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Gordança: celebrando corporeidades
gordas na dança do sul do mundo
Renata Teixeira Ferreira da Silva
Patricia Fagundes
Para citar este artigo:
SILVA, Renata Teixeira Ferreira da; FAGUNDES, Patricia.
Gordança: celebrando corporeidades gordas na dança do sul
do mundo.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0111
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Renata Teixeira Ferreira da Silva | Patricia Fagundes
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
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Gordança1: celebrando corporeidades gordas na dança do sul do mundo2
Renata Teixeira Ferreira da Silva3
Patricia Fagundes4
Resumo
O artigo reflete sobre questões que mobilizaram o processo de criação do espetáculo
Gordança: uma
palestra dançada
(2023), identificando desafios e violências que a gordofobia e a pressão estética
impõem à sociedade contemporânea, e, mais especificamente, à própria existência de bailarinas
gordas. Para tanto, são exploradas as relações entre colonialidade, capitalismo e gordofobia, por meio
do reconhecimento de suas heranças e localizações. Desde o sul do sul do Brasil, na perspectiva de
uma pesquisa arstica, o trabalho problematiza padrões corporais e afirma a necessidade de celebrar
a diversidade, incluindo as curvas, dobras e remelexos de mulheres gordas que dançam.
Palavras-chave
: Gordança. Dança. Gordofobia. Corporalidade Gorda. Artes Cênicas.
Gordança: celebrating fat bodies in dance from the south of the world
Abstract
The article reflects on issues that mobilized the creative process of
Gordança: uma palestra dançada
(2023), identifying the challenges and violences that fatphobia and aesthetic pressure impose on
contemporary society, and, more specifically, on the very existence of fat dancers. To this end, the
relationships between coloniality, capitalism and fatphobia are explored, through the recognition of
their legacies and locations. From the south of Brazil, from the perspective of artistic research, the
work problematizes body patterns and affirms the need to celebrate diversity, including the curves and
movements of fat women who dance.
Keywords:
Gordança. Dance. Fatphobia. Fat body. Performing Arts.
Gordança: celebrando corporeidades gordas en la danza del sur del mundo
Resumen
Gordança: uma palestra dançada
(2023), identificando desafíos y violencias que la gordofobia y la
presión estética imponen a la sociedad contemporánea y, más específicamente, a la existencia misma
de las bailarinas gordas. Para esto, se exploran las relaciones entre colonialidad, capitalismo y
gordofobia, a través del reconocimiento de sus herencias y ubicaciones. Desde el sur de Brasil, desde
la perspectiva de una investigación artística, el trabajo problematiza los patrones corporales y afirma
la necesidad de celebrar la diversidad, incluyendo las curvas, pliegues y movimientos de las mujeres
gordas que bailan.
Palabras clave
: Gordança. Danza. Gordofobia. Corporalidad Gorda. Artes escénicas.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Adriana Emerim Borges. Mestrado em
Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (UFRGS). Graduação Licenciatura em
Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
2 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior Brasil (CAPES) Código de Financiamento 001.
3 Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestrado em Artes
Cênicas pela UFRGS. Licenciatura em Teatro pela UFRGS. Bailarina gorda, atriz, professora e artesã. Tem
interesse de pesquisa nas áreas de: performance, dança, teatro, educação, corporalidades gordas e
sustentabilidade. professorarenatatfs@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7593629986044637 https://orcid.org/0000-0002-9463-499X
4 Doutora em Ciências del Espectáculo pela Universidade Carlos III de Madri. Mestre em Direção Teatral pela
Middlessex University, Londres. Graduada em Artes Cênicas - Direção Teatral- pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS). Profa. Dra. Associada no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas e no
Departamento de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Encenadora,
diretora da Cia Rústica. patfag26@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/4833760995067683 https://orcid.org/0000-0002-3744-0689
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Escrevemos desde o sul do sul do mundo, como artistas pesquisadoras, na
primeira metade do século XXI, em diálogo com nosso lugar e nosso tempo, como
haveria de ser, pois as artes da cena tratam de prática carnal e corpórea, matéria
de vida entretecida com tempo e espaço social. Pensamos desde a experiência,
que é como podemos pensar, pois não pensamento que não tenha ponto de
vista e lugar, e entendemos o pensar como ação e movimento. No movimento
deste texto, imprimimos os rastros de um processo de criação e pesquisa, que
ousa misturar dança e gordura, arriscando imaginar outra cena possível, de corpos
diversos e desobedientes, de curvas e desvios, de balanços e dobras. Porque a
dança, como parte do mundo, também é marcada por um imenso legado colonial,
infiltrado em pele e nervos, que nos sussurra (ou grita) no ouvido o que é certo ou
errado, o que é bonito ou feio, o que é possível ou impossível.
