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A caça infernal aos signos
Carmem Gadelha
Para citar este artigo:
GADELHA, Carmem. A caça infernal aos signos.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0205
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A caça infernal aos signos
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Florianópolis, v.3, n.52, p.1-13, set. 2024
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A caça infernal aos signos
Carmem Gadelha1
Resumo
O texto a seguir trata de “A caça infernal”, contida no Decameron (novela VIII, jornada
V) de Boccaccio (s/d). Procurou-se verificar os níveis da narrativa, que vão do conto
(dentro do qual acontece um espetáculo teatral) ao quadro de Boticelli com o
mesmo título. De um plano narrativo a outro, circulam problemas relativos ao
pecado, visto pelos prismas masculino e feminino. O gênero “moralidade” tem seu
sentido ampliado, numa variedade de registros cômicos e relativos à sátira, à
caricatura, à paródia. Em relevo, o poder masculino impõe-se, mesmo em condições
onde a instituição da Igreja condena suas ações. Às mulheres, resta acatar as
pedagogias da “virtude”.
Palavras-chave
: Moralidade. Teatralidade. Narrativa.
The infernal hunt to signs
Abstract
The following text concerns "The infernal hunt" contained in the Decameron (novel
VIII, journey V) by Boccaccio (no date). The levels of narrative were verified - going
from the tale (within which a theatrical spectacle occurs) to the Boticelli painting
bearing the same title. Going from one narrative plane to the other, issues concerning
sin circulate, as seen from the masculine and feminine points of view. The gender
"morality" has its meaning amplified in a variety of comical keys and relative to satire,
caricature and parody. Highlighted is the masculine power which imposes itself, even
in the conditions in which actions are condemned by the institution of the Church.
What is left for women is to abide by the pedagogy of "virtue".
Keywords
: Morality plays. Theatricality. Narrative.
La caza infernal de los signos
Resumen
El siguiente texto trata sobre "La caza infernal", que forma parte del Decamerón
(novela VIII, jornada V) de Bocaccio (s/f). Se buscó verificar los niveles de la narrativa,
que van desde el cuento (dentro del cual sucede un espectáculo teatral) hasta la
pintura de Botticellli que lleva el mismo título. De un plano narrativo a otro circulan
problemas relacionados con el pecado, visto a través de los prismas masculino y
femenino. El sentido del género "moralidad" está ampliado, en una variedad de
registros cómicos vinculados con la sátira, la caricatura y la parodia. Cabe resaltar
que el poder masculino se impone, incluso en condiciones en las que la Iglesia, como
institución, condena sus acciones. En cuanto a las mujeres, sólo les resta acatar las
pedagogías de la virtud.
Palabras clave
: Moralidad. Teatralidad. Narrativa.
1 Doutorado e Mestrado em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Especialização em Teoria e Prática do Teatro pela UFRJ. Graduação em Teatro pela Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora Titular da Escola de Comunicações da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atua no Programa de Pós-graduação da cena e na graduação.
cafezeiro@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/2469052454759938 https://orcid.org/0000-0001-9814-1730
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A sátira pode conter a paródia (que imita temas ou obras preexistentes
através do exagero cômico), mas não remete necessariamente ao riso, primando
pela ironia sutil e/ou disfarçado sarcasmo. Nos dois casos, instaura-se um discurso
de desconfiança quanto aos seus alvos, postos sob suspeita para evidenciar o que
pode ser considerado defeito moral escondido sob as aparências. Embora nela
seja frequente um meio sorriso enigmático à Monalisa, a sátira não elimina
completamente a caricatura. O escárnio pode ser doloroso e aproximar-se do
trágico, como convém ao sátiro o mítico homem-bode que declara, rindo
cruelmente: “ao homem seria melhor não ter nascido”. Suas origens remotas
reenviam a Grécia e Roma, neste último caso sob a orientação da máxima
castigat
ridendo mores
. A linguagem alegórica da sátira atravessa os tempos e alcança o
grotesco e o barroco.
