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Uma corpa que encena resistências: visualidades e
vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro
Rose de Melo Rocha
Lucas Duarte Kelly
Para citar este artigo:
ROCHA, Rose de Melo; KELLY, Lucas Duarte. Uma corpa que
encena resistências: visualidades e vocalidades dissidentes
na arte de Jup do Bairro.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0108
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Uma corpa que encena resistências: visualidades e vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro
Rose de Melo Rocha | Lucas Duarte Kelly
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-27, set. 2024
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Uma corpa que encena resistências1: visualidades e vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro2
Rose de Melo Rocha3
Lucas Duarte Kelly4
Resumo
O artigo explorou as resistências encenadas por Jup do Bairro em sua arte experimental e
transfeminista, destacando suas visualidades e vocalidades dissidentes. Através de uma análise de sua
obra, com ênfase no videoclipe 'Transgressão', investigou-se como Jup utilizou a encruzilhada como
referencial para desestabilizar representações hegemônicas e criar novas formas de subjetividade e
existência. A escrita dialogou com conceitos de artivismo, autonarrativa e anamnese, identificando em
Jup uma resposta estética e política às opressões e silenciamentos enfrentados por corpos trans,
negros e periféricos, sublinhando a interseccionalidade dessas questões.
Palavras-chave
: Arte experimental. Transfeminismo. Resistência. Visualidades dissidentes. Corpos
periféricos.
A body that stages resistance: dissident visualities and vocalities in the art of Jup do Bairro
Abstract
The article explored the resistances staged by Jup do Bairro in her experimental and transfeminist art,
highlighting her dissident visualities and vocalities. Through an analysis of her work, with an emphasis
on the 'Transgressão' music video, it was investigated how Jup used the crossroads as a reference to
destabilize hegemonic representations and create new forms of subjectivity and existence. The writing
engaged with concepts of artivism, autonarrative, and anamnesis, identifying in Jup an aesthetic and
political response to the oppressions and silencings faced by trans, black, and peripheral bodies,
underlining the intersectionality of these issues.
Keywords:
Experimental art. Transfeminism. Resistance. Dissident visualities. Peripheral bodies.
Una corpa que escenifica resistencias: visualidades y vocalidades disidentes en el arte de Jup do Bairro
Resumen
El artículo exploró las resistencias escenificadas por Jup do Bairro en su arte experimental y
transfeminista, destacando sus visualidades y vocalidades disidentes. A través de un análisis de su
obra, con énfasis en el videoclip 'Transgressão', se investigó cómo Jup utilizó la encrucijada como
referencial para desestabilizar representaciones hegemónicas y crear nuevas formas de subjetividad y
existencia. La escritura dialogó con conceptos de artivismo, autonarrativa y anamnesis, identificando
en Jup una respuesta estética y política a las presiones y silenciamientos enfrentados por cuerpos
trans, negros y periféricos, subrayando la interseccionalidad de estas cuestiones.
Palabras clave
: Arte experimental. Transfeminismo. Resistencia. Visualidades disidentes. Cuerpos
periféricos.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo foi realizada pelos autores.
2 Este artigo é parte de pesquisa financiada pelo CNPq com bolsa Produtividade em Pesquisa Pq.
3 Pós-doutorado na Universidade Federal, da Bahia (UFBA). Pós-doutorado na CLACSO Argentina. Pós-
doutorado na Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Doutora em Ciências da Comunicação
pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de
São Paulo (UMESP). Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Consumo e da graduação na Escola Superior
de Propaganda e Marketing (ESPM). Bolsista Produtividade em Pesquisa (CNPq). rlmrocha@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/2514554478091432 https://orcid.org/0000-0002-7681-5500
4 Graduação em Ciências Sociais e do Consumo, na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
lucasduarteee@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/2482804018021699 https://orcid.org/0009-0002-9247-0597
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Introdução
Este artigo nasce de alguns encontros. Uma pesquisa sobre artivismos
musicais de gênero e experimentalismos juvenis transfeministas em São Paulo
(Rocha, 2021; 2022), uma pesquisa sobre tessituras discursivas elaboradas a partir
do encontro com corpas travestis em uma casa de acolhimento na mesma cidade
(Kelly, 2024), o encontro com uma narrativa audiovisual protagônica constituída
por uma multiartista paulistana, Jup do Bairro. Em comum, alguns
atravessamentos: corpos/corpas presentes na urbanidade, corpos/corpas em
trânsito, o próprio corpo da cidade e das audiovisualidades, a corpa transfeminista5
de Jup, corpos/corpas afetando e sendo afetados pelo espaço-tempo urbanos e
pelas temporalidades existenciais constituídas por
devires trans
, corpos/corpas
tensionando as normatividades de gênero e sexualidade. Tomamos como
marcador empírico e como polo de afetação central à nossa escrita não o
encontro com a “corpa-tela”6 de Jup. Elegemos o acontecimento estético-político
enunciado pela artista em seu videoclipe
Transgressão
(2020) como núcleo
epistêmico e afetual que atravessa o texto aqui apresentado, ora o construindo,
ora o perfurando.
A ideia de uma implicação virtualmente compartilhada entre
pesquisadoras/pesquisadores e sujeitas/sujeitos/sujeites de investigação é
reiterada por Ana María Fernández (2013). Dialogando com Néstor Perlongher,
Fernández (2013, p. 15) propõe
um passo a mais em relação às metodologias qualitativas que
incorporam “as vozes” dos atores sociais que investigam. Incorporamos
também seus saberes, que são mais ricos e potentes do que aquele que
a academia clássica, mesmo a mais democrática, pode supor.7
Este guia epistemológico tem no horizonte uma política do conhecimento
simpoiética (Haraway, 2019), que se faz com escutas ativas, e a partir da qual se
5 Partilhamos da perspectiva transfeminista combinatória e gregária de Letícia Nascimento (2021), em especial
na aproximação que permite à estética e politicidade aquilombadas de Jup do Bairro.
6 Alusão ao conceito de “corpo-tela”, de Leda Maria Martins (2021).
7 No original: “[…] un paso más respecto de las metodologías cualitativas que incorporan “las voces” de los
actores sociales que investigan. Incorporamos también sus saberes, que son más ricos y potentes que
aquello que la academia clásica, aún la más democrática, puede suponer.” (Fernández, 2013, p. 15). Tradução
de Rose de Melo Rocha.
