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O parto reverso ou da vertigem que é voltar
Janaina Fontes Leite
Para citar este artigo:
LEITE, Janaina Fontes. O parto reverso ou da vertigem
que é voltar.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0103
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O parto reverso ou da vertigem que é voltar
Janaina Fontes Leite
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-22, set. 2024
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O parto reverso ou da vertigem1 que é voltar2
Janaina Fontes Leite3
Resumo
No presente artigo, a autora parte de alguns conceitos centrais da psicanálise, como
o “enigma da sexualidade” e o “romance familiar”, para um exercício autoetnográfico
que toma as questões de gênero e o território da cena e da performance como focos
de trabalho e experiência. Ela se debruça, principalmente, sobre o conceito de
“feminino como mascarada” da psicanalista Joan Rivière para pensar a
performatividade de gênero em sua dimensão
sintomática
, adotando, a partir da
filiação à autora Julia Kristeva, uma
perspectiva abjeta
.
Palavras-chave
: Abjeção. Feminino. Sintoma. Performatividade. Teatro
contemporâneo.
The reverse birth or the vertigo of returning
Abstract
In the present article, the author draws on some central concepts of psychoanalysis,
such as the “enigma of sexuality” and the “family romance,” for an autoethnographic
exercise that takes gender issues and the territory of scene and performance as
focuses of work and experience. She primarily delves into the concept of the
“feminine masquerade” by psychoanalyst Joan Rivière to think about gender
performativity in its symptomatic dimension, adopting, through the affiliation with
the author Julia Kristeva, an abject perspective.
Keywords:
Abjection. Feminine. Symptom. Performativity. Contemporary theater.
El parto inverso o el vértigo de regresar
Resumen
En el presente artículo, la autora se basa en algunos conceptos centrales del
psicoanálisis, como el “enigma de la sexualidad” y el “romance familiar”, para un
ejercicio autoetnográfico que toma las cuestiones de género y el territorio de la
escena y la performance como focos de trabajo y experiencia. Se adentra
principalmente en el concepto de la “feminidad como mascarada” de la
psicoanalista Joan Rivière para pensar la performatividad de género en su dimensión
sintomática, adoptando, a través de la afiliación con la autora Julia Kristeva, una
perspectiva abyecta.
Palabras clave
: Abyección. Femenino. Síntoma. Performatividad. Teatro
contemporáneo.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Teresa Cecília de Oliveira Ramos. Mestra
em Literatura Espanhola pela Universidade de São Paulo (USP). Graduada em Letras pela USP.
2 Este artigo resulta em 36% de partes de minha tese de doutorado:
Ensaios sobre o feminino e a abjeção na
ob-scena contemporânea
. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) Universidade de São Paulo, 2021.
3 Pós-doutoranda na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo com apoio da Fapesp.
Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes Cênicas pela USP.
janaina.leite19@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4266566043184876 https://orcid.org/0000-0001-6652-5860
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Se eu tivesse que escolher uma imagem, não para representar mas para
presentificar algo das forças que moveram um processo de quase dez anos que
engloba, diretamente, cinco obras teatrais (ao menos) e a tese de doutorado à qual
irei me referir neste artigo, seria aquela que chamo de “parto reverso”. Trata-se de
uma gravação em vídeo, em hiperclose, na qual se a imagem de um parto
vaginal em
backward
reproduzindo a seguinte sequência: um bebê recém-nascido
no colo da mãe visivelmente exausta e emocionada, dois braços masculinos que
pegam o bebê do colo da mãe e o levam de volta em direção às suas pernas que
ainda se encontram abertas em posição ginecológica e apoiadas por dois amparos
de ferro, o cordão que une mãe e bebê vai sendo tragado no sentido contrário, os
dois pequenos pés se introduzem na vagina da mãe, depois as pernas, o tronco, e
por fim vemos a cabeça afundando nessas paredes elásticas que voltam a se
fechar.
A imagem se repete algumas vezes. Os sons de choro e vozes estão
distorcidos por conta do efeito reverso, se assemelhando a grunhidos que geram
um evidente estranhamento. O retorno de um corpo para dentro de outro produz
algo de uma
mise en abyme
ou de uma vertiginosa
matrioska
. O efeito de um bebê
penetrando a vagina da mãe é explicitamente pornográfico.
***
Esses pontos bastam para um começo de conversa sobre certa
fantasmagoria de gênero que me assombrou por anos e que deu origem a um sem
número de ações e reflexões que agrupei nesses
Ensaios sobre o feminino e a
abjeção na ob-scena contemporânea
, tese de doutorado defendida na Escola de
Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo em 2021 e, agora, em fase de
publicação pela Editora AnnaBlume.
Nascido enquanto “tese”, mas encontrando sua estrutura em uma espécie de
jornada artístico-biográfica, o trabalho parte do chamado em torno do “enigma da
sexualidade”4 e toma o meu próprio “romance familiar”5 como plataforma para um
4 Segundo a psicanálise, o termo se refere a uma sexualidade que não é inata. Ela vem do
outro
, do adulto,
através de “mensagens enigmáticas” transmitidas de forma consciente e inconsciente à criança.
Significantes sinais, palavras, gestos, códigos, estados corpóreos, psíquicos que ficam sem tradução vão
constituir o primeiro núcleo da sexualidade infantil (cf. Tarelho, 2012).
