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Uma corpa que encena resistências: visualidades e
vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro
Rose de Melo Rocha
Lucas Duarte Kelly
Para citar este artigo:
ROCHA, Rose de Melo; KELLY, Lucas Duarte. Uma corpa que
encena resistências: visualidades e vocalidades dissidentes
na arte de Jup do Bairro.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0108
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Uma corpa que encena resistências: visualidades e vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro
Rose de Melo Rocha | Lucas Duarte Kelly
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-27, set. 2024
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Uma corpa que encena resistências1: visualidades e vocalidades dissidentes na arte de Jup do Bairro2
Rose de Melo Rocha3
Lucas Duarte Kelly4
Resumo
O artigo explorou as resistências encenadas por Jup do Bairro em sua arte experimental e
transfeminista, destacando suas visualidades e vocalidades dissidentes. Através de uma análise de sua
obra, com ênfase no videoclipe 'Transgressão', investigou-se como Jup utilizou a encruzilhada como
referencial para desestabilizar representações hegemônicas e criar novas formas de subjetividade e
existência. A escrita dialogou com conceitos de artivismo, autonarrativa e anamnese, identificando em
Jup uma resposta estética e política às opressões e silenciamentos enfrentados por corpos trans,
negros e periféricos, sublinhando a interseccionalidade dessas questões.
Palavras-chave
: Arte experimental. Transfeminismo. Resistência. Visualidades dissidentes. Corpos
periféricos.
A body that stages resistance: dissident visualities and vocalities in the art of Jup do Bairro
Abstract
The article explored the resistances staged by Jup do Bairro in her experimental and transfeminist art,
highlighting her dissident visualities and vocalities. Through an analysis of her work, with an emphasis
on the 'Transgressão' music video, it was investigated how Jup used the crossroads as a reference to
destabilize hegemonic representations and create new forms of subjectivity and existence. The writing
engaged with concepts of artivism, autonarrative, and anamnesis, identifying in Jup an aesthetic and
political response to the oppressions and silencings faced by trans, black, and peripheral bodies,
underlining the intersectionality of these issues.
Keywords:
Experimental art. Transfeminism. Resistance. Dissident visualities. Peripheral bodies.
Una corpa que escenifica resistencias: visualidades y vocalidades disidentes en el arte de Jup do Bairro
Resumen
El artículo exploró las resistencias escenificadas por Jup do Bairro en su arte experimental y
transfeminista, destacando sus visualidades y vocalidades disidentes. A través de un análisis de su
obra, con énfasis en el videoclip 'Transgressão', se investigó cómo Jup utilizó la encrucijada como
referencial para desestabilizar representaciones hegemónicas y crear nuevas formas de subjetividad y
existencia. La escritura dialogó con conceptos de artivismo, autonarrativa y anamnesis, identificando
en Jup una respuesta estética y política a las presiones y silenciamientos enfrentados por cuerpos
trans, negros y periféricos, subrayando la interseccionalidad de estas cuestiones.
Palabras clave
: Arte experimental. Transfeminismo. Resistencia. Visualidades disidentes. Cuerpos
periféricos.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo foi realizada pelos autores.
2 Este artigo é parte de pesquisa financiada pelo CNPq com bolsa Produtividade em Pesquisa Pq.
3 Pós-doutorado na Universidade Federal, da Bahia (UFBA). Pós-doutorado na CLACSO Argentina. Pós-
doutorado na Pontíficia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Doutora em Ciências da Comunicação
pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Comunicação Social pela Universidade Metodista de
São Paulo (UMESP). Graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Consumo e da graduação na Escola Superior
de Propaganda e Marketing (ESPM). Bolsista Produtividade em Pesquisa (CNPq). rlmrocha@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/2514554478091432 https://orcid.org/0000-0002-7681-5500
