O parto reverso ou da vertigem que é voltar
Janaina Fontes Leite
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-22, set. 2024
Lembro, por exemplo, da experiência de Letícia Bassit, que se descobriu
grávida em meio ao processo criativo de
Feminino Abjeto
e trouxe para a cena os
conflitos daquele corpo que se transformava a cada apresentação, e as questões
que ganhavam cada vez mais uma dimensão pública pelo fato de não existir
certeza sobre a paternidade e pela recusa desses possíveis pais em fazer o teste
de DNA. Com suas próprias palavras, a atriz deflagrava em cena os trânsitos do
próprio processo:
Em 2017 iniciamos esse trabalho e ficamos em cartaz em alguns espaços.
Eu fazia um discurso sobre a puta, sobre a prostituição, fazendo um
paralelo com o casamento que, muitas vezes, é também um contrato
econômico implícito. Aí eu tinha esse abacaxi, eu sentava nesse abacaxi,
enquanto cantava um samba no microfone. No meio desse processo
todo, eu engravidei. De uma forma nada romântica, pelo contrário, bem
caótica, intensa, alguns diriam até sem amor nenhum, mas eu posso
garantir que foi cheio de amor. Continuamos em cartaz e eu, grávida,
decidi que continuaria com o discurso da puta e o quebraria revelando a
minha barriga em cena, falando sobre a sombra da maternidade, da
gestação, das dores, das aflições, do medo, dessa relação parasitária que
é carregar um ser dentro de você. Eu não conseguia mais realizar a ação
de sentar e me masturbar no abacaxi. Então eu passei a usar o abacaxi
como uma bucha, eu dizia que era importante esfregar o abacaxi no peito
pra calejar o bico e facilitar a amamentação. Era o que o médico dizia...
Eu mostrava a minha barriga e perguntava pro público: “Você foderia com
uma grávida?”, “Você acha que esse filho é meu?”. Continuamos em
cartaz e aí meu filho nasceu. Continuamos em cartaz e eu decidi
abandonar o abacaxi e entrar em cena com o meu filho comigo. Eu não
tinha com quem deixar ele, então ele estava sempre comigo. Entrei com
ele em cena, amamentando, e meu discurso passou a ser sobre o
puerpério, sobre o pós-parto, sobre o medo, o terrível, a sombra absurda
desse momento que poucos falam e que precisa ser dito! Eu fiquei
sozinha com o meu filho, sozinha. Num momento que eu precisava de
gente do meu lado, me ajudando a levantar da cama, porque eu tava com
um corte de sete camadas no meu ventre. Eu olhava pro meu filho, um
estranho familiar, e eu não conhecia ele. Nem ele me conhecia... eu não
sabia o que fazer com ele. Hoje eu tô aqui com esse abacaxi na mão. Às
vezes eu tenho vontade de voltar pra figura da puta, cantar um samba no
microfone e me masturbar no abacaxi. Eu não sei muito bem o que eu tô
fazendo aqui agora, tô num abismo, no vazio. Tô bem perdida. Eu tô
escrevendo um livro. Eu moro sozinha com meu filho, numa casa de
muro baixo, só eu e ele. Uma casa de muro baixo que qualquer um pode
pular e entrar. Eu tô com medo, nunca senti medo, mas agora eu sinto.
Meu filho tá com seis meses e eu não sei quem é o pai do meu filho. Uma
fila de DNA. Resultado negativo. Restam duas possibilidades de
paternidade. E os dois caras sumiram, não sei onde eles estão. Eles dizem
que um filho não interessa pra eles, um filho comigo não interessa pra
eles. Eles dizem: “Esse filho não é meu, eu não gozei”.