5 Também oriundo da psicanálise freudiana, a ideia de um romance familiar” remonta à ideia de que, no
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exercício sobre si que termina por revelar a maquinaria de gênero que está na base
de infinitas violências, mas também de formas de gozo vividas por e através do
que chamo no trabalho de “o comumente feminino”.
Posso falar desse “comum” pela ótica do aparato discursivo que o moldou e
para o qual lanço mão de autoras como Julia Kristeva e Silvia Federici, a fim de
perscrutar a construção moderna e ocidental do que se convencionou como
“feminino”. Ou posso, com mais cautela, retomar a citação de Angélica Liddell que
detonou, entre a indigestão e o fascínio, um intenso processo de acareação de
gênero.
Me ha costado 50 años para encontrar y aceptar el origen de mi
infortunio. Debo soportar una misoginia feroz que asumo sin culpabilidad
porque en casi todas las mujeres reconozco rasgos de la mujer que me
crió, en ella patológicos, en el resto de las mujeres lo que las unifica, lo
que las hace pertenecer a un género, la suspicacia, el parloteo y la malicia,
y la mentira y la absoluta falta de nobleza, entrometidas, malhumoradas,
venenosas y rastreras, siempre agobiadas, ansiosas, torpes,
desmemoriadas, horriblemente susceptibles, más testarudas de lo que
nadie puede resistir, y la mayoría de las veces incapaces, y dispuestas a
echarle la culpa a cualquiera antes de reconocer su incapacidad,
convencidas siempre de llevar la razón y de saberlo todo y hacerlo todo
bien para compensar su verdadera falta de inteligencia. Cuando
reconozco alguno de estos rasgos en una mujer el rechazo es tan intenso
que acaban por saltárseme las lágrimas como si me estuvieran
sometiendo a una tortura física. Enfrentarme a lo comúnmente femenino
me produce verdadero asco (Liddell, 2015, p. 130-131).
Gostaria de sublinhar esse último trecho em que ela diz “Enfrentarme a lo
comúnmente femenino me produce verdadero asco”, cujo efeito em mim custo
ainda a mensurar. Eu que tempos venho acompanhando os debates feministas,
me reconhecendo em muitos deles, rejeitando outros. Essa frase, certamente
incômoda dentro de um movimento de afirmatividade dessa primavera feminina,
feminista, teve um impacto cujas origens profundas eu levaria alguns anos
tentando elaborar.
Neste ano em que retomo
Ensaios sobre o feminino e a abjeção na ob-scena
contemporânea
para publicação e lançando notícias ao mundo – como este texto
regime heteropatriarcal que sustenta o sujeito moderno, existe uma “cena” vivida dentro do modelo de
família nuclear composto pelas figuras centrais do pai e da mãe que, dentre muitas outras relações de
poder, atualiza, primeira e fundamentalmente, as posições de gênero e sexualidade.
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aqui na tentativa de abrir diálogos e dar à pesquisa novos destinos, revisito ideias,
memórias e emoções que estiveram na base desse intenso processo de criação e
escrita, encontros e trocas, e busco, sobretudo, perguntar-me o que ainda me
move em torno dos ainda urgentes debates de gênero.
Se, por um lado, defendida em 2021, a tese já sofre a passagem do tempo e
se mostra menos “decolonial” do que eu gostaria, por outro sigo reconhecendo em
mim a perspectiva que norteou o trabalho sobre gênero que reuniu nestes anos
centenas de artistas em oficinas, mesas, processos criativos sob a égide de um
“feminino abjeto”.
O debate, o embate, que me interessava e me interessa até hoje é da ordem
das contradições que envolvem certa dose de identificação, mas também repulsa.
Ou repulsa, mas também identificação, com isso que – apesar de todo o processo
de desconstrução dos binarismos de gênero empreendido pelos movimentos
revisionistas, principalmente os feministas, queers e decoloniais seguimos
reconhecendo, socialmente, psiquicamente, como
feminino
.
O feminino como mascarada ou a verdade sintomática do clichê
O leitor poderá agora perguntar como defino a feminilidade, ou onde
traço a linha divisória entre a feminilidade genuína e a “máscara”. Minha
sugestão é, entretanto, a de que não existe essa diferença: quer radical
ou superficial, elas são a mesma coisa.
(Rivière, 1929)
The fetish is, as Nietzsche said of woman, “so artistic”.
(Mulvey, 1991)
De 2017 a 2020, orientei dois grandes laboratórios práticos6 que tiveram como
ponto de partida o estudo da obra da controversa artista espanhola Angélica
Liddell e o conceito de abjeção desenvolvido por Julia Kristeva em seu livro
Os
poderes do horror
(1980), propondo a hipótese de um “feminino abjeto” como
perspectiva crítica de gênero. Da diretora e dramaturga Angélica Liddell, tomei
6 Esses laboratórios aconteceram, de forma regular, entre 2017 e 2020, na sede do Grupo XIX de Teatro em
São Paulo, na Vila Maria Zélia, tendo sido interrompidos unicamente por conta da pandemia. Em 2017, a Lei
de Fomento ao teatro para a cidade de São Paulo possibilitou realizar a pesquisa de forma financiada, mas
de 2018 em diante a pesquisa seguiu de forma autônoma. As experiências de
Feminino Abjeto 1 e 2
reuniram
diretamente mais de setenta pessoas e milhares indiretamente, através de dezenas de apresentações,
mesas, mostras e trabalhos teóricos e práticos desdobrados desta pesquisa que seguem em curso até hoje.