Saliento, no caso em questão, a ambiguidade com que a narrativa é
conduzida: são duvidosas as intenções e ações de personagens e narradores, o
que faz pensar numa didática apontada em duas direções: uma voltada para a
“correção” das mulheres desobedientes, outra abrindo espaços para o engodo e
as astúcias. A ironia perfaz o laço entre as disparidades, como a apontar, um tanto
tragicamente, as vãs tentativas de driblar o destino e “domesticar” os
comportamentos. Eis o que pretende abordar este ensaio: a flutuação das
características sobre um fundo comum aos gêneros, uns comparecendo ao
interior do discurso dos outros. Fica para futuros estudos a tentativa de
compreender o imbricamento de um gênero oriundo dos gregos e consagrado
pelos romanos com as expressões cristãs.
Vejamos o discurso narrativo de
A caça infernal
, lenda nórdica referida pelo
monge e poeta francês Hélinand de Froidmont. Nela se inspirou Iacopo Passavanti
e adaptou a novela para assustar os fiéis com o castigo de dois amantes
pecaminosos. Boccaccio aproveitou-se do motivo. A mesma cena aparece em um
dos quatro painéis de Sandro Botticelli (
A historia de Nastasio Delli Onesti
, 1484)
para ilustrar a novela de Boccaccio.
O estudo desta narrativa impõe perceber um trânsito entre círculos
concêntricos e temporalidades cíclicas: a) o discurso de Boccaccio; b) a narrativa
de Filomena; c) o discurso de Nastácio versus o desempenho mudo da amada; d)
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o evento da cena infernal, o espetáculo teatral; e) a retomada do discurso de
Filomena; f) a pintura de Botticelli.
No primeiro item, a palavra de um narrador diz a peste de Florença e a fuga
dos jovens em busca de espaço que lhes saúde e distância dos sofrimentos
abatidos sobre a cidade. Este narrador passará o bastão aos dez jovens para a
narrativa de dez novelas cada um, uma por dia durante a estada no campo. Forma-
se novo círculo no momento da instauração da narrativa das novelas; este círculo
dará lugar, por sua vez, à formação de outros para ocupar-lhe o interior. Assim,
um deles descreverá o evento da cena infernal; outro, a encenação; outro, o quadro
de Botticelli; e, por último, a moralidade apontada por Filomena.
Há um espaço comum entre a novela e o quadro: o teatro (e a teatralidade),
que nasce do recorte de uma cena infernal, vivenciada pelo personagem central
do conto. O espetáculo, no interior da novela, é ilustrado por Botticelli. Mas,
passados agora tantos séculos, que autonomia pode ter adquirido o discurso do
quadro em relação ao conto? Quais leituras podem ser construídas hoje por um
observador que não conheça a novela de Boccaccio (anterior em 131 anos ao
quadro)? Como pensar, hoje, as relações entre as diferentes obras?
Trata-se de arguir as discursividades: a cena infernal propõe, nas épocas em
que foram feitos conto e quadro, uma legibilidade quase imediata: não
fantástico ou extraordinário num mundo em que o Diabo e suas múltiplas formas
habitam as crenças sobre o real. Para nós, no entanto, leitores que participamos
de experiências destituídas de tais expectativas, ficam os trânsitos pelas instâncias
do discurso, seus caminhos entre os sujeitos, as designações, as (re)signações.
Filomena narra, a seus companheiros, a história de Nastácio, um jovem e rico
rapaz apaixonado por uma donzela que tudo faz para desdenhá-lo. Advertido pelos
amigos de que deve afastar-se e parar de dissipar sua fortuna em nome daquele
amor, Nastácio sai de Ravena para um lugarejo próximo, chamado Chiassi. Ao fazer,
sozinho, um passeio por uma floresta de pinheiros, presencia uma cena
impressionante. Uma linda e jovem mulher é perseguida por dois cães e um
cavaleiro. Ela está nua e desgrenhada; na perseguição, tanto os cães a mordem
como o cavaleiro a surra. Nastácio quer impedir tal ato de covardia, mas o cavaleiro
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o dissuade, contando-lhe os motivos da cena. Muitos anos antes, ele, cavaleiro,
também de Ravena, amou aquela mulher, que o desdenhou cruelmente.
Desesperado, ele se suicidou; tempos depois, morreu a jovem. Encontram-se
ambos no inferno, onde uma dupla condenação recai sobre eles: o cavaleiro deve
perseguir sem descanso a jovem e ela deve suportar o castigo de morrer e reviver
para incessantemente repetir-se o suplício. O cavaleiro revela, ainda, que todas as
sextas-feiras a cena se apresenta ali, àquela hora. Note-se: Nastácio não apenas
presenciou como participou do evento e do discurso, ao dialogar com o cavaleiro.
