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Performances pornoterroristas:
rotas de fuga frente ao imaginário heterossexual
Luisa Duprat (Maria Tuti Luisão)
Para citar este artigo:
DUPRAT, Luisa. Performances pornoterroristas: rotas de
fuga frente ao imaginário heterossexual.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0109
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Luisa Duprat (Maria Tuti Luisão)
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-23, set. 2024
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Performances pornoterroristas: rotas de fuga frente ao imaginário heterossexual1
Luisa Duprat (Maria Tuti Luisão)2
Resumo
No artigo, a linguagem da performance foi trabalhada a partir do seu poder
disruptivo, como uma plataforma de experimentação de saídas criativas frente às
convenções produzidas pela heterossexualidade. A performance pornoterrorista de
Diana Torres, materializou estratégias artísticas de destruição das narrativas
hegemônicas sobre gênero e sexualidade, de modo que se apresentou como
importante referência na investigação de produção de imagens críticas ao imaginário
heteronormativo. A criação da performance
Cualquiera! Qualquer cosa sobre todo
en mi
, apresentada no artigo, se deu pelas bases pornoterroristas, influenciadora das
estratégias de resistência artísticas.
Palavras-chave
: Performance. Pornoterrorismo. Heterossexualidade.
Pornoterrorist performances: escape routes against the heterosexual imaginary
Abstract
In the article, the language of performance was explored for its disruptive power,
serving as a platform for experimenting with creative solutions to conventions
produced by heterosexuality. Diana Torres's pornoterrorist performance materialized
artistic strategies to destroy hegemonic narratives about gender and sexuality, thus
presenting itself as an important reference in the investigation of producing critical
images of the heteronormative imagination. The creation of the performance
Cualquiera! Qualquer cosa sobre todo en mi,
presented in the article, was based on
pornoterrorist foundations, influencing artistic resistance strategies.
Keywords:
Performance. Pornoterrorismo. Heterosexualidad.
Performances pornoterroristas: rutas de escape frente al imaginario heterosexual
Resumen
En el presente artículo se trabajó el lenguaje del performance a partir de su poder
disruptivo, como una plataforma de experimentación de salidas creativas frente a
las convenciones producidas por la heterosexualidad. La performance
pornoterrorista de Diana Torres materializó estrategias artísticas de destrucción de
las narrativas hegemónicas sobre género y sexualidad, de manera que se presentó
como una referencia importante en la investigación de producción de imágenes
críticas del imaginario heteronormativo. La creación de la performance
Cualquiera!
Cualquier cosa sobre todo en mí,
presentada en el artículo, se dio sobre las bases
pornoterroristas, influyendo en las estrategias de resistencia artísticas.
Palabras clave
: Performance. Pornoterrorismo. Heterosexualidad.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Joice de Oliveira Faria. Mestrado em
Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduada em Letras-português pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP).
2 Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestra em Dança pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bacharel em Interpretação Teatral pelo departamento de Artes
Cênicas da Universidade de Brasília (UnB). luisaduprat.tuti@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5704861064611588 https://orcid.org/0000-0001-8089-2739
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Introdução
Este artigo é originado a partir da minha dissertação de mestrado,
LA
VENGANZA! Estratégias sapas pornoterroristas desestabilizadoras de normativas
heterossexistas e racistas
(2019)3, cuja pesquisa foi desenvolvida por meio de
experimentações na linguagem
drag
, criadas em resposta a um desconforto:
experienciar também nos meios LGBTQIAPN+ situações de violências que
emergem da heteronormatividade. Este incômodo impulsionou a pesquisa em
direção à compreensão da heterossexualidade como uma instituição política,
projetada para nos conformar como sujeitos performadores de uma determinada
norma social. A arte
drag
foi percebida como uma linguagem que oferta muitas
possibilidades de trabalhar pelo corpo, as questões do próprio corpo. A prótese,
compreendida como tecnologia de transformação corporal, indispensável nas
montações4 das mais variadas manifestações da arte
drag,
se apresentou como
território aberto para experimentações de si, criando múltiplas formas de
materialidades, produzindo imagens que estranham o habitual (Fabião, 2013). A
performance
Cualquiera! Cualquier cosa sobre todo en mi5
nasceu das
experimentações em
drag,
responsáveis por corporificar algumas perguntas da
pesquisa de mestrado:
