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Subversões de gênero, sexualidade e etarismo:
o espetáculo
Oramortem
, do in-Próprio Coletivo
Vicente Carlos Pereira Junior
Para citar este artigo:
PEREIRA JUNIOR, Vicente Carlos. Subversões de gênero,
sexualidade e etarismo: o espetáculo
Oramortem
, do in-
Próprio Coletivo.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0113
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Subversões de gênero, sexualidade e etarismo: o espetáculo
Oramortem
, do in-Próprio
Coletivo1
Vicente Carlos Pereira Junior2
Resumo
Neste artigo, analisou-se como as categorias de macho e fêmea são desnaturalizadas
no espetáculo
Oramortem
(2015), que marca a estreia do in-Próprio Coletivo na cidade
de Cuiabá (MT). Procurou-se investigar como a assunção de um discurso feminista pelo
coletivo contrariou uma tendência histórica do teatro brasileiro e como esse
direcionamento se relacionou com outras características marcantes daquela obra, como
a abordagem da sexualidade de pessoa idosa, o hibridismo de linguagens artísticas, a
ênfase na visualidade e a predominância de modos menos substanciais e afirmativos de
presença.
Palavras-chave
: Teatro brasileiro. Teatro contemporâneo. Feminismo. Etarismo.
Subversions of gender, sexuality and ageism: the play
Oramortem
by in-Próprio Coletivo
Abstract
In this article, we analyzed how the categories of male and female are denaturalized in
the play
Oramortem
(2015), which marks the emergence of in-Próprio Coletivo in the city
of Cuiabá (MT). We sought to investigate how the assumption of a feminist discourse by
the artist collective contradicted a historical trend in Brazilian theater and how it related
to others distinct characteristics of that work such as the approach to sexuality of elderly
people, the hybridism of artistic languages, the emphasis on visuality and the
predominance of less substantial and affirmative modes of presence.
Keywords:
Brazilian theater. Contemporary theater. Feminism. Ageism.
Subversiones de género, sexualidad y edadismo: la pieza teatral Oramortem del colectivo
in-Próprio
Resumen
Este artículo analiza cómo se desnaturalizan las categorías macho y hembra en la pieza
teatral
Oramortem
(2015), que marca el surgimiento del colectivo in-Próprio en la ciudad
de Cuiabá (MT). Se aspira investigar cómo la asunción de un discurso feminista por parte
del colectivo artístico va en contra de una tendencia histórica del teatro brasileño, y
también cómo esa orientación se relaciona con otras características destacadas de ese
trabajo como la tematización de la sexualidad de las personas mayores, el hibridismo
de lenguajes artísticos, el énfasis en la visualidad y el predominio de modos de presencia
menos sustanciales y afirmativos.
Palabras clave
: Teatro brasileño. Teatro contemporáneo. Feminismo. Edadismo.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Liciane Guimarães Corrêa. Mestre em
Estudos de Literatura pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ),
http://lattes.cnpq.br/9252835115984938.
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Artes Cênicas pela UNIRIO. Especialização em Gestão e Políticas Culturais pela Universidade de Girona
Espanha. Graduação em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina (UEL).
vicenteorama@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8066095990190178 https://orcid.org/0000-0001-6913-1795
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Oramortem
, o primeiro espetáculo do in-Próprio Coletivo, estreou no teatro
do Centro Cultural Sesc Arsenal, em Cuiabá (MT), no ano de 2015. Tendo se
originado em um projeto de investigação artística e acadêmica da atriz, encenadora
e pesquisadora Daniela Leite3, a obra teve a influência de artistas de diferentes
linguagens, os quais tomaram parte em um processo criativo horizontalizado.
Na gênese de
Oramortem
, a intenção de desenvolver artisticamente afetos,
percepções e atravessamentos que Daniela Leite teria experimentado em
vivências junto à avó paterna, em uma propriedade rural no interior de Minas
Gerais, coexiste com investimentos contra modos de produção teatral percebidos
como demasiadamente cristalizados, hierarquizados e desiguais na cidade de
Cuiabá. Em tese de doutoramento defendida no Programa de Pós-Graduação em
Estudos da Cultura Contemporânea da Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT), a artista revela o seguinte sobre sua avó:
Mineira de noventa e dois anos, ela viveu junto a José, meu avô, por
sessenta e cinco anos, até o falecimento deste, em junho de 2011. Ainda
durante sua recente viuvez, Lourdes submeteu-se a uma cirurgia de
catarata e possivelmente, devido ao uso de anestésicos somados às
fragilidades emocionais daquele período e às potências de seu corpo
passou a delirar: acreditava ser jovem, numa mudança brusca de
percepção do tempo à sua volta e no seu corpo, preparava-se
incansavelmente para um encontro com seu namorado (que namorado?),
que emergia de algum lugar submerso de sua memória. Além disso,
acreditava que eu e suas filhas éramos, na verdade, suas irmãs,
compartilhando intimidades de sua vida sexual, nunca antes reveladas
(Leite, 2019, p. 35).
O relato destaca rompimentos com disposições habituais da personalidade
de sua familiar provocados pelo trauma da perda do companheiro de toda uma
vida e pelo uso de drogas cirúrgicas, mas não deixa de reconhecer também as
“potências de seu corpo”, evidenciando que aquelas duas instâncias foram meros
catalisadores de inexaurível desejo subsistindo ao acúmulo dos anos. A notícia da
operação de catarata, por sua vez, coloca em relevo a dimensão visual,
antecipando aspecto que, mais tarde, será valorizado pelo dispositivo do
espetáculo.
3 Além de Daniela Leite, os artistas que integraram o processo de criação do espetáculo Oramortem são o
artista visual Luis Segadas, a atriz e iluminadora Karina Figueiredo, o ator Felipe Valentim e os músicos Estela
Ceregatti, Jhon Stuart e Luiz Gustavo Lima.
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Visível e invisível como substratos de gênero e idade
Caracterizada pelo embaçamento progressivo da visão, a doença de catarata,
quando em seu estágio mais avançado, demanda a substituição do cristalino, uma
lente transparente e natural que permite ao olho ajustar o foco de luz,
transformando em imagens nítidas objetos situados a diferentes distâncias. Esse
movimento pelo qual o aparelho visual produz imagens, as quais se desdobram,
por sua vez, em signos e significados, é ralentado ao máximo na cena inicial de
Oramortem
, tornando desafiadora a tarefa de divisar com precisão as feições mais
básicas de suas primeiras figuras.
