A caça infernal aos signos
Carmem Gadelha
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-13, set. 2024
Ficou tão cheia de medo que, para não lhe acontecer o mesmo, mal
apareceu uma ocasião favorável [...], transformou em amor o seu ódio e
mandou secretamente uma aia de confiança falar com Nastácio para lhe
pedir o favor de a procurar porque estava disposta a fazer tudo o que ele
quisesse. Nastácio mandou responder que isso lhe agradava muito, mas
que só pretendia esse desejo com a sua honra salva, ou seja, casando
com ela. A jovem [...] mandou responder que sim. Ela própria foi
mensageira para dizer ao pai e à mãe que seria muito feliz se pudesse
casar com Nastácio (Boccaccio, s/d, p. 353).
O teatro se faz e se repete, os sujeitos se fazem e se desdobram na cena do
mundo, em planos de narrativa, como no barroco. Inferno, terra e céu são
ambientados em espaços onde estão os jovens, no conto, no teatro, na pintura.
Nesta última, a imagem é distribuída em perspectiva de linhas paralelas – que
sugere, na apresentação teatral, um cenário com as mesmas características. O
Renascimento não tarda ou já começou. A circularidade do discurso devolve
Filomena ao primeiro plano da cena. Ela fecha o conto dizendo que, após verem
o espetáculo do suplício, todas as mulheres de Ravena mudaram de atitude:
afastaram de si a soberba e tornaram-se sensíveis aos desejos masculinos.
Discurso machista, poder-se-ia observar hoje. No entanto, é preciso atentar, com
Foucault, para as “coerções do discurso”: aquilo que as condições de enunciação
de uma época e/ou de uma sociedade obrigam a dizer. Filomena não pode deixar
de dizer (e o faz, talvez, ironicamente) sobre a responsabilidade feminina quanto
aos caminhos do céu e do inferno. Mas, sendo obrigada a dizer, afirma o prazer.
Há, então, uma dupla função didática: a que ensina às mulheres suas “obrigações”
perante os homens; e a que mostra as trilhas do prazer, ainda que tal didática se
dê, principalmente, pelo fator medo. O primeiro aspecto não normatiza o segundo.
Note-se o dever de honra alegado por Nastácio: somente perante o casamento
poderá aceitar a união com a amada. Este sacramento tornou-se obrigatório, por
exigência da Igreja, também no final da Idade Média: era preciso ser virgem como
Maria para garantir as heranças e primogenituras.
As condições de narratividade são, aliás, construídas no próprio espaço
discursivo aberto pelo Decameron. Saem os jovens de Florença para constituir um
outro espaço-tempo distante do martírio da peste. Boa parte das novelas contadas
nas dez jornadas penetra as entranhas dos conventos e das alcovas matrimoniais
para revelar o lugar de pretensas e supostas santidades convertidas em moradas