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Por uma palhaçaria decolonial
Fernanda Dias de Freitas Pimenta
Para citar este artigo:
PIMENTA, Fernanda Dias de Freitas. Por uma palhaçaria
decolonial.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0114
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Por uma palhaçaria1 decolonial2
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Resumo
O presente texto aborda aspectos da decolonialidade em diálogo com as
dramaturgias feministas que palhaças contemporâneas brasileiras têm criado
atualmente. Por meio de uma palhaçaria decolonial, revisitamos a herança colonial
brasileira, tanto em perspectiva racial, quanto na de gênero. Ao colocar em evidência
aspectos da cultura afro-brasileira, buscamos, também, decolonizar a própria
palhaçaria, que tem a construção de seu riso bastante consolidada numa lógica
masculinizada. Como exemplos de obras decoloniais, apresentamos análises das
palhaças e reflexões de pesquisadoras de gênero, com a finalidade de entender,
nesta empreitada, como as palhaças decolonializam suas dramaturgias.
Palavras-chave
: Palhaçarias. Decolonialidade. Gênero. Feminismos. Subversão.
For a decolonial clowning
Abstract
The text intended to address aspects of decoloniality in dialogue with the feminist
dramaturgies that contemporary Brazilian clowns have currently created. Through
decolonial clowning, we revisit Brazilian colonial heritage, both from a racial and gender
perspective. By highlighting aspects of Afro-Brazilian culture, we also sought to
decolonize clowning itself, which has the construction of its laughter quite consolidated
in a masculinized logic. As examples of decolonial works, we present analyzes of
clowning and reflections by gender researchers. In this endeavor, we sought to
understand how clowns decolonize their dramaturgies.
Keywords:
Clowning. Decoloniality. Gender. Feminisms. Subversion.
Por una payasada descolonial
Resumen
El texto pretendía abordar aspectos de la decolonialidad en diálogo con las dramaturgias
feministas que las payasas brasileñas contemporáneas han creado actualmente. A
través del clown decolonial, revisitamos la herencia colonial brasileña, tanto desde una
perspectiva racial como de género. Al resaltar aspectos de la cultura afrobrasileña,
buscamos también descolonizar el propio clown, que tiene la construcción de su risa
bastante consolidada en una lógica masculinizada. Como ejemplos de trabajos
decoloniales, presentamos análisis del clown y reflexiones de investigadores de género.
En este esfuerzo, buscamos comprender cómo las payasas descolonizan sus
dramaturgias.
Palabras clave
: Payasadas. Descolonialidad. Género. Feminismos. Subversión.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Alda Alexandre, poeta, editora e
revisora. Mestrado em Arte e Cultura Visual (UFG). Especialização em Cinema e Educação (UEG).
Graduação em Letras (UFG).
2 Este texto é fruto de pesquisa de Doutorado realizada de setembro de 2020 a agosto de 2024, na
Universidade de Brasília, UnB. Teve o apoio da Capes e da FAP-DF.
3 Doutora em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrado em Artes da Cena pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduação em Direito pela Pontíficia Universidade
Católica de Goiás (PUC/Go). fernandapimentateatro@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1867774120856758 https://orcid.org/0000-0002-9821-0158
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Ninguém resiste à colonialidade dos gêneros sozinho.
Somente é possível resistir a ela com o entendimento
do mundo e com uma vivência que é compartilhada e
consegue entender as próprias ações
garantindo certo reconhecimento.
As comunidades, e não os indivíduos,
possibilitam o fazer;
as pessoas produzem junto de outras,
nunca em isolamento.
(María Lugones)
Como pessoa palhaça, tento entender como os feminismos e suas múltiplas
abordagens influenciam minha criação artística. Nos teares de palhaças, existem
dramaturgias que focam em questões de gênero, com vistas a eliminar ou diminuir
suas inequidades. A palhaçaria decolonial se mostra como um novo horizonte para
tais expressões cômicas, uma vez que bota em protagonismo a cultura afro-
brasileira e reforça a busca por uma justiça epistêmica. Explicarei, ao longo da
escrita e amparada por estudos decoloniais e de gênero (Lugones, 2019, Vérgés,
2020, Zanello, 2018, Belém, 2016), o que entendo por palhaçaria decolonial.