Plié: - Quando vocês me veem, vocês imaginam que eu sou uma bailarina
clássica?
Passé: - Quando vocês olham pro tamanho das minhas coxas, vocês
imaginam que eu sou uma bailarina clássica?
Arabesque: - Quando eu faço um arabesque, e meu corpo faz dobras e a
perna não sobe muito, vocês imaginam que eu sou uma bailarina
clássica?
Tombé pas de bourré: - Quais são as imagens das bailarinas clássicas?
Giro en dehors (Texto de Gordança: uma palestra dançada, 2023).
Como outras linguagens artísticas, a dança se repensa e se transforma em
conceitos e práticas, mas a imagem de uma bailarina clássica ainda corresponde
a um imaginário marcado por certos padrões corporais (cisgenênero,
heterossexual, magro, longilíneo, branco, jovem e sem deficiência) e concepções
de movimento (extenuante, virtuoso, contido, retilíneo, perfeito). Sabemos que o
balé clássico nasceu como uma dança social da corte e se constitui como uma
técnica europeia ligada à Modernidade, portanto, sua relação com a colonialidade
é evidente. Porém, ainda é preciso considerar que sua influência se expande muito
além de seu universo específico.
Em escolas de ensino formal, lugar onde muitas pessoas têm o seu primeiro
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contato com a dança5, é bastante frequente a oferta do balé clássico desde o
Ensino Infantil ( 0 a 5 anos). Esta mesma faixa etária compõem uma fatia
significativa do público das escolas de dança de Porto Alegre, Rio Grande do Sul.
Desta forma, uma importante fonte de experimentação em dança - de crianças e
jovens - ainda acontece dentro de uma lógica corporal de linhas, leveza, seres
etéreos e jogos de imitação da nobreza. Neste contexto de representação de
rainhas e princesas de outros tempos e lugares, as possibilidades de
reconhecimento e de validação de corporeidades diversas são bastante restritas.
A professora, diretora e pesquisadora das artes da cena Martha de Mello Ribeiro
complementa tal raciocínio: “Muito mais do que nossa força de trabalho, a força
do sistema capital-colonial funciona colonizando nosso imaginário, atribuindo,
validando, legitimando a própria vida” (Ribeiro, 2020, p.311).
Na comunidade de praticantes do balé clássico, tanto em escolas como na
cena profissional, o imaginário compartilhado define que, antes mesmo de uma
boa técnica, é imperativo ser magra. A bailarina e pesquisadora em dança Jussara
Belchior do Santos reflete sobre esta exigência imposta: “Eu precisava emagrecer
para poder fazer o que eu já fazia” (Santos, 2020a, p. 60).
Existem múltiplas críticas à manutenção do ensino do balé clássico em
escolas formais no pensamento contemporâneo em dança, que se relaciona a
transformações, atualizações e diversificação de perspectivas e conceitos sobre
dança e corporeidade, pois a dança, em sua diversidade, oferece modos criativos
de pensar e criar, como afirma a artista, docente e pesquisadora Ciane Fernandes
(2014, p.19):
[...]a dança vem se afirmando como espaço intervalar e dinâmico
entre
experiências e representações, multiplicando-se em seus mais diversos
modos de operar, intrinsecamente contraditório e, por isso mesmo,
criativo [...].
Essa multiplicidade de procedimentos, própria das artes da cena, dialoga e
impulsiona práticas acadêmicas, conforme pontua a pesquisadora e performer
Melina Scialom (2021, p. 6), reconhecendo o corpo como “produtor de
5 Renata Teixeira é professora de teatro e dança desde 2010 em espaços não formais e escolas de ensino
regular na cidade de Porto Alegre.