Assim, a visão dos recuos e das aproximações presentes no encontro erótico
de duas pessoas é insistentemente refratada pelos diversos elementos da
encenação, impedindo continuadamente os espectadores de circunscrevê-la, de
dominá-la, instalando-os num estado de reiterada incerteza, de desconfiança
quanto aos seus próprios sentidos.
Primeiro, vê-se apenas o brilho pálido de uma silhueta invertida em um
espelho d’água, imagem que se constitui muito lentamente e que o observador,
na escuridão em que está mergulhado, inicialmente não é capaz de apreender
como um reflexo, tomando-a, com muita facilidade, como um legítimo anteparo
real. A audiência é abandonada por duradouro instante nesse estado, até que a
imobilidade translúcida do líquido é perturbada pelo toque de dedos de um ser
alado que surge misterioso de dentro de um casulo negro de tecido acrobático,
vindo de direção inversa à da primeira figura, como se eles fossem habitantes de
mundos distintos. Enquanto a primeira pessoa se encontra sentada em uma
cadeira no tablado, a segunda é sustentada pelo tecido ancorado ao teto, e sua
cabeça pende meio metro acima do solo. Vistos pelo reflexo, suas verticalidades
se invertem. Quem está de cabeça para baixo parece estar de pé, quem está
sentado na cadeira sobre o chão parece flutuar no espaço a partir de engenhosa
cenografia.
A encenação conduz, assim, seus espectadores, mesmo que brevemente, se
não a um estágio similar ao vivido pela avó de Daniela Leite, pelo menos a um
intervalo de vertigem, a um estágio de despossessão de alguns referenciais
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elementares, produzindo, portanto, uma equivalência. Induz, graças à lentidão
imposta aos processos de decifração visual de seus espectadores, que estes
percebam os primeiros traços de inteligibilidade da cena como os traços de uma
mulher, de uma velha. Permite-lhes experimentar, então, a aparição de um sujeito
como a aparição de um gênero e de uma idade.
Como defende Paul B. Preciado em
Testo Junkie
(2018, p. 111), “os critérios de
atribuição de sexo que permitem decidir se um corpo é ‘feminino’ ou ‘masculino’
na hora do nascimento dependem de um modelo de reconhecimento visual”,
condição que subsome o real a uma “ontologia ótica: o real é o visível”. Assim, ao
converter a aparição da idosa em cena em um acontecimento processual como
um parto ou um exame de ultrassonografia,
Oramortem
possibilita às
testemunhas que habitem provisoriamente um limbo em que as múltiplas e
contraditórias qualidades atribuídas à figura encontram-se em suspensão,
momento em que ela ainda pode ser, por exemplo, homem e mulher, e pode
também não ser coisa alguma.
Mas, à medida que a luz aumenta, e a visibilidade da sua vestimenta e da sua
expressão corporal servem para enquadrá-la no lugar social da velha, é preciso
reconhecer a persistência de uma tensão, durante todo o espetáculo, operando
para deslegitimar o vínculo inconfundível de uma identidade com uma
determinada configuração do visível, com a monotonia de uma imagem. A ação
principal de
Oramortem
trabalha para que os espectadores possam se desprender
da relação entre velhice e pobreza de experiência, religando-se às potências que
atravessam um corpo que contém todas as idades:
Proponho um sentido contrário para a maneira pejorativa atribuída à
palavra Velha como algo obsoleto, antiquado, antigo ou muito usado.
Aqui, Velha é uma palavra-nome de mulher que quer dizer: uma mulher
avançada em anos, ou também, uma mulher que possui todas as idades,
porque as viveu. Desde o início do processo nomeamos a personagem
como Velha, justamente, porque poderia ser a história, o desejo de
qualquer mulher com 90 ou 100 anos, ou melhor, com todas as idades
juntas (Leite, 2019, p. 44).
Assim, desde o momento em que procede a uma inversão, apresentando a
personagem de cabeça para baixo, depois dissipando sua imagem no frêmito das
águas que constituem um fino espelho no chão, também quando a instala em
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uma relação lúdica e erótica com um personagem que se supõe muitos anos mais
jovem, a obra problematiza o senso comum em torno do que seja ou de como
deva ser uma (boa) idosa. E, ao tensionar o que significa uma idade, tensiona
também o que significa um gênero. A assexualidade, afinal, é uma característica
muito marcadamente atribuída às mães, às avós, às mulheres fora da idade
reprodutiva, encarregadas que estão dos “processos de criação e cultura e os
cuidados da subjetividade masturbatória ejaculante” (Preciado, 2018, p. 328). “Por
que uma mulher idosa precisa delirar para falar do seu desejo? Por que é tão
absurdo ouvir uma mulher falando que sente vontade de fazer sexo?”, pergunta-
se a iluminadora Karina Figueiredo (Leite, 2019, p. 46).
Oramortem
concede aos observadores, depois de muitos desvios em seus
atos perceptivos, a visão da Velha, situada em um determinado corpo e em um
estágio de solidão e delírio. Essa imagem bem conhecida das audiências uma
imagem de controle, pode-se dizer, beneficiando-se de conceito advindo do
feminismo negro e desenvolvido por Patrícia Hill Collins4 não se resignará,
contudo, com sua própria platitude, sendo seguidamente contradita pelos anseios
do seu corpo, pela vitalidade do seu sexo, pela tendência ao fragmentário e ao
hibridismo da cena.
Quando Leite registra que as potências do corpo de sua avó nonagenária
beneficiaram-se da alucinação e do delírio para se libertarem de um conjunto de
restrições e expectativas que regularam a maior parte de sua existência, ela não
se dirige a uma condição individual apenas. A ênfase em uma dimensão coletiva
daquela experiência revelou-se especialmente na opção por uma qualidade de
presença similar ao que José da Costa Filho nomeou “presença diferida” ou
“vertigem da presença”, isto é, um modo de presença “que investe radicalmente
na desestabilização” das representações “de um sujeito razoavelmente coerente
e estável” (2009, p. 123). Essa tendência pode ser verificada na predileção pelo
reflexo, pela sombra e na exploração do aspecto “falsificante”, “fugidio” (Costa
Filho, 2009, p. 122) daqueles modos de aparição espectral, ao longo da ação de
4 De acordo com Klein e Costa, o conceito de imagens de controle define “uma violência simbólica e discursiva
estabelecida pelos opressores que balanceiam raça, classe, gênero, sexualidade e agressividade buscando
delimitar um local social pejorativo para a mulher negra. As imagens de controle articulam-se com símbolos
no imaginário. Significa dizer que, no inconsciente, [operam] determinadas expectativas de como os corpos
devem performar discursiva e visualmente e analisar quais os seus papéis” (2023, p.192).