Acredito não ser possível analisar as diversas palhaçarias sem considerar os
atravessamentos de gênero, classe e racial. No campo da palhaçaria brasileira, os
homens palhaços mantêm seu protagonismo quando se trata de sua presença em
eventos circenses de natureza mista (não específicos de palhaçaria feminina). Os
palhaços foram desenvolvendo repertórios físicos e textuais que, ao longo do
século XX, com a fixação de repetições e aprendizados por gerações e gerações,
no caso do circo tradicional (Silva, 2007), desembocaram numa linguagem
predominantemente masculina.
Como outras formas de expressão, a palhaçaria é uma arte fortemente
inspirada por um viés patriarcal, assim como o riso. Para a pesquisadora Ana Fuchs
(2020), a palhaça Generosa, o riso é um constructo cultural, pois depende de
fatores geográficos e históricos. Assim sendo, por muito tempo, nos acostumamos
a rir de homens, por isso se faz necessário decolonizar também o gênero do riso.
Acontece que, aos poucos, as mulheres foram cavando espaço, o que
contribuiu para que o apagamento histórico de sua presença nas artes fosse
contido. Em consequência da conquista de direitos angariados pelas lutas
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feministas, as mulheres começaram a atuar na palhaçaria. Mas não foi (e ainda
não é) um período confortável para mulheres e corpos dissidentes, ainda mais se
estes forem negros, velhos, gordos e com deficiência. Segundo a pesquisadora
Valeska Zanello (2018), a colonização exerceu uma rígida imposição
comportamental no país, impondo, também, um tenso controle sobre o corpo e a
sexualidade da mulher.
Segundo Nascimento (2017), a partir dos primeiros levantes feministas do fim
do século XIX, a mulher foi conquistando espaço na vida pública. Desde o início
destas reivindicações femininas por melhores condições de vida, no entanto, havia
questões divergentes entre as lutas de mulheres brancas e negras, como salienta
Zanello (2018), e estas questões se intensificaram na chamada segunda onda
feminista, pois houve uma narrativa que pretendia unificar as mulheres, embora
não considerasse as diferenças. Ainda na época do sufrágio estadunidense, de
acordo com Angela Davis (2016), as lutas de mulheres racializadas não eram
representadas pela luta feminista de então. Zanello (2018, p. 43) evidencia:
As necessidades das mulheres negras eram bem distintas das brancas
de classe média e alta, letradas. Mulheres negras eram
tratadas/instrumentalizadas como “fêmeas” animais, aptas a todos os
trabalhos dos homens escrav(izad)os, e com o adendo ainda mais cruel
de serem consideradas “matrizes” para novas “crias” escravas. Muitas
feministas brancas, que lutavam pelo acesso ao sufrágio, apoiavam o fim
da escravatura; no entanto, em determinado momento político no qual
se fez necessário lutar pelo sufrágio dos homens negros, em detrimento
do acesso das mulheres brancas a ele, houve um rompimento e uma
discordância.
As diferentes condições de vida entre mulheres brancas e negras demarcava
suas distintas realidades. Mulheres negras, como aponta Zanello (2018), nem ao
menos eram consideradas humanas, enquanto muitas feministas brancas eram,
inclusive, escravagistas. A primeira onda feminista não contemplava as
diversidades e não consideravam os marcadores raciais e de classe (Nascimento,
2017).
Segundo Nascimento (2017), a partir dos anos 1980, os estudos sobre os
feminismos diversos, com viés racial e de classe, se multiplicaram. Derivam de um
mesmo ponto: a luta contra opressões/violências/objetificações cotidianas contra
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nossos corpos, os corpos não dominantes. Evidenciando diversidades raciais, de
classe e engendramentos, a terceira onda feminista recusava rotulações
essencialistas (Nascimento, 2017). A chegada da internet acabou por difundir mais
amplamente as lutas e movimentos por equidade racial, de gênero e de classe,
promovendo certo acesso a um letramento feminista.
A partir das trajetórias dos movimentos feministas e de como se
configuraram seus objetivos ao longo do tempo, podemos reconhecer suas
reivindicações nas criações cênicas de palhaças. De forma expressiva, as palhaças
expõem, em suas dramaturgias, memórias, violências, impressões, opiniões,
vivências, abusos e opressões, sempre amparadas pelo riso. Me pergunto se tais
palhaçarias são subversivas, insurgentes e capazes de decolonizar
comportamentos racistas, machistas, misóginos e patriarcais.
O movimento feminista se alargou a partir da necessidade de acolher todas
as pessoas não privilegiadas pelo patriarcado, ou seja, todos os que não são
homens cisgênero, heterossexuais e brancos. Pesquisadores têm se dedicado a
entender as opressões cotidianas sofridas por mulheres negras, indígenas, latino-
amerinas, periféricas, interioranas, ciganas e mestiças, e também por gays,
lésbicas, pessoas não binárias, transgênero e bissexuais. Assim, o feminismo
decolonial tem ganhado notoriedade no Brasil, evidenciando a cultura afro-
brasileira e questionando imposições de gênero.