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como central a indigesta frase “Enfrentar o comumente feminino produz em mim
um verdadeiro asco” que se concretiza em suas peças através de uma violenta
acareação com a figura materna ao longo de toda sua obra e que se converte em
repúdio ao feminino através de uma declarada – ainda que ambígua – misoginia7.
De Kristeva, a ideia do abjeto como uma “crise narcísica” em que a imagem de si
se perturbada pelos objetos não inteiramente simbolizados no processo de
subjetivação, constituindo uma parte residual, abjeta, que insiste em perturbar
aquilo que sabemos sobre nós mesmos. Em ambas, um jogo de espelhos
perturbador em que nos perguntávamos, ou confrontávamos,
o que
,
afinal, era
“feminino”
em nós.
Figura 1 – Bruna Betito em
Feminino Abjeto
. Foto: Jonatas Marques (2017).
7 No artigo
“Tuer la mère. Quand Luce Irigaray rencontre Angélica Liddell”, Éléonore Berger fala sobre “la portée
féministe ambiguë de l’œuvre d’Angélica Liddell” ou “o ambíguo escopo feminista da obra de Angélica
Liddell”: “O ódio de Liddell pelo mundo inteiro não poupa ninguém, mas se concentra particularmente nas
figuras femininas que ela rejeita e das quais lamenta fazer parte no
Diário da noiva
do coveiro
: ‘[...] perdoe-
me por falar das mulheres sendo mulher [...] isso não diminui de forma alguma a minha misoginia’”.
(Tradução nossa) No original: La haine que Liddell voue au monde entier n’épargne personne, mais se
concentre particulièrement sur les figures féminines qu’elle rejette et dont elle regrette de faire partie dans
son journal
La Fiancée du fossoyeur
: ‘[…] pardonne-moi de parler des femmes em étant femme […] ça ne
diminue en rien ma misogynie’” (Liddell
apud
Berger, 2017. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.14198/fem.2017.30.01).
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No artigo de 1929, “A
feminilidade como máscara”, a psicanalista inglesa Joan
Rivière, muito antes dos debates mais contemporâneos sobre performatividade de
gênero, desenvolve a tese de que não existe diferença entre a feminilidade genuína
e aquela expressa pelas suas
máscaras
. Rivière desenvolve seu argumento através
de exemplos clínicos e toma, possivelmente, os próprios sonhos como material
de análise. Conta de uma mulher intelectualizada que, após fazer aparições e falas
públicas para grandes e importantes plateias (majoritariamente masculinas),
experimentava um forte sentimento de ansiedade. Em um dos sonhos, a suposta
analisanda fala de pessoas colocando máscaras sobre os rostos para evitar um
desastre: “Uma torre situada em uma elevação desabava sobre os habitantes de
uma vila situada abaixo; mas as pessoas colocavam as máscaras e escapavam
ilesas dos ferimentos!” (Rivière, 2005, p. 16).
O argumento do artigo caminha de forma a situar a feminilidade como um
disfarce.
O que se estaria disfarçando, segundo a autora, é o processo de
roubar o
falo ao pai
. E aqui é preciso entender o “falo” na psicanálise enquanto o
significante do poder. Um dos conceitos fundamentais quando da
fundação da psicanálise por Freud é o “enigma da diferença” que, no
tocante à sexualidade, diz respeito a um mundo dividido entre aqueles
que
têm
e aqueles aquelas que
não têm
. Tem o quê? O pênis? Não,
mas o que esse significante representa em termos de acesso,
reconhecimento e poder8 (Leite, 2021, p. 55).
8 O recorte da psicanálise vem sendo muito debatido e revisado, mas ela nos ajuda justamente a ver e a
entender de forma profunda as bases do modelo cisheteronormativo ainda ampla e massivamente vigente.
Ela pode ser descritiva como se pretendia Freud. Ela pode ser prescritiva em sua versão mais reacionária,
frontalmente denunciada no célebre discurso de Paul Preciado “Eu sou o monstro que vos fala” diante de
3.500 psicanalistas em um Congresso na França em 2019. Mas pode, como busca uma ampla massa de
psicanalistas e teóricos na contemporaneidade, ser consciente do seu papel de agente na produção de
subjetividades e operar pela transgressão e ressignificação dos esquemas binários de gênero. Em palavras
de Preciado: “A psicanálise freudiana começou a funcionar no final da século XIX como tecnologia para a
gestão do aparelho psíquico ‘preso’ à epistemologia patriarcal e colonial da diferença sexual. Freud é
reconhecido hoje como um dos mais importantes pensadores da modernidade, no mesmo nível de
Nietzsche ou Marx. Mas, como as de Nietzsche ou Marx, suas elaborações discursivas devem ser
questionadas e criticadas à luz dos novos processos de emancipação política e transformação científico-
cnica” (Preciado, 2019, p. 17). Mas ao contrário do que o filósofo diz sobre a psicanálise nascer como um
dispositivo de conservação da lógica binária, acredito, como pontua Tania Rivera, que sem exagero ou
benevolência” a psicanálise é “a primeira teoria a subverter com vigor o determinismo biológico,
especialmente na esfera da vida sexual e da própria concessão de sexualidade. Se a anatomia toma nela
papel importante e Freud chega a parafrasear Napoleão para afirmar que ela é o destino” , é como
terreno de equivocidade, mobilidade e construção processual. Masculinidade e feminilidade estão nela
apresentadas como problemas, e sua distinção não se resolve pelo recurso literal à anatomia, nem pela
adesão cega às ‘convenções’, aos estereótipos que supostamente as caracterizaria do ponto de vista
psicológico” (Rivera, 2019).