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intenciona problematizar as condições de possibilidade que, por sua vez, permitem
a constituição de políticas e pedagogias de afrontamento. Isto significa dizer que,
partilhando de ideais e práticas emancipatórias (Freire, 2021; hooks, 2017), fazer
frente às práticas de silenciamento demanda afrontar às matrizes coloniais,
colonialistas, patriarcais, racistas, classistas, heteronormativas, cisnormativas,
misóginas, xenófobas, LGBTfóbicas em seu próprio núcleo sistêmico, epistêmico
e simbólico, desnaturalizando e historicizando suas lógicas.
Também nos colocamos em situação de contágio e contaminação reflexiva
ante as provocações do Dossiê
Ações feministas/corpas decoloniais: cenários do
sul
, pois é desde um lugar brasileiro e mestiço (Anzaldúa, 1987) que ocupamos
nosso campo de escrita e de subjetivação. Temos por hipótese que a atuação de
Jup reivindica uma estética performativa que se desidentifica (Muñoz, 2013) não
apenas em relação a representações hegemônicas sobre corpas trans, negras e
periféricas, mas também produz uma inteligibilidade outra em relação a
apresentações colonizadas, objetificantes e exotizantes destas mesmas sujeitas,
que se pronunciam
sobre
e não
com
elas. Tomando por referência declarações
publicizadas pela artista, se efetiva igualmente uma visada estético-política que
Leandro Colling (2018) associa às novíssimas configurações das produções
estéticas das dissidências sexuais e de gênero nacionais, nas quais ele percebe
um claro viés artivista.
Trespassada por tecnicidades, há o deslocamento da cena artística para “as
ruas, festas e outros espaços públicos de sociabilidade facilmente acessados”
(Colling, 2018, p. 158). ainda, em nossa hipótese, a ocupação e tomada de posse
do próprio campo audiovisível, construindo-se um espaço de disputa e negociação
de representatividade e de expressividades outras sobre existências trans.
Entendemos que uma vasta produção de músicas e videoclipes realizados de
modo colaborativo e postos em circulação através de plataformas digitais como o
Youtube
e o
Spotify
, contribuíram significativamente como ferramentas de embate
nos contextos de recrudescimento conservador. Esta cena artivista, além de
constituir um novo modelo de inserção econômica por parte de juventudes
periféricas, ativa fluxos
bottom-up
que interferem em dinâmicas de comunicação
massivas, levando, por exemplo, à presença de temáticas como a da
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intersexualidade e da transgeneridade em telenovelas brasileiras.
No que toca a nossa experiência de campo, iniciada, por uma das pessoas
autoras, nos anos 2010, entendemos que Jup produz uma episteme encarnada e
desejante, situada no campo do que vimos chamando de “fervo-artivismo”
(Grunvald, 2019), que se associa à perspectiva do
fervo como luta
proposto com
ênfase pelos movimentos sociais articulados em torno da chamada “revolta da
lâmpada”8. Tomamos ainda os vetores de autorrepresentação e da gestão
compartilhada e horizontal de suas estratégias de visibilidade como uma
importante possibilidade decolonial expressa na prática artística de Jup do Bairro.
Em seu
remix
artístico, Jup dá a ver cenas em essência protagônicas, nas quais a
linguagem artística é morada de alteridades, mas também de pertenças e de
sensórios - periféricos, melancólicos, futuristas, travestis.
Quando Paul Preciado propôs, em
Manifesto Contrassexual
(2014), a
concepção dos “corpos falantes”9, fundando uma original e radical abordagem
pós-identitária, talvez não tenha encarado em sua amplitude a centralidade dos
atravessamentos interseccionais ou a necessária consideração das assimetrias de
poder atinentes aos marcadores identitários que nos fazem, no Brasil, racializar e
decolonizar o debate sobre sexualidades e gêneros. Ainda assim, e rasurando a
narrativa de Preciado, sem contudo abandoná-la10, retomamos neste artigo a
inspiração de José Esteban Muñoz (2013) para propor uma racialização e uma
transgenerificação de perspectivas feministas e de uma gramática
queer
na
abordagem de práticas artístico-existenciais contemporâneas capitaneadas por
uma artista jovem, vivendo na cidade de São Paulo, e cujo bairro que lhe dá nome
é o Capão Redondo, celeiro cultural de uma miríade de artistas, coletivos e
expressões culturais de grande alcance e impacto, e igualmente retratado na
comunicação massiva, e em determinados “imaginários sociais” (Perea, 1998),
8 A revolta da lâmpada mobilizou artistas, ativistas, intelectuais que ocuparam as ruas do centro de São Paulo
com atos públicos festivos, disruptivos e profundamente politizados, em que as pautas de gênero e
sexualidade estavam presentes, tendo sido disparada pelo ataque sofrido em 2010 por três jovens, agredidos
na avenida Paulista com golpes de lâmpadas fluorescentes, supostamente por serem identificados pelos
agressores como gays.
9 “No âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou
mulheres, e sim como corpos falantes”. (Preciado, 2014, p. 21).
10 O próprio autor visitará posteriormente tais marcadores em seu Dysphoria Mundi (Preciado, 2023).
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sempre sob o jugo do estigma.
Desse modo, a performance artística de Jup aponta para uma ambiência
significante na qual seria possível localizar
a emergência de outros coletivos e artistas que trabalham dentro de uma
perspectiva das dissidências sexuais e de gênero e, ao mesmo tempo,
explicitam suas intenções políticas, ou melhor, que criam e entendem as
suas manifestações artísticas como formas distintas de fazer política, em
especial quando contrapostas às formas mais “tradicionais” usadas pelo
movimento LGBT e feminista
mainstream
. (Colling, 2018, p. 158).
Nessa direção, o experimentalismo transfeminista11 de Jup afasta-se de
normatividades e binarismos identitários - em seu
devir trans
, em sua corpa
travesti - mas, igualmente, retorna e reafirma de modo estratégico algumas
pertenças: a territorialidade do bairro de nascença, a corporalidade negra e gorda,
a vivência infantil (“Era bichinha e era crente, 'cê entende?”, um dos versos da
música
O Corre
). Esta perspectiva em certo sentido paradoxal da
negação/afirmação (identitária) constitui um recurso de subjetivação ambivalente
e transgressor.
