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Retornar à terra:
corpas-território e indígenas artes em Pindorama
Flavia Pinheiro Meireles
Para citar este artigo:
MEIRELES, Flavia Pinheiro. Retornar à terra: corpas-
território e indígenas artes em Pindorama.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0105
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Retornar à terra: corpas-território e indígenas artes em Pindorama1
Flavia Pinheiro Meireles2
Resumo
Este artigo aborda o fenômeno das artes indígenas, ou indígenas artes, por meio de
uma bibliografia multidisciplinar e da breve análise de três trabalhos artísticos de
Barbara Kariri, Juão Nyn e Iris e Iara Campos. Discutimos como a arte tem sido um
lugar retomado, subvertendo os sentidos da colonialidade (Quijano, 2005) que
constitui o campo artístico institucionalizado (Meireles, 2020). Reflete-se, a partir da
noção de
corpa-território
, sobre os caminhos originários das artes indígenas
reconhecendo seus elementos e cosmopercepções (Martins, 2021).
Palavras-chave
: Indígenas artes. Corpo-território. Branquitude. Ambiente.
Returning to the land: body-territory and indigenous arts in Pindorama
Abstract
This article addresses the phenomenon of indigenous arts through a
multidisciplinary literature and a brief analysis of three artistic works by Barbara
Kariri, Juão Nyn e Iris e Iara Campos. We discuss how art has been a reclaimed space,
subverting the senses of coloniality (Quijano, 2005) that constitutes the
institutionalized artistic field (Meireles, 2020). Based on the notion of body-territory,
we reflect upon indigenous paths of indigenous arts, acknowledging its elements and
cosmoperceptions (Martins, 2021).
Keywords:
Indigenous arts. Body-territory. Whiteness. Environment.
Volviendo a la tierra: cuerpo-territorio y artes indígenas en Pindorama
Resumen
Este artículo aborda el fenómeno de las artes indígenas a través de una bibliografía
multidisciplinaria y un breve análisis de tres obras artísticas de Barbara Kariri, Juão
Nyn e Iris e Iara Campos. Discutimos mo el arte ha sido un lugar reclamado,
subvirtiendo los significados de colonialidad (Quijano, 2005) que conforman el
campo artístico institucionalizado (Meireles, 2020). Se reflexiona desde la noción de
cuerpo territorio en los caminos originales de las artes indígenas, reconociendo sus
elementos y sus cosmopercepciones (Martins, 2021).
Palabras clave
: Artes indígenas. Cuerpo-territorio. Blancura. Medio ambiente.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Mariana Patrício Fernandes, Doutora em
Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Mestre em Literatura Brasileira
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Graduação em História pela mesma universidade.
2 Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo (USP) no projeto Mecila (UzK/AL). Doutorado em Comunicação
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrado em Artes Visuais pela UFRJ. Graduação em
Licenciatura Plena em Dança pela Faculdade e Escola Angel Vianna (FAV). Professora Permanente do Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ). flavia.meireles@cefet-rj.br
http://lattes.cnpq.br/1994392586910147 https://orcid.org/0000-0002-7284-4056
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Introdução: vira-mundo
Podemos afirmar que, mais intensamente desde 2017, temos visto insurgir
uma cena com protagonismo indígena que vem nutrindo e dando novo fôlego aos
sistemas da arte. Têm crescido o número de artistas, curadores/as e intelectuais
indígenas – notadamente nas artes visuais e no cinema, mas não somente, como
procurarei sustentar que, com suas produções e modos de agir coletivizados e
ligados às lutas por memória e território dos movimentos políticos indígenas,
abrem fissuras num antes monolítico bloco de presenças brancas e referenciais
eurocentrados que estruturaram as artes institucionalizadas no Brasil (Meireles,
2020). Cabe dizer que o próprio termo “indígena”, cujo significado é “gerado da
terra”, é uma identidade política que organiza a luta de mais de 305 povos no Brasil
mas que, em si, não descreve os povos que aqui vivem. Adotaremos tal nomeação
somente para entrever as lutas comuns entre esses povos, mas procurando
distinguir suas cosmopercepções (Martins, 2021), à medida que avançamos.
É sensível, então, uma mutação no campo das artes que, segundo a crítica
de arte e professora Alexandra Simões Paiva (2022) reflete uma virada decolonial
da arte brasileira, “uma vez que mudanças extremamente significativas nas formas
de operar de diversas instituições dedicadas às artes visuais no Brasil podem
ser detectadas” (Paiva, 2022, p. 49). A ela me somo nesta percepção alargando, no
entanto, que não é somente nas artes visuais que tal virada pode ser notada, ao
que sustento que processo similar acontece no campo das artes
cênicas/performáticas/corporais3.