Após a aventura, Nastácio decide convidar sua amada e os parentes dela para
um banquete no mesmo local. Ele dispõe as mesas e os lugares de maneira que
a moça possa assistir a tudo bem de frente. Ao fim do repasto, os ruídos da cena
macabra se aproximam. Os convidados, assim como Nastácio antes, querem
socorrer a donzela dilacerada e ouvem, por sua vez, a mesma história. A amada
de Nastácio,
Depois de ter visto e escutado tudo distintamente, compreendeu que
aqueles factos lhe diziam especialmente respeito, recordando-se da
crueldade que sempre tivera em relação a Nastácio. Parecia-lhe ser ela
que fugia da fúria dele, com os cães a cercá-la (Boccaccio, s/d).
Fez-se o casamento de Nastácio; as outras mulheres, assim como “todas as
damas de Ravena”, assustaram-se com aqueles fatos e tornaram-se solícitas para
com os desejos dos homens.
Não importa saber que delírio apossou-se de Nastácio: se ele sonhou ou teve
uma alucinação; ou acreditou, como Dante, ter adentrado o inferno. Importa
perceber que ele decidiu tomar por verdade o evento do qual participou e
transformou a sua visão em delírio fabulador. Fez disso um espetáculo; e, partindo
daí, definiu o sentido da performance do narrador. Assim, teceu o destino dos
narratários: mulheres e homens de Ravena. Como diz Deleuze, a literatura é
enunciação coletiva de um povo menor, ou de todos os povos menores,
que encontram expressão no escritor e através dele. Embora remeta
sempre a agentes singulares, a literatura é agenciamento coletivo de
enunciação. A literatura é delírio, mas o delírio não diz respeito a pai-mãe:
não há delírio que não passe pelos povos, pelas raças e tribos, e que não
ocupe a história universal (Deleuze, 1997, p. 14-15).
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O espetáculo teatral promovido por Nastácio encarrega-se de enunciar o
desejo de toda Ravena. Diz também Deleuze que “o escritor, enquanto tal, não é
doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo” (Deleuze, 1997, p.13)
Constrói-se, na atuação da personagem Nastácio, um discurso de vozes
tradicionais da moralidade medieval. Mas pronunciadas de maneira a inverter os
ditames segundo os quais o castigo se deve ao exercício livre do amor, mesmo
que a liberdade seja a dos homens de constranger as mulheres. Ainda assim, trata-
se de uma paródia grotesca: “A paródia satírica propõe fazer rir à custa de seu
modelo, do qual ela denuncia, não menos eficazmente que uma crítica séria, as
fraquezas. Ela desempenha um grande papel nas querelas [...]”2 (Cèbe, 1966, p.11).
E a paródia serve também para focalizar um processo em que, nos
subterfúgios do discurso, manifestam-se vozes utilizadas por Nastácio como
recursos de persuasão e sedução. Melhor seria dizer recursos de coerção
(Foucault, 1971), a fim de impor o seu desejo, acuando a donzela. É importante
considerar o significativo mutismo da moça durante o desenvolver-se da ação
narrativa, a mudança de atitude dela e de suas companheiras. Deste intercâmbio
entre as instâncias narrativa/narrador/narratário, revertem-se as expectativas.
Sem o discurso mudo da amada, a fábula não se realiza porque não se concretiza
o desdém nem a ironia, uma vez que estes se fazem no contraste com o
discurso de Nastácio. A moral social encarrega-se de servir de pano de fundo ao
discurso: não desejar o inferno é referência tanto para evitar o pecado (a voz da
tradição cristã) como para admiti-lo, embora não se possam explicitar as
intenções que ficam protegidas pela ironia, tanto de Nastácio quanto de seus
narratários. Vale notar que o culto a Maria e à virgindade data dos finais da Idade
Média; isto faz imaginar possíveis processos de reversão deste com outro culto,
por via satírica. Aí se teria, segundo Agamben (2007), um ato de profanação. Essas
modalidades de discurso vêm sendo estudadas:
A heterogeneidade enunciativa manifesta-se num texto em dois planos
distintos: como polifonia (Bakhtine, Ducrot) ou heterogeneidade mostrada
(Authier), caracterizada pela manifestação explícita e localizável pelo
2 La parodie satirique se propose de faire rire aux dépens de son modèle, dont elle dénonce non moins
efficacement qu’une critique sérieuse les faiblesses. Elle joue un grand rôle dans les querelles [...]. (Tradução
nossa).