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conhecimento”, que estão cada vez mais se afastando da dualidade teoria
versus
prática. A professora e bailarina Luciana Paludo, em sua pesquisa de doutorado,
destaca fluxos de disseminação de conhecimentos do corpo entre discentes e
docentes nos cursos universitários de dança do Rio Grande do Sul: “Nas
graduações em Dança, os alunos trazem referências diversas de dança; isso cria
uma pluralidade operante, uma profusão de distintos modos de se fazer danças,
modos de preparar o corpo, de fazer coreografias” (Paludo, 2015, p.65). Assim, a
autora ressalta uma abertura e uma expansão do campo, que se recria a todo
instante, produzindo conhecimento a partir do encontro dos corpos e de suas
práticas.
Percebo que há, subliminarmente, um
discurso da diversidade
que
permeia nossos funcionamentos; nos cursos, nas organizações de seus
currículos, e na cidade de Porto Alegre, no sentido da diversidade de
gêneros que aparece nominada em mostras e prêmios (Paludo, 2015,
p.68).
Apesar da profusão de propostas em dança nos espaços/circuitos de criação
artística de Porto Alegre, é possível reconhecer a manutenção de um modelo de
corpo na dança - em sua maioria magros, fortes, capazes e virtuosos. Pessoas
dançantes gordas, por exemplo, são exceção, o que permite inferir que a
diversidade de práticas e gêneros de dança não garante a pluralidade de corpos.
Como um dos fatores da continuidade de padrões homogeneizadores, podemos
considerar que a dança e o movimento estão, em diversos aspectos,
intrinsecamente ligados ao campo da saúde, que ao longo das últimas décadas,
insistentemente, patologiza e exclui o corpo gordo. Assim, a multiplicação de
práticas que não levam em consideração a pluralidade de corpos e seus
movimentos contribui para a manutenção de um imaginário social colonial sobre
o que é a Dança e quem podem ser seus agentes.
Uma pesquisa estadunidense sobre os impactos das relações alimentares
cultuadas pelas bailarinas em estágio de formação, aplicada em 546 mulheres
universitárias, constatou que as bailarinas que dançavam desde criança
apresentaram distúrbios comuns: “evidencia-se que a ênfase na disciplina e na
estética corporal adequada para dançar desperta ou/e acentua certas
características nas meninas praticantes de dança, que as acompanham até a idade
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adulta” (Haas, Dias, Bertoletti, 2010, p.185). Ou seja, as rotinas experienciadas nas
práticas de dança podem comprometer as bailarinas por toda a vida, por meio da
internalização de um padrão corporal limitado, excludente e prejudicial.
Mesmo se tratando de um estudo não realizado no Brasil, sabemos que
muitas técnicas de dança são importadas da Europa ou dos EUA, com diversos
profissionais brasileiros fazendo cursos e vivências no exterior, o que reverbera e
se apresenta de maneira sintomática por aqui. No campo do balé clássico e da
dança contemporânea, pessoas gordas, dissidentes do padrão longilíneo,
praticamente não existem.
Na busca por ampliar e diversificar o âmbito da dança, em conexão com
nosso tempo, é necessário pensar na pluralidade dos corpos, que não podem ser
instrumentos obedientes e uniformizados, como a pesquisadora pioneira na área
de educação em dança, Isabel Marques, sinalizava no final de década de
noventa:
Esta visão alinha-se à concepção de corpo como instrumento da dança,
como meio, "máquina" para a produção artística. O corpo nesta
concepção é algo a ser controlado, dominado e aperfeiçoado segundo
padrões técnicos que exigem do dançarino uma adaptação e submissão
corporal, emocional e mental àquilo que está sendo requerido dele
externamente. É o dançarino sendo visto como "material humano", como
muitas vezes escutei, anos mais tarde, de alguns de meus colegas da
universidade ao se referirem aos nossos alunos (Marques, 1998, p.72).
A concepção de um corpo “ideal” hierarquiza e desumaniza as artistas,
criando uma lógica excludente, evidenciando e acentuando a gordofobia e a
pressão estética, opressões que são dirigidas especialmente às mulheres. Essa
submissão corporal, emocional e mental
destacada por Marques, intensifica a
dualidade magro
versus
gordo e todas as suas implicações, que estigmatizam,
segregam, marginalizam e negam acessos e direitos às pessoas gordas. Enquanto
as pessoas magras são lidas socialmente como saudáveis, controladas, bonitas,
capazes, dispostas, caprichosas e “ideais” para a dança, as pessoas gordas são
lidas como doentes, descontroladas, feias, incapazes, preguiçosas, relaxadas e
desconsideradas como uma pessoa que dança ou pode dançar.
