Contribuições do feminismo decolonial para a arte feminista: ruas, corpos e outridões
Camila Bastos Bacellar
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
feminista foram forjados: Londres, Nova York, Los Angeles e Toronto. Essa
constatação é feita por Amelia Jones e Erin Silver em
História da Arte Feminista
Queer – Uma Genealogia Imperfeita
(2017). Embora tais autoras apontem que
existem antecedentes na história da arte que tratam de preocupações feministas,
como as artistas lésbicas e companheiras Claude Cahun e Marcel Moore, elas
consideram que o ponto de inflexão da arte feminista está posto na segunda
metade do século XX, porque acompanha o surgimento da segunda onda
feminista6, assim como os movimentos pelos direitos civis.
Ao examinar o desenvolvimento da ideia de arte feminista e
queer
, as autoras
vão salientar diversos debates e disputas. Por exemplo, se havia pertinência de
fazer uso da categoria de arte lésbica como instrumento de análise, uma vez que
uma das críticas veiculadas por artistas lésbicas era a de que a categoria de arte
feminista estava sendo proposta por teóricas heterossexuais de cuja sensibilidade
discordavam. Dentro do circuito de arte feminista existiam, sim, “edições
especiais” sobre arte lésbica, porém este circuito era majoritariamente dominado
por preocupações de mulheres heterossexuais, brancas e de classe média. O fato
de haver adendos especiais à arte lésbica demonstraria que a arte feminista
dominante operava uma naturalização dos desejos e modos de vida heterossexual.
Com a ascensão da teoria
queer7
, as preocupações das próprias envolvidas em
afirmar a arte lésbica como importante categoria de análise são engolidas. Ao
6 Os movimentos feministas são geralmente divididos em três ondas. A primeira data do século XIX e teve
como pauta a igualdade de direitos políticos, como direito ao voto, à propriedade e ao divórcio. A segunda
onda ocorre na década de 1960 e envolveu uma problematização do caráter político do corpo, a afirmação
da construção social do gênero amparada amplamente sobre a conceitualização de Simone de Beauvoir
“não se nasce mulher, torna-se” em
O Segundo Sexo
(1949) e uma revolução comportamental e de
experimentação da sexualidade. A terceira onda, de meados da década de 1980 em diante, questionou a
extrema centralização das teorias anteriores no eixo sexo-gênero, assim como problematiza: o binarismo
de gênero; o individualismo dos feminismos hegemônicos e sua inclinação à ideia de “opressão comum”
entre as mulheres; o chamado “patriarcado a-histórico” e demais universalismos. Segundo Buarque de
Hollanda (2018) estaríamos já em uma quarta onda impulsionada por uma nova geração política mais
autônoma e que preza mais pela ética do que pela ideologia. Algumas correntes do feminismo decolonial
criticam esta divisão em “ondas”, pois esta não abarca a singularidade desses processos políticos no que
diz respeito a experiência das mulheres negras. É neste sentido que para Ochy Curiel (2014) a divisão em
ondas aponta para uma visão linear, única e eurocêntrica da história do feminismo.
7
Queer
é uma palavra da língua inglesa que designa algo como estranho, ridículo, raro. É também uma forma
pejorativa de se referir a homens e mulheres considerados “homossexuais” ou dissidentes do sistema
binário, político e econômico, constituído pela heterossexualidade, por isso autointitulados "sexo-
dissidentes". No final dos anos 1980 o termo foi reapropriado por movimentos homossexuais anglo-saxões
para fazer do insulto precisamente o lugar da enunciação que lhes era negado. Os estudos
queer
começam
a ser desenvolvidos contestando as políticas estatais de inserção e normalização das diferenças, que se
davam através de políticas de afirmação identitárias, como o movimento homossexual dominante. Noções
tradicionais sobre corpo, sexo, gênero e sexualidade são problematizadas.