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analista, de uma multiplicidade de vozes (Bakhtine), citadas pelo autor
empírico do texto (Barthes) ou heterogeneidade constitutiva (Authier),
constituída pelo entrelaçamento de uma pluralidade de citações
emigradas de outros textos pré-existentes, segundo restrições histórico-
culturais sobre as quais o autor empírico do texto não tem controle
racional (Pinto, 1994, p. 18).
Assim se definem ironias que permitem paródias grotescas como a de
Boccaccio e, pouco mais tarde, Gil Vicente (
Mistérios da Virgem
, onde ela é
convencida de que pode ser mãe sem perder a virgindade); Anchieta (
Auto de São
Lourenço
, em que devorar os inimigos da Igreja não é pecado de antropofagia).
Neste último caso, o que está em causa é o projeto colonial português no Brasil.
Sheherazade vive porque narra, articulando tempos e espaços: ela constrói
um campo narrativo ao qual o presente empírico não pode comparecer. O embate
com a morte dá-se em dois territórios de enunciação: o imaginário de Sheherazade
e o discurso político do Sultão. No
Decameron
, o horror da peste é presente que
deve ser suspenso em favor da vida, da alegria e da juventude. Saem os jovens da
cidade com o firme propósito de passar dias amenos, sem falar ou ouvir a respeito
da peste. Eles contarão e ouvirão histórias, criando uma instância de enunciação
fora do tempo, do espaço e da experiência de Florença moribunda. Sete moças e
três rapazes assumem a tarefa fabuladora, multiplicando o desempenho de
Sheherazade. Cada um, a sua vez, tomará o lugar de “rei” e a palavra: narrar é viver
e prover a vida do necessário. Como rei, a responsabilidade de definir a
alimentação, as tarefas, as diversões; e o compromisso de não permitir a chegada,
do exterior, de nenhuma notícia desagradável. É este vácuo de discurso que será
preenchido com as picantes narrativas de cada uma das dez jornadas.
Filomena conta uma história; no interior dela, Nastácio, personagem da
narração de Filomena, ouve de um cavaleiro a história que explica a cena teatral
de suplício de uma mulher nua. Cena infernal acontecida num presente eterno e
cíclico: à morte por suplício corresponde um renascer para novo suplício. Presente
concretizado perante Nastácio como fato cósmico: o próprio inferno se faz carne.
O rapaz dialoga com o cavaleiro; não se coloca, pois, como plateia perante uma
cena teatral. Ou, ao contrário, é plateia que participa do próprio ato teatral.
Nastácio é personagem da narrativa de Filomena e narratário do relato do
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cavaleiro. Tanto Nastácio quanto o cavaleiro são personagens da história de
Filomena: é ela que, num discurso indireto livre, realiza o diálogo entre os dois
homens, entre a “realidade” (Nastácio) e o “delírio” (o cavaleiro). Entretanto, se a
cena infernal é alegórica (concretização de abstrações), esta alegoria dá-se no
próprio plano de “realidade”, ocupado por Nastácio.
O decidir apresentar à amada e aos parentes dela a mesma cena, Nastácio
prepara um espetáculo, deliberadamente em busca de uma eficácia persuasiva.
Serve-se da estrutura de uma moralidade medieval e do exemplo, para operar
uma pedagogia da conduta amorosa. Prepara o cenário (espaço de atuação), um
tempo (intervalo no qual se suspenderá seu presente empírico) e uma plateia (que
compartilha com ele da em pecados e castigos). Neste tempo-lugar, pode-se
dar a transfiguração da cena infernal em recorte do eterno presente cósmico;
tempo e lugar expostos em oposição à própria paisagem onde se inserem:
narratividade espetacular. Tanto quanto a amada de Nastácio, a do cavaleiro não
tem nome. Ela é pura figura, ou melhor, puro figurino de carne, único adequado a
quem perdeu a graça divina (Agamben, 2015). Sem roupa, desgrenhada, ela veste
o traje da própria civilização cristã; não é corpo, mas carne dada ao prazer e
exposta ao tormento, pois o pecado é anterior a toda inocência. Corpo-signo, que
atua também como duplo – ambos, corpo e carne, pecaram por “não pecar” – da
amada de Nastácio: esta é objeto de todos os discursos; sua voz não se faz ouvir.