Habitar o periférico, mas também afastar-se dele, como aponta o refrão “me
deixa voar, me deixa voar”, ou nas imagens de Jup saindo de uma crisálida e
recebendo asas, aciona uma interessante cena artística que vimos chamando de
“pós-periférica” (Rocha; Pereira; Costa, 2015). Ou seja, a artista habita um entre
lugar, assim como seu próprio corpo é feito nos entremeios e nas subversões de
limites, sejam os biológicos, sejam os culturais. E inversões se fazem: o que é
econômica e socialmente expulso para a periferia das cidades e das sociedades
torna-se centralidade, na clara perspectiva do
boom
dos artivismos das
dissidências sexuais e de gênero” (Colling, 2018) que configuram uma
imagerie
que
insiste e existe, e não apenas resiste. É importante lembrar que, para Jup, o
trânsito de seu corpo e de suas audiovisualidades entre múltiplas territorialidades
(o Capão Redondo, o centro da cidade de São Paulo e, posteriormente, por espaços
de shows e festivais, pelo exterior do país), também significou estabelecer fissuras
nas dinâmicas centro-periféricas.
O direito à enunciação de epistemes sistematicamente dizimadas (ancestrais,
11 Conceituado no diálogo com teóricas e musicistas feministas como Zerbinatti, Nogueira e Pedro (2018).
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periféricas, de mulheridades, de vidas trans e travestis) é uma ação efetivada
processualmente, tendo constituído, em nossa leitura, um dos polos de luta, por
exemplo, em torno de justiça linguística e equidade social a partir de produções
artísticas contemporâneas. Dodi Leal (2024) refere-se a um “transepistemicídio
estético” que é denunciado e enfrentado, por exemplo, na linguagem pajubá. A
autora, preocupada em “refrescar a discussão sobre o papel da linguagem
anticolonial em uma teatralidade de gênero na contemporaneidade”, cita o relato
de Pêdra Costa, concedido em uma entrevista, do qual retomamos o seguinte
excerto:
Assim como cientistas humanos transformam grupos de pessoas em
sujeitos, pesquisas, teorias e livros, eu transformei a teoria em funk. [...]
Eu acho que o principal desafio, para as pessoas que se reconhecem
como kuir no Brasil, é estarem conectadas aos nossos antepassados
que desafiaram as normas de gênero herdadas da colonização e
conectadas ao conhecimento mágico, ritual e comunitário, de luta e de
cura. Não precisamos de teorias para ser potentes, mas precisamos
relembrar e nos reconectar, porque o esquecimento e a individualidade
são armas do projeto colonial (Gadelha, apud Leal, 2024, p.20).
Jup do Bairro, participa deste vasto campo artístico que, no plano dos
novíssimos artivismos, compõem uma guerrilha linguística e audiovisual de
enfrentamento a silenciamentos de vozes, mas também de estilos musicais,
ressignificando com astúcia linguagens do próprio sistema midiático e do
mainstream
fonográfico. Na densidade narrativa de videoclipes como
Pelo Amor
de Deize,
Corpo Sem Juízo
e
Transgressão
, uma anamnese de vidas periféricas,
dissidentes e subalternizadas produz uma experiência imersiva na rememoração
de juventudes presentes e ausentes, confluindo em acordes e entonações
sui
generis
.
Hip-hop, rap, punk rock
, música eletrônica,
funk,
heavy
metal
são
elementos sintetizados em uma textura audiovisual que convida à reflexividade.
Situados neste plano de anamnese social, os videoclipes de Jup são
memórias poeticamente narradas, evocando vivências por ela vividas, bem como
plurivocalizam vivências outras, de corpos e corpas que, como postula Jup, falam
através de seu próprio corpo. Assim, em seu primeiro videoclipe,
Corpo sem Juízo
,
o desenrolar narrativo é esteticamente ancorado na presença cênica de Jup, em
plano médio, com imagens em preto e branco. Emergem de seu corpo sem juízo
vozes como a da jovem Matheuza Passarelli, executada nos arredores de uma
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comunidade no Rio de Janeiro, narrações da escritora Conceição Evaristo, e a
própria voz de Jup. Encarando-nos através da tela, os efeitos de sentido são afetos
em trânsito, como nas ladainhas que se cantam em algumas religiões durante o
velório dos mortos. Jup está realmente velando a seus mortos. Já em
Pelo amor
de Deize
, uma linguagem audiovisual densa e afrofuturista coloca em diálogo a
experimentação da depressão partilhada pela artista com Deize Tigrona, baluarte
do funk carioca mais originário, também associado a uma vertente feminista
potente, erótica e despudorada.
Nos tópicos seguintes de nossa escrita, convidamos as pessoas leitoras a nos
acompanharem em alguns atravessamentos que, em nossos corpos/corpas, nos
permitiram produzir meta-leituras dos afetos em nós disparados pela
aproximação com uma corpa falante, transartivista,
supervivente
. Acionamos para
tanto três patamares analíticos, construídos aos moldes rizomáticos. Em primeiro
lugar, exploramos as afetualidades e afetações provocadas pelo videoclipe
Transgressão
, destacando algumas categorias de territorialidade que dele
emergiram. Em um segundo momento, a corpa-território de Jup é lida, desde uma
fala êmica, como lugar de aquilombamento, para nós constituído desde a
nomenclatura ciborgue (Haraway, 2000). A seguir, exploramos a perspectiva de
uma vocalidade dissidente manifesta em Jup, para, nas considerações finais,
encontrar algumas ordens de sentido que a conectam a “resistências bioculturais”
(Valenzuela, 2014).
Territorialidades audiovisuais e produção de afetos significantes
Três categorias centrais são assumidas como recurso de abordagem dos
enunciados criativos desta sujeita artivista, a saber, o corpo, as audiovisualidades
e a cidade. Entendemos que ambas compõem uma territorialidade expandida e
rizomática, que nos permite sugerir alguns entrelaçamentos reflexivos voltados à
análise de sentidos e pedagogias possíveis que emergem da corpa falante Jup do
Bairro. Para responder a nossas problemáticas, este artigo aciona, como dito, a
música e o videoclipe
Transgressão
, assumindo-o como observatório de uma
construção particular de territorialidades e “subjetividades políticas encorpadas”
(Díaz; Alvarado, 2012).
