Subversões de gênero, sexualidade e etarismo: o espetáculo Oramortem, do in-Próprio Coletivo
Vicente Carlos Pereira Junior
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-23, set. 2024
suspensão, estéticas de gênero, códigos normativos de reconhecimento
visual, convicções psicológicas invisíveis que levam o sujeito a se afirmar
como masculino ou feminino, como homem ou mulher, como
heterossexual, homossexual, cis ou trans (Preciado, 2018, p. 111).
Portanto, assumir a figura de face desnuda em
Oramortem
como uma mulher
é dialogar com um repertório de imagens que, por seu caráter sexuado, articulam-
se com posições pré-determinadas, as quais se ligam, por sua vez, a distribuições
de poder e de uso autorizado da violência nas sociedades capitalistas pós-
coloniais. Nesse sentido, é mais justo afirmar que a encenação nos permite atribuir
uma personagem ao sexo do que dizer que ela nos permite atribuir um sexo à
personagem. Mas se, com o apoio de Butler, Beauvoir, Wittig, Preciado, Lugones,
Greenberg e Gunn Allen, colocarmos sob suspeição a estabilidade da categoria
mulher, seria justo desconfiar também daquilo que os sentidos apreendem de
maneira muito automatizada sobre o visível da cena. Ou seja, tal como a
mobilidade do gênero compromete a solidez do sexo, também o indiscernível, isto
é, as faces veladas, semiveladas e a presença diferida da Velha, deverá contaminar
aquilo que a luz e a nudez (da face) parecem revelar de maneira inconfundível.
Sobre esse investimento no gênero como matéria significante em
Oramortem,
é importante ressaltar ainda, em contraste com a atuação
pronunciada de Ceregatti e Figueiredo, a participação marginal, pouco destacada,
mas cúmplice, dos músicos Jhon Stuart e Luiz Gustavo Lima. Posicionados em
uma penumbra à esquerda da cena, eles não têm um desempenho destacado,
mas também não estão invisíveis. Sua presença discreta, algo subserviente, em
uma obra que tematiza a construção social da sexualidade dos corpos lidos como
femininos, incorre numa espécie de falha na performance requerida pelo macho
enquanto papel dominante na cadeia naturalizada do regime heterossexual7.
Paradoxalmente, a relevância dos movimentos da composição sonora para a
7 O conceito de gênero como “performativo” é desenvolvido por Butler, em que “‘performativo’ sugere uma
construção dramática e contingente de sentido” (2016, p. 240). Butler parte das performances drag queen e
da estilização corporal das lésbicas butch (caminhoneiras) enquanto pastiche de gênero: “imitações que
deslocam o significado do original, imitam o próprio mito da originalidade” (2016, p. 238). Essa leitura
conduzirá ao conceito de gênero como correspondente de uma espécie de desempenho — teatral, imitativo
—, “com consequências claramente punitivas”, já que “habitualmente punimos os que não desempenham
corretamente o seu gênero” (Butler, 2016, p. 241). Será precisamente, contudo, “nas relações arbitrárias entre
esses atos que se encontram as possibilidades de transformação do gênero, na possibilidade da
incapacidade de repetir, numa deformidade, ou numa repetição parodística que denuncie o efeito
fantasístico da identidade permanente como uma construção politicamente tênue” (Butler, 2015, p. 243).