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O processo de demarcação da diferença ter/não ter se daria na cena
primitiva quando da constituição de uma posição feminina na sexualidade, e
depois, ao longo de toda a vida, como forma de manutenção dessa posição. Paul
Preciado fala da
primeira cirurgia
que sofremos ao nascer, quando a identificação
genital põe em marcha toda a maquinaria do gênero (cf. Preciado, 2014).
Nessa cena original, a menina sendo aquela que não tem (ou seja, ao se
identificar com aquela que não tem, a
mãe
que
não tem
prestígio, não
tem mobilidade, não tem autonomia, não tem reconhecimento, não tem
o pênis que representa tudo isso), precisa mascarar a sua falta e se
travestir de falo para, ao menos, ser o falo para alguém.
É o que em
psicanálise se entende por
falicização
do corpo feminino através de uma
forma de travestimento que é a hiperfeminilidade (Leite, 2021, p. 56).
Lembrando que estamos no final dos anos 1920, mais de um século atrás,
em que as mulheres burguesas davam seus primeiros passos em direção a uma
vida pública e, pela primeira vez na história, ousavam ocupar o espaço que antes
fora exclusivo dos homens: espaços de saber, espaços de poder9.
O que interessa aqui, principalmente, é que a imagem da “máscara” proposta
por Rivière, que poderia apresentar-se como uma oposição simplista entre
superfície (falsidade) e profundidade (verdade), expressa, ao contrário, a estrutura
mesma do
sintoma
, cujo trabalho de inscrição se dá, necessariamente, sobre uma
superfície.
Na noção freudiana, é fundamental a ideia de que o sintoma não encobre
algo que se encontra nas profundezas esperando por se revelar, mas ao contrário
ele aponta para algo que, paradoxalmente, “no próprio encobrimento, se descobre
e denuncia” (Vallejo, Magalhães, 2018, p. 146). Se é a partir de um sistema de
relações, e não por detrás dele, que se o oculto, podemos entender a
mascarada feminina não enquanto algo da ordem do falso, do fingimento, mas em
sua
verdade sintomática
. É o que venho chamando de “a verdade sintomática do
9 É preciso sublinhar aqui que esse modelo teórico de demarcação de gênero é erigido pela psicanálise
olhando para a mulher de classe média, branca, cisgênera, que formará, ao lado do homem com igual
padrão, o pilar da família burguesa, em uma lenta construção da modernidade que atinge seu ápice no final
do século XIX na Europa e que viverá, ao longo do século XX, um processo de crise. Esse ideal que por ser
normativo e colonizador vai deixar lastros em outros extratos sociais e culturais através dos inúmeros
mecanismos imaginários e sociais de coerção e difusão sem dúvida assume outras conotações e
implicações na experiência das mulheridades indígenas, negras e transgêneras. Para pensar a intersecção
entre gênero e raça, ainda sob uma via psicanalítica, recomendo as leituras das autoras Lélia Gonzalez (1984,
p. 223-244) e Rita Segato (2006).
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9
clichê” (Leite, 2021).
A psicanalista caminha na análise do caso citado dizendo que a paciente
buscava apaziguar sua ansiedade ao fim dessas exposições públicas por meio de
algum tipo de aprovação sexual, como se a ostentação de uma sensualidade que
seria lida como feminina pudesse funcionar como uma estratégia de
mascaramento, tanto para ocultar a
posse do falo
como para evitar as represálias
esperadas se fosse apanhada possuindo-o!
Curioso que o exemplo se assemelha àquele que anos depois vai ser
retomado pela autora contemporânea Virginie Despentes, no livro
Teoria King
Kong
, mas invertendo a perspectiva, pois ela se apropria dessa sígnica para entrar
no mercado sexual. Consciente da mascarada, Virginie fala de “jogar o jogo da
feminilidade”: “saia curta, salto alto, ninguém poderia dizer ‘cuidado, é uma
impostora’ porque eu não era uma, não mais do que as outras” (Despentes, 2016,
p. 53).
Ser uma “impostora”, no raciocínio de Rivière, remete à dupla posição de se
colocar
como
o falo (
para
o desejo do outro) ou ocupar o lugar masculino (
ter
a
posse do falo). No artigo, as duas possibilidades são defensivas, que a máscara
é a única possibilidade de sair ilesa dos ferimentos! De vertente freudiana, Rivière
aponta para um saldo em aberto nesse processo, que recriaria a cada vez a cena
original em que, ao castrar o pai/roubar seu falo, a menina ainda busca o seu
reconhecimento, a sua aprovação, em suma, o seu amor.
Afinal, como sintetiza Maria Rita Kehl, entre a ironia e a constatação trágica
de um cis-tema10 que ainda segue em curso,
se eu sou amada, como eu posso ser
desejada? Se eu sou desejada, como eu posso ser amada?
(cf. Kehl, 2016).
A batalha do íntimo e a virada corporal e performativa
Maria Rita Kehl continua dizendo que é do reconhecimento amoroso que o
homem pode ainda privar uma mulher. Não por vingança, mas
porque não
consegue mais se ver como o diferente que era
(cf. Kehl, 2016). Com essa frase-
10 Para essa e outras provocações sobre o sistema ou cis-tema heteronormativo de produção de gênero,
recomendo a leitura de Dodi Leal (2018).
