dias, pois o problema não é estar no exterior, mas sim de poder viver junto das
pessoas que nós mais amamos. [
Pausa, porque é difícil continuar.]
Hoje eu tenho um pequeno trabalho que me permite economizar um pouco de
dinheiro para que, enfim, eu consiga cumprir a minha promessa de encontrar uma
casa para nós, para que você possa vir morar com o teu pai em plena harmonia.
Você sabe, minha querida filha, que eu não esqueci o quanto você sonha em
visitar a Disney. [
Breve pausa
]. Saiba que, em breve, minha filha, nós vamos
realizar juntos os sonhos mais loucos.
Enquanto isso, espero que você continue a cumprir a tua parte do compromisso
que nós assumimos e que você seja sempre a melhor da classe. Eu me despeço
com muitos beijos, minha querida filha. Saiba que eu te amo muito e penso muito
em ti.
Ibrahima
4E. "No dia que eu vim-me embora", de Caetano Veloso
5. Convenção de Genebra
[
Darbuka Solo 1, de Greek Oriental Orchestra. Microfone.
]
Convenção de Genebra sobre os refugiados, 1951
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Artigo 31
Os Estados não aplicarão sanções penais em virtude da entrada ou permanência
irregulares de refugiados que, chegando diretamente do território no qual sua vida
ou sua liberdade estava ameaçada, cheguem ou se encontrem no país sem
autorização, contanto que se apresentem sem demora às autoridades e lhes
exponham razões aceitáveis para a sua entrada ou presença irregulares.
Artigo 32
Os Estados não expulsarão um refugiado que se encontre regularmente no seu
território senão por motivos de segurança nacional ou de ordem pública.
Artigo 33
Nenhum Estado expulsará ou rechaçará, de maneira alguma, um refugiado para
as fronteiras dos territórios em que a sua vida ou a sua liberdade seja ameaçada
em virtude da sua raça, da sua religião, da sua nacionalidade, do grupo social a
que pertence ou das suas opiniões políticas.
6. Moïse e Carlos Eduardo
[
Pássaros endêmicos do Rio de Janeiro
.]
Periquito sanhaço cambaxirra caturrita irerê
Garça fragata gaivota saracura andorinha gavião biguá
Ferreirinho-relógio sabiá-coleira marreca-pardinha juriti-vermelha maria-é-dia
Saíra-sete-cores tucano-de-bico-preto bem-te-vi joão-de-barro beija-flor-rubi
Na manhã do dia 1 de dezembro de 2020, Carlos Eduardo Pires de Magalhães
morreu no Rio de Janeiro.
Ele era morador de rua e estava numa padaria, em Ipanema, na zona sul da
cidade.
Seu corpo ficou durante duas horas estirado no chão, coberto por um saco preto
de lixo, até ser removido pelo serviço público.
O proprietário decidiu não fechar a padaria, apenas isolou o corpo com algumas
cadeiras.
Os clientes tomaram seu café da manhã na padaria, próximos ao corpo, coberto
pelo saco preto.
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Carlos Eduardo Pires de Magalhães devia ter 39 ou 40 anos, uma década ele
não tinha documentos de identidade. Era tuberculoso, morava nas ruas desde os
sete anos e era negro.
Neste dia ele pediu ajuda para chamar o SAMU, mas foi ignorado.
Carlos tinha amigos e conhecidos, tinha também seis irmãos, a mãe, dois
cachorros - Pretinha e Pelé -, um copo onde cuspia sangue.
Ele dizia que gostava da liberdade, como os passarinhos.
Uma semana antes de morrer ele disse para uma funcionária de limpeza da
agência bancária onde costumava dormir: eu sentindo que eu estou sem alma.
_____
[
Pássaros endêmicos da República Democrática do Congo
.]
Jabiru cuco piadeira pintada flamingo alcaravão
Paturi-preta colhereiro-africano pavão-congolês francolim-das-pedras noitibó-
da-floresta
Codorniz-azul pombo-d’olho-amarelo pato-do-dorso-branco marrequinha-de-
bico-vermelho Marrequinha-comum marreca-caneleira beija-flor-violeta
Na noite do dia 24 de janeiro de 2023, Moïse Kabagambe morreu no Rio de Janeiro.