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Nesta lógica violenta, são retiradas as possibilidades de alegria e de
completude do corpo gordo, considerando como um corpo em trânsito, à espera
de cuidado e superação. Esse método que separa, culpabiliza e deprecia, subsidia
a concepção de estabelecer espaços cada vez menores, inacessíveis e excludentes
para pessoas gordas, do posto de saúde à mesa de bar, da aula de balé clássico à
companhia de dança contemporânea. Assim, as pessoas gordas são isoladas, têm
suas subjetividades subtraídas e são homogeneizadas de forma depreciativa,
conforme apontam as pesquisadoras sobre corporalidade gorda no Brasil, Malu
Jimezes e Marcelle Jacinto (2022, p. 154):
A visão que se tem de qualquer pessoa gorda, não importando suas
subjetividades, histórias, cultura, hábitos, porque se tem um pré
diagnóstico daquele corpo gordo como doente. Colocar/entender/tratar
todas as pessoas gordas como doentes é GORDOFOBIA porque reforça o
preconceito/estigma, reforçando estereótipos que acabam
estabelecendo situações degradantes, constrangedoras, marginalizando
a pessoa gorda e a excluindo socialmente. Esses comportamentos
acontecem na família, escola, trabalho, mídias, hospitais e consultórios,
balada, transporte, praias, academias, piscinas, redes sociais, internet,
espaços públicos e privados, etc.
Gordofobia, colonialidade e capitalismo
A gordofobia está enraizada nas relações e funcionamento da sociedade, e
integra o sistema complexo de dominação da colonialidade, atravessando
discursos de raça, gênero, classe, corpo, saber científico e os múltiplos dispositivos
de fabricação de conceitos e imaginários sociais. Nossas concepções de beleza e
de saúde, ou o que consideramos feio, são parte de processos de legitimação em
certo contexto histórico e social. A jornalista Naomi Wolf destaca que, quando a
gordura era privilégio de classes mais abastadas, ser gordo não era sinônimo de
feiura ou doença:
Várias distribuições de gordura eram realçadas de acordo com a moda:
ventres grandes e maduros do século XV ao XVII, ombros e rostos
rechonchudos no início do século XIX, coxas e quadris ondulantes, cada
vez mais generosos, até o século XX (Wolf, 2020, p.267-268).
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A condenação da corpulência surge como possibilidade de distinção e de
ascensão de raça e classe social junto aos processos de desenvolvimento do
capitalismo, dos quais foram pilares fundamentais a colonização e a escravização,
por sua vez justificadas pelo racismo, que determina a inferioridade de certos
corpos e subjetividades em relação ao modelo europeu. Para pensar as tramas da
sociedade contemporânea, incluindo a gordofobia, é importante ter presente essa
rede de interdependências estruturais: capitalismo, colonização, racismo e
patriarcado. Para a socióloga e professora da Universidade da Califórnia Sabrina
Strings, a gordofobia nasce na retórica racista, servindo aos interesses do
patriarcado e da supremacia branca.
A gordofobia não está baseada em questões de saúde. Conforme
encontrei em minhas pesquisas, no ocidente a gordofobia está enraizada
no comércio transatlântico de escravizados e no protestantismo. No
contexto do tráfico negreiro, colonialistas e cientistas raciais sugeriram
que as pessoas negras eram sensuais, e, portanto, propensas a excessos
sexuais e orais [...]. No início do século XIX, nos Estados Unidos
particularmente, a gordura era considerada evidência de imoralidade e
inferioridade racial (Strings, 2019, s/n)6.