4 Graduação em Ciências Sociais e do Consumo, na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM).
lucasduarteee@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/2482804018021699 https://orcid.org/0009-0002-9247-0597
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Introdução
Este artigo nasce de alguns encontros. Uma pesquisa sobre artivismos
musicais de gênero e experimentalismos juvenis transfeministas em São Paulo
(Rocha, 2021; 2022), uma pesquisa sobre tessituras discursivas elaboradas a partir
do encontro com corpas travestis em uma casa de acolhimento na mesma cidade
(Kelly, 2024), o encontro com uma narrativa audiovisual protagônica constituída
por uma multiartista paulistana, Jup do Bairro. Em comum, alguns
atravessamentos: corpos/corpas presentes na urbanidade, corpos/corpas em
trânsito, o próprio corpo da cidade e das audiovisualidades, a corpa transfeminista5
de Jup, corpos/corpas afetando e sendo afetados pelo espaço-tempo urbanos e
pelas temporalidades existenciais constituídas por
devires trans
, corpos/corpas
tensionando as normatividades de gênero e sexualidade. Tomamos como
marcador empírico e como polo de afetação central à nossa escrita não o
encontro com a “corpa-tela”6 de Jup. Elegemos o acontecimento estético-político
enunciado pela artista em seu videoclipe
Transgressão
(2020) como núcleo
epistêmico e afetual que atravessa o texto aqui apresentado, ora o construindo,
ora o perfurando.
A ideia de uma implicação virtualmente compartilhada entre
pesquisadoras/pesquisadores e sujeitas/sujeitos/sujeites de investigação é
reiterada por Ana María Fernández (2013). Dialogando com Néstor Perlongher,
Fernández (2013, p. 15) propõe
um passo a mais em relação às metodologias qualitativas que
incorporam “as vozes” dos atores sociais que investigam. Incorporamos
também seus saberes, que são mais ricos e potentes do que aquele que
a academia clássica, mesmo a mais democrática, pode supor.7
Este guia epistemológico tem no horizonte uma política do conhecimento
simpoiética (Haraway, 2019), que se faz com escutas ativas, e a partir da qual se
5 Partilhamos da perspectiva transfeminista combinatória e gregária de Letícia Nascimento (2021), em especial
na aproximação que permite à estética e politicidade aquilombadas de Jup do Bairro.
6 Alusão ao conceito de “corpo-tela”, de Leda Maria Martins (2021).
7 No original: “[…] un paso más respecto de las metodologías cualitativas que incorporan “las voces” de los
actores sociales que investigan. Incorporamos también sus saberes, que son más ricos y potentes que
aquello que la academia clásica, aún la más democrática, puede suponer.” (Fernández, 2013, p. 15). Tradução
de Rose de Melo Rocha.
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intenciona problematizar as condições de possibilidade que, por sua vez, permitem
a constituição de políticas e pedagogias de afrontamento. Isto significa dizer que,
partilhando de ideais e práticas emancipatórias (Freire, 2021; hooks, 2017), fazer
frente às práticas de silenciamento demanda afrontar às matrizes coloniais,
colonialistas, patriarcais, racistas, classistas, heteronormativas, cisnormativas,
misóginas, xenófobas, LGBTfóbicas em seu próprio núcleo sistêmico, epistêmico
e simbólico, desnaturalizando e historicizando suas lógicas.
Também nos colocamos em situação de contágio e contaminação reflexiva
ante as provocações do Dossiê
Ações feministas/corpas decoloniais: cenários do
sul
, pois é desde um lugar brasileiro e mestiço (Anzaldúa, 1987) que ocupamos
nosso campo de escrita e de subjetivação. Temos por hipótese que a atuação de
Jup reivindica uma estética performativa que se desidentifica (Muñoz, 2013) não
apenas em relação a representações hegemônicas sobre corpas trans, negras e
periféricas, mas também produz uma inteligibilidade outra em relação a
apresentações colonizadas, objetificantes e exotizantes destas mesmas sujeitas,
que se pronunciam
sobre
e não
com
elas. Tomando por referência declarações
publicizadas pela artista, se efetiva igualmente uma visada estético-política que
Leandro Colling (2018) associa às novíssimas configurações das produções
estéticas das dissidências sexuais e de gênero nacionais, nas quais ele percebe
um claro viés artivista.