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provocação, Kehl, em seu
Deslocamentos do feminino
, remete à gênese de um
conflito que segue em curso há pelo menos 2 mil anos no Ocidente e que, a partir
de um ideal branco, virginal e materno, erigiu um modelo feminino cujo núcleo é
a dualidade entre a santa e a caída, a mãe e a puta, a vadia e a “recatada e do lar”.
Não teremos tempo aqui para o longo desenvolvimento que exigiria retraçar os
caminhos pelos quais esse processo se deu, mas, a título de
plot twist
sobre o
livro
Ensaios sobre o feminino e a abjeção na ob-scena contemporânea
, adianto
que capitalismo e mais-valia sobre o trabalho sexual, reprodutor e de cuidados
exercido pelas mulheres ao longo de séculos têm tudo a ver com isso. E também
a aliança entre o cristianismo e o projeto de família burguês, além da defesa da
virgindade e o controle dos corpos reprodutores para o bem da propriedade
privada assegurado pela herança, amém!
As ondas feministas que atravessaram o século XX e XXI e suas devidas
revisões decoloniais jogaram luz sobre os campos da intimidade, da sexualidade,
da procriação, da vida doméstica, definidos como centrais para se entender de
que forma o gênero atua em múltiplas instâncias sociais, deixando marcas na vida
pública, mas talvez mais profundas na vida íntima e psíquica.
Para essa pesquisa, interessaram sobremaneira as consequências psíquicas
e intersubjetivas desse construto histórico, no qual as questões de gênero não se
revelam apenas nos seus aspectos conscientes e críticos quando
escolhemos
algo, mas se mostram nos processos inconscientes à maneira de
sintomas
, como
aquilo que
escolhe por nós
.
Quando Camille Froidevaux-Metterie fala da “batalha do íntimo”, ela remete
justamente a essa “coisa” (o
ça
) que permanece irresolvida nos quartos, nos
banheiros, nos corredores, mas também nas ruas em que o íntimo e o público se
misturam, justamente porque o corpo é o território por excelência em disputa
tanto dentro das casas como nos espaços comuns da cidade. Com efeito, foi a
partir dos anos 1960, no que se chamou de “a segunda onda”, que se travou o que
a teórica francesa chama de “a batalha da procriação”, cujo alvo eram as
justificativas seculares para o que se considerava a origem do mal do
confinamento doméstico: a predestinação materna.
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[...] o argumento fisiológico que sempre justificou caracterizar a existência
feminina como um misto de disponibilidade sexual, devoção materna e
inferioridade social desaparece no momento em que a mulher assume o
controle de sua natureza procriativa (Froidevaux-Metterie, 2018, p. 17).
A concepção de um feminino desatrelado de sua suposta função reprodutora,
que tem seu símbolo máximo no surgimento da pílula anticoncepcional nos anos
1960, coloca em marcha o que Froidevaux chama de verdadeira “mutação
antropológica”.
No entanto, a mesma autora pontua certo fracasso nesse projeto e salienta
que os anos 1990 demonstram que os avanços materiais e sociais conquistados
pelo movimento das duas primeiras ondas feministas não foram suficientes para
superar o profundo desequilíbrio na esfera do íntimo.
Não é uma coincidência que os trabalhos artísticos que foram centrais para
a pesquisa de
Ensaios sobre o feminino e a abjeção na ob-scena contemporânea
dialoguem diretamente com a virada corporal e performativa nas artes a partir da
década de 1970 e 1980, afirmando o interstício entre indivíduo e história. Como diz
Ana Bernstein (2001, p. 92):
o corpo torna-se então o ponto de mediação entre uma série de relações
binárias de oposição, tais como o interior e o exterior, sujeito e mundo,
público e privado, subjetividade e objetividade. O corpo é o lugar em que
essas contradições ocorrem.
Leda Maria Martins, em seu
Performances do tempo espiralar
,
traz a imagem
de um corpo-tela que é “acervo de um complexo de alusões e repertório de
estímulos e de argumentos, traduzindo certa geopolítica de corpo [...]” (Martins,
2021, p. 162). E conclui dizendo que o corpo-tela “torna-se
locus
e ambiente
privilegiado de inúmeras poéticas entrelaçadas no fazer estético” (Martins, 2021, p.
163).
Não à toa a arte da performance vai ser o território central da ação
política e estética de um sem número de performers mulheres, como
Gina Pane, Karen Finley, Ana Mendieta, Regina José Galindo, Orlan e
muitas outras, que encontram no corpo e na ideia de prática e ação sobre
e a partir dele o elemento central de suas poéticas (Leite, 2021, p. 99).
Os intensos debates, experimentos, obras, ativismos de toda sorte ao longo
do século XX e XXI nos mostram que estamos movendo ou tentando mover
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camadas seculares, impostas, mas nem por isso menos epidermizadas. Padrões
que, de tanto se repetir, se somatizaram e ganharam estatuto de verdade, de
“essência”, e que tiveram nas funções reprodutoras, na predestinação maternal,
nas funções de cuidado de maridos, velhos e crianças, e no campo da sexualidade
e dos afetos, seus bastiões principais (cf. Federici, 2017, 2019; Iaconelli, 2012).