O corpo da mulher negra foi associado a protuberâncias (seios, barriga,
bunda) e animalidade, em contraponto ao modelo de brancura e magreza
instituído para a mulher europeia. Era preciso diferenciar o colonizado, inferior, do
colonizador, o modelo correto superior, reprimindo “a negritude selvagem a favor
de uma branquitude disciplinada” (Seixas e Martins, 2023, p.7). A ciência veio
contribuir nesse processo de objetificação e padronização do corpo, que é
apropriado como instrumento de produção econômica, como explicita a filósofa
feminista e professora Silvia Federici (2023, p. 105):
[...] repensar de que modo o capitalismo transformou nosso corpo em
força de trabalho nos ajuda a contextualizar a crise que o corpo está
atravessando hoje e, simultaneamente, a identificar uma busca por novos
paradigmas antropológicos por trás de nossas patologias coletivas e
individuais.
6 Fat phobia is not based on health concerns. What I found in my research is that in the West, it’s actually
rooted in the trans-Atlantic slave trade and Protestantism. In the trans-Atlantic slave trade, colonists and
race scientists suggested that black people were sensuous and thus prone to sexual and oral excesses. […]
By the early 19th century, particularly in the U.S., fatness was deemed evidence of immorality and racial
inferiority. (Tradução nossa).
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A patologização do corpo gordo, promovida insistentemente pelo discurso
médico, está a serviço do processo de colonialidade, definindo discutíveis
parâmetros para corpos “normais”, que implicam a discriminação de corpos
classificados como “anormais”, doentes e indesejáveis. Um dos instrumentos
utilizados pela medicina para a demonização da gordura (e consequentemente das
pessoas gordas) é o famoso IMC, cálculo que divide o peso da pessoa pelo
quadrado da sua altura.
Em 1995, o Índice de Massa Corporal (IMC) foi proposto enquanto
parâmetro de diagnóstico universal da obesidade e condição necessária
para definir a obesidade como doença. A generalização do IMC demonstra
uma modificação radical, porque, a partir dele, tem-se uma definição
quantitativa para a obesidade, definida por um índice de massa corporal
igual ou superior a 30. A partir do IMC, é possível identificar o quanto a
pessoa se afasta do padrão de normalidade - que normal é ter o corpo
magro -, tendo no dado biológico o elemento essencial para definir o que
seria um desvio da normalidade. Assim, anormal é ter o corpo gordo
(Paim e Kovaleski, 2020, p. 4).
É importante destacar que o IMC foi desenvolvido por um matemático belga,
Adolphe Lambert Jaques Quetelet (1796-1874), que no início do século XIX
pesquisava as características de um “homem médio” ou “normal”, considerando
dados de homens brancos europeus. E é chocante constatar que o cálculo, criado
para analisar um recorte específico da população, e não a singularidade de pessoas
diversas, é utilizado para classificar as pessoas até os dias de hoje, inclusive sendo
o principal parâmetro adotado pela Organização Mundial da Saúde para avaliação
da obesidade. Ou seja, o IMC é uma medida que opera como régua universal para
todas as pessoas do planeta, utilizando justificativas pretensamente científicas, de
acordo com parâmetros europeus criados por homens brancos do século XIX,
evidenciando em sua própria constituição, de modo contundente, o legado da
colonialidade.
Jean-Pierre Poulain, em
Sociologia da Obesidade
(2013), ancora-se nos
conceitos de estigmatização e descriminalização para discutir as múltiplas perdas
que o indivíduo corpulento, ou, como dito pela medicina patologizante - obeso -
irá sofrer ao longo de sua vida. Essa estigmatização age em diferentes contextos,
tais como os “[...] lugares de práticas esportivas’’ (Poulain, 2013, p.47), afetando ‘’o
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percurso escolar, o acesso ao emprego, a trajetória profissional e acabam, com o
passar do tempo, influenciando a posição social do indivíduo’’ (Poulain, 2013, p.47).
Para além dos esportes, a exclusão também se faz presente em outros espaços
de práticas do corpo, como o yoga, o teatro e a dança. Como pode um corpo que
não é aceito e que é concebido como errado, anormal e doente permitir-se mover?