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Figura 1 - 'Transgressão', imagem retirada do videoclipe de Jup do Bairro, 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iyZ2PB8vZik
Na imagem que início a esta produção audiovisual (Figura 1), percebemos
uma estética turva e indefinida que instaura um campo do possível a partir de um
devir sem teleologia. Nessa perspectiva, o traçado da corpa falante de Jup é
possibilitado a partir de uma abertura para a incerteza, por meio de uma língua
que se faz na travessia (Preciado, 2019). Para reterritorializar os corpos falantes de
Preciado nas periferias paulistanas, buscamos uma gingada conceitual,
concebendo a performance de Jup a partir do seu aspecto mandingueiro (Rufino,
2019):
A mandinga na Pedagogia das Encruzas se consiste como a sapiência do
corpo envolta à atmosfera da magia e aos procedimentos do
encantamento. Essa é possível vislumbrada no rito, na
performatividade em consonância com os elementos que compõem a
dimensão da magia. Destrói-se para se construir novamente. Para
aqueles que foram relegados ao esquecimento, ao desvio e à não
existência, o que cabe é a invenção. A transformação do mundo perpassa
pela invenção de novos seres. Nesse sentido, aqueles que gingam
buscam no vazio o golpe não necessariamente desejável, mas possível. É
necessário soltar a mandinga, mergulhar nesse campo de potências ainda
pouco conhecido por nós, seres assombrados que desconhecemos os
próprios encantos do corpo (Rufino, 2019, p. 160).
A mandinga é um espaço de ambivalência (Rufino, 2019) que pode ser notado
no início do videoclipe
Transgressão
, quando ela afirma o “sufoco criado da
minha própria mudança”, traçando essa linha tênue que ora aponta para uma
morte inevitável, ora desvela o processo de encantamento que se cria com o
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desfazimento do corpo, marcado no clipe pelo momento da explosão. É pertinente
observar que esse espaço de estranheza se justamente desse lugar de não
existência relegado a sua corpa racializada, que culmina num devir mandingueiro
que “é veneno e remédio, é brinquedo e faca de ponta” (Rufino, 2019, p. 160).
Jup do Bairro, na letra da música
Transgressão
, pratica uma “gramática do
encante” (Rufino, 2019, p. 161) que permite a apropriação de saberes fronteiriços,
rompendo com a escola colonial que qualifica o corpo como uma entidade
monolítica e autossuficiente. Em vez disso, abre espaço para uma impossibilidade
que se torna possível através de mandingas incorporais.
Esse movimento que se faz do corpo às corpas nos permite romper com “os
artigos definidos maiúsculos, como O real, A existência, O corpo, O sujeito e O self,”
(Greiner, 2023, p. 23) para dar lugar a um giro enunciativo que privilegia artigos
indefinidos e agenciamentos instáveis. Nessa lógica de despossessão dos
performativos dominantes, é possível traçar linhas de fuga que narram uma arte
do corpo que pouco tem relação com formas prontas, abrindo-se para um
processo de constante improvisação que se a partir daquilo que pede
passagem: os afetos, as metamorfoses, o ambiente, as mandingas.
Figura 2 - 'Transgressão', imagem retirada do videoclipe de Jup do Bairro, 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iyZ2PB8vZik
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Jup do Bairro, em outro momento do clipe (Figura, 2), reencanta a sua corpa
por meio de um devir-borboleta, possibilitando um drible aos ideais de
humanidade que aprisionam a trans-encarnação. Corpas travestis, como Jota
Mombaça (2021), também compõem agenciamentos que fogem dessa lógica
dominante, como exemplificado por meio de um devir-terra que a autora fabula
em sua literatura. Preciado (2019, p. 23) também explorou a ideia de um devir
animal-cibernético ao questionar: “O jaguar ou o ciborgue podem nos emprestar
suas vozes?”
Essas perspectivas são fundamentais para repensar as construções do corpo
"como uma operação anárquica e criadora" (Greiner, 2023, p. 25), que por meio de
uma crítica ao antropocentrismo apontam para um rompimento de fronteiras
prenunciado por Donna Haraway em seu
Manifesto Ciborgue
(2000). A partir de
saberes situados, experimenta-se sua própria reinvenção, apostando na
vulnerabilidade como manifestos somatopolíticos: visuais, literários, musicais.
Essas sabedorias transfeministas das corpas mandingueiras representam um
resgate de singularidades coletivas. São coletivas porque valorizam os
agenciamentos, e singulares porque suas experimentações são incorporadas nas
nuances culturais, econômicas e sociais de cada contexto.
Para abordar esse saber fronteiriço produzido pela vocalidade de Jup, por seu
áudio-rezo mandingueiro, utilizamos o que chamamos de relato de impacto, uma
narrativa que busca se desviar de um fazer-sobre para um fazer-com. Esta
ferramenta de análise nos permitiu corporificar as sonoridades de Jup para que,
nesse encontro, também possamos compor com seus afetos. É o que se nota no
relato a seguir:
Nesse dia fora do tempo, também do meu casulo, pude ouvir um canto
que dizia "me deixa voar, me deixa voar". Um território que se cria na
repetição. O voo é um objeto de pretensão que se faz no desespero da
voz outrora presa, que canta e, por isso, inventa liberdade. Devir-
borboleta. A rachadura revela essa morte inevitável e, à medida que o
peso some, rompendo com a forma do corpo, faz-se então a
metamorfose. Esse acaso estranho, em forma de canto-abstrato, em
ritornelo, anuncia a invenção da vida ao romper com os estratos. "Me
deixa voar, me deixa voar", Jup do Bairro faz da transgressão um
movimento que cria asas.
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Compreendendo o canto como o desejo de construir um ritornelo (Deleuze;
Guattari, 1997), como narrado acima, podemos entender como a repetição na
musicalidade de Jup cartografa um território que não busca um regresso ao
mesmo, mas traça um retorno por meio da diferença, criando um agenciamento
territorial na própria zona de passagem. Conforme (re)corda Leda Maria Martins
(2024, p. 205): “O prefixo
re
nos remete à necessidade de uma volta, de um fazer-
se de novo, de uma retrospecção, de uma retroação, mas também nos aponta
para uma repetição a vir, produzir-se à frente, como uma memória do futuro”.
O processo de porvir da artista é um canto-abstrato, revelando-se na ruptura
com formas convencionais, explorado através de sua metamorfose (devir-
borboleta). Assim, é possível traçar um caminho aberto para uma corpa que se faz
“corpar” (Katz, 2021, p.19) com ritmos desconhecidos e, ao mesmo tempo, se
confunde com eles. Entendemos, por meio da concepção de Bastos (2021), que
essa ação artística carrega "potências de existências". Por meio do (re)frão “me
deixa voar”, podemos mapear que essa potência constitui um repertório
terapêutico que permite a Jup do Bairro transgredir a marginalização de sua corpa
colonizada e racializada, assim como faz uma criança que "no escuro, tomada de
medo, tranquiliza-se cantarolando" (Deleuze; Guattari, 1997, p.116).
