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Contribuições do feminismo decolonial para a
arte feminista: ruas, corpos e outridões
Camila Bastos Bacellar
Para citar este artigo:
BACELLAR, Camila Bastos. Contribuições do feminismo
decolonial para a arte feminista: ruas, corpos e outridões.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0104
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Camila Bastos Bacellar
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
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Contribuições do feminismo decolonial para a arte feminista: ruas, corpos e outridões1
Camila Bastos Bacellar2
Resumo
Refletir sobre ações feministas em cenários do Sul implica enfrentar a exclusiva
centralidade do marcador de gênero e a ausência de uma discussão sólida sobre raça
na aplicação da categoria arte feminista. O feminismo decolonial e a atenção à co-
constitutividade entre raça e gênero como instrumento colonial de controle dos corpos
têm o potencial de alargar o debate sobre arte feminista. Considerando-se o impacto
das teorias da performatividade nas artes da cena, as ações
Un violador en tu camino
,
do coletivo Las Tesis (Chile), e
Noite das Estrelas,
do coletivo Entidade Maré (Brasil), são
acionadas para sugerir fissuras necessárias na categoria arte feminista.
Palavras-chave
: Arte feminista. Feminismo decolonial. Performatividade. Espaço
público. América Latina.
Decolonial feminism contributions to feminist art: streets, bodies and a multitude of
otherness
Abstract
Reflecting on feminist artistic actions in the Global South implies confronting the exclusive
centrality of gender markers within feminist art, as well as the absence of solid debates
regarding race in the application of feminist art category. Decolonial feminism, and its
attention to the co-constitutive relationship between race and gender as colonial
instruments of controlling bodies, holds the potential to broaden debates around feminist
art. Considering the impact that theories of performativity have on scenic arts, the text
examines
Un violador en tu camino
, by the Las Tesis Collective (Chile), and
Noite das Estrelas,
by the Entidade Maré collective (Brazil), to suggest necessary fissures within the category of
feminist art.
Keywords:
Feminist art. Decolonial feminism. Performativity. Public space. Latin America.
Aportes del feminismo decolonial al arte feminista: calles, cuerpos y multitudes de
alteridad
Resumen
Reflexionar sobre acciones feministas en escenarios del Sur implica enfrentar la centralidad
exclusiva del marcador de género y la ausencia de una discusión sólida sobre la raza en la
aplicación de la categoría de arte feminista. El feminismo decolonial y la atención a la co-
constitutividade entre raza y género, como instrumento colonial para controlar los cuerpos,
tiene el potencial de ampliar el debate sobre el arte feminista. Considerando el impacto de
las teorías de la performatividad en las artes escénicas, las acciones
Un violador en tu
camino
, del colectivo Las Tesis (Chile) y
Noite das Estrelas,
del colectivo Entidade Maré
(Brasil), se activan para sugerir fisuras necesarias en la categoría de arte feminista.
Palabras clave
: Arte feminista. Feminismo decolonial. Performatividad. Espacio público.
América Latina.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Júlia Andrade da Silva Rosa. Mestrado em Letras pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Revisão contextual realizada por Raphael Soifer, professor
de Estudos da Performance pela Bard College (EUA) e doutor em Planejamento Urbano pela UFRJ.
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Estudos Museísticos e Teoria Crítica pela Universitat Autónoma de Barcelona (UAB) Espanha. Graduação
em Artes Cênicas pela UNIRIO. camilabastosbacellar@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5493509845277031 https://orcid.org/0009-0009-8880-8867
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Desde os anos 1970, a categoria de arte feminista tem sido útil para pesquisas
que abordam questões urgentes em obras de artistas mulheres cisgênero, e a
exclusiva centralidade desse marcador de inteligibilidade social será crucial nas
discussões porvir. A categoria arte feminista tem servido para criar um singular
espaço de enunciação para práticas artísticas preocupadas em tratar de relações
de poder, diferença e desigualdade entre os gêneros ou de explorar a fundo o
caráter político do corpo. Porém, se seguirmos a tônica de muitas historiografias
de arte feminista que descartam tanto a intersecção entre gênero, sexualidade,
raça e classe quanto as sequelas da colonialidade, essa categoria pouco nos
serviria, principalmente no contexto latino-americano.
Como temos debatido em diferentes âmbitos3, a rotulação de uma peça,
performance, espetáculo de dança ou obra de arte como arte feminista levanta
uma série de questionamentos que não podemos nos furtar a enfrentar.