Contudo, é preciso ter em mente que uma diferenciação entre a adoção
das perspectivas decoloniais - levadas a cabo pelo grupo
Modernidade/Colonialidade (Quijano, 2005, entre outros) em várias universidades
do Norte Global a partir dos anos 2000 -, e a adesão à perspectiva feminista
decolonial (Lugones, 2010; Miñoso, 2022, entre outras), às perspectivas indígenas
(Benites, 2023, Esbell, 2009, Matias, 2024, Silva, 2020, entre outres) e contra-
coloniais (Santos, 2015, 2023), que nuançam ainda mais as alianças, distâncias e
3 Usarei como intercambiáveis os termos: artes cênicas, artes da cena, artes do corpo, artes corporais, artes
performáticas e artes da performance ciente, no entanto, de suas diferenças. O uso neste texto aponta para
um horizonte comum a esses campos.
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interseccionalidades (Collins, Birge, 2020) das teorizações decoloniais.
Numa primeira mirada, entretanto, podemos argumentar que essas
perspectivas têm como marco comum a colonização das Américas no século XVI
como fenômeno reconfigurador do sistema-mundo (Quijano, 2005), das próprias
noções de Europa e, com isso, todo um reposicionamento geopolítico em escala
global, do qual ainda somos tributários. Em vez de tomar como crivo a Revolução
Industrial na Europa do século XVIII para conceber uma modernidade tardia, como
parece mais consensuado, essas perspectivas deslocam temporal-espacialmente
seus marcos para a imposição da colonização e do capitalismo em escala global,
interseccionando os conceitos de raça, de gênero e de etnia para explicar a
imposição de uma hierarquização entre europeus e não-europeus.
Voltando a Paiva (2022), se faz importante perceber que pelo menos dois
fatores contribuem para a percepção de uma mutação recente no sistema das
artes:
A virada decolonial pode ser atestada através de dois fatores bastante
explícitos e inter-relacionados no sistema da arte brasileira
contemporânea: 1) o surgimento expressivo de artistas afro-
descendentes, indígenas e LGBTQIA+ que explicitam em suas poéticas as
temáticas decoloniais; 2) o aumento significativo de ações com uma
conduta decolonial em espaços de representatividade, com curadorias
lideradas por pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ (Paiva, 2022, p. 50).
Tratarei, neste artigo, das produções indígenas nas artes
cênicas/performáticas/corporais em articulação com condutas mais orientadas
por uma mescla de
práxis
decoloniais, indígenas, feministas decoloniais (Lugones,
2010; Miñoso, 2022), transfeministas (Leal, 2019) e contra-coloniais (Santos, 2015,
2023). Para isso, olharei a produção des artistas Bárbara Matias Kariri (CE), Juão
Nyn (RN/SP) e da dupla Iris e Iara Campos (PE) em seus respectivos trabalhos
Ané
das Pedras
(2011),
Tybyra
(2020) e
Arreia
(2020). Tais trabalhos fincam o nas
artes indígenas por caminhos distintos: Matias Kariri desenvolve uma Trilogia da
terra, com sua perspectiva de insurgência contra o feminicídio das corpas e
ressaltando a agência não-humana (Matias, 2024); Nyn faz sair da boca de Tibira
uma videoperformance e livro nos quais, por quatro cenas, narra-se o que Tibira
teria dito desde sua captura à sua morte, amarrado à boca de um canhão em 1614
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em São Luís (MA); e Íris e Iara Campos articulam o ritual da jurema com a
manifestação popular dos Caboclinhos, oferecendo
Arreia
ao Caboclinho 7
Flexas[
sic
]4. Esses trabalhos, produzidos recentemente, deixam ver a pertença
indígena por meio da performance/cena e reelaboram, cada um a seu modo, os
sentidos das artes que fazem, enriquecendo o
sentirpensar
(Escobar, 2014) e
contribuindo para a quebra de um padrão eurocristão branco (Santos, 2023) nas
artes da cena.
O termo arte indígena vem sendo discutido, adotado e aprofundado nas
produções e reflexões recentes, fruto do impulso dado pelo artista macuxi Jaider
Esbell que, tal como uma flecha virada ao coração do sistema das artes brasileiras,
também recobrou a memória do avô Makunaîmã e os sistemáticos roubos e
apagamentos feitos pelo modernismo brasileiro e suas reelaborações
contemporâneas. Esbell pertenceu ao território de Nova Normandia (RR) e cultivou
o termo “arte indígena contemporânea” (AIC), a partir do qual um grande debate
nas artes se estabeleceu (Esbell, 2016, 2019, 2021; Muller, 2010; Cohn, Kadiweu,
2019; Pitta, 2021, Marcondes, 2023). O termo “manifestações estéticas indígenas”
foi proposto pela curadora Naine Terena (Jesus, Goldstein, 2021), igualmente na
tentativa de marcar presenças e fazeres indígenas de modo singular nas artes e
mobilizado nas exposições que a artista e curadora levou à frente, especialmente
o trabalho realizado na Pinacoteca de São Paulo. Ainda que tenha tido menos
pregnância no âmbito das artes visuais que a AIC, Naine Terena se mostra uma
figura importante na discussão sobre o protagonismo das mulheres indígenas na
arte.