Segundo a pesquisadora Françoise Vérgés, o decolonial se refere “à
necessidade de denunciar e tornar visível o que permanece vigente, porém negado,
da estrutura colonial nas sociedades pós-coloniais” (2020, contracapa). A autora
denuncia o feminismo civilizatório francês, por meio do qual mulheres brancas
escravizavam homens negros, exploravam a força de trabalho de mulheres negras
e ainda naturalizaram uma subalternidade de pessoas negras em relação a elas,
brancas (Vérgés, 2020, contracapa).
A herança colonial brasileira influenciou as criações de palhaças, uma vez que
as reverberações da colonização estruturam nossa sociedade e as mulheres que
nela estão inseridas, vítimas de inequidades. Além do viés decolonial racial,
traçaremos perspectivas decoloniais relacionadas a gênero, buscando o recorte da
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palhaçaria.
Lugones (2019) chama de decolonização de gênero a necessidade de revisitar
uma imposição colonial de gênero, mas com foco em combater o racismo, além
de questionar a hétero-normatividade compulsória. Segundo a autora (Lugones,
2019), a colonialidade entre gêneros se perpetua na falsa crença de que uma
pessoa possa ser superior à outra, a exemplo do homem europeu burguês,
cabendo-lhe, por isso, a tarefa de governar aqueles que lhes são inferiores.
Segundo a pesquisadora:
[...] as pessoas colonizadas se tornaram machos e fêmeas; machos se
tornaram não-humanos-como-não-homens, e fêmeas colonizadas se
tornaram não-humanas-como-não-mulheres. Consequentemente, as
fêmeas colonizadas nunca foram entendidas como faltantes, porque elas
não eram comparáveis aos homens, sendo transformadas em viragos. Os
homens colonizados não eram entendidos como faltantes, porque não
eram comparáveis às mulheres o que é entendido como ‘feminização do
homem’ colonizado parece mais um gesto de humilhação, atribuindo a
eles uma passividade sexual representada pela constante ameaça de
estupro (Lugones, 2019, p.372).
Os colonizados não eram tidos como seres humanos e, por isso, sobre eles
não havia uma perspectiva de gênero, denúncia esta que foi feita por Lugones
(2019). Assim, a colonização fez com que as pessoas colonizadas figurassem como
menos ou não humanas. A autora, ao tecer suas considerações sobre o feminismo
decolonial, declarando ser este um movimento que permite às mulheres a
compreensão de suas mazelas sociais, de forma a não sucumbir a elas, mas
superá-las.
Segundo Lugones (2019), na época em que o processo de colonização se
implementou nas Américas, haviam na região subjetividades culturais e políticas,
tecidas por práticas e crenças diversas e complexas. Autoras como Irene
Silverblatt e Oyèrónké Oyewùmí (
apud
Lugones, 2019), concordam que a atribuição
de gênero eclode a partir de uma estratégia colonial, se configurando como meio
de subjetificação do colonizado.
A colonialidade atua também por meio de uma relação hierárquica, na qual
o não moderno seria subalterno ao moderno. A referida autora evidencia uma
busca por pedagogias decoloniais, não negando a existência de binaridades e
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privilégios engendrados, mas assumindo a valorização de cosmologias próprias e
a construção de senso de comunalidade. Junto com a colonialidade de gênero,
atua a colonialidade do poder, segundo Lugones (2019, p. 389-390), que destaca:
Elas são crucialmente inseparáveis. A colonialidade do conhecimento, por
exemplo, é atribuída de gênero, e ninguém que a entendeu o fez sem a
compreensão de que ela é atribuída de gênero. Mas quero talvez me
precipitar e dizer que não existe decolonialidade sem uma
decolonialidade dos gêneros. A imposição colonial moderna de um
sistema opressor, racialmente diferenciado, hierárquico e de gênero
espalhado repetidas vezes pela lógica moderna das dicotomias não pode
ser caracterizada como uma circulação do poder que organiza a esfera
doméstica em oposição ao domínio público da autoridade, e a esfera do
trabalho assalariado (e o acesso e controle da biologia sexual e
reprodutiva) em oposição ao conhecimento e à intersubjetividade
cognitiva/epistêmica, ou a natureza em oposição à cultura.