Ela é referida por Filomena como obsessão de Nastácio; sem a existência da moça
(e seu mutismo, vimos), não haveria o espetáculo representado em sua intenção;
e não haveria a novela. Todo o discurso se constrói em função, referência e em
torno dela, de sua recusa e posterior aceitação de Nastácio.
O delírio de Nastácio torna-se instrumento de sedução. Seu desempenho
alcança, aqui, caráter ideológico: o discurso é defesa de interesses. Sedução é
também persuasão.
O discurso de Filomena realiza-se através de um sujeito passivo, Nastácio;
ele sofre as atitudes da amada e reage a elas, mas não toma nenhuma iniciativa
para mudar as posições. A partir do momento em que assiste à cena infernal na
floresta, Nastácio torna-se sujeito ativo: ele viu(-se), refletiu(-se); a cena infernal
bem comportaria o velho
slogan
publicitário do “eu sou você amanhã”. Presenciar
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a cena produz em Nastácio um excesso sobre si mesmo, quando decide sobre o
que viu, diria Badiou, explicando ao mesmo tempo o evento e o sujeito surgido
para nomeá-lo:
Um evento está ligado à noção de
indecidível
. Vejamos o enunciado: “Este
evento faz parte da situação”. Se nós pudéssemos, com as regras do
saber estabelecido, decidir que este enunciado é verdadeiro ou falso, o
evento não seria um evento. Ele seria calculável a partir da situação.
Nenhuma regra permite decidir que um evento é um evento. Nada
permite dizer: aqui começa uma verdade. Será preciso fazer uma
aposta
.
É por isso que uma verdade começa por um
axioma de verdade
. Ela
começa por uma decisão. A decisão de dizer que um evento teve lugar.
O fato de que o evento seja indecidível faz com que apareça um
sujeito
do evento. Tal sujeito é constituído por um enunciado em forma de
aposta. Enunciado que é o seguinte: “Isso teve lugar, não o posso calcular
nem mostrar, mas lhe serei fiel” (Badiou, 1994, p. 45. Aspas e itálicos do
autor).
Vejamos: Nastácio ultrapassou os limites dos círculos concêntricos
delimitadores dos espaços discursivos: atravessou as fronteiras do conhecimento
de si mesmo e os dados da situação social e amorosa, criando novos contextos
de significação. Isto se define como uma ruptura capaz de deflagrar novas
perspectivas de saberes.
O sujeito pode também ser visto e constituído a partir de uma dobra que lhe
permite reconhecer(-se) e ir além do conhecimento (ou delírio) de si, no modo de
ver de Foucault, tal como aponta Deleuze (1992, p. 141):
Não há sujeito, mas uma produção de subjetividade: a subjetividade deve
ser produzida, quando chega o momento, justamente porque não
sujeito. E o momento chega quando transpomos as etapas do saber e do
poder; são essas etapas que nos forçam a colocar a nova questão, não
se podia colocá-la antes.
Munido desta nova consciência, Nastácio passa à ofensiva, produzindo o espetáculo, com
a representação do evento. Torna-se ativo, no seu processo de fazer-se sujeito, do ponto de
vista de executar uma ação que põe em movimento os mecanismos do enredo. Deste modo, a
trajetória de Nastácio torna-se quase autônoma em relação à de Filomena, porque se cria um
espetáculo dentro do discurso dela. A representação teatral toma a cena da novela e a
narradora quase desaparece por trás dos personagens que a executam. É exatamente este o
espaço reduplicado pela pintura de Botticelli: uma concentração de signos e motivações.
um caminho do evento ao espetáculo, pavimentado pela teatralidade, segundo a sempre atual
(por isso clássica) definição de Barthes (1964, p. 41-42):
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O que é a teatralidade? É o teatro menos o texto, é uma espessura de
signos e sensações que se edifica sobre a cena a partir do argumento
escrito, é este tipo de percepção ecumênica dos artifícios sensuais,
gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a
plenitude de sua linguagem exterior3.
O teatro surge quando Nastácio traz os espectadores: a donzela amada e os
parentes dela. O corte que lugar ao aparecimento da cena infernal opera no
sentido de construir um espaço de simetria especular: a situação do cavaleiro e
da amada desdenhosa mostra-se a Nastácio como semelhante à sua; da mesma
forma, terra e inferno são verso e reverso grotesco de uma mesma realidade.