[...] sendo eu, quem sou6, como posso criar desvios, através de próteses
e maquiagens, em um corpo tão marcado por normatividades
heterossexistas e racistas? Como uma mulher branca consegue criar
rotas de fuga que desafiem essa construção de ideal feminino? Quais
escolhas estéticas alargam essa condição? Quais movimentos são
capazes de mudar os rumos de um corpo? É possível que existências
com condições completamente distintas se reconheçam, ainda que por
segundos, no instante presente do deslocamento e estranhamento da
3 Realizado na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, com orientação da profª drª Rita Aquino.
4 Ato de transformação corporal da arte
drag
.
5 Link de visualização da performance: https://www.youtube.com/watch?v=HC2VNcstsUg
6 As mãos que escrevem este artigo são brancas, magras, confortáveis financeiramente, brasilienses, latino-
americanas, são mãos de sapa. Mãos desejosas que tocam o corpo com satisfação, fazendo cafunés em
pentelhos mal aparados. o mãos cheias de contradição. Resgatei este trecho de um material da
pesquisa de mestrado que não entrou na dissertação. Me pareceu oportuno sua retomada objetivando
localizar o sujeito deste artigo.
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ação? O que o estranhamento pode provocar? Quando ele aproxima e
quando afasta? (Duprat, 2019, p. 40).
Essa performance (
Cualquiera!
) conduziu o mestrado no sentido de
materializar as perguntas da dissertação em composições artísticas, responsáveis
pela reflexão, organização e levantamento de dados da pesquisa, bem como
influenciou os modos de escrita. Retomo-a neste artigo, devido à sua
inseparabilidade das reflexões produzidas acerca da heteronorma e os
processamentos das saídas criativas frente a esse sistema, ainda que não me
aprofunde o suficiente para detalhá-la minuciosamente, devido ao recorte
temático necessário para a realização deste texto.
Neste artigo, pretendo trabalhar com o conceito de heterossexualidade,
situado histórica e socialmente, articulando a performance como catalisadora na
produção de imagens críticas à colonialidade. Argumento, amparada,
especialmente, pela teórica afro dominicana Ochy Curiel7, em diálogo com as
demais autoras, que a heterossexualidade vai além da orientação sexual dos
indivíduos, constituindo-se como um projeto de nação que nasce da colonialidade.
A heterossexualidade é uma instituição reguladora sexual e reprodutiva dos
corpos, capaz de influenciar nas formações subjetivas dos sujeitos.
Aponto a autonomia erótica como um modo de resistir ao controle da nação
heterossexual, influenciada pela teoria da Tânia Saunders8, em articulação com a
noção de performance pensada pela performer Eleonora Fabião9. A artista trabalha
a noção de performance em uma perspectiva oposta às lógicas de consumo
capitalista, pois, devido à sua efemeridade e incorporação de experiências de
deslocamento, sua ação é capaz de produzir a partir de perspectivas que desafiam
o habitual, o senso comum (2004). Trago, então, a performance pornoterrorista de
Diana Torres para o diálogo entre a autonomia erótica de Saunders e a noção de
performance de Fabião, interessada em discutir estratégias artísticas de
7 Ochy Curiel é artista, ativista, pesquisadora e teórica do feminismo lésbico.
8 Tanya Saunders é socióloga brasileira e estudiosa dos estudos culturais. Sua pesquisa parapelo campo
das artes, atravessado pela vivência da Diáspora Africana nas Américas, sob perspectiva do debate racial,
de gênero e sexualidade.
9 Eleonora Fabião é pesquisadora brasileira e trabalha com a arte da performance, dramaturgia
experimental, poéticas e estéticas do estranho e do precário.