Os processos de subjetivação carregam os efeitos da colonização (Zanello,
2018). Para dirimir as ressonâncias da colonização, Vérgés (2020) considera que as
mulheres do sul global devem assumir um caráter de revolução, contra o
capitalismo e contra o patriarcado. Para a autora, “o feminismo decolonial é a
despatriarcalização das lutas revolucionárias” (Vergés, 2020, p. 35).
Colocamo-nos, assim, em prol de uma justiça epistêmica que se propõe a
enaltecer os conhecimentos científicos e saberes filosóficos de culturas
colonizadas. Para Vérgés (2020), o processo de descolonizar nos demanda que
“reescrever a história do feminismo desde a colônia é primordial para o feminismo
decolonial” (p. 43). Nessa direção, as feministas decoloniais têm espalhado suas
ideias por meio de tecnologias como redes sociais, obras audiovisuais, e outras
distintas maneiras de difusão.
Também meio de luta antirracista, a palhaçaria necessita, ainda, ser
decolonizada de sua hegemonia patriarcal, envolta de estereótipos anacrônicos de
masculinidade, que não contemplam os desejos por equidade do mundo atual
e diverso. Se nosso país e nossa palhaçaria são ainda patriarcais, como, então,
traçar novas e potentes palhaçarias decoloniais e subversivas?
Proponho uma quebra com moldes de erro e acerto em palhaçaria. Se as
palhaçarias são múltiplas (Castro, 2019) em suas diferenças, diversidades,
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interseccionalidades (Crenshaw, 2002), não deveria haver um modelo fixo. Talvez
a única certeza que possa ser afirmada em relação à palhaçaria, é que para ser
considerada como sendo palhaçaria, ela deve provocar o riso.
Apesar de palhaços também serem inspiração para boa parte das palhaças
brasileiras, as palhaçarias tradicionais, que se baseiam em práticas realizadas por
homens, acabam destoando das palhaçarias vivenciadas por mulheres,
atualmente. Mas, será possível se desvencilhar de tais padrões cômicos
masculinizados?
O texto
Afinal, como a crítica decolonial pode servir às artes da cena?
(2016),
da pesquisadora Elisa Belém, evidencia que, apesar da decolonialidade demandar
uma valorização cultural e de modos de fazer brasileiros, esta pode ainda englobar
conhecimentos adquiridos e que acabaram se acoplando à identidade afro-
brasileira. A autora chama de ferida decolonial, as marcas deixadas pelo
colonialismo (Belém, 2016). No trabalho de Belém (2016), uma ênfase na
necessidade de decolonizar conhecimento e subjetivação. Em relação à ferida
decolonial, Belém (2016, p. 102) sustenta:
O que me parece relevante é perguntar como criar a partir dessas
referências e como lidar de forma crítica com as condições da
transmissão de seus elementos. Da mesma forma, parece extremamente
importante voltar o olhar para os saberes das tradições e comunidades
das mais diversas regiões do Brasil, afim de reconhecer nelas
características relativas à teatralidade e à performatividade. Mais do que
isto, perceber como pensamos a cultura, como nos relacionamos em
sociedade, como falamos, como agimos e como nos movemos.
Assim, se faz necessário olhar de forma crítica o que se perpetua e o que
reconhecemos de Brasil em nossas performances de palhaças. Essas se
apropriam da linguagem palhacística, de forma a revisitar e recriar com viés de
gênero e com cunho denunciativo. As palhaças feministas, inclusive, rechaçam e
denunciam palhaçarias (e seus palhaços e oficinas) que se utilizam de
metodologias que humilham e abusam de alunas/es.
Voltando ao texto de Belém (2016), a autora cita o trabalho do grupo Galpão
(MG) como sendo um coletivo que explora a decolonialidade na cena, ao adotar
traços da cultura brasileira. Mesmo sendo um texto de Willian Shakespeare (1564-
1616), a peça
Romeu e Julieta
do Grupo Galpão explicita nossa cultura e nos revela
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um Brasil profundo (Belém, 2016).
Como palhaçaria de viés decolonial, que remete também ao Brasil profundo,
cito a obra da Trupe-Açú, do Tocantins, grupo formado pelas palhaças Tapioca, de
Ester Monteiro, e Girassol, de Giovana Kurovski. Em seu espetáculo
Charlatonas
(2021), as artistas lançam mão de músicas e brincadeiras da cultura popular
brasileira. Em minha compreensão, a obra se trata de palhaçaria decolonial,
porque traz em seus dramaturgismos questões como afirmação e aceitação de
regionalidades e ancestralidades, além de questões mais amplas, que tocam em
temas como profissão e capitalismo.