Susan Sontag (2020) nos provoca a pensar as expressões artísticas não a lhes
buscar um significado (o que querem dizer). Sontag nos convida a indagar sobre o
que elas nos fazem sentir. Daqui emerge outro relato de impacto:
Os clipes de Jup me fazem soar”, apelando diretamente a meus
sentidos. Dando meu testemunho de audiência implicada, sempre que
escuto Transgressão sinto ecoar em meu próprio corpo um curto-
circuito, um frenesi narrativo de alteridades que me afetam e de vivências
urbanas com as quais me identifico. Atravessando territorialidades tão
distintas (meu corpo de mulher cis, não branca, heteroconstituída; o
corpo sônico audiovisível de Jup, de mulher trans, preta, que transita por
diferentes sexualidades) um fio se toca e se entrelaça. Nossas
mulheridades, geracionalmente distantes, se põem em contato,
perfiladas por escutas partilhadas, do punk ao underground paulistano,
do funk ao rap, da militância política ao consumo de imaginários do
entretenimento e do próprio consumo. É, em certo sentido, nos
nomadismos que nos (re)conhecemos, eu, a garota que migrou para São
Paulo e, como Jup, décadas depois, sentiu-se acolhida pelas subculturas
que pulsavam e pulsam no centro de São Paulo, no Baixo Augusta, na
República, nos circuitos alternativos de dança e de performance.
Uma corpa que encena resistências: visualidades e vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro
Rose de Melo Rocha | Lucas Duarte Kelly
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-27, set. 2024
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Figura 3 - 'Transgressão', imagem retirada do videoclipe de Jup do Bairro, 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iyZ2PB8vZik
“Escrevivência” (Evaristo, 2020), “autoescritura performativa” (Leite, 2012),
uma autoetnografia audiovisual sempre ali, e uma narrativa de si que conecta o
devir-borboleta de Jup aos estilhaços (de corpos, memórias, objetos) que flutuam
ao seu redor nas imagens finais de
Transgressão
(Figura 3), metafóricas não apenas
de processos de esfacelamento do eu mas, igualmente, da potência combinatória
dos restos, dos rastros, do que é descontínuo, do que escapa. É através deste
universo flutuante de presença que Jup transita pela cidade e pelas redes, com
um corpo que se faz performance antes mesmo de se assumir artístico. Nesta
habitabilidade utópica pertencer é sempre estar em fluxo, morando nos
nomadismos e compondo redes que bem podem ser lidas como encruzilhadas.
Esta arte do saber tão própria a algumas juventudes periféricas remete a
jornadas diaspóricas, seja da transcestralidade, seja da afromemória, pois “[a]pesar
de quase nunca ouvidas no sentido profundo do termo, as vozes e falas do negro
sempre se fizeram ouvir” (Duarte, 2020, p. 75). Jup, como centenas de outras
jovens das periferias paulistanas, é filha de uma mulher nordestina chefe de
família, a dona Sueli, citada em
O Corre
. Do pai, anarcopunk precocemente
falecido, também ecoam reminiscências bricoladoras. “Em que medida a
premência da ´memória da dor´ e da condição subalterna impulsiona a ficção
embebida no testemunho? “, pergunta-se Duarte (2020, p. 79). Em sua
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“autoescritura performativa” (Leite, 2012), Jup do Bairro visita a dor para
ressignificá-la e não por acaso refere-se a sua produção artística como parte de
um processo de cura coletiva.
Corpa-território em cena: significações aquilombadas de uma corpa
ciborgue
Tomando por referência as multi-territorialidades acionadas por Jup do
Bairro, é nossa proposta compreender as implicações e condições de possibilidade
criativas e existenciais de sua intensa relação com territórios dos corpos os
dissidentes, pretos e travestis em especial –, da cidade o bairro do Capão
Redondo e o underground paulistano em destaque e das audiovisualidades
alguns de seus videoclipes em particular. De cunho analítico e reflexivo, nossa
escrita é também um território urdido pelas falas e memórias de Jup. Assim, mais
do que interpretar o significado de seus videoclipes, nos interessamos por
auscultar o que evocam de uma vivência muito particular da cidade de São Paulo
e dos territórios audiovisuais artivistas, experimentais e dissidentes.
Refletimos sobre os sentidos estéticos e políticos desta produção audiovisual
compreendida pelos saberes nativos como experimental e independente. No que
diz respeito ao debate comunicacional, construímos teoricamente a hipótese
analítica de que, através de tais práticas artísticas e redes afetuais, processos
históricos e estruturais de opressão, silenciamento e precarização de juventudes
periféricas, pretas e dissidentes são expostos e confrontados, com zonas de
apagamento e amnésia social se transmutando em zonas de anamnese narrativa
e distribuição de audiovisibilidades então subalternizadas, com a produção de
inteligibilidades outras sobre sexualidade e gênero, sobre o espaço e o tempo
urbano, sobre a política e a arte.
Durante a trajetória da pesquisa de campo que foi realizada em uma Casa de
Acolhimento de mulheres trans e travestis em São Paulo, conduzida por uma das
pessoas autoras neste ano de 2024 (Kelly, 2024), cartografou-se a relação entre
essas corpas transfronteiriças e as quebradas de São Paulo. Diante desse
encontro, foi possível refletir como esses espaços modelizam a percepção dessas
corpas, sendo catalisadores de transformação, e agentes de produção dessas
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corporalidades.
Na relação entre corpo e rua, é crucial trazer à tona o ensinamento de Leda
Maria Martins (2021), que afirma que a encruzilhada é uma chave teórica essencial
para apreender a diversidade das corporalidades afro-brasileiras. Essa categoria
de análise nos ajuda a contemplar a dimensão coletiva e vulnerável dessas
espacialidades, servindo como um vetor ético-estético para pensar o devir travesti
de Jup do Bairro. A encruzilhada não é apenas um referencial geográfico, mas uma
geometria subjetiva. No caso de Jup, a não demarcação de um território permite
que essa corpa faça morada nos cruzamentos, como marcado na letra da sua
música
Transgressão
: “Faço de flores e amores minhas curtas moradas, ter um
corpo que transita e me faz enxergar, eu vou, eu sigo, estou onde eu sempre quis
estar”.