O grupo de pesquisa Waraykuna, liderado por Aline Kayapó e Jamille Payayá
(2023), se insere na discussão sobre as mulheres fazendo uma inversão nos
termos de mulheres indígenas para indígenas mulheres - que nos parece
bastante elucidativa. As autoras argumentam que, antes de serem mulheres, o
marcador da indigeneidade vem primeiro em suas autodenominações e, portanto,
chamam a si mesmas e às suas parentas de indígenas mulheres. Como lemos na
4 Agremiação tradicional de caboclinhos baseada em Recife (PE), levada à frente por Paulinho 7 Flexas, filho
do fundador Mestre Alfaiate que recebeu, em 2008, o prêmio de Patrimônio Vivo de Pernambuco. As artistas
brincam há 20 anos nesta agremiação.
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apresentação do
e-book
que o grupo de pesquisa produziu:
A afirmação da ideia de “indígenas mulheres” é lançada para conduzir
uma atuação na qual, embora se reconheça a importância do debate
feminista, originado na experiência de mulheres europeias brancas e que
atravessa a todas nós, somos, antes de tudo, indígenas. Este
reconhecimento demarca uma maneira própria de compreensão das
relações mulher-homem e entre os gêneros, que não se reduz ou se
circunscreve aos marcadores dos debates da civilização europeia,
embora dialogue, inevitavelmente, com eles. Indígenas mulheres,
dizemos com força, para demarcar nossa condição originária, nossa
parentela, irmandade e vínculos afetivos que nos entrelaçam
espiritualmente (Kayapó, Payayá et al, 2023, p. 14).
Nesta inversão, não somente se marca a indigeneidade mas, com ela,
também infere-se que gênero foi um classificador imposto pela colonização, como
igualmente nos ensina a feminista decolonial María Lugones (2010) em sua
formulação do sistema-mundo da colonialidade de gênero (Lugones, 2007). Aline
Kayapó, em palestra na III Jornada de Feminismo Decolonial, organizada pelo
Grupo de Estudos Contra-coloniais Carolina Maria de Jesus e realizada na
Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em 2022, sustenta que um feminismo
indígena não seria portanto possível, mas que a afirmação de indígenas feministas
estaria mais consoante com as perspectivas originárias5. Esse é um debate
inconcluso que não se refere somente a termos mas, sobretudo, indica
posicionalidades, isto é, lugares a partir dos quais se fala. Por ora, argumento em
favor do termo
indígenas artes
para figurar junto às marcações das presenças
indígenas nas artes anteriormente citadas, amparada pelas reflexões desse grupo
de pesquisa.
No entanto, apesar de novos nomes abrirem perspectivas, por si só eles não
resolvem a questão da persistência da colonialidade e da insidiosa articulação da
branquitude (Bento, 2022) nas artes. Seria então necessário fazer um recuo para
dizer que, a partir das cosmopercepções dos povos desta terra pindorâmica, não
separação entre cultura e arte, sendo este um padrão imposto pela colonização
e ocidentalização dessas terras. Numa estratégia de diálogo com essa tradição
ocidental - hegemônica nas instituições e nas formações de cultura e arte -, os
5 Anotações pessoais da palestra.
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termos
artes indígenas
ou
indígenas artes
, tal como proponho, tornam visíveis as
materialidades e os agentes que reelaboram os sentidos da arte ou, como diz a
curadora e comunicadora Renata Tupinambá (2023), conferem cosmo-sentidos
que extrapolam uma única História da Arte (europeia), reclamam memória desse
território, da ancestralidade e reescrevem a arte a partir dos referenciais mundo
pindorâmico.
Vale repetir que essa negociação entre mundos originários e arte (ocidental)
vem revelando as alianças desta última com uma base monocultora, judaico-
cristã, eurocêntrica e, principalmente, articulada à branquitude (Meireles, 2020).
Tais mascaramentos, naturalizados e tornados norma, dão a impressão de que
determinados corpos estão “mais em casa” que outros (Ahmed, 2012), marcando,
segregando ou expulsando presenças não-brancas dos contextos artísticos
(Meireles, 2020). Quero dizer com isso que os marcadores sociais da diferença,
bem como os dispositivos étnico-raciais, têm servido historicamente à
manutenção de uma hegemonia branca e eurocentrada nas artes, mas que vem
sendo aquebrantada pelos posicionamentos de artistas e agentes não-
hegemônicos. Para esses “corpos em casa” manteremos o masculino e para esses
corpos dissidentes da norma (Meireles, 2020) flexionaremos o gênero para
corpas6
e a ele adicionaremos território, por entender uma contiguidade entre as corpas e
a terra. Tratarei, doravante, dessas corpas-território.
Virando o mundo, cito, a título de referência, uma lista não-exaustiva de
importantes exposições de indígenas artes que, além do protagonismo indígena
trouxeram seminais críticas e contribuições aos campos das artes: a
1a. Mostra
Jaider Esbell de Artes Integradas7
(2011) em Nova Normandia (RR), com curadoria
de Jaider Esbell; a exposição
Mira! Artes Visuais Contemporâneas dos Povos
Indígenas
, no Espaço de Conhecimento da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), Belo Horizonte (MG); no Rio de Janeiro a exposição
Dja Guatá Porã
(2017)8,
no Museu de Arte do Rio (RJ) com curadoria de Sandra Benites, Clarissa Diniz, José
6 Ainda que seja mais usual, no meio artístico e acadêmico, a formulação “corpa”, gostaria de referenciar tal
flexão à semelhança do que a pesquisadora Dodi Leal propõe com sua TeatrA da oprimida (Leal, 2019) e
também a artista Bárbara Matias em sua tese de doutorado (2024).