Arte Feminista e Tramas De Poder
As indagações de bell hooks feitas em
Ensinando a Transgredir: a educação
como prática de liberdade
(2013), acerca da captura capitalística pela qual os
feminismos têm passado, são cirúrgicas para iniciarmos o debate:
No patriarcado capitalista da supremacia branca, assistimos à
mercantilização do pensamento feminista [...] de um jeito tal que a
impressão de que alguém pode participar do ‘bem’ que estes
movimentos produzem sem ter de se comprometer com uma política e
uma prática transformadoras (hooks, 2013, p. 98).
Portanto, a expressão arte feminista pode fazer o feminismo funcionar
apenas como um adjetivo, atribuindo à ação/obra a ‘qualidade’ de ser feminista.
Designar ou categorizar um trabalho artístico como sendo feminista envolve
intrincadas tramas de autoridade. Quem pode designar algo como sendo arte
3 Para aprofundar os desdobramentos do debate sobre arte feminista em minhas pesquisas anteriores ver:
Performance e Feminismos: diálogos para habitar o corpo-encruzilhada, publicado na
Urdimento
em 2016;
a entrevista dada para o livro
Explosão Feminista: arte, política, cultura e universidade
(2018), organizado por
Heloisa Buarque de Hollanda; e o capítulo À beira do corpo erótico descolonial: entre palimpsestos e
encruzilhadas, parte do livro
Pensamento feminista hoje: sexualidades no sul global
(2020), também
organizado por Buarque de Hollanda.
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feminista? Quem produziu o trabalho artístico certamente pode fazê-lo, porém se
essa atribuição vem de fora, seja por parte da crítica de arte ou da curadoria, nos
encontramos muitas vezes com uma situação delicada e, por vezes, excludente.
Seriam performances feministas somente as que endereçassem questões de
gênero relativas a pautas feministas? Ou quaisquer ações artísticas feitas por
mulheres (cis e trans)4 e pessoas que se identificam como
queer
ou não-binárias
poderiam ser consideradas feministas? Ações artísticas que enderecem questões
de gênero feitas por homens trans podem ser consideradas feministas? Quem dá
a chancela sobre o que é ou não arte feminista? E quem pode recebê-la?
Tomando como base o incontornável ensaio de 1971 de Linda Nochlin,
Por
que não houve grandes mulheres artistas?
(2016), pode-se afirmar que a arte
feminista se distingue por ser essencialmente crítica ao patriarcado, à misoginia e
à opressão contra as mulheres. Paul B. Preciado, interessado na categoria de arte
feminista dos anos 1970, afirma que esta não deve ser entendida nem como um
estilo nem como um movimento, mas sim como “um conjunto heterogêneo de
operações de desnaturalização das relações entre sexo, gênero, visualidade e
poder” (Preciado, 2013, n.p.). A ausência de uma discussão sólida sobre a
imbricação entre a categoria raça e a categoria gênero pode ser detectada em
diversos outros estudos, das mais distintas procedências, sobre arte feminista,
tanto nos anos 1970 como ainda hoje. E talvez isto diga algo sobre a própria
categoria arte feminista e sua imbricação com a branquitude.5
Portanto cabe destacar onde os discursos acadêmicos acerca da arte
4 Os termos cis e trans fazem referência, respectivamente, a cisgênero e transgênero. O primeiro se relaciona
a pessoas que estariam de acordo com o gênero que lhes fora assignado pelo sistema médico-jurídico ao
nascer. O segundo seria relativo a pessoas que não estão de acordo e que irão contestar tal assignação,
e/ou o próprio regime binário de produção de sexo-gênero. Porém tais termos também vêm sendo criticados
por intelectuais transfeministas, uma vez que podem ajudar a reforçar diferenças essencialistas e de cunho
biológico. Ao usar tais termos aqui, o objetivo está em ressaltar as problemáticas que devem ser enfrentadas,
pois
arte feminista
é uma categoria muitas vezes utilizada para se referir a trabalhos feitos, em sua maioria,
por "mulheres cisgênero". Para um aprofundamento das questões relativas ao uso dos termos supracitados,
ver
Transfeminismos, Epistemes, fricciones y flujos
(2014) de Miriam Solá e o capítulo
Transfeminismos
, de
Helena Vieira, Bia Pagliarini, Amara Moira, Indianara Siqueira e Jaqueline Gomes de Jesus, que compõe a
obra
Explosão Feminista
(2018), organizada por Buarque de Hollanda.