Trespassada por tecnicidades, há o deslocamento da cena artística para “as
ruas, festas e outros espaços públicos de sociabilidade facilmente acessados”
(Colling, 2018, p. 158). ainda, em nossa hipótese, a ocupação e tomada de posse
do próprio campo audiovisível, construindo-se um espaço de disputa e negociação
de representatividade e de expressividades outras sobre existências trans.
Entendemos que uma vasta produção de músicas e videoclipes realizados de
modo colaborativo e postos em circulação através de plataformas digitais como o
Youtube
e o
Spotify
, contribuíram significativamente como ferramentas de embate
nos contextos de recrudescimento conservador. Esta cena artivista, além de
constituir um novo modelo de inserção econômica por parte de juventudes
periféricas, ativa fluxos
bottom-up
que interferem em dinâmicas de comunicação
massivas, levando, por exemplo, à presença de temáticas como a da
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intersexualidade e da transgeneridade em telenovelas brasileiras.
No que toca a nossa experiência de campo, iniciada, por uma das pessoas
autoras, nos anos 2010, entendemos que Jup produz uma episteme encarnada e
desejante, situada no campo do que vimos chamando de “fervo-artivismo”
(Grunvald, 2019), que se associa à perspectiva do
fervo como luta
proposto com
ênfase pelos movimentos sociais articulados em torno da chamada “revolta da
lâmpada”8. Tomamos ainda os vetores de autorrepresentação e da gestão
compartilhada e horizontal de suas estratégias de visibilidade como uma
importante possibilidade decolonial expressa na prática artística de Jup do Bairro.
Em seu
remix
artístico, Jup dá a ver cenas em essência protagônicas, nas quais a
linguagem artística é morada de alteridades, mas também de pertenças e de
sensórios - periféricos, melancólicos, futuristas, travestis.
Quando Paul Preciado propôs, em
Manifesto Contrassexual
(2014), a
concepção dos “corpos falantes”9, fundando uma original e radical abordagem
pós-identitária, talvez não tenha encarado em sua amplitude a centralidade dos
atravessamentos interseccionais ou a necessária consideração das assimetrias de
poder atinentes aos marcadores identitários que nos fazem, no Brasil, racializar e
decolonizar o debate sobre sexualidades e gêneros. Ainda assim, e rasurando a
narrativa de Preciado, sem contudo abandoná-la10, retomamos neste artigo a
inspiração de José Esteban Muñoz (2013) para propor uma racialização e uma
transgenerificação de perspectivas feministas e de uma gramática
queer
na
abordagem de práticas artístico-existenciais contemporâneas capitaneadas por
uma artista jovem, vivendo na cidade de São Paulo, e cujo bairro que lhe dá nome
é o Capão Redondo, celeiro cultural de uma miríade de artistas, coletivos e
expressões culturais de grande alcance e impacto, e igualmente retratado na
comunicação massiva, e em determinados “imaginários sociais” (Perea, 1998),
8 A revolta da lâmpada mobilizou artistas, ativistas, intelectuais que ocuparam as ruas do centro de São Paulo
com atos públicos festivos, disruptivos e profundamente politizados, em que as pautas de gênero e
sexualidade estavam presentes, tendo sido disparada pelo ataque sofrido em 2010 por três jovens, agredidos
na avenida Paulista com golpes de lâmpadas fluorescentes, supostamente por serem identificados pelos
agressores como gays.
9 “No âmbito do contrato contrassexual, os corpos se reconhecem a si mesmos não como homens ou
mulheres, e sim como corpos falantes”. (Preciado, 2014, p. 21).
10 O próprio autor visitará posteriormente tais marcadores em seu Dysphoria Mundi (Preciado, 2023).
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sempre sob o jugo do estigma.