7 https://galeriajaideresbell.com.br/jaider-esbell. Acesso em: 15 maio 2024.
8 https://museudeartedorio.org.br/programacao/dja-guata-pora-rio-de-janeiro-indigena/. Acesso em: 15 maio 2024.
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8
Ribamar Bessa e Pablo Lafluente,
Re-antropofagia
9 (2019) com curadoria de
Denilson Baniwa e
Nakoada
(2022), com curadoria de Beatriz Lemos e Denilson
Baniwa, no Museu de Arte Moderna (RJ); em São Paulo
Mekrukradjá - círculo de
saberes indígenas10
(2016) no Itaú Cultural,
Véxoa, nós sabemos11
(2020) com
curadoria de Naine Terena, na Pinacoteca de São Paulo e
Moquém Surarî: arte
indígena contemporânea12
(2021), no Museu de Arte Moderna de São Paulo (SP),
além da existência do Museu das Culturas Indígenas em São Paulo, aberto em
2021, fruto dos movimentos políticos das comunidades guarani e gerido em
conjunto pela Secretaria de Economia Criativa de São Paulo, pela ACAM Portinari,
pelo Instituto Maracá e pelo conselho Aty Mirim13.
Nas artes cênicas, podemos destacar as iniciativas do ambientalista e
intelectual Ailton Krenak que, em 1998, produziu o
Festival de Dança e Cultura
Indígena da Serra do Cipó
14 (MG) e, em 2018, realizou a primeira edição do Festival
Te.Pi 15(Teatro e Povos Indígenas), dirigido por ele e por Andreia Duarte, no Sesc
Pompeia (SP). Em seguida, o Festival desenvolveu a plataforma Te.Pi em 2020 que
abrigou uma mostra digital durante a pandemia de Covid-19 e, em 2023, uma nova
edição dessa plataforma foi realizada no Sesc Avenida Paulista (SP), no Museu das
Culturas Indígenas e abrigou ainda o lançamento, pela editora n-1, de uma caixa
com textos dramatúrgicos de indígenas artistas. Ainda nesta cidade, vale
mencionar o Coletivo Estopô Balaio16 que ocupa a Casa Balaio desde 2011 e que
tem em sua maioria integrantes indígenas. Dentre as atividades, além do coletivo
de teatro, formações, festivais, rodas de conversas e outras atividades que
recebem temática e artistas indígenas com frequência. Ainda relevante destacar
9https://enciclopedia.itaucultural.org.br/evento650375/reantropofagia#:~:text=Realizada%20entre%2024%20d
e%20abril,30%20de%20abril%20de%202019. Acesso em: 15 maio 2024.
10 https://www.youtube.com/watch?v=FPCbCGH7w-c&t=1s. Acesso em: 16 maio 2024.
11 https://pinacoteca.org.br/programacao/exposicoes/vexoa-nos-sabemos/. Acesso em: 16 maio 2024.
12 https://mam.org.br/exposicao/moquem_surari-arte-indigena-contemporanea. Acesso em: 16 maio 2024.
13 https://museudasculturasindigenas.org.br/institucional/sobre-o-museu/. Acesso em: 15 maio 2024.
14 http://ailtonkrenak.blogspot.com/2007/04/esse-disco-registrou-o-i-festival-de.html. Acesso em: 16 maio 2024.
15 https://www.outramargem.art/tepi-teatro-e-os-povos-indígenas. Acesso em: 16 maio 2024.
16 https://coletivoestopobalaio.com.br/nossa-historia. Acesso em: 17 maio 2024.
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que o Festival Marco Zero17, de dança em paisagem urbana no Distrito Federal
conta, desde 2023, com a co-curadora indígena Bárbara Matias Kariri e tem
investido na produção indígena especialmente em suas últimas três edições (2022
a 2024). Essas são algumas das iniciativas, numa lista incompleta.
Dentro desse contexto de visibilidade e ocupação indígenas crescentes, este
artigo aborda, uma vez mais, os trabalhos dos seguintes artistas da
cena/performance:
Ané das Pedras
, de Bárbara Matias Kariri,
Tybyra
, de Juão Nyn
e das brincantes de caboclinho Iris e Iara Campos, o trabalho
Arreia
. Lançando
mão de uma bibliografia transdisciplinar, que navega pelo terreno das teorias
decoloniais, dos estudos culturais, das artes e de certas críticas feministas
(decolonial, contra-colonial e transfeminista), este artigo visa articular perspectivas
mobilizadas por indígenas no campo das artes em especial das artes
cênicas/performáticas cuja produção reposiciona, inclusive, o que se
compreende por arte e suas epistemologias.
