Uma corpa que encena resistências: visualidades e vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro
Rose de Melo Rocha | Lucas Duarte Kelly
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-27, set. 2024
Compreendendo o canto como o desejo de construir um ritornelo (Deleuze;
Guattari, 1997), como narrado acima, podemos entender como a repetição na
musicalidade de Jup cartografa um território que não busca um regresso ao
mesmo, mas traça um retorno por meio da diferença, criando um agenciamento
territorial na própria zona de passagem. Conforme (re)corda Leda Maria Martins
(2024, p. 205): “O prefixo
re
nos remete à necessidade de uma volta, de um fazer-
se de novo, de uma retrospecção, de uma retroação, mas também nos aponta
para uma repetição a vir, produzir-se à frente, como uma memória do futuro”.
O processo de porvir da artista é um canto-abstrato, revelando-se na ruptura
com formas convencionais, explorado através de sua metamorfose (devir-
borboleta). Assim, é possível traçar um caminho aberto para uma corpa que se faz
“corpar” (Katz, 2021, p.19) com ritmos desconhecidos e, ao mesmo tempo, se
confunde com eles. Entendemos, por meio da concepção de Bastos (2021), que
essa ação artística carrega "potências de existências". Por meio do (re)frão “me
deixa voar”, podemos mapear que essa potência constitui um repertório
terapêutico que permite a Jup do Bairro transgredir a marginalização de sua corpa
colonizada e racializada, assim como faz uma criança que "no escuro, tomada de
medo, tranquiliza-se cantarolando" (Deleuze; Guattari, 1997, p.116).
Susan Sontag (2020) nos provoca a pensar as expressões artísticas não a lhes
buscar um significado (o que querem dizer). Sontag nos convida a indagar sobre o
que elas nos fazem sentir. Daqui emerge outro relato de impacto:
Os clipes de Jup me fazem “soar”, apelando diretamente a meus
sentidos. Dando meu testemunho de audiência implicada, sempre que
escuto Transgressão sinto ecoar em meu próprio corpo um curto-
circuito, um frenesi narrativo de alteridades que me afetam e de vivências
urbanas com as quais me identifico. Atravessando territorialidades tão
distintas (meu corpo de mulher cis, não branca, heteroconstituída; o
corpo sônico audiovisível de Jup, de mulher trans, preta, que transita por
diferentes sexualidades) um fio se toca e se entrelaça. Nossas
mulheridades, geracionalmente distantes, se põem em contato,
perfiladas por escutas partilhadas, do punk ao underground paulistano,
do funk ao rap, da militância política ao consumo de imaginários do
entretenimento e do próprio consumo. É, em certo sentido, nos
nomadismos que nos (re)conhecemos, eu, a garota que migrou para São
Paulo e, como Jup, décadas depois, sentiu-se acolhida pelas subculturas
que pulsavam e pulsam no centro de São Paulo, no Baixo Augusta, na
República, nos circuitos alternativos de dança e de performance.