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resistência frente ao imaginário colonial de nação heterossexual. Diana Torres
experimenta práticas dissidentes e marginalizadas em suas performances como
experiências de retomada de sua autonomia erótica, uma vez que, segundo a
performer (2014), a nossa sexualidade/nosso prazer não nos pertencem, mas sim
à igreja, heterossexualidade, pornografia
mainstream
e etc. Seu trabalho é uma
crítica aos estereótipos de gênero e sexualidade, ao incorporar imagens de
violência, elementos abjetos e práticas sexuais não hegemônicas, articuladas à sua
pornopoesia, produzindo imagens que não cabem no imaginário colonial projetado
para os corpos.
E, por fim, compartilho algumas estratégias artísticas que emergem das
experimentações de
Cualquiera! Cualquier cosa sobre todo en mi
, criada com forte
influência da estética pornoterrorista de Diana Torres. Relato algumas ações da
performance, aquelas que considero com possibilidades disruptivas de
imagem/discurso, tecendo criticamente relações entre as escolhas estéticas e de
composição artística e problemáticas que circundam a heteronorma. Este artigo
articula referências das áreas das artes cênicas, sociologia/antropologia social,
estudos feministas, de gênero e sexualidade, movido pela (in)disciplinaridade10
própria à linguagem da performance e por toda produção de conhecimento que
se dá pelo corpo.
Processos históricos
A autora Geni Núñez11, em seu livro
Descolonizando Afetos: experimentações
sobre outras formas de amar
(2023), discorre sobre como a colonização do Sul
global se sustentou a partir das bases morais/ideológicas do cristianismo europeu
em termos de religião, sexualidade, modos de vida e etc. Para que o projeto
colonial fosse bem-sucedido, era necessário ir além da exploração de mão de obra
escravizada, empenhando-se em deslocar cosmovisões diversas de povos
10 Refere-se ao artigo Rastros de uma submetodologia indisciplinada (2016) de Jota Mombaça. Nele, a autora
articula a teoria de Helena Katz e Cristina Greiner na tecitura de uma metodologia indisciplinada que
compreende o corpo enquanto estado transitório, aberto, relacional, provisório. a noção de disciplina
se aproxima mais da dimensão de coleção, controle, separação e divisão. Considerando, portanto, que
pesquisas nas artes do corpo operam por princípios metodológicos de abertura, transitoriedade, relação
e etc.
11 Geni Núñez é psicóloga, escritora e ativista indígena Guarani.
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originários e pessoas sequestradas do continente africano para o campo do imoral,
perverso, subdesenvolvido, não desejável. Foi um trabalho intenso e contínuo, cuja
duração se estende até os dias de hoje, de infiltração e contaminação de uma
pluralidade de imaginários reduzidos à moral cristã e aos modos de organização e
civilidade europeias. É nesse sentido que, quando falamos em projeto colonial, é
importante considerá-lo em sua interdependência de opressões, uma vez que a
colonialidade se sustenta através do rebaixamento de pessoas racializadas,
sexo-gênero dissidentes, com deficiências, pobres etc. Ou seja, o capitalismo, base
econômica das expansões coloniais, se estrutura de modo a servir um tipo único
de existência posto enquanto normal e universal, medida única de sucesso: o
homem cis heterossexual, branco, burguês, urbano e funcional.