5 Tanto o pensamento de Nochlin quanto o de Preciado seguem sendo vitais para pensarmos nas relações
entre arte e feminismos. Principalmente as teorias de Preciado, porém, cabe a colocação crítica sobre a
ausência de imbricação entre gênero e raça em ambos os artigos citados, uma vez que a co-constitutividade
entre gênero e raça é uma prerrogativa estruturante do pensamento feminista decolonial na América Latina,
aspecto sobre o qual nos debruçaremos mais adiante.
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feminista foram forjados: Londres, Nova York, Los Angeles e Toronto. Essa
constatação é feita por Amelia Jones e Erin Silver em
História da Arte Feminista
Queer Uma Genealogia Imperfeita
(2017). Embora tais autoras apontem que
existem antecedentes na história da arte que tratam de preocupações feministas,
como as artistas lésbicas e companheiras Claude Cahun e Marcel Moore, elas
consideram que o ponto de inflexão da arte feminista está posto na segunda
metade do século XX, porque acompanha o surgimento da segunda onda
feminista6, assim como os movimentos pelos direitos civis.
Ao examinar o desenvolvimento da ideia de arte feminista e
queer
, as autoras
vão salientar diversos debates e disputas. Por exemplo, se havia pertinência de
fazer uso da categoria de arte lésbica como instrumento de análise, uma vez que
uma das críticas veiculadas por artistas lésbicas era a de que a categoria de arte
feminista estava sendo proposta por teóricas heterossexuais de cuja sensibilidade
discordavam. Dentro do circuito de arte feminista existiam, sim, “edições
especiais” sobre arte lésbica, porém este circuito era majoritariamente dominado
por preocupações de mulheres heterossexuais, brancas e de classe média. O fato
de haver adendos especiais à arte lésbica demonstraria que a arte feminista
dominante operava uma naturalização dos desejos e modos de vida heterossexual.
Com a ascensão da teoria
queer7
, as preocupações das próprias envolvidas em
afirmar a arte lésbica como importante categoria de análise são engolidas. Ao
6 Os movimentos feministas são geralmente divididos em três ondas. A primeira data do século XIX e teve
como pauta a igualdade de direitos políticos, como direito ao voto, à propriedade e ao divórcio. A segunda
onda ocorre na década de 1960 e envolveu uma problematização do caráter político do corpo, a afirmação
da construção social do gênero amparada amplamente sobre a conceitualização de Simone de Beauvoir
“não se nasce mulher, torna-se” em
O Segundo Sexo
(1949) e uma revolução comportamental e de
experimentação da sexualidade. A terceira onda, de meados da década de 1980 em diante, questionou a
extrema centralização das teorias anteriores no eixo sexo-gênero, assim como problematiza: o binarismo
de nero; o individualismo dos feminismos hegemônicos e sua inclinação à ideia de “opressão comum
entre as mulheres; o chamado “patriarcado a-histórico” e demais universalismos. Segundo Buarque de
Hollanda (2018) estaríamos em uma quarta onda impulsionada por uma nova geração política mais
autônoma e que preza mais pela ética do que pela ideologia. Algumas correntes do feminismo decolonial
criticam esta divisão em “ondas”, pois esta não abarca a singularidade desses processos políticos no que
diz respeito a experiência das mulheres negras. É neste sentido que para Ochy Curiel (2014) a divisão em
ondas aponta para uma visão linear, única e eurocêntrica da história do feminismo.
7
Queer
é uma palavra da língua inglesa que designa algo como estranho, ridículo, raro. É também uma forma
pejorativa de se referir a homens e mulheres considerados “homossexuais” ou dissidentes do sistema
binário, político e econômico, constituído pela heterossexualidade, por isso autointitulados "sexo-
dissidentes". No final dos anos 1980 o termo foi reapropriado por movimentos homossexuais anglo-saxões
para fazer do insulto precisamente o lugar da enunciação que lhes era negado. Os estudos
queer
começam
a ser desenvolvidos contestando as políticas estatais de inserção e normalização das diferenças, que se
davam através de políticas de afirmação identitárias, como o movimento homossexual dominante. Noções
tradicionais sobre corpo, sexo, gênero e sexualidade são problematizadas.
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identificar o desenvolvimento de ambas as categorias de análise (arte feminista e
arte
queer
), Jones e Silver (2017) asseveram que é preciso frear o impulso da
história da arte feminista de postular categorias de gênero separadas de
identificações interseccionais.