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Oramortem
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Além disso, embora a atriz esteja encarregada de representar em cena a
individualidade visual e biológica de Maria de Lourdes, outros componentes
constitutivos de sua presença encontram-se distribuídos entre as outras artistas
autoidentificadas como mulheres envolvidas na realização do espetáculo,
escapando às maneiras mais convencionais de figuração de uma personagem.
Karina Figueiredo, por exemplo, adentra o espelho d’água, em determinado
momento, portando um refletor aceso para focalizar de perto o assombro
orgástico do encontro entre a personagem e seu amante, gesto que faz com que
a silhueta dos dois se multiplique pelas paredes da caixa cênica em sombras
estriadas pelos reflexos da água. Todos os movimentos de aproximações, toques,
afastamentos e recusas entre atriz e ator são, assim, comentados, sublinhados ou
distorcidos pelo efeito de sombras. Um dos exemplos é a fusão entre as duas
formas individuais projetadas, insinuando a cópula ainda não praticada pelos
corpos físicos, o que permite pensar em uma dramaturgia paralela, especular, que
desmente ou que adensa as ações principais. Tais intervenções performativas por
parte da iluminadora autorizam-na a comentar: “Eu me movimento em
Oramortem
como iluminadora e como narradora [...]. É um estado de presença
que costura ambas, que se justapõem para fazer as escolhas do que mostrar, em
que momento mostrar, como mostrar” (Leite, 2019, p. 55).
A cantora Estela Ceregatti, por sua vez, está visível desde o início do
espetáculo, porém em posição periférica, de onde sua voz entoa suspiros e
murmúrios, os quais ensaiam construir palavras e frases, esboços esses que se
desintegram mais facilmente que as imagens, os reflexos e as sombras. Sua
expressão parece habitar uma zona vizinha ao verbo, deslocar-se em seu espectro
e, por vezes, endereçar-se a ele sem o acessar, sem conseguir emiti-lo. Mas, para
além desse impedimento à linguagem, é possível experimentar também a
tenacidade de seu trabalho sobre esse idioma estranho, permitindo intuir que ela
fala uma língua própria, comunicada menos pelo caminho de um entendimento
convencionado do que pela musicalidade de sua expressão melíflua. Ainda, essa
voz é tão coordenada com os movimentos da Velha, que é difícil discernir em qual
das duas nasceu o impulso para uma dada ação, se da mulher iluminada pelos
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holofotes, se da mulher na obscuridade.
Dada a importância que exercem ao dar literalmente voz e visibilidade ao que
ocorre na cena, essas artistas são retiradas da zona de obscuridade em geral,
reservada às funções técnicas e assumidas como parte integrante da
subjetividade que a obra trabalha para produzir. Mesmo sendo a atriz que localiza
em cena o corpo físico da Velha, Daniela Leite não ensaia ocupar um lugar
centralizador no discurso da peça. Essa abertura ou esse compartilhamento
acompanha a perspectiva de despersonalização que se expressa na separação
entre voz e corpo, na não utilização de palavras e na forma fantasmagórica e
especular de presença que é estabelecida. Tal disposição contrasta com a ideia
de espetáculo construído a partir de episódio biográfico de uma de suas artistas e
permite que a obra se desvie de uma forma convencional ou laudatória de
homenagem à ancestral. A desobediência moral praticada pela avó enseja não um
processo reverenciador da memória, seja de Maria de Lourdes, seja da neta, mas
oportuniza a três artistas, mesmo situadas em faixas etárias distantes daquela da
Velha, que articulem o feminino em uma dimensão coletiva, enunciando-o como
uma experiência de repressão, contra a qual a obra investe.
Assim como a ação do espetáculo, pautada no dispositivo cenográfico e na
dramaturgia da iluminação, adia o encontro dos espectadores com o corpo físico
da atriz Daniela Leite, os elementos selecionados para caracterizar a personagem
que ela representa não oferecem uma decifração óbvia da figura da Velha. Se a
sua movimentação lenta e o vestido de grossa renda aludem mais facilmente à
mulher avançada em anos, chama a atenção a escolha de um tule branco enrolado
em sua cabeça como representação pouco realista da cabeleira grisalha. Sob esse
material, estão escondidas pequenas luzes de LED, as quais se acenderão no final
do espetáculo, ressaltando a sede de vida que resiste ao envelhecimento corporal.
A essas inventivas soluções, que dão conta da influência das artes visuais no
processo, somam-se os pés descalços da atriz, que, adentrando o espelho d’água
e perdendo o contato com o chão no momento em que a Velha ousa se balançar
no tecido acrobático antes utilizado pelo amante, confirmam sua disposição para
a experiência, para a relação renovada com o mundo.
A transparência e a opacidade que tecidos como a renda e o tule negociam,
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permitindo tanto velar quanto revelar os corpos que os vestem, também orientam
os modos de aparição do jovem amante, dos músicos e da iluminadora. Sobre o
primeiro, o avançar do espetáculo revelará mais corretamente o porte físico, o
tônus do braço desnudo, o corte de cabelo, o evidente apetite sexual pela outra
figura (lida como feminina), tudo isso convergindo para a definição de um jovem
do sexo masculino, motivo pelo qual a dramaturgia lhe o nome de Menino. Essa
personagem, como produto da alucinação, como a vivência longínqua de um
namorado encerrada na memória da Velha, é desprovida de rosto. Sua face é
coberta por um material rugoso e transparente, como se muitas camadas de
plástico fundido tivessem se solidificado sobre ela. Sem que haja furos para a
expressão dos olhos, esse acessório vela a maior parte dos traços distintivos do
ator, mas, por outro lado, não impede a identificação da cor de sua pele, exposta
no pescoço e no tórax despido. Parece atuar, portanto, muito mais para borrar,
para vetar o acesso aos olhos, ao contorno da boca, ao formato do nariz e, assim,
retardar ou mesmo interditar um reconhecimento definitivo de uma sua
identidade.