A moralidade se efetua no apelo ao exemplo. A didática do teatro põe em
cena o mal, para exorcizá-lo; é na materialidade do pecado e na pujança de sua
sensorialidade que o fiel deverá afastar de si a tentação. O teatro medieval é
feérico, excessivo. O Diabo apresenta-se em suas infinitas formas e figuras: ele é
o Múltiplo, ocultado pelo disfarce. Mas, no conto em questão, o jogo de inversões,
regulador da presença do espelho teatral, refaz os conceitos e subverte as
atitudes: se pecado é (segundo a Igreja) atender aos apelos da carne, aqui o pecado
é deixar de atendê-los. Se coube, desde sempre, à mulher o papel da serpente
que desvia o caminho do Bem e da Obediência, aqui ela também terá poder de
levar o homem aos infernos (o suicídio), mas por não ter aceito os ditames e
exigências do prazer.
A astúcia de Nastácio consiste em deflagrar um processo pelo qual a narrativa
se des-envolve à medida que as duplicações de espaços dão lugar aos
surgimentos dos sujeitos presentes nessa mesma narrativa. A cena é re-
presentada, agora não mais como casualidade, mas como intencionalidade. Assim
como Nastácio torna-se sujeito ao encontrar-se perante um evento a partir do
qual ele é obrigado a tomar decisões, as mulheres diante do espetáculo vêem-
se na situação de reconhecimento de si como sujeitos. Finalmente se ouve a voz
da donzela renitente através do discurso indireto de Filomena:
3 Qu’est-ce que c’est la théâtralité? C’est le théâtre moins le texte, c’est une épaisseur de signes et de
sensations qui s’édifié sur la scène a partir de l’argument écrit, c’est une sorte de perception œcuménique
des artifices sensuels, gestes, tons, distances, substances, lumières, qui submerge le texte sous la plénitude
de son langage extérieur. (Tradução nossa)
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Ficou tão cheia de medo que, para não lhe acontecer o mesmo, mal
apareceu uma ocasião favorável [...], transformou em amor o seu ódio e
mandou secretamente uma aia de confiança falar com Nastácio para lhe
pedir o favor de a procurar porque estava disposta a fazer tudo o que ele
quisesse. Nastácio mandou responder que isso lhe agradava muito, mas
que pretendia esse desejo com a sua honra salva, ou seja, casando
com ela. A jovem [...] mandou responder que sim. Ela própria foi
mensageira para dizer ao pai e à mãe que seria muito feliz se pudesse
casar com Nastácio (Boccaccio, s/d, p. 353).
O teatro se faz e se repete, os sujeitos se fazem e se desdobram na cena do
mundo, em planos de narrativa, como no barroco. Inferno, terra e céu são
ambientados em espaços onde estão os jovens, no conto, no teatro, na pintura.
Nesta última, a imagem é distribuída em perspectiva de linhas paralelas que
sugere, na apresentação teatral, um cenário com as mesmas características. O
Renascimento não tarda ou começou. A circularidade do discurso devolve
Filomena ao primeiro plano da cena. Ela fecha o conto dizendo que, após verem
o espetáculo do suplício, todas as mulheres de Ravena mudaram de atitude:
afastaram de si a soberba e tornaram-se sensíveis aos desejos masculinos.
Discurso machista, poder-se-ia observar hoje. No entanto, é preciso atentar, com
Foucault, para as “coerções do discurso”: aquilo que as condições de enunciação
de uma época e/ou de uma sociedade obrigam a dizer. Filomena não pode deixar
de dizer (e o faz, talvez, ironicamente) sobre a responsabilidade feminina quanto
aos caminhos do céu e do inferno. Mas, sendo obrigada a dizer, afirma o prazer.
Há, então, uma dupla função didática: a que ensina às mulheres suas “obrigações”
perante os homens; e a que mostra as trilhas do prazer, ainda que tal didática se
dê, principalmente, pelo fator medo. O primeiro aspecto não normatiza o segundo.
Note-se o dever de honra alegado por Nastácio: somente perante o casamento
poderá aceitar a união com a amada. Este sacramento tornou-se obrigatório, por
exigência da Igreja, também no final da Idade Média: era preciso ser virgem como
Maria para garantir as heranças e primogenituras.
