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Cartas para Ítala: a força da ameaça e o poder
da ficção na Arte de Performance
Flávia Naves
Para citar este artigo:
NAVES, Flávia. Cartas para Ítala: a força da ameaça e o
poder da ficção na Arte de Performance.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0302
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Cartas para Ítala: a força da ameaça e o poder da ficção na Arte de Performance
Flávia Naves
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-24, set. 2024
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Cartas para Ítala: a força da ameaça e o poder da ficção na Arte de Performance1
Flávia Naves2
Resumo
O presente artigo se apresenta como uma carta escrita por uma performer para
outra performer, Ítala Isis. A amizade entre as duas artistas tece o tom da conversa
que busca refletir sobre as efetivas possibilidades da arte em conter a violência
contra corpos negros e em vulnerabilidade na cidade do Rio de Janeiro.
Acontecimentos trágicos vividos pelas duas, como a execução da vereadora carioca
Marielle Franco, são disparadores de Ações que encontram no pensamento de Felipe
Ribeiro sobre a força da ameaça e de Jota Mombaça sobre o poder da ficção,
caminhos para que novas formas de vida política aconteçam.
Palavras-chav
e: Arte de performance. Rio de Janeiro. Corpo Figura. Cartas. Amizade
política.
Letters to Ítala: the force of threat and the power of fiction in Performance Art
Abstract
This article is presented as a letter written by a performer to another performer, Ítala
Isis. The friendship between the two artists sets the tone for the conversation, which
seeks to reflect on the effective possibilities of art in containing violence against
black and vulnerable bodies in the city of Rio de Janeiro. Tragic events experienced
by the two, such as the execution of Rio de Janeiro councilwoman Marielle Franco,
are triggers for Actions that find in Felipe Ribeiro's thoughts on the power of threat
and Jota Mombaça's thoughts on the power of fiction, ways for new forms of political
life to take place.
Keywords:
Performance art. Rio de Janeiro. Body Figure. Letters. Political friendship.
Cartas a Ítala: la fuerza de la amenaza y el poder de la ficción en el arte de la
performance
Resumen
Este artículo se presenta como una carta escrita por una performer a otra performer,
Ítala Isis. La amistad entre las dos artistas marca el tono de la conversación, que
pretende reflexionar sobre las posibilidades efectivas del arte para contener la
violencia contra los cuerpos negros y vulnerables en la ciudad de Río de Janeiro.
Hechos trágicos vividos por ambos, como la ejecución de la concejala carioca
Marielle Franco, son desencadenantes de Acciones que encuentran en las
reflexiones de Felipe Ribeiro sobre el poder de la amenaza y de Jota Mombaça sobre
el poder de la ficción, caminos para que tengan lugar nuevas formas de vida política.
Palabras clave
: Arte de la performance. Río de Janeiro. Cuerpo Figura. Cartas.
Amistad política.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Danilo Mataveli. Doutorado e mestrado
em Teoria Literária pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Graduação em Letras: Português e Literaturas de Língua portuguesa pela UFRJ.
2 Doutorado em Performance pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em Performance pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos
Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduação em Licenciatura em Artes
Cênicas pela UNIRIO. flavianaves.naves@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5372155534944432 https://orcid.org/0000-0002-0109-9132
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Não vão nos matar agora porque ainda estamos aqui. Com nossas mortas
amontoadas, clamando por justiça, em becos infinitos, por todos os
lugares. Nós estamos aqui e elas estão conosco, ouvindo esta conversa e
nutrindo o apocalipse do mundo de quem nos mata.
(Jota Mombaça)
Rio de Janeiro, entre os anos de 2021 e 2022
Ítala, minha querida amiga,
Sempre que penso em você uma força arrebatadora me toma. Apesar dos
nossos corpos franzinos e das nossas imagens “frágeis” aos olhos covardes e
descuidados, basta meu pensamento evocar a sua Figura para uma onda de
coragem se aproximar de mim. Fecho os olhos e sinto essa onda lamber minhas
feridas. A água salgada cura, mas arde.