Em direção semelhante, a iluminadora, a cantora e os dois músicos, Jhon
Stuart e Luiz Gustavo Lima, os quais executam, em instrumentos de cordas e
percussão, a trilha sonora responsável por adensar as tensões e os êxtases da
ação, também portam acessórios que interferem na visão de cada rosto. Estão
com a cabeça completamente envolta em espessa renda, material que dissimula,
mas que é também todo tramado com respiros, furos, vãos.
Articulando significado relevante para a dramaturgia do espetáculo, essas
máscaras têm estrutura pouco convencional, que elas não apenas
despersonalizam os agentes que as utilizam, mas também interferem no que eles
veem. Apenas a Velha tem a face desvelada e apenas ela é capaz de enxergar com
nitidez, sem um elemento que prejudique a recepção da luz pelas retinas. Isso faz
com que o seu mundo subjetivo ganhe materialidade. As faces encobertas são as
de seres que perderam alguns dos principais atributos de designação de sua
identidade, são lembranças trabalhadas pela ação do tempo ou são produções do
delírio. São, contudo, entidades reais. Têm carne, substância e agem na concretude
da cena.
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Essa ênfase no visual em prejuízo da retórica e do psicologismo em
Oramortem
reforça a certeza do visível como dado inequívoco, como substrato do
real. Por outro lado, os aspectos pelos quais a imanência desse visual é ameaçada,
isto é, a priorização do reflexo, do simulacro, da máscara converge com uma
segunda alternativa discutida por Preciado no tocante à definição do sexo. De
acordo com tal alternativa, existiria um outro sexo, mais real, de caráter
psicológico, “uma convicção subjetiva de ser um ‘homem’ ou uma ‘mulher’”,
baseada em “um modelo de radical invisibilidade”, segundo o qual “o real não se
oferece aos sentidos e é, por definição, aquilo que escapa aos meios empíricos”
(2018, p. 111).
As máscaras vetam, assim, mais do que a expressão facial ou a identidade
dos músicos e da iluminadora: elas vetam também alguns signos pelos quais a
audiência, de maneira mais ou menos confiante, associaria tais sujeitos a um sexo
específico. Considerando esse ocultamento que, em diferentes gradações, abrange
a maior parte dos artistas da peça, seria justo pensar em uma progressão que vai
dos rostos totalmente cobertos de renda, passa pela máscara semitransparente e
chega à face nua da Velha. Esse caminho pode ser percorrido ainda em um sentido
oposto, como se a peça empreendesse uma luta agônica contra os significados
imediatamente extraídos do rosto da anciã, ou melhor, do rosto de Daniela Leite
caracterizada como anciã. A evolução ocorreria, portanto, em direção às faces
veladas, aos sujeitos aos quais não é possível atribuir muitos predicados, a modos
de aparição que se pode pensar como dotados de maior liberdade, menos
comprometidos com interdições e expectativas.
Investimentos contra gênero e sexo
Judith Butler, recorrendo à famosa sentença de Simone de Beauvoir
“Ninguém nasce mulher:
torna-se
mulher” (
apud
Butler, 2016, p. 193,
grifos da
autora
) —, infere que, para a autora francesa, o sexo é algo inato, algo que os
indivíduos trazem desde o nascimento, atributo indissociável de sua humanidade.
O gênero, por sua vez, corresponde a “uma realização cultural variável, um
conjunto de significados que são assumidos ou absorvidos dentro de um campo
cultural” (Butler, 2016, p. 194), ou seja, o gênero não é aportado desde o
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nascimento, mas é algo que se adquire durante o tempo de existência.
Butler vai se deter, então, nas relações de causalidade que ligam os dois
termos na acepção de Beauvoir, compreendendo o gênero como uma espécie de
intepretação cultural variável da realidade biológica e fixa do sexo. Desdobrando
as consequências radicais desse pensamento, que acredita não terem sido
suficientemente pressupostas pela feminista francesa, Butler vislumbra a
completa dissociação entre sexo e gênero, julgando que “os corpos sexuados
podem dar ensejo a uma variedade de gêneros diferentes, e que, além disso, o
gênero em si não está necessariamente restrito aos dois usuais” (2016, p. 194-195).
Essa profusão de possibilidades de que dispõe a categoria do gênero faz com que
ela seja não apenas muito mais livre do que a categoria do sexo, mas também que
ela ultrapasse e corrompa a própria rigidez e a exclusividade do aspecto binário
dessa última, a saber, a divisão macho/fêmea.
Aqui, Butler se associa aos
insights
de Monique Wittig, compreendendo o sexo
não mais como uma realidade primeira, natural e inalienável, uma pedra de toque
que vincula o sujeito irremediavelmente às duas únicas possibilidades do
masculino ou do feminino. Para Wittig, o sexo seria, ao contrário, “um uso
especificamente político da categoria da natureza, o qual serve aos propósitos da
sexualidade reprodutora”, uma divisão “adequada às necessidades econômicas da
heterossexualidade” (Butler, 2016, p. 195-196). Essa reflexão solapa uma concepção
substancialista do sexo, sua metafísica da presença, investindo-a da mesma
variabilidade cultural que repousa sobre a expressão do gênero. A partir do impulso
para pensar esse último como aberto a uma miríade de variações, independentes
do que atestam os órgãos genitais ou os cromossomos, pensados também em
sua diversidade e nos seus desvios, é colocada em questão a própria leitura desses
signos genético-corpóreos enquanto realidades seguras e imutáveis5.
María Lugones (2020, p. 68), por sua vez, em suas críticas ao que nomeou a
5 Sobre esse aspecto, Butler cita estudos críticos aos campos da genética e da biologia celular, produzidos
por Eva Eicher e Linda L. Washburn, que questionam as “genitálias externas como sinais seguros do sexo”
(2016, p. 192) e argumentam sobre a falta de embasamento científico quanto ao princípio ativo masculino
na composição cromossômica, isto é, a ideia de que a presença (ou ausência) do cromossomo Y é o que
determina o sexo, reinscrevendo, consequentemente, o feminino como falta.