As condições de narratividade são, aliás, construídas no próprio espaço
discursivo aberto pelo Decameron. Saem os jovens de Florença para constituir um
outro espaço-tempo distante do martírio da peste. Boa parte das novelas contadas
nas dez jornadas penetra as entranhas dos conventos e das alcovas matrimoniais
para revelar o lugar de pretensas e supostas santidades convertidas em moradas
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do próprio pecado, abrigos do “outro” da virtude. Lugares colocados num “fora” da
visibilidade e num “dentro” das demandas do desejo. O discurso, ao falar do prazer,
delimita o pecado; nem que seja para ironizar a ambos, ou melhor, serve-se de
um para ridicularizar o outro. Todos se casam em Ravena ao fim da novela. Não
se sabe (porque não se diz), como se comportarão os casais quanto à virtude ou
ao pecado; nem parece serem estas as preocupações do texto.
Da narrativa de Filomena à cena teatral, novamente a Filomena; e do texto
de Boccaccio à pintura-ilustração de Botticelli. Datado (1484) de cerca de um
século depois da escritura de Boccaccio, o quadro não adota ainda a perspectiva
central (apesar da contemporaneidade com a obra de Da Vinci). A perspectiva é
linear: os planos se sucedem e se distribuem em linhas paralelas e horizontais. No
primeiro plano, a cena infernal apresenta-se como espetáculo diante dos
convidados ao banquete de Nastácio; no segundo, a grande mesa em desordem
mostra que o repasto terminou e os convidados estão sentados ou de pé,
conforme seja maior ou menor o seu espanto; num terceiro plano, mais recuado,
a floresta de pinheiros. No quarto e último plano, o mar em direção ao qual, diz a
narrativa de Filomena, fugirá a dama (pano de fundo do cenário natural no conto
e sugestão para o ambiente cenográfico do palco), sempre perseguida por seus
algozes; as montanhas completam a paisagem. Note-se o detalhismo com que
Botticelli ilustra os elementos enumerados pelo texto de Boccaccio. No primeiro
plano e ocupando posição central, os personagens do espetáculo. Falamos antes
da nudez da dama; ela é flagrada pelo pintor no momento em que é mordida pelos
cães (uma das maneiras medievais de personificar o Diabo); ela é, ainda,
perseguida pelo cavaleiro, montado e vestido com seus trajes de nobre (capa e
espada em evidência e em contraste com a nudez). Uma edição moderna do texto
de Boccaccio, se ilustrada com a pintura de Boticelli, resgataria as relações de
intimidade de um com o outro. Mas, uma vez separados, o amor é volúvel. A
pintura torna-se referente a si mesma: não mais duplica a cena teatral, mas abre-
se para sua própria representação. Trata-se, diria Barthes, de “Representar não
cenas imaginadas, mas a cena da linguagem, de sorte que o modelo desta nova
mimesis não é a aventura de um herói, mas a própria aventura do significante:
o que lhe advém” (Barthes, 1987, p. 211). É que o quadro sofre uma espécie de
A caça infernal aos signos
Carmem Gadelha
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-13, set. 2024
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“purificação” de seus vínculos com a narrativa, passando a operar num devir de
sentidos. Resta a imagem, a provocar o olhar e os modos de olhar. Passa-se de
um
telling
para um puro
showing
.
Referências
AGAMBEN, Giorgio.
Profanações
. São Paulo: Boitempo, 2007.
AGAMBEN, Giorgio.
Nudez
. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
BADIOU, Alain.
Para uma nova teoria do sujeito
. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994.
BARTHES, Roland. O rumor da língua.
Edições 70, Lisboa, 1987.
BARTHES, Roland.
Essais critiques
. Paris: Du Seuil, 1964.
BOCCACCIO, Giovanni. Decameron. Lisboa: Europa-América, s.d.
CÉBE, Jean-Pierre.
La caricature et la parodie dans le monde roman antique des
origines à Juvenal
. Paris: Boccard, 1966.
DELEUZE, Gilles.
Conversações
. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
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Crítica e clínica
. São Paulo: Editora 34, 1997.
FOUCAULT, Michel.
L’ordre du discours
. Paris: Gallimard, 1971.
PINTO, Milton José.
As marcas linguísticas da enunciação
. Rio de Janeiro: Numen,
1994.
Recebido em: 30/06/2024
Aprovado em: 03/09/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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