Desse modo, a performance artística de Jup aponta para uma ambiência
significante na qual seria possível localizar
a emergência de outros coletivos e artistas que trabalham dentro de uma
perspectiva das dissidências sexuais e de gênero e, ao mesmo tempo,
explicitam suas intenções políticas, ou melhor, que criam e entendem as
suas manifestações artísticas como formas distintas de fazer política, em
especial quando contrapostas às formas mais “tradicionais” usadas pelo
movimento LGBT e feminista
mainstream
. (Colling, 2018, p. 158).
Nessa direção, o experimentalismo transfeminista11 de Jup afasta-se de
normatividades e binarismos identitários - em seu
devir trans
, em sua corpa
travesti - mas, igualmente, retorna e reafirma de modo estratégico algumas
pertenças: a territorialidade do bairro de nascença, a corporalidade negra e gorda,
a vivência infantil (“Era bichinha e era crente, 'cê entende?”, um dos versos da
música
O Corre
). Esta perspectiva em certo sentido paradoxal da
negação/afirmação (identitária) constitui um recurso de subjetivação ambivalente
e transgressor.
Habitar o periférico, mas também afastar-se dele, como aponta o refrão “me
deixa voar, me deixa voar”, ou nas imagens de Jup saindo de uma crisálida e
recebendo asas, aciona uma interessante cena artística que vimos chamando de
“pós-periférica” (Rocha; Pereira; Costa, 2015). Ou seja, a artista habita um entre
lugar, assim como seu próprio corpo é feito nos entremeios e nas subversões de
limites, sejam os biológicos, sejam os culturais. E inversões se fazem: o que é
econômica e socialmente expulso para a periferia das cidades e das sociedades
torna-se centralidade, na clara perspectiva do
boom
dos artivismos das
dissidências sexuais e de gênero” (Colling, 2018) que configuram uma
imagerie
que
insiste e existe, e não apenas resiste. É importante lembrar que, para Jup, o
trânsito de seu corpo e de suas audiovisualidades entre múltiplas territorialidades
(o Capão Redondo, o centro da cidade de São Paulo e, posteriormente, por espaços
de shows e festivais, pelo exterior do país), também significou estabelecer fissuras
nas dinâmicas centro-periféricas.
O direito à enunciação de epistemes sistematicamente dizimadas (ancestrais,
11 Conceituado no diálogo com teóricas e musicistas feministas como Zerbinatti, Nogueira e Pedro (2018).
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periféricas, de mulheridades, de vidas trans e travestis) é uma ação efetivada
processualmente, tendo constituído, em nossa leitura, um dos polos de luta, por
exemplo, em torno de justiça linguística e equidade social a partir de produções
artísticas contemporâneas. Dodi Leal (2024) refere-se a um “transepistemicídio
estético” que é denunciado e enfrentado, por exemplo, na linguagem pajubá. A
autora, preocupada em “refrescar a discussão sobre o papel da linguagem
anticolonial em uma teatralidade de gênero na contemporaneidade”, cita o relato
de Pêdra Costa, concedido em uma entrevista, do qual retomamos o seguinte
excerto:
Assim como cientistas humanos transformam grupos de pessoas em
sujeitos, pesquisas, teorias e livros, eu transformei a teoria em funk. [...]
Eu acho que o principal desafio, para as pessoas que se reconhecem
como kuir no Brasil, é estarem conectadas aos nossos antepassados
que desafiaram as normas de gênero herdadas da colonização e
conectadas ao conhecimento mágico, ritual e comunitário, de luta e de
cura. Não precisamos de teorias para ser potentes, mas precisamos
relembrar e nos reconectar, porque o esquecimento e a individualidade
são armas do projeto colonial (Gadelha, apud Leal, 2024, p.20).