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“colonialidade de gênero” e apoiada em estudos de Julie Greenberg6, observa a
compulsoriedade com que indivíduos intersexuais isto é, que não se enquadram
nos indicadores biológicos associados aos machos nem às fêmeas são
relegados a uma das duas categorias sexuais pré-fixadas. Ela localiza nesse fato
indícios de como as leis que regem as sociedades capitalistas contemporâneas
excluem modos de existência que relativizam a norma vigente. Desse modo,
assevera que “o dimorfismo sexual é uma característica importante” daquilo que
chama “‘o lado iluminado/visível’ do sistema de gênero moderno/colonial”, dado
atestado, por exemplo, por estudos de Paula Gunn Allen, os quais informam que
“indivíduos intersexuais eram reconhecidos em muitas sociedades tribais
anteriores à colonização sem serem assimilados à classificação sexual binária”
(Lugones, 2020, p. 70).
Desconstruído, o sexo revela-se, portanto, um produto cultural tanto quanto
o gênero. O sexo é, de acordo com essa concepção, discursividade que regula o
incomensurável da natureza humana, diferenciando-a em homem e mulher e
restringindo-a a essas duas possibilidades, de modo a reproduzir uma ordem
desigual ancorada nesse binômio. Conforme Preciado coloca, “o corpo sexual é
produto de uma divisão social da carne de acordo com o qual cada órgão é
definido pela sua função. Uma sexualidade sempre implica um governo preciso da
boca, mão, ânus, vagina” (2018, p. 49). Desse modo, considera que “uma das
diferenças políticas elementares do Ocidente poderia ser resumida a uma equação
banal: ter ou não ter um pênis de um centímetro e meio no momento do
nascimento” (Preciado, 2018, p. 77). Ainda de acordo com ele, a vigência dos dois
modelos supracitados de atribuição do sexo um assentado no visível e outro,
no invisível consubstancia-se na prevalência de um “único eixo metafísico que
os aproxima da mesma forma que os opõe” (Preciado, 2018, p. 111):
É necessário imaginar os ideais biopolíticos da masculinidade e da
feminilidade como essências transcendentais das quais pendem, em
6 Greenberg enfatiza a alta incidência de indivíduos intersexo na população mundial (entre 1% e 4%) e observa
que crianças com o par de cromossomos XY, considerado masculino, mas que têm pênis “inadequados”
costumam ser classificadas como meninas “porque a sociedade acredita que a essência da virilidade é a
habilidade de penetrar uma vagina ou urinar de pé” (apud Lugones, 2020, p. 69). Por outro lado, crianças
com o par XX, considerado feminino, mas que possuem um pênis “adequado” serão frequentemente
designadas meninos “porque a sociedade, e muitos membros da comunidade médica, acreditam que para
a essência da mulher é mais importante a capacidade de ter filhos que a de participar em uma troca sexual
satisfatória” (Greenberg apud Lugones, 2020, p. 69).
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suspensão, estéticas de gênero, códigos normativos de reconhecimento
visual, convicções psicológicas invisíveis que levam o sujeito a se afirmar
como masculino ou feminino, como homem ou mulher, como
heterossexual, homossexual, cis ou trans (Preciado, 2018, p. 111).
Portanto, assumir a figura de face desnuda em
Oramortem
como uma mulher
é dialogar com um repertório de imagens que, por seu caráter sexuado, articulam-
se com posições pré-determinadas, as quais se ligam, por sua vez, a distribuições
de poder e de uso autorizado da violência nas sociedades capitalistas pós-
coloniais. Nesse sentido, é mais justo afirmar que a encenação nos permite atribuir
uma personagem ao sexo do que dizer que ela nos permite atribuir um sexo à
personagem. Mas se, com o apoio de Butler, Beauvoir, Wittig, Preciado, Lugones,
Greenberg e Gunn Allen, colocarmos sob suspeição a estabilidade da categoria
mulher, seria justo desconfiar também daquilo que os sentidos apreendem de
maneira muito automatizada sobre o visível da cena. Ou seja, tal como a
mobilidade do gênero compromete a solidez do sexo, também o indiscernível, isto
é, as faces veladas, semiveladas e a presença diferida da Velha, deverá contaminar
aquilo que a luz e a nudez (da face) parecem revelar de maneira inconfundível.
Sobre esse investimento no gênero como matéria significante em
Oramortem,
é importante ressaltar ainda, em contraste com a atuação
pronunciada de Ceregatti e Figueiredo, a participação marginal, pouco destacada,
mas cúmplice, dos músicos Jhon Stuart e Luiz Gustavo Lima. Posicionados em
uma penumbra à esquerda da cena, eles não têm um desempenho destacado,
mas também não estão invisíveis. Sua presença discreta, algo subserviente, em
uma obra que tematiza a construção social da sexualidade dos corpos lidos como
femininos, incorre numa espécie de falha na performance requerida pelo macho
enquanto papel dominante na cadeia naturalizada do regime heterossexual7.
Paradoxalmente, a relevância dos movimentos da composição sonora para a
7 O conceito de gênero como “performativo” é desenvolvido por Butler, em que “‘performativo’ sugere uma
construção dramática e contingente de sentido” (2016, p. 240). Butler parte das performances drag queen e
da estilização corporal das lésbicas butch (caminhoneiras) enquanto pastiche de gênero: “imitações que
deslocam o significado do original, imitam o próprio mito da originalidade” (2016, p. 238). Essa leitura
conduzirá ao conceito de gênero como correspondente de uma espécie de desempenho teatral, imitativo
, “com consequências claramente punitivas”, que “habitualmente punimos os que não desempenham
corretamente o seu gênero” (Butler, 2016, p. 241). Será precisamente, contudo, “nas relações arbitrárias entre
esses atos que se encontram as possibilidades de transformação do gênero, na possibilidade da
incapacidade de repetir, numa deformidade, ou numa repetição parodística que denuncie o efeito
fantasístico da identidade permanente como uma construção politicamente tênue” (Butler, 2015, p. 243).
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dramaturgia e a forte atuação colaborativa desses artistas nesta cena de gênero
contribuem para frustrar pretensões à exclusividade e à pureza da mulher
cisgênero como sujeito político das lutas feministas.