Em confluência com Geni Nuñez, a autora Ochy Curiel traça um paralelo entre
heterossexualidade e nação, desvelando categorias naturalizadas de pátria,
localizando-as nas diversas leis e teorias científicas, responsáveis pela formação
unificada de imaginários, construídos artificialmente. A autora analisa a
Constituição da Colômbia de 1991 e, a partir dessa análise, cria o termo
heteronação (2013) para discutir como as bases legais do país estão fundadas em
premissas heterossexuais. A heteronação passa pela compreensão de um país
regido por bases legais que se sustentam em princípios monogâmicos,
heterossexuais, centralizados na família nuclear. O matrimônio formal serviu como
estratégia de sustentação das atividades fundamentais do período colonial (e
segue servindo ao modelo capitalista atual), de forma que o casamento
heterossexual monogâmico, configurado como garantia de repasse das riquezas
para uma mesma comunidade de iguais, garantiu a manutenção de pessoas
brancas no poder. Por isso, era necessário controlar a reprodução entre espécies
de um mesmo núcleo familiar. Patrícia Hill Collins12, em seu livro
Black Sexual
Politics: African Americans, Gender, and the New Racism
(2004), aprofunda o
debate ao refletir sobre o conceito de família estar fundamentalmente criado a
partir das bases da burguesia, heterossexualidade e brancura. Não à toa o
casamento precisou ser regulado pelo Estado para que se garantisse a dita
12 Patrícia Hill Collins é teórica afro americana do feminismo negro, ativista, socióloga e professora da
Universidade de Maryland.
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normatividade social.
O racismo e o heterossexismo também compartilham um conjunto
comum de práticas projetadas a disciplinar as pessoas a aceitar o status
quo. Essas práticas disciplinares podem ser melhor compreendidas na
instituição do casamento. Se o casamento fosse de fato uma ocorrência
natural e normal entre casais heterossexuais e ocorresse naturalmente
dentro das categorias raciais, não haveria necessidade de regulamentá-
lo. As pessoas escolheriam naturalmente parceiros do sexo oposto e da
mesma raça. Em vez disso, um número de leis foi criado para regular o
casamento. Por exemplo, por muitos anos, o sistema tributário
recompensava casais com benefícios fiscais que eram negados a
contribuintes individuais ou casais não casados. A mensagem é clara:
casar-se se torna um benefício financeiro. Da mesma forma, para
encorajar as pessoas a se casarem dentro de sua raça designada,
numerosos estados aprovaram leis que proibiam o casamento interracial
(Collins, 2004, p. 95)13.
No ritual do casamento entre um homem e uma mulher cisgêneros, ocorre
um movimento de captura da esposa como propriedade privada de seu marido,
ao receber seu sobrenome. Isso garante, mediante legislação, que toda a
multiplicação da família, construída a partir da reprodução, terá um amparo do
Estado, inclusive o repasse de capital econômico e social de uma geração à outra.
O sobrenome aparece, assim, como uma espécie de registro de
pedigree
auxiliador
do controle de manutenção da herança. A heterossexualidade não se restringe
apenas a uma prática sexual, mas surge como uma instituição obrigatória (Rich,
2012). A heteronação da qual nos fala Ochy Curiel aponta para o caminho da
heterossexualidade como um regime sexual com interesses políticos capaz de
penetrar no imaginário da nação de modo tão intenso que se apresenta como algo
natural, próprio de todos os seres humanos. A heterossexualidade, enquanto
instituição obrigatória (2010), se assegura em situar as mulheres cis como
propriedades emocionais e sexuais dos homens cis, uma vez que a autonomia, em
especial a erótica, das mulheres tensiona as instituições sociais dominadas pelos
13 Racism and heterosexism also share a common set of practices designed to discipline people to accept
the status quo. These disciplinary practices may be best viewed in the institution of marriage. If marriage
was indeed a natural and normal occurrence among heterosexual couples and occurred naturally within
racial categories, there would be no need to regulate it. People would naturally choose partners of the
opposite sex and the same race. Instead, a number of laws were designed to regulate marriage. For
example, for many years, the tax system rewarded couples with tax benefits that were denied to individual
taxpayers or unmarried couples. The message is clear, getting married becomes a financial benefit.
Similarly, to encourage people to marry within their designated race, numerous states passed laws
prohibiting interracial marriage. (Tradução nossa)
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homens cis (Saunders, 2017). Nesse sentido,
A autonomia erótica interrompe a conexão colonial básica entre
respeitabilidade, posse e cidadania. Dessa forma, a autonomia erótica
pode perturbar a heterossexualidade (um sistema de gênero/sexo
racializado) como sendo um elemento constitutivo da cidadania de modo
que a lealdade do cidadão para a nação não está imbuída na relação
colonial entre raça, sexo, reprodução, heterossexualidade e o erótico.