Nessa dialética entre superfície e profundidade, escolhas e sintomas, em
Ensaios sobre o feminino e a abjeção na ob-scena contemporânea
interessou
pensar a trama complexa que, de uma marca biológica a capacidade reprodutora
–, produziu uma verdadeira máquina cultural de produção de gênero (ou como o
Estado e o capitalismo se serviram dessa marca para instituir o núcleo duro da
família e do Estado em torno do que significa ser “mulher” e ser “homem”). E
interessou mais ainda, do ponto de vista artístico e pessoal, pensar o modo como
performamos essa mascarada entre a adesão e a recusa, entre a denúncia e o
gozo, mas também, e essa foi uma das apostas, entre a crítica e a afirmação lúdica.
Buscando conferir a essa máscara, ao menos e talvez não seja tão pouco –,
plasticidade
.
Da vertigem que é voltar
Foi em um dos primeiros encontros dentro do núcleo de pesquisa “Feminino
Abjeto” que resolvi mostrar pela primeira vez as imagens com as quais abri este
texto. Naquele momento, a cena de parto ainda seguia seu curso “normal”: a
cabeça de um bebê irrompendo através de uma vagina dilatada em uma passagem
de dez centímetros de diâmetro, depois o corpo inteiro besuntado de sangue e de
uma gosma branca amparado pelas mãos daquele que se imagina ser o médico,
sendo levado para o colo da mãe, visivelmente exausta e emocionada, em uma
típica cena do imaginário maternal.
Era 2017 e não imaginava ainda o rumo que aquela pesquisa tomaria para as
29 pessoas 27 mulheres cisgêneras e duas pessoas trans de diversas áreas
reunidas ali naquele dia. Grande parte delas seguiram ainda por quase três anos
reunidas em torno deste que se tornou o
Feminino Abjeto 1
, que depois veio o
2
, desenvolvido com um grupo de mais de quarenta homens cisgêneros e duas
pessoas trans. Foram dezenas de apresentações, mostras, debates e, o mais
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impressionante para mim, inúmeros desdobramentos autorais através de novos
trabalhos criativos e também acadêmicos.
Figura 2 – Débora Rebecchi e Bruna Betito em
Feminino Abjeto
, Teatro do Centro da Terra.
Foto: André Cherri, 2019.
Figura 3 – Lucas Asseituno e João Pedro Ribeiro em cena de
Feminino Abjeto
.
Foto: André Cherri. 2019.
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Lembro, por exemplo, da experiência de Letícia Bassit, que se descobriu
grávida em meio ao processo criativo de
Feminino Abjeto
e trouxe para a cena os
conflitos daquele corpo que se transformava a cada apresentação, e as questões
que ganhavam cada vez mais uma dimensão pública pelo fato de não existir
certeza sobre a paternidade e pela recusa desses possíveis pais em fazer o teste
de DNA. Com suas próprias palavras, a atriz deflagrava em cena os trânsitos do
próprio processo:
Em 2017 iniciamos esse trabalho e ficamos em cartaz em alguns espaços.
Eu fazia um discurso sobre a puta, sobre a prostituição, fazendo um
paralelo com o casamento que, muitas vezes, é também um contrato
econômico implícito. eu tinha esse abacaxi, eu sentava nesse abacaxi,
enquanto cantava um samba no microfone. No meio desse processo
todo, eu engravidei. De uma forma nada romântica, pelo contrário, bem
caótica, intensa, alguns diriam até sem amor nenhum, mas eu posso
garantir que foi cheio de amor. Continuamos em cartaz e eu, grávida,
decidi que continuaria com o discurso da puta e o quebraria revelando a
minha barriga em cena, falando sobre a sombra da maternidade, da
gestação, das dores, das aflições, do medo, dessa relação parasitária que
é carregar um ser dentro de você. Eu não conseguia mais realizar a ação
de sentar e me masturbar no abacaxi. Então eu passei a usar o abacaxi
como uma bucha, eu dizia que era importante esfregar o abacaxi no peito
pra calejar o bico e facilitar a amamentação. Era o que o médico dizia...
Eu mostrava a minha barriga e perguntava pro público: “Você foderia com
uma grávida?”, “Você acha que esse filho é meu?”. Continuamos em
cartaz e meu filho nasceu. Continuamos em cartaz e eu decidi
abandonar o abacaxi e entrar em cena com o meu filho comigo. Eu não
tinha com quem deixar ele, então ele estava sempre comigo. Entrei com
ele em cena, amamentando, e meu discurso passou a ser sobre o
puerpério, sobre o pós-parto, sobre o medo, o terrível, a sombra absurda
desse momento que poucos falam e que precisa ser dito! Eu fiquei
sozinha com o meu filho, sozinha. Num momento que eu precisava de
gente do meu lado, me ajudando a levantar da cama, porque eu tava com
um corte de sete camadas no meu ventre. Eu olhava pro meu filho, um
estranho familiar, e eu não conhecia ele. Nem ele me conhecia... eu não
sabia o que fazer com ele. Hoje eu aqui com esse abacaxi na mão. Às
vezes eu tenho vontade de voltar pra figura da puta, cantar um samba no
microfone e me masturbar no abacaxi. Eu não sei muito bem o que eu
fazendo aqui agora, num abismo, no vazio. bem perdida. Eu
escrevendo um livro. Eu moro sozinha com meu filho, numa casa de
muro baixo, só eu e ele. Uma casa de muro baixo que qualquer um pode
pular e entrar. Eu com medo, nunca senti medo, mas agora eu sinto.