Corpas-territórios: enraizamento e escuta da terra/ambiente
A partir dessa introdução como vira-mundo, isto é, giro, rodopio, espiralar,
gesto ou virada decolonial (Paiva, 2022) que parecemos testemunhar dos
referenciais eurocentrados e brancos da arte hegemônica, passamos a ter como
ponto de partida não mais o corpo neutro, masculinizado, homogeneizado,
individualizado, inerte e objetificado - mas
corpas
como materialidades inseridas
nos contextos artísticos. Nessa mirada, seria preciso repensar, no limite, as
epistemes desde as quais o campo das artes da cena/performáticas formulou
suas teorizações. Este esforço não é inédito, já que a etnocenologia, os estudos da
performance, a antropologia das artes, os estudos culturais e o campo das
manifestações populares têm lidado com esses desafios de descentramento (Hall,
2014) das subjetividades presentes nas artes.
O que talvez seria uma novidade aqui seria a ancoragem em perspectivas
originárias que virem-mundo das perspectivas hegemônicas da arte, isto é, que
17 https://www.marcozerobrasilia.com. Vale mencionar que sou uma das curadoras deste festival desde a
edição de 2017 juntamente com Marcelle Lago, a criadora e diretora e, ainda, a artista e pesquisadora Ivana
Motta, curadora desde 2022. Acesso em: 17 maio 2024.
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coloquem em xeque o privilégio branco e que não mantenham em separado os
campos das artes (brancas) e esses acima mencionados. Sendo assim, o esforço
é o de realizar o entrelaçamento entre as narrativas do campo hegemônico e dos
campos subalternizados das artes18. Essa narrativa passa pela colonização das
corpas
e dos territórios, como nos ensinam as motrizes culturais afro-brasileiras
(Ligièro, 2012) e indígenas, levando-nos a pensar os trabalhos artísticos deste artigo
a partir da formulação
corpas-territórios
.
Tal formulação nasce do termo
corpo-território
, mobilizado nos contextos de
luta política e acadêmica ligados aos povos indígenas, mas também em diferentes
contextos, a exemplo da geografia feminista (Oliva, 2022) e do feminismo
comunitário (Cabnal, 2010); das perspectivas
queer
ou gênero-sexo dissidentes ou
ainda em formulações assentadas em matrizes africanas e afrodiaspóricas. Ainda
que o acento neste artigo seja nas cosmologias indígenas, cruzamentos com os
campos acima assinalados que, ao seu modo, vão articular esse conceito. Por
exemplo, se olharmos uma inflexão dele para
corpo-terreiro
, vamos perceber que,
de forma afro-referenciada, é criado um espaço de articulação em relação à
ancestralidade dos terreiros de candomblé e umbanda. Como nos ensina Muniz
Sodré (2019), a relação espaço-temporal dos terreiros se ancora nas culturas nagô
e banto, moldando os corpos, temporalidades e espaços segundo essas tradições.
Voltando ao nosso foco, um traço que alinhava as produções das indígenas
artes é a vinculação intrínseca entre corpas e territórios. Tal vínculo pode ser
compreendido de diversas formas: desde a autodefinição e afirmação étnicas
estarem relacionadas ao território, a exemplo das
mulheres-biomas
(Marcha das
mulheres indígenas, 2021) articulando territórios -; passando pelas concepções de
terra que emergem de mundos indígenas, que a compreendem como um
organismo vivo, interconectado, auto-organizado (Shiva, 2003) e como entidade
viva (Krenak, 2019); até a inclusão desse organismo vivo na própria constituição
18 Isso inclui avançar no debate entre arte e artesanato ou arte e artefatos etnográficos, tal como a discussão
sobre repatriação dos objetos saqueados no período colonial (e que abasteceram os museus da Europa)
sejam retornados aos territórios. O caso de Glicéria Tupinambá, com a premente devolução do Manto
Tupinambá parece exemplar: a partir de trabalhos do campo artístico é levado a sério o debate de devolução.
No momento da escrita deste texto, entretanto, novas problemáticas coloniais envolvem o Museu Nacional
e as comunidades tupinambá no acesso ao Manto, nos dizendo que a colonialidade está sempre à espreita.
Tal movimento também com os recentes trabalhos do artista Gustavo Caboco e os fios de algodão, com
em interlocução com o
British Museum
. Fonte: https://www.sdcelarbritishmuseum.org/blog/online-talk-collections-
and-communities-latin-america-and-the-caribbean-at-the-british-museum/. Acesso em: 23 jun. 2024.
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corporal (Benites, 2023), na qual a corpa e ambiente ou entorno são constituídos
de múltiplos elementos, tais como o ar, as águas - lembremos dos rios voadores
Yanomamis -, não-humanos animais, vegetais e minerais em cooperação
sistêmica.