Não se trata de contestar a validade da categoria arte feminista, muito menos
seu uso. O que está em jogo é a importância de percebermos certas ausências, de
nos fazermos certas perguntas e de estarmos atentas à multiplicidade de
argumentos que existem a respeito da questão.
No contexto brasileiro atual, parte da diversidade de argumentos sobre a
categoria de arte feminista se evidencia no livro
Explosão Feminista
(2018),
organizado por Buarque de Hollanda. No capítulo8 dedicado às artes, artistas
vinculadas à performance, artes visuais, poesia, ao cinema, teatro e à música
discorrem sobre o tema. Como afirma Duda Kuhnert (2018), são infinitas as
nuances entre arte e feminismos apresentadas por artistas/ativistas feministas.
Algumas artistas entrevistadas reivindicam seus trabalhos como sendo arte
feminista enquanto outras colocam a ênfase nas vias de mão dupla entre a arte e
os feminismos.
A exposição
Mulheres Radicais: arte-latino-americana, 1960-1985
, sediada
pela Pinacoteca de São Paulo em 2018, também se dedicava a apresentar um
pensamento sobre arte feminista, sendo “a primeira genealogia de práticas
artísticas radicais e feministas na América Latina” (Fajardo-Hill & Giunta, 2018, p.17)
Tomando como missão visibilizar obras que consideram pioneiras e que haviam
se tornado invisíveis nas narrativas da história da arte do período, as curadoras
Cecília Fajardo-Hill e Andrea Giunta reuniram uma quantidade significante de
artistas na mostra. As curadoras sublinham que o enfoque conceitual da mostra
se ancora na noção de corpo político.
Ao considerar a arte feminista como uma arte que politiza o corpo feminino,
como propõe a exposição
Mulheres Radicais
, teríamos que nos colocar certas
perguntas: O que estamos considerando como politização do corpo? O que
8 As artistas citadas e/ou entrevistadas neste capítulo são de distintas gerações, marcadas por diferentes
categorias sociais e afinadas com distintas vertentes dos feminismos, o que permite que um amplo
panorama relativo à arte feminista apareça.
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estamos considerando como “corpo feminino”, a anatomia? Quantas destas
artistas que visibilizaram e politizaram seus corpos eram negras ou indígenas ou
lésbicas ou trans? Será que as operações de visibilização e politização do corpo
feminino racialmente categorizado como branco são similares a estas mesmas
operações, quando feitas por um corpo feminino racialmente categorizado como
não-branco? Quantas dessas artistas eram radicais somente na estética e na
linguagem? E quantas delas tinham o feminismo como ética e modo de vida?
Ao fazer essas perguntas, o objetivo não é inferir que as artistas e as obras
presentes na mostra não estavam a politizar seus corpos, nem que não fossem
radicais em suas proposições. A intenção é nos incentivar a perceber os desafios
que estão postos.
Um aspecto central para as imbricações entre arte e feminismo é a profunda
transformação observada por Giunta em
A virada iconográfica: a desnormalização
dos corpos e sensibilidades na obra de artistas latino-americanas
(2018), no que
diz respeito às representações do corpo a partir da década de 1960. Não se
inverte o ponto de vista a partir do qual o corpo feminino havia sido historicamente
representado, por meio do nu, do retrato, das imagens da maternidade, como
também as artistas passam a abordar questões que não haviam sido exploradas
artisticamente antes, questionando estereótipos e tabus acerca das sexualidades
e dos desejos. Segundo Giunta (2018), os sistemas de representação então vigentes
serão solapados pelo uso de materiais e linguagens inéditas.
Nesse contexto, a arte da performance tornou-se um instrumento
privilegiado a partir do qual as artistas compreenderam e enunciaram o corpo
como campo de batalha. Debruçando-se especificamente sobre o caso da
América Latina, Giunta (2018) diz que a relação entre corpo e violência é central
para as artistas latino-americanas do período.9 No entanto, nem todas essas
artistas estavam tratando especificamente de questões de gênero ou trabalhando
9 Uma mirada plural acerca da aplicação da categoria arte feminista na América Latina pode ser encontrada
em
Arte Feminista e “artivismo” na América Latina: um diálogo entre três vozes
(2018), no qual Julia Antivilo,
Monica Mayer e Maria Laura Rosa abordam obras de artistas que durante as décadas de 1960, 1970 e 1980
produziram trabalhos que na época eram considerados experimentais e hoje são identificados como arte
feminista. Da mesma forma que as artistas do hemisfério norte passam a questionar a identidade como
algo estável e tratar de imbricações entre o público e o privado, o pessoal e o político, as artistas latino-
americanas também assumem seus corpos como o lócus de criação e a performance passa a ser um dos
principais meios escolhidos.