Jup do Bairro, participa deste vasto campo artístico que, no plano dos
novíssimos artivismos, compõem uma guerrilha linguística e audiovisual de
enfrentamento a silenciamentos de vozes, mas também de estilos musicais,
ressignificando com astúcia linguagens do próprio sistema midiático e do
mainstream
fonográfico. Na densidade narrativa de videoclipes como
Pelo Amor
de Deize,
Corpo Sem Juízo
e
Transgressão
, uma anamnese de vidas periféricas,
dissidentes e subalternizadas produz uma experiência imersiva na rememoração
de juventudes presentes e ausentes, confluindo em acordes e entonações
sui
generis
.
Hip-hop, rap, punk rock
, música eletrônica,
funk,
heavy
metal
são
elementos sintetizados em uma textura audiovisual que convida à reflexividade.
Situados neste plano de anamnese social, os videoclipes de Jup são
memórias poeticamente narradas, evocando vivências por ela vividas, bem como
plurivocalizam vivências outras, de corpos e corpas que, como postula Jup, falam
através de seu próprio corpo. Assim, em seu primeiro videoclipe,
Corpo sem Juízo
,
o desenrolar narrativo é esteticamente ancorado na presença cênica de Jup, em
plano médio, com imagens em preto e branco. Emergem de seu corpo sem juízo
vozes como a da jovem Matheuza Passarelli, executada nos arredores de uma
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comunidade no Rio de Janeiro, narrações da escritora Conceição Evaristo, e a
própria voz de Jup. Encarando-nos através da tela, os efeitos de sentido são afetos
em trânsito, como nas ladainhas que se cantam em algumas religiões durante o
velório dos mortos. Jup está realmente velando a seus mortos. Já em
Pelo amor
de Deize
, uma linguagem audiovisual densa e afrofuturista coloca em diálogo a
experimentação da depressão partilhada pela artista com Deize Tigrona, baluarte
do funk carioca mais originário, também associado a uma vertente feminista
potente, erótica e despudorada.
Nos tópicos seguintes de nossa escrita, convidamos as pessoas leitoras a nos
acompanharem em alguns atravessamentos que, em nossos corpos/corpas, nos
permitiram produzir meta-leituras dos afetos em nós disparados pela
aproximação com uma corpa falante, transartivista,
supervivente
. Acionamos para
tanto três patamares analíticos, construídos aos moldes rizomáticos. Em primeiro
lugar, exploramos as afetualidades e afetações provocadas pelo videoclipe
Transgressão
, destacando algumas categorias de territorialidade que dele
emergiram. Em um segundo momento, a corpa-território de Jup é lida, desde uma
fala êmica, como lugar de aquilombamento, para nós constituído desde a
nomenclatura ciborgue (Haraway, 2000). A seguir, exploramos a perspectiva de
uma vocalidade dissidente manifesta em Jup, para, nas considerações finais,
encontrar algumas ordens de sentido que a conectam a “resistências bioculturais”
(Valenzuela, 2014).
Territorialidades audiovisuais e produção de afetos significantes
Três categorias centrais são assumidas como recurso de abordagem dos
enunciados criativos desta sujeita artivista, a saber, o corpo, as audiovisualidades
e a cidade. Entendemos que ambas compõem uma territorialidade expandida e
rizomática, que nos permite sugerir alguns entrelaçamentos reflexivos voltados à
análise de sentidos e pedagogias possíveis que emergem da corpa falante Jup do
Bairro. Para responder a nossas problemáticas, este artigo aciona, como dito, a
música e o videoclipe
Transgressão
, assumindo-o como observatório de uma
construção particular de territorialidades e “subjetividades políticas encorpadas”
(Díaz; Alvarado, 2012).