Belém relata que o desejo pós-colonial é representado pelo ato de imaginar
uma vida fundada na democracia, no pluralismo cultural e na justiça social. Sobre
o despropósito da inequidade de gênero na crítica decolonial nas artes, Belém
(2016, p. 105) arremata:
E ainda incomoda-me o número reduzido de mulheres que entraram
para o rol da escrita crítica no campo da teoria e história do teatro e da
dança penso em alguns nomes, mas ainda são poucos. Dessa maneira,
se queremos realmente empreender uma crítica decolonial é necessário
começar a admitir a supremacia da voz masculina regendo os mapas e
os comportamentos nos domínios espaço-temporais.
Frente ao apelo da autora, admitimos que a voz masculina no seio da
palhaçaria ainda rege e domina espaços de atuação, mas nem todos.
Necessitamos, enquanto palhaças, admitir e mapear espaços de domínio
masculino na palhaçaria para que, assim, possamos pressionar e invadir esta
bolha. Escrever nossos dramaturgismos requer uma tomada de consciência do
que queremos falar, onde, por que e como.
A palhaça Bafuda, de Felícia de Castro, enfatiza a importância do corpo nos
processos de decolonialidade. Espaço primeiro em que habitamos, o corpo livre
seria capaz de existir em sua máxima potência, construindo um mundo novo a
partir de sua relação com ele. O riso que sai deste corpo, do qual ele também é
provocador, “liberta emoções presas, afasta o medo, desperta o prazer e, assim, é
subversivo” (2022)4.
4 Texto disponível na chamada de sua oficina de palhaçaria feminista:
https://ufsb.edu.br/proex/eventos/oficina-de-palhacaria-feminista-on-line-e-gratuita-esta-com-
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Existir em plenitude, enquanto mulheres, é o almejado. E enquanto palhaças
feministas, queremos que o riso que provocamos seja carregado de denúncia,
apelo e ameaça. Denúncia das opressões, apelo para que os privilegiados pelo
patriarcado se comovam, e ameaça de que, se não aceitarem nossa equanimidade,
nós iremos, mesmo assim, figurativamente falando, alcançá-la e tomá-la.
Adriana Santos (SC), a brincante da palhaça Curalina, relata ter sido a
palhaçaria um despertar e uma via de potencialização de si. Negra, Drica (como
Adriana gosta de ser chamada) conta, quando entrevistada por mim em 2022, que
encontrou a palhaçaria após uma necessidade de se renovar no teatro, e a
linguagem acabou a ajudando a lidar com o racismo que sofre diariamente.
Percebi que este era o caminho que potencializou minha existência e fui
atrás, desde então busco, aprimorando meu processo e compreendendo
como a intersecção racial fricciona com a prática da palhaçaria e de
como esta prática causa rupturas em feridas coloniais (Santos).
Drica se intitula uma
negatriz
(Santos, 2017), pois alega ser inevitável não
carregar a racialização em sua expressão artística. Num de seus dramaturgismos,
a palhaça Curalina (nome da avó de Drica) se utiliza de um pente enfiado em seu
cabelo
black power
. Em entrevista, ela conta que o objeto é muito simbólico, pois
negou seu cabelo durante muito tempo. Segundo Drica (2022), o pente demonstra
um orgulho de ser negra.
A palhaça Curalina foi adaptando sua relação com o pente e com seu cabelo
também por meio da palhaçaria. Santos (2020) argumenta que, no início de seu
processo de criação, seu cabelo a atrapalhava em cena, caindo na frente de seu
rosto e deixando-a brava com ele.
Quando comecei o processo de pesquisa para o “nascimento” da palhaça
percebia que da prática emergia de modo intenso, uma ligação com
minha ancestralidade, meus afetos e sensações mais profundas. Na
época eu estava em fase de transição do cabelo (libertação da parte
alisada e assumia meu cabelo afro). E como é muito dito no mundo da
palhaçaria: a menor máscara do mundo não me escondia, mas sim me
revelava. E assim minhas próprias
gags
foram surgindo e uma relação
forte com o cabelo se apresentava. A presença de minhas tias avós,
minha a e minha mãe eram visíveis nas minhas soluções e
improvisações em cena. O que surgia de modo objetivo na palhaça era
inscricoes-abertas ministrada por Felícia de Castro em 2022, pela Universidade Federal do Sul da Bahia.
Acesso em: 29 nov. 2023.