Moïse era congolês e chegou ao Brasil com 14 anos. Ele veio como refugiado
político em 2014 junto com a mãe e os irmãos.
Ele vendia bebidas e comidas do quiosque Tropicália, nas areias da Barra da
Tijuca. Como outros trabalhadores informais, era pago por dia. Ele tentava se
naturalizar brasileiro, mas o processo se arrastava.
Vivendo no País desde a adolescência, ele já se considerava carioca. Falava sem
sotaque estrangeiro e torcia pelo Flamengo.
No dia da sua morte, ele foi cobrar duas diárias que não tinham sido pagas.
Houve uma discussão e Moïse foi amarrado, depois espancado até a morte, por
vários homens, com pedaços de madeira e um taco de beisebol.
Um primo da vítima contou que após o assassinato os agressores foram embora
e o gerente do quiosque decidiu continuar seu trabalho, até o socorro chegar e o
corpo ser removido.
Por causa da repercussão do caso, a prefeitura resolveu ceder o quiosque para a
família de Moïse. Seus parentes recusaram, temendo retaliações dos
comerciantes e da Polícia Militar.
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A República Democrática do Congo, onde nasceu Moïse, tem uma natureza
exuberante. Agências de turismo organizam excursões de
bird watching
-
observação de pássaros - para milionários de todo o mundo.
7. Muriquinho piquinino (Homenagem a Clementina de Jesus)
Muriquinho piquinino,
muriquinho piquinino, ê parente,
de quissamba na cacunda.
Purugunta onde vai,
Purugunta onde vai, oi parente.
Pru quilombo do Dumbá.
Ê chora, chora, gongo, ê devera.
Chora, mgongo, chora.
Ê chora, chora, gongo, ê cambada.
Chora, gongo, chora…
[Tradução de descendentes dos escravizados que trabalhavam nas minas nas
regiões do Serro e Diamantina: ‘O menino, com a trouxa de roupas nas costas,
está correndo para o quilombo do Dumbá. Os que ficam choram porque não
podem acompanhá-lo.’ ]
8. "Exsul mentisque domusque"
[
Áudio gravado.
]
Nós podemos ser expulsos ou exilados de um lugar concreto, mas também
podemos ser expulsos ou exilados de "nós mesmos".
Na literatura latina existe a imagem do exílio interior: exsul mentisque domusque,
uma expressão usada por Ovídio.
Ela pode ser traduzida como "exilado da pátria e da mente".
Durante as ditaduras, muitas pessoas foram obrigadas a exilar-se dentro do seu
próprio país, no seu trabalho, fábrica, escritório, escola, igreja, praça, avenida,
campos, construções.
Antonio Candido fala sobre esse exílio interno em 1975, anos de ditadura no Brasil:
« A pessoa não emigra nem para fora de sua cidade nem para fora do seu país,
mas para dentro de si mesma, fechando-se totalmente para o mundo e
apresentando uma máscara de conformismo. » [
No limite do possível, entrevista
Revista Veja, 15 out 75
].
Exsul mentisque domusque.
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9. Canção do exílio (Gonçalves Dias, 1843)
[
Introdução biográfica de Roberto Moura sobre sua condição de migrante
.]
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar sozinho, à noite
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem quinda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá
[
Elenco assovia discretamente a música Eu te amo meu Brasil
.]
10. Canção do exílio para preencher (Théo Tavares Klein, 2020)
[
Poema com lacunas é distribuído ao público, que pode compartilhar com o elenco
seu local de origem e completar os dois primeiras versos. Música Brazil, de Django
Reinhardt
.]
Minha terra tem ___________________,
Onde ____________________________;
As ___________, que aqui __________,
Não ______________________ como lá.
Nosso _________ tem mais _________,
Nossas _________ têm mais _________,
Nossos _________ têm mais _________,
Nossa __________ mais ____________.
eXílio
Fernando Kinas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-33, set. 2024
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Em cismar, sozinho, à noite,
Mais ________________ encontro eu lá;
Minha terra tem ___________________,
Onde ___________________________.