Como um projeto emancipatório feminista, a autonomia erótica possui
possibilidades transformadoras para nação, uma vez que irá permitir a
todos os cidadãos, especialmente as mulheres, a possibilidade de serem
totalmente incluídas na nação como sujeitas autônomas (Saunders, 2017,
p. 113-4).
Se
La nación heterosexual no es más que una ficción producto de la
hegemonía de las fuerzas políticas y sociales por razón del sexo, raza y clase, base
fundamental para crear los pactos sociales en las sociedades modernas
[...]”
(Curiel, 2013, p. 91), o ato sexual tal qual a heteronormatividade o produz, medido
pela moralidade cristã e servindo às necessidades reprodutivas do capitalismo,
também não passa de uma criação, nada natural. No entanto, precisa ser
discursivamente crível que a heterossexualidade seja a norma correspondente à
ideia de família para garantir a perpetuação da espécie. Por isso é tão comum que
discursos conservadores se utilizem do pânico moral para situar as sexualidades
dissidentes como abjetas e perigosas a ponto de perturbar e ameaçar a ordem
social familiar. Pessoas sexo-gênero dissidentes são consideradas perigosas
porque operam como um
bug,
um desvio no sistema, fissurando o ideal que
acredita em apenas um único modo de ser e estar no mundo como o exemplar e
o correto. Interessa retornar à pergunta, “se o sexo é uma ação capaz de expor e
reforçar relações de poder, como o corpo, mediado pelo prazer, apreende e produz
outras formas de ser e estar no mundo?” (Duprat, 2019, p. 64).
Pornoterrorismo
Diana Torres14 (2015) realizou uma longa pesquisa sobre a presença da palavra
clitóris na literatura médica e confirma a quase inexistência de estudos a respeito
do órgão. Ela nos alerta para o fato de, nessa literatura, nossos órgãos são
categorizados em essenciais e acessórios. O corpo foi dividido entre reprodutivo
14 Diana Torres é escritora, poeta e performer pornoterrorista espanhola.
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(essencial) e não reprodutivo (acessório), cabendo ao clitóris, zona erógena cuja
única função é gerar prazer, o título de acessório. Não surpreende tamanha
desinformação sobre um órgão cuja existência serve exclusivamente ao prazer,
uma vez que a heteronação precisa garantir o sexo reprodutivo para salvaguardar
a permanência da heterossexualidade como modelo de nação. A via é, portanto,
injetar a penetração no imaginário comum como sendo a ação fundante do ato
sexual.
O sexo tem limites que são reconhecíveis, pois é a partir desses que
conseguimos distinguir o que é o sexo e o que não é. Nesse processo, ele
organiza lugares, cria expectativas e produz a ordem das coisas, assim
como lugares de gênero e sexualidade. O sexo reprodutivo heterossexual,
por exemplo, manteve e ainda mantém essa ordem, encontrando na
“natureza” a base para sua existência e consistência. No entanto, a própria
relação entre reprodução e prazer sexual pode ser questionada. Acionar
os limites do sexo a partir dos limites da reprodução é arbitrário, uma
estrutura social produto das tecnologias que regulam o sexo e o
constituem dentro de uma lógica (re)produtiva (Conegatti; Felipe, 2017,
p.226).
Em uma performance, Diana Torres enfia um microfone em sua vagina e
batuca seu ventre, produzindo um som de atmosfera cavernosa, enquanto
declama alguns de seus manifestos pornopoéticos. Em seguida, com auxílio de
uma assistente que lhe faz um
fist fucking
15, ejacula a metros de distância,
enquanto projeta imagens de violência. Torres cunhou o conceito pornoterrorismo
para definir a sua obra16, que transita entre as linguagens da poesia, vídeo e
performance. Esse conceito se ocupa em investigar como as práticas sexuais
pertencem à heteronorma, igreja, patriarcado, pornografia
mainstream
, medicina,
racismo, capacitismo, etc., e de quais maneiras pode-se romper com esse
estabelecido. Como reagir a um sistema que dita nossa sexualidade, reduzindo as
múltiplas possibilidades de prazer em dispositivos de controle funcionais ao
capitalismo?