Meu filho com seis meses e eu não sei quem é o pai do meu filho. Uma
fila de DNA. Resultado negativo. Restam duas possibilidades de
paternidade. E os dois caras sumiram, não sei onde eles estão. Eles dizem
que um filho não interessa pra eles, um filho comigo não interessa pra
eles. Eles dizem: “Esse filho não é meu, eu não gozei”.
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E ela encerra a cena dizendo à plateia: “Eu também não gozei. Esse filho não
pode ser meu também, eu não gozei! Eu também não gozei. Como esse filho pode
ser meu se eu não gozei?”.
Figura 4 – Letícia Bassit em
Feminino Abjeto
.
Foto: Yve Louise, 2018.
Além de um livro e um espetáculo que receberam o nome
Mãe ou Eu
também não gozei
, em 2024 Letícia lança o filme homônimo com estreia no
Festival de Tiradentes, em que investiga, a partir da própria experiência, as
consequências sociais, jurídicas, psíquicas para uma mulher que enfrenta a
maternidade solo a partir do estigma de não saber quem é o pai da criança.
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Poderia citar ainda os trabalhos de Bruna Betito, Emilene Gutierrez, Oliver
Olívia, Maíra Maciel, Cibele Bissoli, Florido Fogo, Ramilla Souza, Tatiana Caltabiano,
Juliana Piesco, Tatiana Ribeiro, Débora Rebecchi, Sol Faganello, Gilka Verana, Ana
Lais Azanha, desdobrados a partir e para muito além do nosso encontro naquele
2017, e muitas outras e outros que venho encontrando em laboratórios e espaços
de trocas sobre arte e gênero, como Alexandre Lindo, André Medeiros Martins,
Andréa Sá, Carlos Jordão, Chico Lima, Dante Paccola, Diego Araújo, Eduardo Joly,
Filipe Rossato, Guilherme Reges, Gustavo Braunstein, Jeffe Grochovs, João Duarte,
João Pedro Ribeiro, Leonardo Vasconcelos, Lucas Asseituno, Marco Barreto, Nuno
Lima e Thompson Loiola todes integrantes de
Feminino Abjeto 2
. E também Lara
Duarte, Soraia Costa, Laís Machado, Georgia Vitrilis, Isabel Soares, Ultra Martini,
Careaux Calsone, Ian Figlioulo, Tadzio Veiga, Fábia Mirassos, Sofia Maruci, Tauã
Teixeira etc. etc.11, que compartilham de uma mirada, direi,
opaca
sobre gênero12.
Costumo dizer que o encontro com o abjeto é um ponto de não retorno e sua
fecundidade é assombrosa (cf. Leite, 2019).
Figura 5 – Emilene Gutierrez em
Salivas
. Foto: André Cherri, 2023.
11 E a lista segue verdadeiramente imensa, pois que são inúmeros núcleos de pesquisa, laboratórios,
orientações, bancas, somando centenas de pessoas com quem venho trocando intensamente nestes
últimos anos e que influenciaram enormemente meu modo de pensar a vida e o teatro (o que já não separo
mais, na verdade).
12 Singela referência a uma certa
ética da opacidade
, fazendo eco ao escritor Edouard Glissant.
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Figura 6 – O ator Oliver Olívia em
Não ela
. Foto: André Stefan, 2023.
Naquele 2017, no contexto de algo como uma oficina teatral, longe de me
apresentar ali em uma suposta posição de autoridade, era importante, ao
contrário, me colocar como uma igual, tão vulnerável e exposta quanto elas, correr
juntas o risco do encontro com as próprias sombras. Também me coloquei em
pesquisa, compartilhei documentos e memórias, propus programas.
Segui às voltas, mais um tempo, com as imagens documentais do parto. Elas
resistiam como algo que era uma marca pessoal de uma vivência extrema um
parto difícil de dezessete horas, terminado a fórceps, em um momento
complicado da vida conjugal com o pai, que levaria ao término do casamento dali
a dois anos. Resistiam também pela sua intensidade gráfica. Mas, mais ainda, como
portadoras de um significado
que eu não conseguia decifrar. O que me impelia em
direção a essas imagens? A questão da maternidade? A experiência avassaladora
do parto? O caráter explícito das imagens em si? Era um
documento
como muitos
outros que acumulei durante esse processo, mas que permanecia mudo enquanto
eu ainda não era capaz de formular
a pergunta que o fizesse falar
.
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O que eu descobri, depois de meses às voltas com esse material, e que me
fez encontrar um caminho para a criação do que viria a ser o espetáculo
Stabat
Mater
, é que a resposta, ou a
questão
parafraseando o teórico Paul Ricoeur, que
nos diz que
o documento é mudo até que se lhe faça uma pergunta
(cf. Ricoeur,
2007) –, estava no sentido reverso do movimento. Essa imagem passou a falar
quando eu entendi que se tratava de
voltar
.
Figura 7 – Janaina Leite em
Stabat Mater
. Foto: André Cherri, 2019.