Minha terra _______________________,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar sozinho, à noite.
Mais ________________ encontro eu lá;
Minha terra tem ___________________,
Onde ____________________________.
Não permita ___________ que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os________________
Que não encontro por cá;
Sem quinda aviste as ______________,
Onde canta o _____________________.
11. No início foi a luz, depois o paraíso, mais tarde, o exílio
[
Anúncio da cena no microfone: Pequena cena com Adão, Eva e o resto da família.
Os textos seguintes são ouvidos através de uma gravação. Nudez de Adão e Eva,
fraldas nas crianças, mantas térmicas, coletes e trovoadas. Adão e Eva
repreendem seus dois filhos: coloca o colete que depois vai ter um dilúvio. Quer
morrer? Engole o choro… etc
.]
Agora o homem se tornou como um de nós, pois conhece o bem e o mal. Ele
não deve comer a fruta da árvore da vida e viver para sempre.
Por isso o Senhor Deus expulsou o homem do jardim do Éden e fez com que ele
cultivasse a terra da qual havia sido formado. Deus expulsou o homem e no lado
leste do jardim [
ninguém sabe onde fica o leste
] pôs os querubins e uma espada
de fogo [
manta térmica
] que dava voltas em todas as direções. Deus fez isso para
que ninguém chegasse perto da árvore da vida.
"Adão e Eva, então, foram expulsos do paraíso. São os primeiros exilados de um
mundo que terá muitos exilados depois. Mesmo que gerem uma descendência
numerosa [
as crianças dão as mãos
], eles sempre guardarão a nostalgia do seu
Éden. [
Adão e Eva se vestem
.]
A perda e o paraíso estão gravados em nossos genes e nos assombram a cada
deslocamento, a cada mudança de lugar que nos afasta dos nossos entes
queridos, dos nossos amigos, da nossa terra." [
Baseado em Salim Bachi, "O exílio
de Ovídio »
.]
— Não se abandona o paraíso, é preciso ser expulso dele." [
Ernst Toller.
]
eXílio
Fernando Kinas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-33, set. 2024
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12. Conversas de refugiados: Bertolt e Brecht numa estação de trem
[
Introdução musical para montagem da cena. Duas cartelas com os nomes Bertolt
e Brecht.
]
O passaporte é a parte mais nobre de uma pessoa. Ele não surge de modo tão
simples quanto uma pessoa. Uma pessoa pode surgir em qualquer lugar, da
maneira mais irrefletida e sem motivo razoável. Um passaporte, jamais. Ele é
reconhecido quando é bom, enquanto uma pessoa pode ser boa e, ainda assim,
não ser reconhecida como boa. [Atarracado-Kalle]
Os passaportes existem por causa da ordem. Ela é imprescindível em tempos
como este. Suponha que você e eu andemos por aí, sem um certificado de quem
sejamos, de modo que não possamos ser achados no momento em que devemos
ser expulsos. Nesse caso, não haveria ordem. [Ziffel]
A cirurgia só funciona porque o cirurgião sabe a localização do apêndice no corpo.
Se o apêndice, sem o conhecimento do cirurgião, pudesse se deslocar para a
cabeça ou para o joelho, sua extração seria muito complicada. [Ziffel]
Qualquer amigo da ordem confirmará isso para você. [Ziffel]
13. Todo vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar (música de Siba)
[
O público pode participar de uma grande ciranda
.]
14. Canis latrans
Canis latrans é um mamífero pequeno, membro da família Canidae e do gênero
Canis.
Eles são encontrados somente na América do Norte e Central, habitando entre o
Alasca e o Panamá.
Geralmente vivem sós, mas podem se organizar em matilhas.
Eles vivem em média dez anos, são ágeis, esguios. Têm pernas compridas, orelhas
pontudas e eretas, focinho longo, olhos com íris amarelas e pupilas redondas
[
óculos com lentes amarelas
].
A pelagem varia do marrom acinzentado ao cinza amarelado [
mantas
].
Estes animais não têm dificuldade de se acomodar em diferentes ambientes e em
qualquer época do ano têm facilidade para achar caça.