Da mesma forma, a “dieta” se articula como instrumento de dominação de
mulheres. Naomi Wolf afirma que “as dietas e a magreza começaram a ser
preocupações femininas quando as mulheres ocidentais receberam o direito de
voto” (Wolf, 2020, p.268). Wolf aponta, ainda, que a dominação se estabelece
através de rituais, que ocorrem a partir de três elementos:
a fome, o medo de um
futuro caótico e o endividamento
(Wolf, 2020, p.189). Esses elementos alimentam
a engrenagem do sistema de consumo capitalista, com a venda de produtos para
emagrecimento, cosméticos rejuvenescedores, linhas dietéticas, aplicativos e
programas de exercícios que preveem o emagrecimento rápido. Desta maneira, a
pressão estética age como mecanismo de controle sobre os corpos:
No entanto, a gordura na mulher é alvo de paixão pública, e as
mulheres sentem culpa com relação à gordura, porque
reconhecemos implicitamente que, sob o domínio do mito, nosso
corpo não pertence a nós, mas à sociedade, que a magreza não é
uma questão de estética pessoal e que a fome é uma concessão
social exigida pela comunidade. Uma fixação cultural na magreza
feminina, mas uma obsessão com a obediência feminina (Wolf,
2020, p. 272).
O corpo é um espaço político e campo de disputa: para manter a ordem do
poder é preciso domá-lo, controlá-lo, padronizá-lo. Tal controle tem a ver com
interesses políticos, econômicos, sociais e estruturais, e constitui-se como
ferramenta de manutenção do sistema e de encarceramento de subjetividades,
conforme explicita Ribeiro: “Essa reprodução incessante, maquínica, de retratos
válidos, de corpos-objetivados, funciona como detratores da diversidade e
complexidade humana” (Ribeiro, 2020, p.305).
As discussões sobre gordura e corporalidade gorda começam a modificar a
partir do enfoque dos
Fat Studies
, nos Estados Unidos, na década de setenta, que
critica a patologização e reivindica direitos essenciais às pessoas gordas. Importa
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também ressaltar, na mesma década, a importância da publicação de
Fat
Liberation
(1973) por um grupo de mulheres gordas e feministas - o
Fat
Underground
-
,
como um marco na luta antigordofobia no mundo, ao propor a
problematização da indústria multimilionária da beleza e da dieta.
Em 2023, no Brasil, é publicado, pelo Grupo de Estudos Transdisciplinares das
Corporalidades Gordas no Brasil7 o
Manifesta Gorda
, que se apresenta como “um
chamamento público à nossa luta” (Manifesta, 2023, n.p). Diferente do movimento
dos Estados Unidos, o
Manifesta
ressalta a relação entre gordofobia e colonização:
a gordofobia no Brasil e na América Latina não envolve apenas um processo de
segregação e exclusão social pelo peso, mas trata-se de um processo social e
histórico atravessado pela colonização” (Manifesta, 2023, n.p). Desta forma, o
Manifesta
apresenta exigências que visam ao “direito à vida, igualdade e dignidade.”
(Manifesta, 2023, n.p), como políticas públicas para corpos diversos, a
responsabilização da indústria farmacêutica pelo adoecimento físico e mental da
população e o reconhecimento intelectual das pessoas gordas.
O
Manifesta Gorda
é fruto do ativismo que existe há décadas em nosso país.
Neste sentido, destacamos o trabalho da artista visual Fernanda Magalhães,
natural de Londrina, Paraná, região sul do Brasil. Fernanda vem discutindo, desde
a década de 1980, a valorização excessiva da aparência corporal restrita a padrões
que aprisionam subjetividades e limitam as possibilidades de ser e estar do corpo
gordo no mundo. Transitando entre a performance e a fotografia, a obra da artista
tem suas próprias vivências como ponto de partida “para discutir padrões de
corpos femininos e questões sociais” (Magalhães, 2024) contaminados por um
modelo irreal de corporeidade, conforme expõe Fernanda:
Na cultura contemporânea, a supremacia do olhar e da visibilidade
prevalece sobre os sentidos. O mundo está abarrotado de imagens que
mostram corpos idealizados, padronizados, bonitos, leves, jovens. Corpos
perfeitos, sem rugas nem doenças, com próteses e brilhos. Nossos
olhares estão contaminados por essa poluição visual, uma espécie de
terrorismo global, em que se deseja um corpo impossível, inatingível,
idealizado, retocado e plastificado (Magalhães, 2010, p.107).
7 Grupo formado por pesquisadores espalhades pelo país, de diferentes áreas do conhecimento, atuantes
em várias universidades brasileiras, desde a graduação ao pós-doutorado. Ver
https://pesquisagordegp.wixsite.com/