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Figura 1 - 'Transgressão', imagem retirada do videoclipe de Jup do Bairro, 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iyZ2PB8vZik
Na imagem que início a esta produção audiovisual (Figura 1), percebemos
uma estética turva e indefinida que instaura um campo do possível a partir de um
devir sem teleologia. Nessa perspectiva, o traçado da corpa falante de Jup é
possibilitado a partir de uma abertura para a incerteza, por meio de uma língua
que se faz na travessia (Preciado, 2019). Para reterritorializar os corpos falantes de
Preciado nas periferias paulistanas, buscamos uma gingada conceitual,
concebendo a performance de Jup a partir do seu aspecto mandingueiro (Rufino,
2019):
A mandinga na Pedagogia das Encruzas se consiste como a sapiência do
corpo envolta à atmosfera da magia e aos procedimentos do
encantamento. Essa é possível vislumbrada no rito, na
performatividade em consonância com os elementos que compõem a
dimensão da magia. Destrói-se para se construir novamente. Para
aqueles que foram relegados ao esquecimento, ao desvio e à não
existência, o que cabe é a invenção. A transformação do mundo perpassa
pela invenção de novos seres. Nesse sentido, aqueles que gingam
buscam no vazio o golpe não necessariamente desejável, mas possível. É
necessário soltar a mandinga, mergulhar nesse campo de potências ainda
pouco conhecido por nós, seres assombrados que desconhecemos os
próprios encantos do corpo (Rufino, 2019, p. 160).
A mandinga é um espaço de ambivalência (Rufino, 2019) que pode ser notado
no início do videoclipe
Transgressão
, quando ela afirma o “sufoco criado da
minha própria mudança”, traçando essa linha tênue que ora aponta para uma
morte inevitável, ora desvela o processo de encantamento que se cria com o
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desfazimento do corpo, marcado no clipe pelo momento da explosão. É pertinente
observar que esse espaço de estranheza se justamente desse lugar de não
existência relegado a sua corpa racializada, que culmina num devir mandingueiro
que “é veneno e remédio, é brinquedo e faca de ponta” (Rufino, 2019, p. 160).
Jup do Bairro, na letra da música
Transgressão
, pratica uma “gramática do
encante” (Rufino, 2019, p. 161) que permite a apropriação de saberes fronteiriços,
rompendo com a escola colonial que qualifica o corpo como uma entidade
monolítica e autossuficiente. Em vez disso, abre espaço para uma impossibilidade
que se torna possível através de mandingas incorporais.
Esse movimento que se faz do corpo às corpas nos permite romper com “os
artigos definidos maiúsculos, como O real, A existência, O corpo, O sujeito e O self,”
(Greiner, 2023, p. 23) para dar lugar a um giro enunciativo que privilegia artigos
indefinidos e agenciamentos instáveis. Nessa lógica de despossessão dos
performativos dominantes, é possível traçar linhas de fuga que narram uma arte
do corpo que pouco tem relação com formas prontas, abrindo-se para um
processo de constante improvisação que se a partir daquilo que pede
passagem: os afetos, as metamorfoses, o ambiente, as mandingas.
Figura 2 - 'Transgressão', imagem retirada do videoclipe de Jup do Bairro, 2020.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iyZ2PB8vZik
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Jup do Bairro, em outro momento do clipe (Figura, 2), reencanta a sua corpa
por meio de um devir-borboleta, possibilitando um drible aos ideais de
humanidade que aprisionam a trans-encarnação. Corpas travestis, como Jota
Mombaça (2021), também compõem agenciamentos que fogem dessa lógica
dominante, como exemplificado por meio de um devir-terra que a autora fabula
em sua literatura. Preciado (2019, p. 23) também explorou a ideia de um devir
animal-cibernético ao questionar: “O jaguar ou o ciborgue podem nos emprestar
suas vozes?”
Essas perspectivas são fundamentais para repensar as construções do corpo
"como uma operação anárquica e criadora" (Greiner, 2023, p. 25), que por meio de
uma crítica ao antropocentrismo apontam para um rompimento de fronteiras
prenunciado por Donna Haraway em seu
Manifesto Ciborgue
(2000). A partir de
saberes situados, experimenta-se sua própria reinvenção, apostando na
vulnerabilidade como manifestos somatopolíticos: visuais, literários, musicais.
Essas sabedorias transfeministas das corpas mandingueiras representam um
resgate de singularidades coletivas. São coletivas porque valorizam os
agenciamentos, e singulares porque suas experimentações são incorporadas nas
nuances culturais, econômicas e sociais de cada contexto.