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com pautas feministas em suas obras pois, como bem nota Eleonora Fabião em
Performing Feminist Archives: A Research-In-Process on Latin America
Performance Art (2014),
muitas dessas artistas latino-americanas estavam lidando
com aspectos da violência das ditaduras militares, com as sequelas da
colonialidade e com as desigualdades latentes na região.
Na grande maioria das vezes, ao afirmar que uma obra é arte feminista, faz-
se pela experimentação formal, pelo tema/material escolhido ou pela forma como
trata certos conteúdos, mas será que se considera também como funcionou esta
obra no que diz respeito aos seus modos de produção e de circulação? Esta obra
foi feita em aliança com outras mulheres (cis e/ou trans) e/ou outras
transidentidades
(como homens trans ou pessoas não binárias), valorizou e
financiou sujeitos pertencentes a algum destes grupos na produção de suas
matérias-primas ou serviços de suporte? Houve exploração ou subcontratação do
serviço destas pessoas, tanto enquanto a artista dispunha de seu tempo e sua
criatividade para criar tal obra quanto, especificamente, nos modos de
produção/de circulação da obra em si? São perguntas retóricas, porque
precisamos compreender que não é de
lacre
e de conteúdo que se faz um
movimento.
As relações entre arte e feminismos foram extensamente pesquisadas por
mim na tese de doutorado
Para habitar o corpo encruzilhada
(Bacellar, 2019), na
qual analiso a perspectiva de diversas artistas e teóricas, como as citadas, e
também de Lucy Lippard que em
Trocas Vastas: a contribuição do feminismo para
a arte dos anos 1970
(2017), nos provoca a pensar que
buscar ‘a contribuição do feminismo para a arte é uma pista falsa’. Sua
opinião é que não deveríamos buscar a contribuição do(s) feminismo(s)
nas inovações técnicas ou estilísticas, nem pelos usos de novos materiais
ou de conteúdo autobiográfico. Deveríamos buscar perceber se, nessa
imbricação entre feminismos e arte, estamos mudando o próprio ‘caráter
da arte’, ou o que se entende por arte. Ou quem faz ou acessa o que é
considerado arte (Lippard apud Bacellar, 2019, p. 63).
E essa é uma provocação vital para nós, artistas, pesquisadoras e professoras
comprometidas com feminismos que não sejam elitistas, racistas, xenófobos ou
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“transexcludentes” (Bento, 2024)10. Porque mais do que um conjunto de teorias
culturais, mais do que um movimento heterogêneo de luta por direitos, o
feminismo é um modo de vida.
Portanto, em consonância com Preciado (2013), Fabião (2014) e tantas outras,
creio que pode ser mais produtivo pensarmos que certas práticas artísticas e
certos processos criativos operam em frequências que podem ser relacionadas a
um “mover feminista” do que considerar ações, performances ou produtos
artísticos como sendo feministas em si.
Para o nosso contexto latino-americano e diante do avanço do neoliberalismo
e da perpetuação da colonialidade, em suas amplas facetas de violência e de
extermínio de pessoas negras e indígenas, sugiro que os desafios mais
significativos e os questionamentos mais pungentes têm sido colocados pelo
feminismo decolonial11.
Aportes do Feminismo Decolonial
Em
Una crítica decolonial a la epistemología feminista crítica
(2014), Yuderkys
Miñoso afirma que o feminismo decolonial é antes de tudo uma aposta epistêmica.
Propõe-se a ser revisionista das epistemologias dos feminismos hegemônicos que
gozam de um privilégio epistêmico graças a suas origens de classe e raça. Segundo
a autora, ao contribuir com o desenvolvimento da análise da colonialidade e do
racismo, não como fenômeno, mas como uma episteme intrínseca à modernidade
e seus projetos liberadores, um dos aportes mais significativos deste feminismo é
sua aposta
por avanzar en una epistemología contra hegemónica atenta al
eurocentrismo, el racismo y la colonialidad ya no sólo en la producción
de conocimientos de las ciencias sociales y humanas en general, sino
10 Como assevera Berenice Bento a partir de sua abordagem do último livro de Judith Butler,
Quem tem medo
de gênero?