Em sua poesia, Torres trabalha com críticas diretas aos estereótipos sexuais,
de gênero e sexualidade. Suas produções visuais contêm imagens de violência,
15 Prática sexual que envolve a penetração de um punho na vagina ou ânus.
16 Confira alguns vídeos dos trabalhos de Diana Torres: https://vimeo.com/88469821. Acesso em: 23 jul. 2023
e https://vimeo.com/65463988. Acesso em: 23 jul. 2023.
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guerra e execuções reais. Em suas performances, estão presentes elementos
abjetos, como carne crua e sangue, e ações sexuais dissidentes, como
fist fucking
,
sexo anal, introdução de objetos estranhos à vagina, como um microfone e
squirting17
, entre outros. A performer experimenta e articula práticas dissidentes e
marginalizadas para reivindicar politicamente a autonomia erótica de seu corpo e
não a serviço de um sistema. O pornoterrorismo de Torres se une ao conceito de
terrorismo no que diz respeito ao campo da violência e transgressão, ao rasgar o
espaço seguro em suas produções artísticas e provocar a desestabilização da
segurança do público que assiste às suas performances. Ou seja, o terrorismo é
percebido na violência das imagens (retiradas muitas vezes de noticiários da
televisão), na transgressão da linguagem subversiva de sua pornopoesia e nas
práticas sexuais dissidentes.
[...] é terrorista porque atenta contra as normas do Estado através de sua
sexualidade bastarda e incendiária, por isto, pornoterrorista. Um ato
pornoterrorista é uma contra violência, nunca gratuita. É uma
redistribuição de violência (Mombaça, 2016), um contra-ataque. Uma
pornoterrorista tem como sua maior arma, seu corpo, carregado de
palavras e raiva (Torres, 2010). Suas ferramentas não servem para matar,
mas são úteis para “aterrorizar a um sistema heteropatriarcal que tem
estado completamente defasado (ainda que nunca foi justo) (Torres,
2010, p. 56)” (Duprat, 2019, p. 63).
Diana Torres nos desafia a ir além das normas estabelecidas, ao estimular a
experimentação da própria sexualidade, retomando nossos prazeres da carne que
foram saqueados, estuprados e violados. Essa provocação é articulada pela
performance pornoterrorista capaz de produzir narrativas propulsoras de
invenções de novas formas e novos corpos. Retomando a pergunta: como reagir a
um sistema que dita nossa sexualidade, reduzindo as múltiplas possibilidades de
prazer em dispositivos de controle funcionais ao capitalismo? E, como
desdobramento, podemos considerar a performance como importante
catalisadora de rupturas?
Performance
A performance desafia o sistema capitalista colonial ao conectar-se com
17 Ejaculação produzida pela vagina.
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múltiplas linguagens de modo indisciplinado, produzindo conhecimentos únicos,
deslocando a racionalidade como elemento dominante da prática intelectual e
incluindo o corpo nos domínios do conhecimento. No entanto, é válido considerar
os espaços de poder por onde circulam muitas performances e o modo como os
processos artísticos, sem exceção, podem ser articulados de forma a sustentar e
promover sistemas hegemônicos. Neste artigo, interessa o recorte da performance
considerada em seu poder disruptivo. O corpo é a matéria primeira do performer,
e a insistência em evidenciá-lo, de acordo com Fabião, se mostra na relação entre
corpo-mundo, uma vez que “performers são, antes de tudo, complicadores
culturais” (Fabião, 2008, p. 237). Corporalidades em aderênciaresistência18 com o
mundo, com o chão que pisam, enfatizam “a politicidade corpórea do mundo e
das relações” (Fabião, 2008, p. 237). O performer, como complicador social,
desorganiza a ordem posta, evidenciando culturalmente, ideologicamente,
politicamente e economicamente as construções hegemônicas, afastando-as de
qualquer dimensão natural.