Assim, corpa-território aglutina uma miríade de perspectivas que tem base
comum no enraizamento na terra ou, como diria Krenak (2020, p.4):
Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam se manter
agarrados nessa Terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas
bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na
África, na Ásia ou na América Latina. Esta é a sub-humanidade: caiçaras,
índios [
sic
], quilombolas, aborígenes. Existe, então, uma humanidade que
integra um clube seleto que não aceita novos sócios. E uma camada mais
rústica e orgânica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na Terra. Eu
não me sinto parte dessa humanidade. Eu me sinto excluído dela.
A sub-humanidade, a qual Krenak se refere nessa passagem, são pessoas
cuja humanidade, quando não é negada, está sempre sob suspeita ou como
categoria instável em determinados contextos. O estatuto do migrante e,
especialmente, do refugiado também poderia ser incluído. Os dispositivos
étnico-raciais, de gênero, de classe, território e etc. operam na manutenção desse
estado instável desde a colonização. Ainda que não tenhamos a administração
colonial direta, a colonialidade (Quijano, 2005, Ballestrin, 2013) encontra meios
mais ou menos sutis de se perpetuar, que poderiam ser descritos como
colonialidade do poder, do saber e do ser (Ballestrin, 2013). Aliada à formulação de
corpa-território, temos que o ambiente também entra nessa equação de
rebaixamento, reduzido a um recurso disponível ao “clube da humanidade”
(Krenak, 2019).
Essas são as formas coloniais que as indígenas artes identificam e subvertem,
assentadas em suas próprias cosmologias. Elas nos convocam a diversas formas
de estar com a terra, enraizar-se nela, como propõe o artista Gustavo Caboco
através do poema visual que integra sua exposição “Ouvir à terra” (2022), na Galeria
Milàn, em São Paulo:
Ouvir àterra/ Ou vir à terra/ Ouvir à terra/ Ou virà terra
. Há,
portanto, uma inseparabilidade da terra/ambiente ao que a corpa
ouve/sente/pensa e uma defesa necessária dessa corpa-território aos ataques
normatizados da colonialidade e do racismo genderizado. Ainda podemos pensar
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que essa corpa-território complexifica também a categoria de gênero,
questionando as divisões binárias, a heterossexualidade compulsória e a
cisgeneridade como norma.
Em relação a essas complexificações, o caso de Tibira é exemplar. Tratado
historicamente como o primeiro caso de sodomia (termo do século XVII) do Brasil
no Maranhão, em 1614, Tibira desafia a compreensão ocidentalizada por ser uma
dissidência de gênero-sexo que nubla as categorias de gênero, de sexualidade e,
inclusive, de cisgeneridade, transitando fluidamente entre gêneros e não sendo
possível uma redução às categorias modernas desses marcadores. Além disso,
conceber uma corpa que não se distingue do território e, inversamente, pensar o
território como uma corpa (o corpo das florestas, das águas, etc.) desafia uma
noção antropocêntrica e antropomórfica de humano, incluindo agentes não-
humanos (e espirituais) nessa equação.
Mais uma vez com o artista Wapichana Gustavo Caboco podemos inferir os
sentidos de uma corpa-território, amalgamada e à escuta da terra que imanta as
indígenas artes. No poema
Ouve Wapichana
, desse artista, lemos:
Pé no chão,
pé de ouvido.
Enterra, semente desperta.
Corpo é terra
Ouço a terra. Piso.
Ao alto da terra. Chão.
Morte na terra. Subterrâneo.
Retorno à terra. Caminho.
No próximo tópico, então, retornamos à terra por meio dos trabalhos dos
artistas mencionados analisando, caso a caso, as pluralidades de pertenças,
retomadas, reflorestamentos e regenerações dessa corpa-território.
Retornar à terra em Pindorama
Numa narrativa muito pouco ensinada nas formações em artes cênicas, o
guarani Kaká Werá Jecupé (2011) explica como o teatro foi usado como ferramenta
artística que auxiliou na catequização/colonização. Segundo ele:
Com a chegada dos jesuítas, especialmente do padre José de Anchieta,
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inicia-se um trabalho de adaptação, nos autos, no teatro que se fazia na
época, para implementar o seu sistema de ideias, implementar suas
verdades junto aos guaianás. Esses autos forçavam as crianças guaianás
a representar, forçavam os chefes dos guaianás a representar, criando
um palco, criando um espaço, criando o que foi chamado de colégio. O
grande centro de educação do século XVI dos jesuítas foi o teatro, que
chamavam de colégio. Os índios representam a morte deles mesmos,
porque José de Anchieta os coloca como personagens do mal. Aimberê
e Cunhambebe representam o mal, representam os demônios. Os pajés
eram representados como o próprio diabo (Jecupé, 2011, p. 69).