Situar Jup no campo do "fervo-artivismo" (Grunvald, 2016) nos permite
ressaltar a importância da relação com a rua em suas produções artísticas.
Grunvald salienta como a rua é um vetor de potencialidades para corpas
vulneráveis:
é tempo de RESSUSCITAR e ocupar a rua com força total, é tempo de
furacão sapatão, de terremoto preto, de tsunami travesti, de gordas
sísmicas, de tornado vyado, de incêndio feminista, de um maremoto
positivo de corpos vulneráveis que se fortalecem juntos, é tempo de
chuca ácida, de armas queermicas, de fazer buraco na camada d’OZOMI
(A Revolta da Lâmpada, 2018, s/p).
Acreditamos que a relação de Jup do Bairro com as quebradas gera um
terremoto preto de manifestações inventivas em sua obra. Estas, desprovidas de
uma teleologia, instauram intensidades rítmicas, químicas, sonoras e visuais. O
artivismo de Jup manifesta um regime de sensibilidade que não teme contaminar
e ser contaminado pelas quebradas e por outras corpas políticas e poéticas das
bordas transfronteiriças de São Paulo.
Este panorama dialoga, na mobilização de corporalidades, audiovisualidades
e tecnicidades, com matrizes culturais latino-americanas e afrodiaspóricas, em
suas variadas apropriações e releituras regionais e locais. Tais elementos parecem
configurar uma "ecologia acústica das cidades" (Bieletto-Bueno, 2021)
transgenerificada e racializada, que se coloca em sinergia com "políticas de
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audiovisibilidade" juvenis transfronteiriças (Rocha, 2006; 2022) LGBTQIA+,
evocando processos de reflexividade e reparação social e constituindo
inteligibilidade (social, cultural, urbana) a partir de gramáticas dissidentes e
epistemes travestis.
Corporalidades e audiovisualidades expandidas (Rocha, Zacariotti, 2021),
atuantes em um espaço público igualmente expandido, expressam “as
transformações geradas por uma nova economia da cultura e pelas inovações
tecnológicas” (Canclini, 2012, p. 4). Assim, juventudes urbanas contemporâneas
dissidentes e/ou periféricas, constituem estratégias de “criação, produção,
consumo e circulação musical [e audiovisual]” (Woodside; Jiménez, 2012, p. 98),
entretecidas por redes digitais, mas também por redes de afetos e de colaboração
profissional entre pares.
A obra de Jup toma parte de sua particular estética existencial, sinalizando
claramente a entrada na cena artivista de uma voz travesti profunda, racializada e
fortemente ancorada no experimentalismo audiovisual. Herdeira do grito cantado
dos anarcopunks, Jup o atualiza ora com humor, ora com uma melancolia
estilizada. O canto de Jup ecoa sua vida periférica atravessada pelas veias da
cultura alternativa e das cores do pop. A autointitulada “filha mais fria” do Capão
é também aquela que, no solo fraturado de suas canções audiovisualizadas,
atravessa fronteiras territoriais para alcançar o liame transfronteiriço que a une a
outras juvenilidades e mulheridades. Aquilombam-se, em corpo, música e alma. A
multi-territorialidade de Jup é parte de uma narrativa auto e exa-biográfica, na
qual zonas de silenciamento se convertem em zonas de distribuição de
audiovisualidades. O aquilombamento, princípio ético-existencial e perspectiva
estético-política, dialoga com as enunciações pregressas de Beatriz Nascimento
(2021) e ganha na escrita de Joselicio Junior (2019) uma entonação precisa.
Segundo o autor,
Aquilombar-se é se nutrir da ancestralidade, compreender as tecnologias
e métodos que construímos ao longo dos séculos, que nos permitiu
chegar até aqui. Esse pertencimento e essa identidade são fundamentais
para percebermos que não estamos sozinhos e que precisamos estar
irmanados, agindo coletivamente e estrategicamente. Aquilombar-se na
atualidade é estabelecer o
Autocuidado
, construir espaço coletivos de
afeto, de acolhimento, de escuta, de sociabilidade, de sentidos coletivos,
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de fortalecimento de laços, memórias e constituição de uma identidade.
Aquilombar-se é se
Organizar
, constituir espaços que possamos refletir
e agir sobre a nossa realidade. Questionar o que está posto que nos
oprime e construir demandas, ações concretas, nos colocar em
movimento para mudar nossa realidade. Aquilombar-se é compreender
a nossa história, nossas origens, nossa cultura, resgatar nossas memórias,
é lembrar o passado, para entender o presente e construir o futuro
(Joselicio Junior, 2019, s/p).
Propondo regimes afetuais intensos de vinculação entre corpos, territórios,
imagens e sonoridades, a estética mobilizada por Jup (aquilombada, protagônica,
autoral) aproxima-se das dissidências sexuais e de gênero e das diásporas afro-
latinas, e o faz a partir de um corpo narrativo ciborgue, aqui compreendido na
direção de Haraway (2000, p. 36), como “um organismo cibernético, um híbrido de
máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de
ficção”. Em meio ao fluxo de corporalidades expandidas, em transe e em trânsito,
a corpa de Jup é médium e repositório de múltiplas vocalidades, retomando a
potência política da “fúria travesti”12 e a potência estética da mutação.
A ocupação em rede do território audiovisual se desde uma
audiovisibilidade também em rede (afetual, efetiva), nesta plurivocalidade
performada ou presumida na qual narrar a si mesma significa vocalizar e
corporificar existências interrompidas. Como disse Jup em alguns depoimentos,
“sou um corpo que morreu inúmeras vezes”. Com sua corpa política híbrida,
habita um cronotopos utópico, em uma ocupação política de territórios de
concentração audiovisual. Um circuito se estabelece: corpos [audiovisíveis]
ocupam corpos [audiovisuais] e modificam corpos [urbanos e humanos].
É assumido como norteador analítico que guia nossas abordagens das
práticas de engajamento e criação artística juvenil LGBTQIAP+ estudadas o
conceito de “transfronteiriço”, que atualiza e amplia a perspectiva das “ações
comunicacionais de fronteira” à qual nos referimos em estudos anteriores (Rocha,
2012). Esta é uma escolha política e situada, que nos permite apreender as
mutações e movências de tais artivismos e das práticas culturais e artísticas por
12 Referência ao coletivo de pessoas que enfrentaram na Argentina inúmeros processos de perseguição e
exclusão, com destaque para a Associação para a Luta pela Identidade Travesti e Transsexual (ALITT),
liderada por Lohana Berkins.