Eles se alimentam de praticamente tudo, porém sua preferência é por mamíferos.
A caça pode ocorrer de maneira individual, aos pares ou em grupos maiores.
Eles são encontrados particularmente nos desertos, nas florestas, montanhas,
planícies e regiões de clima tropical.
São animais oportunistas e apresentam hábitos noturnos.
Eles têm grande capacidade de comunicação [
celular
], emitindo chamados que
indicam pedido de socorro, seu território e sua localização.
Esses animais apresentam audição e olfato aguçados e são ótimos nadadores.
eXílio
Fernando Kinas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-33, set. 2024
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Na ausência de hostilidade praticada contra eles, os animais passam a não temer
os humanos e podem agir agressivamente.
Eles são próximos da raposa vermelha, encontrada na Europa, e às vezes também
são chamados de Chacal americano.
Os coiotes, em alguns casos, também são chamados de passantes, traficantes de
pessoas, mercadores da vida humana.
15. "É preciso desaprender as fronteiras"
Você sabe como a vida é difícil no campo de refugiado. Aqui, você sente que não
tá realmente vivo. Tem problema com as autoridades, com a eletricidade... com a
água também, que o homem que fornece água potável vem a cada dois ou
três dias. Por isso, se eu tiver a oportunidade de sair do campo, vou fazer isso... e
até mesmo deixar o país, porque isso aqui não é vida... não é vida isso que acontece
aqui no campo...
Mukaram, 32 anos.
Todas as noites eu durmo esperando acordar em outro lugar. Mas todas as manhãs
eu acordo no meu contêiner. Eu não tenho mais vontade de nada. Eu tenho
dezenove anos e a minha vida deveria estar na minha frente, mas eu preferiria
estar morto. É isso o fim do mundo?
Jonathan, 19 anos.
No começo você fica aliviado, não tem mais as bombas, você não corre o risco de
ser preso por beber uma cerveja ou fumar um cigarro. Você não tem mais medo
de morrer, mas logo a gente entende que o risco não é de morrer, mas de ficar
louco.
Ali, 25 anos.
Minha prima era etíope. Com 16 anos, ela morreu esmagada, assassinada nas
engrenagens da fronteira.
Meu vizinho era sírio. Com 52 anos, ele morreu afogado, assassinado por um barco
de fronteira.
Minha irmã era mexicana. Com 36 anos, ela morreu estuprada, assassinada por
um policial da fronteira.
Minha mãe era do Mali. Com 27 anos, ela morreu de exaustão, assassinada pelo
deserto da fronteira.
Meu primo era vietnamita. Com 41 anos, ele morreu sufocado, assassinado pelo
caminhão de uma fronteira.
Meu irmão era da Eritreia. Com 19 anos, ele morreu espancado, assassinado pelos
golpes de um traficante da fronteira.
eXílio
Fernando Kinas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-33, set. 2024
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Minha irmã era haitiana. Com 32 anos, ela morreu sangrando, assassinada por um
passante da fronteira.
São os fabricantes das fronteiras que matam. Porque as fronteiras se fabricam.
Nos escritórios, nos salões, nos gabinetes. Nas fábricas de arame farpado, de
grades, de drones.
Eles dizem que as fronteiras são naturais, obrigatórias. Eles dizem que elas são
vitais, que elas são necessárias.
E eles mentem.
As fronteiras são fabricadas.
E elas matam com armas de fogo, elas torturam, elas afogam, elas matam de
sede, elas esgotam, elas deixam louco. Elas deixam louco.
É preciso desaprender as fronteiras. É preciso desaprender as fronteiras!
16. Sorvete em lampedusa
[
Lampedusa, de Toumane e Sidiki Diabaté
.]
Lampedusa é um pequeno rochedo habitado por seis mil pessoas durante o
inverno, cercado de águas turquesas e com baías maravilhosas. No verão os
turistas são numerosos a invadir a ilha. Toma-se banho de mar, bronzeia-se. À
noite, o centro é dedicado aos pedestres e se gasta em alguns dias o dinheiro
ganho em várias semanas ou meses.