Jecupé, nesse mesmo texto, narra como o teatro desestruturou cosmovisões,
impondo valores cristãos e noções que inexistiam nas culturas originárias, tais
como as noções de mal, de inferno e de gêneros binários e excludentes, resultando
numa imposição de um modo de estruturar a realidade que exaltava valores
eurocristãos (Santos, 2023) e condenava práticas (etnocídio) e existências
orginárias (genocídio). Segundo a pesquisadora Geni Núñez, não há etnocídio sem
genocídio e vice e versa. Essa autora prefere chamar o que ocorreu com a
colonização de etnogenocídio (Longhini, 2023). O artista potiguara Juão Nyn
retoma essa narrativa histórica do teatro para dizer que, com sua obra Tybyra
(2020), realiza um contra-teatro, neutralizando e subvertendo esse destino
catequizador do teatro em sua primeira recepção, que forjou o Brasil em
detrimento de Pindorama. Leio contra-teatro à luz do mestre Nego Bispo (2022),
isto é, pensando que contra-colonialidade diz respeito aos povos que não foram
colonizados/domesticados: quilombolas e indígenas. Isso difere das teorias
decoloniais, ainda segundo o Bispo, nas quais o esforço é o de descolonização e
(re)aprendizado dos modos de vida ligados à T(t)erra. Nego Bispo, tal como Juão
Nyn (Silva, 2020), aponta para a sobrevivência das culturas da terra (quilombolas
e indígenas) que atravessaram a colonização e atravessam a colonialidade por
meio da manutenção e transformação de suas práticas, segundo suas
cosmopercepções. A partir daí, um contra-teatro não descoloniza o teatro, mas o
transforma. E, com ele, dá vazão às cosmopercepções originárias e recria modos
de articulação com as ferramentas artísticas ocidentais. Ainda segundo Jecupé
(2011), esclarecendo o modo originário de tratar representação, um tema que tem
longa tradição nas artes da cena:
A representação para os povos indígenas é uma maneira de dialogar com
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as outras consciências e sistemas de vida da Terra. O ser humano não-
indígena considera o seu reino o único inteligente entre os quatro reinos,
mas os povos indígenas consideram os reinos vegetal, animal, mineral e
humano como uma tribo. Para haver diálogo entre esses reinos ritos,
representações e celebrações. Para haver conexão, troca e interação
entre esses reinos é que existem as representações indígenas, para
fortalecer e reintegrar, para reconhecer, penetrar em determinados níveis
e portais da consciência. Isso é o que significa para nós um rito, uma
representação, uma celebração: compartilhar a alma das coisas, a
essência das coisas (Jecupé, 2011, p. 71).
Sabemos que representação, rito e
performance
remetem a um fundante e
longo debate nas artes da cena/performática/corporais e investigamos, neste
artigo, os sentidos conferidos pelas indígenas artes para tais debates. Segundo
Jecupé (2011) esses termos são ativadores da interação entre os mundos. É com
essa perspectiva que analiso
Ané das Pedras
(2011), de Bárbara Matias Kariri como
um dos momentos de sua
Trilogia de Performance da Terra
(Ané das Pedras,
Uru’ku e Radynhari INDIGENOUS),
realizadas em 2011, 2019 e 2021 respectivamente
.
É a própria artista quem formula os sentidos das indígenas artes. Ela escreve:
A arte como linguagem não é oriunda dos Povos Originários, porém,
somos Povos de rituais, de acariciar em repetição o na terra, de contar
história experimentando as intenções vocal e emocional, de desenhar
sobre a pele, pedra e outros suportes mais atualizados. Então, penso que
toda vez que o indígena sobe no palco ele está contra-colonizando essa
linguagem porque intrinsecamente estamos subvertendo o seu propósito
ao entrar nesse país, que foi nos castrar. (Matias, 2024, p. 155)
Ané das Pedras
é uma performance de rua realizada pela artista kariri Bárbara
Matias, pela liderança e rezadeira kariri-xocó Idiane Crudzá e pelo artista Joedson
Kariri. Ela consiste na entrega de pedras de diversos tamanhos e cores e convida
o participante a plantá-las, cavando um buraco perto de uma árvore. Lá, a
liderança Idiane Crudzá toca nas pedras, conversa com as pessoas, fuma seu
cachimbo, conselhos às pessoas e, ao final, as pedras são enterradas e é
realizado um toré19. Segundo a artista, as performances da Trilogia da terra “[...] são
obras que discutem a violência ao território e ao feminino, o acionamento da cura
às nossas corpas e reflorestamento do território.” (Matias, 2024, p.34). A artista
observa uma desconexão com a terra, em sentido material:
19 Ritual comum aos povos indígenas situados no Nordeste, com cantos, danças e rezas.
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Quando vamos fazer
Ané das Pedras
em algum festival, a maior
dificuldade para um produtor é encontrar na cidade uma árvore sem
concreto debaixo. O que revela que estamos cada vez mais descuidados
e desconectados da mãe natureza (Matias, 2024, p.139).
Tive a oportunidade de testemunhar
Ané das Pedras
com Bárbara Matias e
Idiane Crudzá no Festival Marco Zero em Brasília, no ano de 2022. Ela foi
realizada na Torre de TV do Plano Piloto, onde Bárbara caminhava desde a feirinha
da Torre, passando pela própria torre e Idiane esperava os participantes no
gramado em frente à fonte, onde se situa uma árvore que sombra generosa a
quem se coloca embaixo.