O in-Próprio Coletivo e a tradição feminista na cena brasileira
Ainda no tocante às máscaras que não obstruem completamente a visão dos
rostos, em
Oramortem
, é possível inferir que elas expressam reconhecimento da
arbitrariedade com que papéis sexuais são impostos aos corpos socialmente, mas
elas também asseguram vestígios, resíduos de uma identidade já incorporada por
aqueles que as portam. uma base que não se pretende renunciar
completamente. Esse aspecto conflui para a importância que o espetáculo atribui
à Velha, com seu rosto de mulher desvelado. A insistência sobre essa figura que
se constitui em interação com a norma, assimilando atribuições, proibições,
convivendo com as regras, mas também confrontando-as, marca as afinidades
entre o in-Próprio Coletivo e o campo das lutas feministas. Essa tendência,
confirmada em trabalhos posteriores, como
in-Próprio para dinossauros
, de 2018,
Quando tudo era mar
, de 2021, e
Verniz náutico para tufos de cabelos
, de 2024,
será incorporada à identidade do grupo, sendo propositadamente investida na
imagem pública do seu trabalho, ainda que se manifeste menos como uma filiação
dogmática e mais como algo implicado nas experiências pessoais de suas artistas
e nas intencionalidades construídas por atravessamentos coletivos. Essa
identificação inscreve o in-Próprio Coletivo em um grupo restrito e pouco
visibilizado de experiências feministas no teatro brasileiro.
Lúcia Regina Vieira Romano, analisando o contexto da cidade de São Paulo e
levantamentos realizados na Europa e nos Estados Unidos, nas décadas de 1980
e 1990, considera que a reiteração de termos técnicos sem diferenciação como
“trabalho do ator”, “ator do teatro”, “público” atestam a existência de uma ideologia
da “neutralidade de gênero” (2009, p. 136) nesse campo cultural. Tal neutralidade
contribuiria para denegar o sexismo prevalente, sugerindo que o teatro seria um
terreno aberto à participação de todos os seres humanos, sem distinção. Sua
análise dos resultados de 15 edições sucessivas do Prêmio Apetesp, entre 1984 e
1998, revela que as artistas mulheres sempre foram menos condecoradas do que
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os homens, o que interpreta como reflexo de menor participação feminina nas
funções premiadas.
Em artigo mais recente, Romano localiza em pesquisa de Daniela Alvares
Beskow uma análise de quatro guias teatrais da cidade de São Paulo, durante um
período de 21 meses, revelando que “100% deles apresentam mais trabalhos feitos
por homens, seja na composição dos coletivos, na direção, ou na produção” (2019,
p. 5), de onde infere que ou as mulheres produzem menos ou seguem sendo
invisibilizadas. Em suas conclusões, Beskow (
apud
Romano, 2019) considera que
as produções de mulheres são prejudicadas quando têm que passar pelo “gargalo”
da comercialização e da divulgação e reflete sobre o fato de que a maioria dos
responsáveis editoriais pelos guias analisados em sua pesquisa é do sexo
masculino.
Quanto à relação entre teatro e feminismo, Romano alude a estudo pioneiro
de Elza Cunha de Vincenzo (1992), que verifica em obras de dramaturgas mulheres
como Leilah Assunção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara, atuantes nos anos 1960
e 1970, “tanto a defesa da atuação da mulher na sociedade quanto a negação a
um engajamento explícito com as discussões de gênero” (Romano, 2009, p. 363).
Assim, Vicenzo considera que, ainda que o trabalho de tais autoras manifeste “um
novo tipo de atitude contestatória na cena nacional” (1992, p. 17), sua hesitação
quanto ao feminismo pode ser interpretada à luz do “desprestígio” e do “caráter
de coisa ridícula, que afetou algumas correntes dos movimentos feministas
naquela época” (1992, p. 14). Além disso, ela se refere a diagnóstico de Juliet
Mitchell, segundo a qual a abjeção generalizada aos feminismos, em tal período
histórico, seria explicada como uma resposta ao abandono pelas mulheres de seus
postos de donas de casa durante a Segunda Guerra Mundial, sobretudo nos países
de capitalismo avançado, despertando anseios “de restaurar a forma da família tal
como ela existia anteriormente” (Vicenzo, 1992, p. 15). Obviamente, tais
circunstâncias informam um tipo de experiência feminina bem delimitada social e
racialmente. Como ressaltado por Angela Davis, as mulheres negras
estadunidenses raramente têm sido “apenas donas de casa” (2016, p. 233) e desde
sempre têm realizado as tarefas domésticas mais pesadas, atuando
simultaneamente como sustentáculos da produção industrial e agrícola.
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Vicenzo (1992) acrescenta que a afirmação da luta feminista no campo
cultural brasileiro foi também prejudicada pela urgência de mobilização mais
ampla contra a ditadura civil-militar instalada no país desde 1964 e seu
recrudescimento a partir de 1968. De acordo com ela:
O que se percebe é a dificuldade e a resistência da maioria das
autoras, particularmente quando falam sobre seus textos, em distinguir,
separar o que era a luta mais imediata contra a sociedade estabelecida,
contra o regime político em que vivíamos [...] daquilo que seriam, nas suas
peças, reivindicações especificamente femininas em termos da
sexualidade, das relações homem-mulher, ou de outras instâncias de luta
a elas associadas (1992, p. 16).
Em direção semelhante, Heloísa Buarque de Hollanda8, referindo-se a autoras
brasileiras que naquele mesmo período buscavam na academia “reconhecimento
científico” para suas pesquisas voltadas para experiências de mulheres, verifica
que elas também, “em contraponto com os estudos feministas internacionais [...]
privilegiaram uma pauta mais afinada com o discurso das esquerdas do que
aquelas referentes ao aborto, à sexualidade, ao planejamento familiar” (2019, p. 11).