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eles engendradas. O transfronteiriço compreende, pois, uma astúcia do ir e vir, que
considera os fluxos compulsórios, mas que igualmente prevê ou busca instaurar a
agência dos sujeitos em trânsito.
Os artivismos e experimentalismos audiovisuais LGBTQIAP+ que entrecruzam
a vida na cidade de São Paulo e a vivência nas redes digitais, o fazem em fluxos
de sentido que acolhem o periférico na consciência histórica das desigualdades,
exclusões e subalternizações e o ultrapassam em um projeto (político, cultural,
artístico e econômico) de inserção que força os limites da lógica centro/periferia,
rasurando-a, a desestabilizando. Configuram “circuitos culturais” reticulares e
policêntricos, com “níveis de institucionalidade e monetarização dos objetivos
traçados”, mas configurando uma dinâmica “de certa forma hibrida”, em que
“graus expressivos de formalismo” podem conviver com a permanência de “um
razoável protagonismo dos atores sociais nas iniciativas, dinâmicas e processos
engendrados nos circuitos” (Herschmann, 2010, p. 40-41).
Neste sentido, às lógicas excludentes sobrepõem-se táticas de inclusão e
negociação que nem sempre irão caracterizar uma dinâmica de adesão irrestrita
ou de caráter conformista em relação seja às institucionalidades, ao
mainstream
musical, às dinâmicas mercadológicas, à cultura massiva, midiática, digital e/ou
plataformizada.
Vocalidades dissidentes: o que pode uma corpa transfeminista falante?
É possível defender que a obra performativa e audiovisual de uma artista
brasileira vinculada ao experimentalismo musical transsituado e racializado seja
essencialmente marcada pela potência política e por uma estética da vocalidade
de sua corpa dissidente? Acreditamos que sim. Esta hipótese reflexiva ancora-se
em alguns anos de estudo e acompanhamento sistemático, implicado e
apaixonado da multiartista paulistana Jup do Bairro, como parte de uma longa
trajetória de escuta e análise de práticas estético-políticas lideradas por sujeitas e
sujeitos juvenis no Brasil, em especial na cidade de São Paulo. Jovem, negra, gorda,
essa mulheridade travesti para a qual dirigimos nosso olhar-escuta e nossa escrita
é, como exposto, fortemente vinculada à territorialidade da região do Capão
Redondo, icônico bairro pertencente à zona sul periférica da cidade de São Paulo,
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e uma das vozes audiovisuais expoentes do que vimos denominando “artivismos
musicais de gênero” (Rocha, 2021).
O lugar dos artivismos de gênero é um marcador fundamental para
compreendermos o largo espectro de vocalidades dissidentes que emergem em
nosso país desde a década de 90, com raízes inscritas nas convocações artivistas
dos anos 70, em resposta, neste caso, ao alastramento ditatorial e repressivo e
contemporaneamente vinculadas a uma descompressão da produção cultural e
ao questionamento a institucionalidades da arte e da política. Algumas juventudes
das décadas de 2000 a 2020 (como as que protagonizaram marchas e outras que
constituíram coletivos) encampam e atualizam esse debate, em especial ao se
apropriarem de uma mutação fundamental no campo das mídias e das
tecnologias de comunicação, a saber, a disseminação de um escopo de ação “pós-
massivo” (Lemos, 2010), engendrado pela popularização das redes sociais, pela
digitalização dos processos produtivos e da cultura, e com a posterior
plataformização (D !Andrea, 2018) dos fenômenos de comunicação social.
Assim, assistimos à crescente imbricação entre ruas e redes na constituição
de ações juvenis que têm questionado, a um tempo, os cânones da política e
da arte. Vinte anos depois das primeiras grandes marchas, ocorridas em todo o
Brasil, é nos idos de 2020 que começa a circular o EP
Corpo sem juízo
. Jup do
Bairro é uma das jovens periféricas que participa com seu corpo imago-sônico do
novíssimo artivismo concretizado a partir da cultura audiovisual. A “politicidade”
(Rocha, 2012) de Jup, seu quê-fazer que emerge do cotidiano e do corpo, e a eles
regressa, seu modo particular de equacionar o trânsito pelo
mainstream
e as
subculturas é a nosso ver emblemática de uma astúcia perlaborativa.
Na configuração de sua vocalidade está também implicada uma “política de
audiovisibilidade” (Rocha, 2010) híbrida, que se apropria, na “contramão de sua
produtividade programada” (Machado, 1993, p.15), tanto das tecnologias
comunicacionais quanto das “tecnologias de gênero” (De Lauretis, 1987), e
“[prioriza] as estratégias políticas através do campo da cultura, em especial através
de produtos culturais, pois os/as ativistas entendem que os preconceitos nascem
na cultura e que a estratégia da sensibilização via manifestações culturais é mais
produtiva” (Colling, 2018, p.61).
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Corpo como lugar epistêmico, corpo como referente da processualidade
investigativa, corporalidades corpolíticas configuradas por “corpos falantes”
(Preciado, 2014) e por “corpos em aliança” (Judith Butler, 2019), corpos artivistas
ocupando corpos urbanos e digitais. Audiovisualidades como corpo, afetando
corpos. Corpos resistindo e existindo desde um circuito tentacular, no qual corpos
audiovisíveis, ocupam corpos audiovisuais e transformam corpos humanos,
tecnológicos, urbanos.
Uma economia corponarrativa visual e sonora em primeira pessoa que parte
do corpo e ressoa corpos produz com e em territórios em contaminação,
mobilizando uma
soul music
da quebrada, essa linguagem de corpos silenciados
que ecoam nas audiovisualidades, corpos que habitam a cidade em fluxo e
resistência. uma alma encantadora nos videoclipes de Jup, um cruzamento
polifônico de uma fala cantada, atravessada por narrativas de perdas e presença
de ausências. As doenças da alma atravessam periferias dos territórios da cidade
e do corpo, como uma metanarrativa que pergunta: O que pode um corpo preto,
gordo, travesti audiovisível?