(2024), os feminismos transexcludentes são afinados aos discursos fascistas que inventaram
uma suposta ideologia de gênero. Para Bento, esse medo do gênero se tornou um “álibi quase moral para
desencadear a destruição de todas as pessoas que buscam viver e respirar em liberdade”. (Bento, 2024,
informação verbal na aula “Quais os novos problemas de gênero, Judith Butler?” em 12 jun. 2024)
11 Conforme Miñoso (2014), o feminismo decolonial se alia a muitos outros feminismos e recupera aportes
importantes do feminismo negro, do feminismo do terceiro mundo, do feminismo indígena, do feminismo
lésbico, do feminismo autônomo latino-americano, do feminismo comunitário, do feminismo interseccional,
do feminismo pós-colonial, além de propor revisões críticas ao feminismo materialista francês.
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10
más bien dentro de la teorización feminista (Miñoso, 2014, p. 7).
É por isso que para tais autoras a centralidade do sistema sexo/gênero como
eixo principal dos movimentos feministas deve ser ativamente questionada.
Conforme observa Maria Lugones em
Rumo a um feminismo decolonial
(2014),
os desafios implícitos na perspectiva decolonial
são relativos ao fato de que ver a matriz de poder e a interseccionalidade
das opressões não é suficiente, pois reconhecer os eixos de diferenciação
social é ainda operar pela forma dicotômica hierárquica que informa a
lógica da modernidade e das instituições modernas. É neste sentido que
Ochy Curiel (2014) adverte que mais do que trabalhar pelo viés da
interseccionalidade devemos nos perguntar acerca de como
historicamente foram produzidas as diferenças, ou os eixos de
subordinação como raça e gênero, que impactam principalmente as
mulheres racializadas e pobres (Bacellar, 2020, p. 317).
Logo, “não se trata de descrever que são negras, que são pobres e que são
mulheres, se trata de entender por quê são negras, são pobres e são mulheres”
(Curiel, 2014, p.54). Isso não significa teorizar e operar deixando de considerar a
imbricação dos marcadores sociais de diferenciação, pois justamente a
taxonomização age sobre o corpo de forma indelével. Tampouco significa
renunciar a posicionamentos estratégicos relativos a aspectos identitários na luta
por direitos.
Refletir sobre como a colonialidade age sobre nossos corpos permite escapar
de certas armadilhas. A perspectiva feminista decolonial é vital pois – ao pontuar
que raça, binarismos hierárquicos de sexo/gênero, cisgeneridade e
heterossexualidade normativas são, em si, imposições moderno/coloniais
desafia concepções em que o corpo agiria como bunker essencialista para abrigos
inocentes em refúgios identitários. Como sugere a própria Lugones (2014), não
podemos ficar somente nas categorias fossilizantes e objetificadas que impedem
a aproximação aos processos de subjetivação de cada pessoa.
Em
Subjetividad esclava, colonialidad de género, marginalidad y opresiones
múltiples
, Lugones (2012) traz mais uma importante contribuição para as reflexões
sobre os lugares e as práticas do feminismo quando correlaciona a constituição
gendrada
do mundo com a colonialidade. A autora afirma que considerar seres
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colonizados como “mulheres” não integrava o projeto moderno/colonial, pois
pessoas indígenas e negras sequer estavam situadas na mesma linha de
humanidade que os europeus (Lugones, 2012). Assim, tenho sido instigada a
pensar, como proponho em
À beira do corpo erótico descolonial: entre
palimpsestos e encruzilhadas
(Bacellar, 2020), que
os espaços, os motivos e os sentidos das lutas de mulheres brancas
europeias não coincidem completamente com as lutas de corpos
racializados e gendrados pelo sistema-mundo moderno/colonial.
Historicamente as lutas de mulheres brancas do norte global e de
mulheres racializadas no contexto da colonialidade são drasticamente
distintas, e isto diz respeito ao fato de que seus corpos foram dispostos
em ordens radicalmente opostas. O feminismo decolonial nos impele a
perceber que o corpo não pode ser situado como uma plataforma
comum a todas/es, contribuindo assim para outras miradas não só para
o conceito de corpo, mas acerca do fato de que as travessias que cada
uma de nós deve fazer para
ocupar
seu próprio corpo implica em
experimentações, escolhas e abordagens singulares (Bacellar, 2020,
p.320).
Portanto, conforme temos apostado em diversos contextos, como em
Pedagogias feministas e de(s)coloniais nas artes da vida
(2017), é preciso que
impliquemos nossos corpos e nossos cotidianos num processo diário de
descolonização. As artes da cena têm um potencial imenso para contribuir com a
práxis decolonial, pois se trabalha com imagens, corpos e gestos que produzem
narrativas e pensamentos que podem interferir nos processos de descolonização
das subjetividades (Bacellar,
et al.