Lampedusa é também a salvação para milhares de homens, mulheres e crianças
resgatados no mar, a maioria vinda da costa africana, que fica a pouco mais de
cem quilômetros. Depois de desembarcados no porto, os mais frágeis são levados
para a Sicília ou para o continente, os outros vão para um
hotspot
, um campo de
triagem, escondido no interior da ilha.
Oficialmente, tudo é organizado para que os turistas não cruzem com os
migrantes: os desembarques acontecem de noite e é proibido sair do hotspot
exceto no caso das transferências regulamentares.
Está quente neste mês de julho. Se durante o dia se com custo algumas
silhuetas daqueles que imaginamos ser migrantes, a partir das 21 horas são
dezenas de homens negros que se reúnem slienciosamente num parque atrás da
igreja para aproveitar o sinal de internet da paróquia e a vista sobre a cidade.
Na sombra, sentados nos bancos, eles olham a cidade e os turistas.
John Mohamed, Abou e Tony deixaram a Líbia no mesmo barco até serem salvos
pelos guardas da costa italiana. Originiários da Guiné, da Costa do Marfim e do Mali,
eXílio
Fernando Kinas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-33, set. 2024
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menores de idade ou recém maiores, eles chegaram em Lampedusa três dias
e foram enviados ao campo. Como os outros, eles pulam o muro no final da tarde
para ir ao centro da cidade. « Basta pular a grade. Todo mundo faz isso, mesmo as
mulheres, para ir na missa. Todo mundo sabe, os policiais, o pessoal das
ongs
, os
militares até nos cumprimentam quando não estão no horário de trabalho ».
Estes jovens vêm todas as noites ao centro da cidade. Eles adoram passear e
consultar o facebook graças ao computador da loja Archivio Istorico que Papa Nino
deixa à disposição deles. Aqueles que esperam sua vez, ou que não tem perfil no
facebook, ficam nos bancos diante da loja e imaginam os cortes de cabelo que
fariam se tivessem uma máquina.
Entre eles zombam das roupas dos turistas ou admiram seus trajes. Alguns estão
chocados que as jovens usem roupas tão curtas ou transparentes. « O pessoal se
veste assim em toda a Europa? », pergunta Tony.
Usando somente roupa de baixo quando chegaram, eles receberam um calção,
uma camiseta e um par de chinelos laranja. Eles sonham em trocar essas roupas
por outras que tenham a ver com sua personalidade. Às vezes, Papa Nino ou a
paróquia dão algumas roupas, então eles têm a impressão de se reencontrar: « Eu
nunca me vesti assim, se eu estou bem vestido, eu começo a ficar melhor e tenho
coragem de andar do lado dos italianos na rua ».
Djibril e Ali chegaram várias semanas. Eles estão vestidos com cuidado. À noite,
vão dançar numa pequena praça do centro com as jovens brancas e até escutam
o show que acontece na rua principal. Às vezes, os turistas param e trocam
algumas palavras em inglês ou francês.
Abou se junta aos outros com um cone de sorvete na mão. Ele deixa todos
provarem: « Foi uma turista francesa, eu acho, que me ofereceu. Eu peguei o
mesmo sabor que ela, não tive coragem de escolher… eu não sei o sabor, é
açucarado, é gostoso. » [
Louise Tassin, Notes sur le terrain, Lampedusa, 2013
.]
[
Elenco com sorvete nas mãos
.]
17. O passo suspenso da cegonha
[
Church of anthrax com as palavras "açucarado, gostoso"… o elenco faz
novamente, como no início, "o passo suspenso da cegonha". Depois investe contra
as grades
.]
18. Um país chamado exílio
[
Continua a música e as ações da cena anterior. Texto no microfone.]
eXílio
Fernando Kinas
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Hoje existem 110 milhões de pessoas em condição de refúgio e de migração
forçada no mundo.
Cinquenta por cento delas são crianças e adolescentes.
Se estas pessoas formassem um país, ele seria o 14º mais populoso do planeta.
Com a metade da população do Brasil, a mesma população do Egito, o dobro da
Espanha, trinta vezes o Uruguai.