A performance, por sua natureza de difícil comercialização e seu caráter
marginal (margens: habita um espaço relativo entre as artesplásticas,
cênicas e fílmicase, entre arte e não-arte), muitas vezes abjeto (corpos
desarticulados, levados à condições psicofísicas extremas, brutalidade
poética) e socialmente discrepante (formas sexuais múltiplas, humor fino
e grotesco, práticas existenciais e corporais excêntricas e irônicas),
define-se como forma de resistência, como força contestatória, como
prática política. A performance gera e apresenta corpos e situações em
que a normatividade ocidental contemporâneamarcadamente
consumista, mecanicista, logocêntrica, racista, homofóbica,
descorporalizadaé pensada (Bouger, apud Fabião, 2004, p. 2).
Eleonora Fabião vai chamar toda ação performativa “meticulosamente
calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para
ser levada a cabo, e que se aproxima do improvisacional exclusivamente na
medida em que não seja previamente ensaiada” (Fabião, 2008, p. 237), de
programa. A autora localiza essa palavra-conceito na teoria da performance
inspirada pela noção de Corpo-Sem-Órgão de Guilles Deleuze e Félix Guattari,
onde os autores desenvolvem a noção do programa como um motor de
18 Essa aglutinação feita entre a palavra aderência e resistência é proposta pela pesquisadora Eleonora Fabião
no artigo Programa performativo: o corpo-em-experiência (2013).
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experimentação, um ativador de experiência. A autora traça, a partir da teoria de
Victor Turner19, sobre a origem etimológica da palavra experiência estar ligada ao
risco, perigo e rito de passagem.
Através da realização de programas, o artista desprograma a si e ao meio.
Através de sua prática acelera circulações e intensidades, deflagra
encontros, reconfigurações, conversas, como diz Pope.L, “faz coisas
acontecerem”. Através do corpo-em- experiência cria relações,
associações, agenciamentos, modos e afetos extraordinários.
Performances são composições atípicas de velocidades e operações
afetivas extraordinárias que enfatizam a politicidade corpórea do mundo
e das relações. O performer age como um complicador, um
desorganizador; cria para si um Corpo sem Órgãos ao recusar a
organização dita “natural”, organização esta evidentemente cultural,
ideológica, política, econômica. Um performer pergunta sobre
capacidades e possibilidades do corpo; sobre pertencimento, exclusão,
mobilidade, mobilização; pergunta: de quem é esse corpo? a quem
pertence o meu corpo? e o seu?” (Fabião, 2013, p. 5-6).
Considerar a performance não como um trajeto orientado por noções de
causa e efeito, mas como um conjunto de ideias que encontram uma forma de se
organizar no corpo (Setenta, 2008), articulando produções artísticas
comprometidas em tensionar imagens a ponto de romper com as repetições
imagéticas construídas discursivamente pelas identidades coloniais.
Cualquiera! Cualquer cosa sobre todo en mi
Me interesso em trabalhar com produções de imagens que rasgam os
discursos produzidos pela significação dominante e costuram retalhos inventores
de outras geografias corporais, capazes de imaginar novos mundos. Tenho
experimentado em minhas performances composições disruptivas que operem
como
bugs,
defeitos no sistema. Ao conhecer o trabalho da performer Diana
Torres, intuí que sua estética pornoterrorista seria preciosa influência na criação
de estratégias de produção de imagens críticas à colonialidade. E assim, inspirada
por Torres, criei a performance
Cualquiera!Cualquer cosa sobre todo en mi.
Nela,
componho com a ambiguidade de um corpo marcado por características
hegemônicas, fissurado e contaminado por tortuosas movimentações eróticas;
19 Victor Turner (1920-1983) é um antropólogo britânico cuja pesquisa se funda na relação entre performance
e ritual.