, 2017).
Para tanto, seria preciso agir, desde nossas pedagogias e metodologias, sobre
o apagamento epistêmico e material das questões de gênero, raça, etnia, classe,
orientação sexual etc. que permeiam o entorno em que estamos inseridas. Não se
trata simplesmente de termos “diversidade” em cena nem de abordar esse
apagamento como “conteúdo”. A colonialidade do poder e da raça, do saber e do
ser (Maldonado-Torres, 2007) e do gênero (Lugones, 2014) os efeitos
estruturantes do colonialismo em nossas subjetividades – têm a ver tanto com “o
quê” levamos para a cena quanto com “como” levamos o que levamos para cena.
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Cenas do Sul: de Valparaíso à Maré
Proponho que nos detenhamos agora em duas diferentes ações que
convocam a potência de grande parte das múltiplas estratégias artístico-
decoloniais na América Latina:
Un violador em tu camino
(2019), do coletivo chileno
Las Tesis
e
Noite das Estrelas
(2023), do coletivo carioca Entidade Maré. Ambas
operam em frequências mais próximas às do feminismo decolonial pela forma
como dispõe seus corpos no mundo, mas sobretudo pelo modo como o processo
de criação foi parte indissociável do êxito da ação e da cena.
Imaginemos um espaço público amplo, em Santiago de Chile, ocupado por
10 mil mulheres e pessoas sexo-dissidentes, de diferentes idades, todas
vendadas.12 Esta multidão está diante de um espaço histórico, símbolo sangrento
da ditatura militar chilena, o
Estadio Nacional de Chile13
. Gesticulam e dançam em
uma coreografia simples: ora apontam o dedo indicador, com o braço esticado,
ora se agacham, com as pernas bem abertas e as mãos na cabeça. Os olhos estão
vendados, mas as bocas cantam, aos berros, uma canção cujos versos dizem
assim:
El patriarcado es un juez
Que nos juzga por nacer
Y nuestro castigo
Es la violencia que no ves
El patriarcado es un juez, que nos juzga por nacer
Y nuestro castigo
Es la violencia que ya ves
Es feminicídio
Impunidad para mi asesino
Es la desaparición
Es la violación
Y la culpa no era mía, ni donde estaba, ni cómo vestía
Y la culpa no era mía, ni donde estaba, ni cómo vestía
Y la culpa no era mía, ni donde estaba, ni cómo vestía
Y la culpa no era mía, ni donde estaba, ni cómo vestía
12 Segundo reportagem da BBC Mundo, a intendência metropolitana da capital chilena contabilizou 10 mil
pessoas presentes na ação em frente ao
Estadio Nacional
. Para mais informações:
https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-50690475 . Outra fonte que corrobora estes números
é o jornal de mídia independente
Open Democracy
: https://www.opendemocracy.net/es/un-violador-en-tu-
camino-una-forma-de-justicia-alternativa/
13 Trata-se do local onde ocorreram os primeiros massacres da ditadura militar chilena, operou como um
campo de concentração onde 40 mil pessoas ficaram presas, muitas foram torturadas e assassinadas.
Contribuições do feminismo decolonial para a arte feminista: ruas, corpos e outridões
Camila Bastos Bacellar
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
13
El violador eras tú,
El violador eres tú
14
A ação
Un violador em tu caminho (2019)
é parte do processo de criação de
uma obra teatral do coletivo
Las Tesis15
, originalmente baseado em Valparaíso e
composto por quatro mulheres16. O espetáculo que nunca chegou a estrear “no
Teatro” se baseava em teses de Silvia Federici e Rita Segato. Foi a partir de
La
estructura de género y el mandato de violación
(Segato, 2003) que o coletivo criou
a letra da música que integraria o espetáculo. Segato, socióloga argentina com
larga experiência de pesquisa, realizou no Brasil um trabalho de campo
estruturado por meio de entrevistas com detentos condenados por estupro. A
partir daí a socióloga compreende que o estupro não é um ato de prazer sexual e
sim um ato de poder espetacularizante. O estupro é um ato regulador que visa
reproduzir as estruturas mesmas que sustentam as relações hierárquicas de
gênero. Nessa perspectiva, é um imposto sexual que visa a manutenção de uma
economia simbólica de poder. A música do coletivo denuncia também o papel do
estado moderno/colonial em perpetrar e reproduzir toda sorte de violências contra
todos os corpos vulnerabilizados pelo sistema-mundo moderno/colonial de
gênero. Um dos trechos da canção diz “o estado opressor é um macho
estuprador”, e uma das camadas de significado disto está bem nítida na realidade
política brasileira atual.17
14 A letra completa da performance pode ser encontrada em: https://www.cartacapital.com.br/diversidade/o-
estuprador-e-voce-musica-feminista-contra-violencia-percorre-o-mundo/
15 A ação rendeu ao coletivo diversos prêmios, nacionais e internacionais, pela sua importante contribuição
com os direitos humanos. Pelo alto poder de transformação da ação, a revista
Time
incluiu o LASTESIS
como parte das 200 personalidades mais influentes em 2020. Para mais informações consultar:
https://www.colectivolastesis.com/premios.html
16 Las Tesis era composto por Daffne Valdés, Paula Stange, Sibila Sotomayor e Léa Cárceres, essa última
recentemente saiu do coletivo.