Na anamnese sócio-política da dizimação do povo preto e periférico, e das
dissidências de sexualidade e gênero, o transartivismo de Jup não apenas
configura uma nova gramática e inteligibilidade sobre os fazeres artísticos de
performers e cantoras contemporâneas, mas igualmente suporta uma condição
de possibilidade para a configuração de políticas de escuta de juventudes
silenciadas, emergindo em particular de uma produção audiovisual que utiliza
vivências dolorosas como base estético-narrativa e aparatos tecnológicos
(celulares, programas de sampleagem e remixagem, plataformas como
Youtube
)
para gerar e disseminar produções artísticas autorais e experimentais.
Entendemos ainda que a tessitura artística de Jup está fundada em várias
ordens de sonoridades e materialidades audiovisuais que buscamos expor e
problematizar neste artigo, o que se a ver e ouvir tanto em seus videoclipes,
em suas performances ao vivo quanto em inúmeras narrativas de si inscritas em
entrevistas e depoimentos. A mulheridade de Jup ecoa a partir de uma voz grave,
potente, sincopada, como um lamento ruidoso, irônico e sentido, que a seu
corpo grande e negro uma referencialidade corpográfica múltipla e complexa. A
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gramática audiovisual de Jup compõe uma memória artística e afetiva que evoca
imaginários apenas aparentemente díspares.
Esta cena intersecciona algumas corporalidades nucleares: o corpo
performativo de Jup, a performance audiovisual materializada por seus
videoclipes, os corpos-mídia e os corpos urbanos. Essa sonoridade “corpográfica”
(Santo; Lotufo, 2014) entrelaça silêncios, ruídos, gritos, rastros de musicalidades
em um campo performativo tátil e tático. Se, como propõe David Lapoujade (2022),
nossos corpos são corpos que “não aguentam mais” a tensão que se impõe, a
nossos fluxos internos, pela via do excessivo sobrepeso dos ruídos externos, o
corpografar de Jup é um caminho de ruptura performativa. Com sua voz grave
demais, com seu corpo grande demais, com sua risada alta demais, Jup rasura
normatividades expressivas.
Embora seja vasto e diverso, o caldeirão memoriográfico de Jup possui
evidentes traços comuns. Seja no
punk
, no
heavy metal
, no
rap
ou no
hip hop
, a
oralidade e o modo de cantar, de usar a voz, são fundamentais. Palavras cantadas,
gritadas, faladas em atravessamento com as batidas musicais, com os
beats
e a
sonoridade instrumental, ambos se fazem presentes nas performances de Jup do
Bairro. Às vezes como grito de guerra, às vezes como lamento ruidoso e
politicamente melodramático há uma matriz cultural comum ecoando aí.
Considerações finais: vocalidades dissidentes e resistências bioculturais
Nas considerações finais deste artigo insistimos em uma distinção analítica
fulcral, que vai além da detecção e da problematização do que seria a produção
de legibilidade em criações audiovisuais das dissidências travestis racializadas.
Compreendemos, com inúmeras juvenólogas e juvenólogos latino-americanos e
caribenhos, que as produções artísticas dissidentes, em especial as
protagonizadas por juventudes LGBTQIAP+, tem contemporaneamente ido além
do legível e da própria produção de visibilidade.
Entendemos que a política de audiovisibilidade promovida através dos
corpos-mídia e da tessitura artística como um todo produz inteligibilidade. Como
postulado por José Manuel Valenzuela (2014) tratar-se-ia de uma ação de
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resistência biocultural de enfrentamento à necropolítica, seus silenciamentos,
seus epistemicídios e o que nomeamos de “corporicídios”.
Esta biopolítica do audiovisível uma volta a mais na episteme
comunicacional que emerge das vocalidades e visualidades juvenis. É gerada uma
pedagogia exógena, uma potencialidade política que apresenta às audiências
através da tangibilidade audiovisual novas formas de compreensão destes
corpos e corpas. Dialogamos aqui com o conceito das “dramaturgias híbridas”
(Santo; Lotufo, 2014; Leite, 2020), identificando no corpo ciborgue e performativo
de Jup “uma dramaturgia do corpo/cidade” [...] “que desestabiliza e impõe uma
suspensão nos condicionamentos autômatos dos indivíduos atropelados pela
pressa e a dispersão da atenção” (Santo; Lotufo, 2014, p. 74).
Desse modo, constrói-se nossa escuta e nosso olhar a estes corpos políticos
que falam, criam, se comunicam, constituem redes e circuitos culturais em
condição autoral e protagônica, reconhecendo-os como sujeitos de fala e de
visibilidade. Em nossa meta-leitura do conhecimento por eles produzido
refletimos sobre a potência e sobre os conflitos e as tensões desta
audiovisibilidade juvenil, urbana e transfronteiriça, com suas práticas e regimes
policêntricos de comunicação e que poliniza narrativas antes subalternizadas,
ancoradas em processos e práticas criativas partilhadas.
Assim, ante a pergunta “em que efetivamente contribuem para mudar a
sociedade?”, tratamos com bastante cuidado as problematizações sobre o alcance
dessas produções artísticas que emergem de juventudes dissidentes,
subalternizados e/ou vulnerabilizadas. Muitas vezes, ao lhes questionar a
legitimidade (ou a autenticidade, ou a criticidade), alguns dos leitores mais bem
intencionados acabam por reproduzir a espiral de silenciamento à qual
recorrentemente estas juventudes são conduzidas. Sem recair em purismos e em
idealizações, é preciso disponibilizar-se à escuta de tais outridades, muitas vezes
ruidosas, afrontosas, “perfechativas” (Colling; Arruda; Nonato, 2019). Como
hipótese de escuta, deslocamos a pergunta anteriormente apresentada,
substituindo-a por “qual a produção de inteligibilidade que estas juventudes
articulam, sob quais formatos e gramáticas?”.
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Nessa direção, nos parece urgente nomear não exclusivamente a uma
epistemologia do Sul, mas a uma epistemologia sudaca, uma trans epistemologia
de carne, pele, vozes e afetos, uma epistemologia travesti encarnada, do entre,
que rasure à ideia mesma de epistemologia como algo exógeno aos sujeitos de
ação e de discurso. Essa epistemologia não se trata apenas de uma meta-escuta
nem apenas de uma meta-escrita que constata as desigualdades e se aterra com
as violências. Ela se oferece em condição de retaguarda às narrativas utópicas
tecidas por corpos, corpas e existências possíveis, falantes, pensantes, ativas,
capazes de narrar a si mesmas, desde suas próprias experiências.
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Recebido em: 30/06/2024
Aprovado em: 17/08/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br