Stabat Mater
, estreado em 2019, é a primeira tentativa de elaboração desse
feminino abjeto em minha própria releitura biográfica de gênero. Convido minha
mãe real e um renomado ator pornô para dramatizar meu romance familiar
disfuncional através do dispositivo de criação de um
set
pornográfico. “Você
aceitaria gravar uma cena de sexo explícito comigo dirigida pela minha mãe?” era
a pergunta lançada aos atores que participaram do processo de
casting
para o
espetáculo. A pergunta em si era um enunciado, um programa performativo (cf.
Fabião, 2013), que fazia colidir a pornografia tradicional e o teatro performativo
contemporâneo, e ainda, mais do que isso, fazia trombar virtualmente a ideia que
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se tem de uma atriz “convencional”13 de teatro e uma atriz pornô, de uma mulher
que
faz esse tipo de coisa
e aquelas que não fazem. E tudo isso com a mãe no
meio! A maquinaria de gênero de mais de 2 mil anos, que cindiu a mulher entre a
santa e a puta, volta a rodar quase sem nenhum rangido, lisinha.
“Voltar” possuía portanto um sentido político que teve a ver com o
enfrentamento a esse ideal feminino herdado, transmitido, repetido à exaustão, e
que estamos ainda lutando como mulheres para desmontar. Mas também um
sentido estético que fez com que o rebobinar da fita nas imagens do parto
tornasse essa cena menos “assunto” e mais uma experiência sensível que amplia
seus sentidos para além das minhas pretensões discursivas, abrindo espaço para
o
não saber
.
Porque sim, em um dossiê sobre a “descolonização das corpas”, tudo isso
poderia ser sobre um discurso autoconsciente que toma a pornografia como
forma de
hackeamento
de uma linguagem tão marcada pela violência contra
corpos femininos. Poderia ser sobre o ato performativo de transgredir e re-situar
a pornografia sob a luz de um gesto afirmativo de empoderamento sobre meu
próprio corpo e sexualidade. Mas, ainda que essas coisas estejam provavelmente
de alguma forma (no horizonte de criação quando tudo isso começou, no
experimento em si e no espetáculo que resultou disso tudo), continuo acreditando
na mirada abjeta que me lembra que “Fronteira sem dúvida, a abjeção é sobretudo
ambiguidade. Porque, ao demarcar, ela não separa radicalmente o sujeito daquilo
que o ameaça pelo contrário, ela o reconhece em perigo perpétuo” (Kristeva,
1980, p. 9).
A aproximação com a pornografia foi um dispositivo, tal qual propõe Arnaud
Rykner, que produziu um
terceiro excluído
(cf. Rykner, 2018), um estranho não
assimilável pelas minhas próprias intenções conscientes. E nessa imensa margem
de perda de controle diante do imprevisível e do indomável que é a
experiência
, a
zona residual, abjeta, foi infinitamente maior do que aquilo que virou o objeto-
espetáculo
Stabat Mater
. Não à toa, de 2020 a 2024, segui às voltas com as
consequências e desdobramentos desse encontro turbulento com a pornografia.
13 Foi a forma como um dos atores se referiu a mim durante o processo de
casting
, entusiasmado de que
fosse possível uma tal migração de campo.
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A ideia de uma “mascarada feminina” voltou mais forte do que eu jamais poderia
imaginar a partir do experimento
Camming 101
Noites
, em que me propus a exercer
atividade sexual paga em uma plataforma de sexo virtual entre uma vivência
radicalmente pessoal e um experimento performativo de envergadura etnográfica.
Venho defendendo na minha trajetória artística e acadêmica e, mais do que
isso, construindo ao lado das minhas pares nessa profunda investigação em que
vimos andando juntas
pela sombra
14 um sentido que entendo sim como
emancipador, mas não por isso menos ambíguo, contraditório. O que me leva a
alianças e posições nem sempre óbvias para certos horizontes mais afirmativos,
por exemplo a filiação a uma artista como Angélica Liddell, a defesa do trabalho
sexual, a não condenação da pornografia ou de práticas fetichistas que
supostamente reproduzem violência de gênero. Ou ainda, pasmem, defendendo a
dimensão vulnerável, difusa e dissidente da sexualidade masculina heterossexual15!
Sim, são notícias que trago das profundezas do mundo da pornografia e do
trabalho sexual, e para as quais fazem eco não a psicanálise, que teimo em
gostar muito de ler apesar do ranço de certo pós-estruturalismo contra ela, mas
também especialistas como Monique Prada, prostituta e ativista, e Dominique
Luxor, historiadora e dominatrix.
Mas esses são temas para o epílogo da obra
Ensaios sobre o feminino e a
abjeção na ob-scena contemporânea
, na qual convido você, leitora e leitor, a dar
um mergulho.
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14 Referência à entrevista para o podcast Atreva-se, de Nicole Aun. Disponível em:
https://open.spotify.com/episode/5fOqT0Q7vVhp9AX5tkoEK5?si=0eec8af1e3f44cf4&nd=1&dlsi=b785c9af7e5
847f5. Acesso em: jun. 2023.
15 Ainda em coro com Rivera, quando faz ressalvas ao discurso já citado de Preciado sobre a psicanálise: “Devo
notar, contudo, de passagem, que considero equivocada sua tendência a assimilar as relações sexuais
heterossexuais a um esquema hegemônico que as reduziria, em última instância, à domesticação do gozo
para fins de procriação. Pois o sexual, como bem mostra a psicanálise, é sempre ‘perverso polimorfo’, ou
seja: transgressivo” (Rivera, 2019).
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
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Revista de Estudos em Artes Cênicas
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