17 No Brasil, em junho de 2024, o congresso tentou votar com urgência um projeto de lei que ficou conhecido
como “PL do estupro” (PL 1904/2024) e que prevê (em caso de realização de aborto decorrente de estupro
após a 22 semana de gestação) maior punição para corpos que podem gestar (mulheres, crianças, homens
trans e pessoas não binárias) do que para quem comete o crime do estupro. O “PL do estupro” retira direitos
conquistados, já que desde 1940 o aborto é legal em casos de estupro no Brasil. Para mais informações ver
reportagem do “Portal Catarinas” plataforma de jornalismo feminista independente:
https://catarinas.info/querem-que-criancas-sejam-maes-perguntam-organizacoes-a-deputados-sobre-
proposta-que-ataca-aborto-legal/
Contribuições do feminismo decolonial para a arte feminista: ruas, corpos e outridões
Camila Bastos Bacellar
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
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A peça de Las Tesis não estreou porque em outubro de 2019 eclodiram
manifestações multitudinárias contra os avanços neoliberais no Chile. As artistas
do coletivo se juntaram aos protestos e, diante da percepção de que várias
manifestantes estavam sendo injustamente detidas, algumas companheiras
desaparecidas e outras mortas18, decidiram levar a música e a partitura cênica para
a rua. No dia 20 de novembro, em uma pequena praça em Valparaíso, eram apenas
algumas mulheres e corpos sexo-dissidentes executando pela primeira vez esta
ação, que foi filmada e colocada nas redes sociais.19 É nesse momento que a ação
se torna viral por meio de um
boom
de compartilhamentos, e o coletivo convoca
mulheres e demais corpos dissidentes da cis-heteronormatividade para a
realizarem novamente em 25 de novembro, Dia Internacional para a Eliminação da
Violência contra as Mulheres. É importante marcar aqui a aliança com as sexo-
dissidências, pois o patriarcado de que falam violenta não as mulheres
cisgênero, mas também pessoas trans, não-binárias e demais corporalidades
sexo-dissidentes.
A ação
Un Violador en tu camino
foi realizada de forma autogestionada
em
mais de 50 países20 e em cerca de 300 cidades pelo mundo. No Brasil a ação foi
realizada em Porto Alegre, Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro, Vitória, Goiana,
Belo Horizonte, Brasília, Salvador, Natal, Fortaleza, Manaus, entre outras cidades.
18 Duas mulheres foram mortas em circunstâncias relacionadas a suas participações nos protestos: Daniela
Carrasco, que havia sido detida pela polícia chilena e Albertina Martínez Burg, jornalista que cobria as
manifestações. Ambos os feminicídios são imputados aos carabineiros, a polícia chilena.
19 O vídeo da primeira vez que realizaram a ação em 20 nov. 2019 pode ser visto em:
https://youtu.be/9sbcU0pmViM. Outros deos da ação realizada posteriormente pelo coletivo também
viralizaram nas redes. Ver os vídeos na sequência cronológica proposta aqui ajuda a ter dimensão do
crescimento exponencial da ação. Dia 29/11/2019:
https://www.youtube.com/watch?time_continue=278&v=_0ed59v2hQE&embeds_referring_euri=https%3A%2F%2Fwww.col
ectivolastesis.com%2F&source_ve_path=Mjg2NjY&feature=emb_logo Dia: 05 dez. 2029:
https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=2595199210601697
20 Mapa colaborativo das principais localidades: https://umap.openstreetmap.fr/pt-br/map/un-violador-en-tu-
camino-20192021-actualizado-2905_394247#2/17.0/11.1