Citando trabalhos pioneiros como os de Heleieth Saffioti e Branca Moreira Alves,
no campo das ciências sociais, Hollanda compartilha convicção expressa por esta
última autora, de acordo com a qual a base marxista contida em sua obra “deu
‘permissão’ para que os estudos feministas se posicionassem melhor no quadro
das demandas das esquerdas em que as questões sobre a mulher eram
consideradas de menor interesse” (Hollanda, 2019, p. 12). Ela ressalta, entretanto,
que essas últimas pautas não permaneceram silenciadas, que eram debatidas
em âmbito privado, nos chamados “grupos de reflexão”, considerados marcos da
formação do ativismo feminista no país, encontros dedicados a discussões
“profissionais, domésticas, políticas”, onde eram “lidos textos trazidos por
feministas que voltavam de exílios ou temporadas em países estrangeiros”
(Hollanda, 2019, p. 10).
Desse modo, Romano entende como um dos legados nefastos da ditadura
militar o prejuízo ao desenvolvimento mais complexo do discurso feminista no
país, que se torna, assim, refém da “vitimização feminina pelo patriarcado”, a qual
8 Desde 2023, a autora abandonou o sobrenome Buarque de Hollanda, de seu ex-marido, adotando o
sobrenome materno Teixeira.
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contribui para “uma (outra) objetificação da mulher e a universalização da
realidade feminina” (Romano, 2009, p. 364). Desse modo, mesmo levando em
conta todas as objeções que se fazem ao essencialismo do pensamento feminista
mais tradicional, Romano (2009, p. 140) considera ser importante, na esteira dos
movimentos hegemônicos de mulheres nos anos 1960 e 1970 empreendidos
por pessoas brancas, de classe média e alta, habitantes de países dominantes —,
defender um espaço de diferença no que tange à expressão de gênero no teatro,
falando de um “‘teatro das mulheres’ mesmo que ‘em crise’”. Garantir um espaço
de diferença e, portanto, de visibilidade, seria um primeiro movimento, necessário
e estratégico, mediante o sistemático apagamento das experiências históricas
“para depois centrar forças no questionamento das desigualdades” (Romano,
2009, p. 140).
Comparado com um artigo seu mais recente, o diagnóstico empreendido pela
autora em sua tese de doutoramento de 2009, identificando uma notável
despolitização da cena brasileira, principalmente quanto às políticas de gênero,
revela um panorama teatral que se transformou. No artigo, a autora reconhece a
emergência de teatros políticos no país, nos quais é possível encontrar uma
diversificação do sujeito político do feminismo:
Desde então, vimos o debate feminista aflorar com radicalidade dentro
das salas de aula de teatro, dos festivais de artes cênicas, dos espaços
virtuais da internet e das ruas das principais cidades brasileiras. [...]
Abraçou o debate sobre “lugar de fala” e as novas diferenciações do
sujeito mulher, que incluem a fluidez e a performatividade de gênero;
fatores que complexizam a cena e, ao mesmo tempo, derrubam
preconceitos que o velho teatro insistia em conservar (Romano, 2019, p.
21).
A partir do que discutem Romano, Vicenzo e Hollanda, pode-se compreender
a tematização do gênero e a explicitação da autoria feminina em
Oramortem
e em
trabalhos desenvolvidos posteriormente pelo in-Próprio Coletivo como
marcadores em relação à indiferença ou à suspeição vigentes sobre trabalhos
produzidos por mulheres na cena teatral brasileira. Essas obras podem ser lidas
como vinculadas à tradição do chamado “teatro feminista” porque aderem à
definição oferecida por Romano de um “espaço no qual as mulheres podem
problematizar a relação entre seu fazer teatral, os meios de produção a que têm
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acesso e a razão das restrições a que estão submetidas, especialmente quando
decidem constituir na cena uma voz própria” (2009, p. 280). Além disso, a autora
confirma que as atuações das artistas dessa vertente “não seguem um único tipo
de relação entre teatro e engajamento, variando entre a agitação política e o
protesto e a pesquisa teatral relacionada às representações de gênero na cena”
(Romano, 2009, p. 280).
Assim, é importante salientar que, na cena do in-Próprio Coletivo, verifica-se
disposição para situar a mulher como principal sujeito político, ao passo que sua
atuação também se mostra consciente das armadilhas da universalidade,
resistindo a subsumir a experiência feminina à experiência de um indivíduo ou de
um grupo. É mister levar em consideração que o coletivo está baseado em Cuiabá,
estado do Mato Grosso, distante dos espaços de maior visibilidade da cena
brasileira e, consequentemente, distante dos territórios onde o teatro ocupa com
maior propriedade a agenda pública. Assim, as reivindicações políticas de suas
encenações se revelam bem-informadas de algumas pautas que a produção
cultural dos circuitos dominantes elegeu como prioritárias, ao passo que também
se levantam contra formas locais e regionais de poder, reacionarismo e
conformidade.
Feminismo, hibridismo e colaboração na base de
Oramortem
e do in-
Próprio Coletivo
A desnaturalização das posições de autoridade baseadas no regime de sexo-
gênero, na cena de
Oramortem
, alinha-se com o processo criativo colaborativo
que o in-Próprio estabeleceu. Os ensaios da obra teriam se caracterizado, segundo
Leite, como uma experiência artística compartilhada, marcada por “relações
criativas horizontais”, aberta para que cada integrante pudesse experimentar,
contribuir, imprimir sua assinatura no processo, movido por um “engajamento na
ordem dos afetos” (2019, p. 14). Desse modo, seus artistas imergiram em um
processo de criação que se distinguia do que, de acordo com a autora, era
comumente praticado no contexto teatral de Cuiabá, isto é, uma “relação de
subordinação a um diretor ou diretora” (Leite, 2019, p. 19). Nesse “outro movimento
de criação” proposto, a idealizadora do projeto buscava lançar-se “junto a outros
corpos, ao desconhecido, ao campo da imprevisibilidade” (Leite, 2019, p. 19).