Para abordar esse saber fronteiriço produzido pela vocalidade de Jup, por seu
áudio-rezo mandingueiro, utilizamos o que chamamos de relato de impacto, uma
narrativa que busca se desviar de um fazer-sobre para um fazer-com. Esta
ferramenta de análise nos permitiu corporificar as sonoridades de Jup para que,
nesse encontro, também possamos compor com seus afetos. É o que se nota no
relato a seguir:
Nesse dia fora do tempo, também do meu casulo, pude ouvir um canto
que dizia "me deixa voar, me deixa voar". Um território que se cria na
repetição. O voo é um objeto de pretensão que se faz no desespero da
voz outrora presa, que canta e, por isso, inventa liberdade. Devir-
borboleta. A rachadura revela essa morte inevitável e, à medida que o
peso some, rompendo com a forma do corpo, faz-se então a
metamorfose. Esse acaso estranho, em forma de canto-abstrato, em
ritornelo, anuncia a invenção da vida ao romper com os estratos. "Me
deixa voar, me deixa voar", Jup do Bairro faz da transgressão um
movimento que cria asas.
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Compreendendo o canto como o desejo de construir um ritornelo (Deleuze;
Guattari, 1997), como narrado acima, podemos entender como a repetição na
musicalidade de Jup cartografa um território que não busca um regresso ao
mesmo, mas traça um retorno por meio da diferença, criando um agenciamento
territorial na própria zona de passagem. Conforme (re)corda Leda Maria Martins
(2024, p. 205): “O prefixo
re
nos remete à necessidade de uma volta, de um fazer-
se de novo, de uma retrospecção, de uma retroação, mas também nos aponta
para uma repetição a vir, produzir-se à frente, como uma memória do futuro”.
O processo de porvir da artista é um canto-abstrato, revelando-se na ruptura
com formas convencionais, explorado através de sua metamorfose (devir-
borboleta). Assim, é possível traçar um caminho aberto para uma corpa que se faz
“corpar” (Katz, 2021, p.19) com ritmos desconhecidos e, ao mesmo tempo, se
confunde com eles. Entendemos, por meio da concepção de Bastos (2021), que
essa ação artística carrega "potências de existências". Por meio do (re)frão “me
deixa voar”, podemos mapear que essa potência constitui um repertório
terapêutico que permite a Jup do Bairro transgredir a marginalização de sua corpa
colonizada e racializada, assim como faz uma criança que "no escuro, tomada de
medo, tranquiliza-se cantarolando" (Deleuze; Guattari, 1997, p.116).
Susan Sontag (2020) nos provoca a pensar as expressões artísticas não a lhes
buscar um significado (o que querem dizer). Sontag nos convida a indagar sobre o
que elas nos fazem sentir. Daqui emerge outro relato de impacto:
Os clipes de Jup me fazem soar”, apelando diretamente a meus
sentidos. Dando meu testemunho de audiência implicada, sempre que
escuto Transgressão sinto ecoar em meu próprio corpo um curto-
circuito, um frenesi narrativo de alteridades que me afetam e de vivências
urbanas com as quais me identifico. Atravessando territorialidades tão
distintas (meu corpo de mulher cis, não branca, heteroconstituída; o
corpo sônico audiovisível de Jup, de mulher trans, preta, que transita por
diferentes sexualidades) um fio se toca e se entrelaça. Nossas
mulheridades, geracionalmente distantes, se põem em contato,
perfiladas por escutas partilhadas, do punk ao underground paulistano,
do funk ao rap, da militância política ao consumo de imaginários do
entretenimento e do próprio consumo. É, em certo sentido, nos
nomadismos que nos (re)conhecemos, eu, a garota que migrou para São
Paulo e, como Jup, décadas depois, sentiu-se acolhida pelas subculturas
que pulsavam e pulsam no centro de São Paulo, no Baixo Augusta, na
República, nos circuitos alternativos de dança e de performance.