Com a pele latejando relembro um acontecimento que se deu no ano de
2007. Estava eu passando por uma banca de revista quando me deparei com a
foto de uma mulher estampada nos maiores jornais do País, a imagem focava
apenas o seu rosto, era perceptível que algumas lágrimas haviam escorrido
fazendo uma marca mais clara em sua pele negra, ela tinha a mão esquerda
apoiada na testa, o que mais me chamou atenção foi o seu olhar vagando no
horizonte, um dos olhares mais tristes que eu já vi.
A mulher era Edna Ezequiel, moradora do morro dos Macacos, localizado no
bairro de Vila Isabel, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Edna havia acabado
de perder a filha Alana, de 12 anos de idade, vítima da violência policial e do
Estado3. Ao me deparar com a foto da Edna não pude mais seguir meu caminho,
fiquei um bom tempo parada completamente atônita. A tristeza paralisa, como
você mesma me disse no nosso último café aqui em casa. E completou: “a raiva
não, ela nos mantém vivas”.
E eu me lembro de sentir tristeza e também muita raiva quando no dia 22 de
abril de 2014 o dançarino Douglas Rafael4 (conhecido como DG) de 26 anos de
3 A foto com a reportagem sobre Edna Ezequiel e a morte de sua filha Alana pode ser vista através desse link:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/inde06032007.shl. Acesso em: 24 jun. 2024.
4 Reportagem sobre a morte de Douglas Rafael pode ser vista em:
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idade foi executado por um policial quando tentava escapar de uma operação na
favela Pavão Pavãozinho, no bairro de Copacabana, zona sul do Rio. O tiro foi pelas
costas. Mais uma execução envolvendo um corpo negro. No entanto, diferente de
2007, quando fiquei paralisada diante da morte da Alana, no ano de 2014 eu
pesquisava a Arte de Performance e praticava o “corpo Figura”5, forma que
encontrei para ressignificar marcas e feridas patriarcais e coloniais através da
composição poética e política das materialidades que vestem os corpos. É o
contexto sóciopolítico quem dita a composição de cada Figura que eu passo a
performar nas ruas da cidade.
Foi no contexto da morte de Douglas Rafael e da memória da morte da Alana
que o sentimento de impotência e de tristeza diante de tais acontecimentos se
converteu em Ação. Decidi compor uma Figura vigilante que fosse capaz de
proteger corpos negros e em vulnerabilidade na cidade do Rio de Janeiro.
Busquei em meus pensamentos imagens de proteção. A primeira que surgiu
foi a das carrancas com suas bocas bem abertas e dentes afiados. Outra imagem
que apareceu com força foi a Figura vermelha de Iansã, senhora das tempestades,
orquestradora do vento e dos mortos. Junto com ela surgiu a de um caboclo com
suas vestes de pássaro. Olhei para o meu corpo e imaginei chifres nele acoplados,
uma imagem de proteção e de guerra. Com todos esses elementos povoando meu
imaginário fui ao encontro do amigo artista visual e diretor de arte Rui Cortez6 e
pedi que me ajudasse a compor essa Figura em meu corpo.
No dia 20 de novembro de 2014, com os pés descalços, o corpo coberto por
barro, a boca escancarada mostrando os dentes, chifres colados em meus peitos
e vagina e carregando um cajado-tocha, caminhei pelo bairro de Vila Isabel em
direção à praça Barão de Drummond, ao chegar lá me posicionei de costas para o
Morro dos Macacos, local em que Alana foi assassinada, acendi o cajado-tocha e
https://www.cartacapital.com.br/sociedade/douglas-rafael-mais-um-amarildo-6136/ Acesso em: 24 jun. 2024.
5 A ideia de corpo Figura começou a ser desenvolvida durante o meu mestrado em Estudos Contemporâneos
das Artes na Universidade Federal Fluminense (UFF), a dissertação homônima defendida no ano de 2016
pode ser lida através do link:
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/viewTrabalhoConclusao.jsf?popup=tr
ue&id_trabalho=3927610
6 Para saber mais sobre os trabalhos de Rui Cortez, acesse: www.ruicortez.com.br.