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Os encontros foram disparados por um convite para “artistas que quisessem
viver uma experiência de composição entre linguagens artísticas distintas” (Leite,
2019, p. 19). Assim, os participantes foram mobilizados a improvisar, em estado de
relação com os materiais acumulados e com as instalações presentes no ateliê de
artes visuais de Luís Segadas, onde todo o processo aconteceu, tendo o delírio da
avó de Daniela Leite como “imagem disparadora” (Leite, 2019
,
p. 15). Aqui, explicita-
se o interesse em apostar na dissolução das fronteiras entre as linguagens
artísticas, em especial, o teatro, a dança, a música e as artes visuais, em
convergência com modos menos reificantes de definição das identidades. A sala
de ensaios era então entendida como “território existencial” (Leite, 2019
,
p. 16),
desprovida de uma dramaturgia prévia e fechada em torno de um texto, local em
que todos eram estimulados a experimentar, minimizando os intervalos
especificamente destinados ao uso da palavra e ao planejamento. O conceito de
“creolização”, desenvolvido por Édouard Glissant (2005), teria sido útil nesse
processo, pois, segundo Leite, ele “dá conta da potência da relação nos processos
criativos, uma vez que coloca em xeque ideias universais e identitárias, como
‘negritude’, ‘francesidade’, ‘brasilidade’, ‘latinidade’, enfim, todas as ideias
homogeneizantes” (2019, p. 19):
Para Glissant, ativista da descolonização e crítico da perspectiva
homogênea ou de uma ideia de identidade-raiz, a descolonização passa
pela recusa dos universais e do monolinguismo, e a identidade fixa é
desconstruída para dar lugar a uma identidade relacional, ou seja,
baseada na relação com outras identidades. Trata-se de uma concepção
em que a palavra “identidade” assume múltiplas formas, ou facetas, que
se delineiam em meio a conflitos e tensões, e que são produzidas no
exílio ou na errância, não mais se vinculando ao “sagrado mito da raiz”.
Desse modo, identidade não é mais permanência, mas capacidade de
variação: a ideia é de que um encontro com o outro produza novas
identidades (Leite, 2019, p. 19).
Interessou, portanto, naquele momento, àqueles artistas, esboçar uma
realidade que contrariasse a ordem de restrições e de condicionamentos contra a
qual as potências de um corpo idoso teriam ousado se insurgir. Esse projeto não
nasce, contudo, com uma forma pré-definida, segundo um modo de trabalhar bem
conhecido. Para sua efetivação, foi decisivo incorporar a ideia de imprevisibilidade,
tornar o espaço-tempo do ensaio teatral diferente de si mesmo, tornar
balbuciante a expressão da mensagem, chegando ao ponto de silenciá-la.
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Induzindo o modelo bem conhecido de ensaio ao fracasso, exigiu-se um novo
posicionamento de seus artistas, possibilitando que também falhassem enquanto
guardiões da especificidade de cada linguagem artística. Esse ambiente resultou
propício, como a cena de
Oramortem
a ver, para que seus participantes
afirmassem ou reiterassem um desvio de certos pressupostos vigentes
relacionados às suas funções artísticas e aos papéis sociais de homens e
mulheres.
O feminismo pós-colonial do in-Próprio Coletivo
Para finalizar, gostaria de pensar como a imagem do desejo heterossexual em
Oramortem
e a predominância de pessoas cisgênero na sua equipe de criação são
características da enunciação feminista assumida pelo trabalho que podem ser
vistas como comprometedoras de sua radicalidade política. Afinal, de acordo com
Butler, fatos como a “construção e [a] regulação heterossexuais da sexualidade”
induzem a uma “falsa estabilização do gênero”, o que contribui para a sua
“produção disciplinar” (2016, p. 234). E, conforme Preciado, a sustentação dessa
“identidade sexual fechada e determinada naturalmente”, resumida à separação
entre homens e mulheres, resulta em benefícios para esses sujeitos, extraídos da
“naturalização dos efeitos sociais, econômicos e jurídicos de suas práticas
significantes” (2017, p. 21).
Para a antropóloga Saba Mahmood, contudo, o chamado “feminismo pós-
estruturalista”, que inclui os autores mencionados, incorpora com muita
naturalidade pressupostos liberais como “liberdade” e “autonomia individual”
(2005, p. 13), estabelecendo-os como pressupostos a todas as sociedades
mundiais. O retorno de mulheres egípcias aos preceitos tradicionais da islâmica,
por exemplo, que Mahmood verifica em seu estudo etnográfico, poderia ser lido
por tais autores, segundo ela, muito facilmente como uma reinscrição em
“instrumentos para sua própria opressão”9 (2005, p. 8). Buscando se abrir à leitura
de novos significados nas ações executadas por aquelas mulheres, a autora
questiona um certo fechamento normativo das políticas feministas pós-
estruturalistas, classificando a pluralidade de experiências a partir de uma
9 Instruments of their own oppression. (Tradução nossa)
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binaridade de pressupostos como “subordinação e subversão”, “repressão e
resistência” (Mahmood, 2005, p. 14). Argumenta, assim, que o desejo de liberdade
e de subversão de normas não são desejos inatos “aos diferentes indivíduos de
diferentes épocas”, mas “profundamente mediados por condições históricas e
culturais”10 (Mahmood, 2005, p. 14) e que o sentido de agência, ou seja, de
capacidade de ação individual, não pode ser pré-determinado e capturado pelas
“políticas emancipatórias”11, restringindo-a à possibilidade de ruptura com a lei que
oprime. Na direção oposta, a capacidade de agência deverá abranger também “as
múltiplas maneiras pelas quais alguém pode habitar a norma”12 (Mahmood, 2005,
p. 15). Mediante as alternativas identificadas por Butler com relação ao regime de
dominação de sexo-gênero, ela defende que “as normas não são apenas
consolidadas ou subvertidas [...], mas performadas, habitadas e experienciadas de
diferentes maneiras”13 (Mahmood, 2005, p. 22).
Abrir-se à enunciação feminista das obras do in-Próprio Coletivo, todas com
forte protagonismo feminino, produzidas em uma região marginal ao eixo
dominante das artes no país, compreender a sua militância como inseparável das
lutas para transformar as condições materiais de existência do seu teatro naquele
território, isso pode frustrar uma perspectiva evolucionista, que toma teorias e
discursividades produzidas em nações geopoliticamente dominantes como mais
avançadas, ou mais radicais. Estevão Rafael Fernandes, por exemplo, referindo-se
ao contexto político imediatamente posterior ao golpe parlamentar que derrubou
a Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, defende um maior reconhecimento da
produção dos “movimentos feministas ou LGBT na Amazônia ou no campo” (2018,
p. 16). Segundo esse autor, tal conhecimento merece ser mais decisivamente
empregado no diagnóstico e no enfrentamento de alguns pontos críticos da
política nacional do que simplesmente ser utilizado “para corroborar a hipótese
pensada por algum autor pop, como se nosso contexto fosse o de um café às