[
Pausa para descanso da equipe e do público. Falso intervalo
.]
19. A grande diáspora africana
[
L´Africain, de Rachid Taha. Cartelas com nomes são colocadas nas grades
.]
Mandela La Kahina Malcom X Kateb Yacine Jimi Hendrix Jacques Derrida Angela
Davis Frantz Fanon Lumumba Sankara Bob Marley Hampâté Aimé Césaire,
incluindo brasileirxs-africanxs!
20. Oriente-se (Homenagem a Edward Said)
Para compreender, de verdade, uma única civilização, é preciso conhecer duas,
profundamente [
faz referência aos nomes da diáspora africana
]. Não existe
conhecimento humano sem comparação e confrontação.
É preciso aprender a estar fora do lugar.
Edward Said
21. Produtos de limpeza
[
Zabriskie point, Love scene, versão 2, de Jerry Garcia. Texto a partir do depoimento
de Wesam Musa Ayesh.]
Os meus pais são um assunto incontornável, eles me deram tudo.
Eles me deram tudo de maneira incondicional, como todos os pais, eu imagino.
Eu noto, a cada viagem, que eles estão mais velhos, e eu estou longe deles.
Numa das minhas visitas, eu estava no sofá, a minha mãe veio e começou a
acariciar o meu rosto e o meu cabelo.
Ela tinha as mãos ásperas por causa dos produtos de limpeza, mas foi a coisa
mais suave que tocou o meu rosto, tinha um carinho enorme. Imenso.
São coisas que se sentem, mais do que se descrevem.
eXílio
Fernando Kinas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-33, set. 2024
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22. Ilha das galinhas
[
Guiná-bissau, de José Carlos Schwarz. Todos cantam
.]
Djiu, djiu di Galinha
Djiu di Galinha, ai!
Djiu di Galinha
N'disdjau, ai Djiu di Galinha
Manera ki piskaduris ta pera mare
Asin tambi ki n' ta pera dia di riba
Manera ki labraduris ta tchora tchuba
Asin tambi ki n' ta tchora bu falta.
NOTA: Djiu di Galinha significa Ilha das Galinhas. Galinhas é uma ilha da Guiné-
Bissau, com cinquenta quilômetros quadrados e mil e quinhentos habitantes.
Durante o período colonial português ali funcionou uma prisão política. José Carlos
Schwarz, o autor desta música, foi um dos prisioneiros. Em 1973 a Guiné-Bissau
declarou independência, que foi reconhecida por Portugal no ano seguinte. A
prisão foi desativada.
23. Dezesseis horas por dia
[
Stimela, de Hugh Masekela. Texto no microfone
.]
Há um trem que vem da Namíbia e do Malawi
Um trem que vem da Zâmbia e de Zimbábue,
Há um trem que vem de Angola e Moçambique,
De Lesoto, Botsuana, Suazilândia,
De todo o interior da África do Sul e central.
Este trem transporta jovens e velhos homens africanos.
Que são recrutados para trabalhar sob contrato
Nas minas de ouro de Joanesburgo
E na periferia da cidade
Dezesseis horas por dia [
x 2
]
Ou mais
[
Dança de matriz africana e derrubada da grade
.]
24. Quem destruiu nossa aldeia?
[
Ndiyani waparadza musha, de Thomas Mapfumo
.]
Quem destruiu nossa casa? Ndiyani waparadza musha?
Quem destruiu nosso país? Ndiyani waparadza nyika yedu?
eXílio
Fernando Kinas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-33, set. 2024
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Quem destruiu nossa economia? Ndiyani waparadza upfumi hwedu?
Quem destruiu nossa nação? Ndiyani waparadza rudzi rwedu?
25. Conversas de refugiados relidas: Bertolt e Brecht numa estação de trem
[
Introdução musical para montagem da cena. Desta vez Bertolt e Brecht bebem
uns tragos
.]
A melhor escola de dialética é a emigração. [Ziffel]
Os dialéticos mais argutos são os refugiados. Eles se refugiaram por causa das
transformações, e não estudam nada além das transformações. [Ziffel]
Dos menores indícios