O convite feito aos participantes de coletar e plantar as pedras, confere
protagonismo ao reino mineral, que a pedra é o veículo que liga as pessoas entre
si performer, liderança e participantes que as liga à terra, em suas
materialidades da árvore e do solo. O que pode querer dizer escutar a pedra? O
que o chão que pisamos quer nos comunicar? A performance abre nossos
sentidos para nossas habilidades conectivas em relação ao entorno, sem
hierarquizar humanos e não-humanos, mas sim em colaboração sistêmica. É um
convite ao invisível por meio das pedras, árvores, caminhar coletivo, reza e toré.
Mas esse caminho não é realizado sem obstáculos. Era o ano de 2022, último
ano do governo Bolsonaro e ano de eleição presidencial. Naquele ano, habitar a
rua - mesmo para um Festival que se dedica a tal tema desde 2006, com as
devidas autorizações necessárias junto ao poder público -, foi uma tarefa árdua.
Refiro-me à presença da polícia militar nas ruas, o que, algumas vezes gerou
constrangimento das autoridades policiais junto à produção executiva do Festival.
Na apresentação de
Ané das Pedras
houve uma presença policial mais ostensiva
que o habitual. Mesmo sendo o final da manhã de domingo, onde a torre de TV é
bastante segura e cheia de visitantes, a apresentação desse trabalho causou
incômodo nas autoridades policiais.
Diferentemente das abordagens policiais mais corriqueiras, com agentes
pedindo explicações para o uso dos espaços urbanos, nesse dia a polícia montada
apareceu quase no final da performance e colocou-se próxima à árvore onde
estava ocorrendo o toré. Por que aparece um policiamento ostensivo quando
corpas-território tomam protagonismo nas ruas? O que presenças indígenas e um
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toré teriam a oferecer de perigo para que a polícia montada aparecesse, com sua
presença espetaculosa e intimidadora? Parece que a performance ativou não
somente os envolvidos diretamente na ação, mas também o aparato policial que,
naquele ano, estava mais presente que em anos anteriores. Para um trabalho que
discute as violências contra as corpas-território, essas violências nem sempre
estão nas corpas, mas se originam da estrutura e da institucionalidade que busca
normatizar os espaços públicos, cujo braço armado (ou montado) da polícia é sua
mais evidente expressão.
Voltando aos sentidos das indígenas artes, Matias (2024) afirma que sua arte
tem a ver com um “alembramento”, isto é, um direito à memória e um trabalho
ativo sobre e com essa memória ancestral. O que resulta dessa memorialização é
justamente uma regeneração e “reparação das violências coloniais” (Matias, 2024,
p.44). E conclui:
Talvez, a arte feita por indígenas esteja convocando os não-indígenas a
esse (des)regularmento da narrativa reta e branca feito açúcar que
estou/estamos acostumados, uma arte que morde feito serpente (para
se defender) e que seu veneno pode ser letal mas também é cura (Matias,
2024, p.45).
Trabalhando a corpa-território a partir da produção
Tybyra
(2020) -
videoperformance20 dirigida por Renato Carrera e livro escrito pelo artista potiguara
Juão Nyn -, ressaltamos o caráter dissidente de gênero-sexo das corpa-territórios.
Antes disso, vale narrar o caso de Tibira e a recriação que Nyn faz, retomando esse
caso histórico. Como referido, Tibira foi considerado o primeiro caso de sodomia
de que se tem registro no Brasil. Ocorrido no século XVII, tais casos eram
documentados em instâncias penais e ligados aos processos jesuíticos de
catequese. Segundo Luiz Mott (1995, p.52):
[...] em São Luís, logo no primeiro ano após a chegada dos franceses,
exatamente em 1613, foi condenado à morte o primeiro homossexual [
sic
]
de que se tem notícia em nossa história. Trata-se de um índio [
sic
]
Tupinambá, tibira, acusado de ser praticante contumaz do abominável
pecado de sodomia. Para limpar a terra de tão execrado costume, o infeliz
silvícola foi preso com o beneplácito dos Capuchinhos franceses e
amarrado na boca de um canhão, que, com o estourar do pelouro,
espalhou seu corpo pela Baía de São Marcos.
20 Pode ser visualizada em: https://tepi.digital/tybyra-brasil-2/. Acesso em: 24 jun. 2024.
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O pesquisador Luiz Mott classifica Tibira como homossexual, porém, à época,
não havia essa nomenclatura, já que ela foi fruto dos movimentos civis por direito
no século XX. Ademais, um longo debate acerca das sexualidades indígenas
(Fernandes, 2017) que não terei oportunidade de aprofundar nesse texto.
Recentemente um coletivo indígena LGBT nomeia-se, justamente, Tybyra21 , do
qual o artista Juão Nyn também faz parte e que tem feito movimentos
importantes junto à comunidade LGBT do Acampamento Terra Livre, reunião anual
do movimento indígena em Brasília, que completou 20 anos em 2024. Nyn retoma
Tibira substituindo a letra i pela
y
. Ao longo do livro e em toda produção do
potiguara, a proposta é indigeneizar a língua portuguesa, substituindo-lhe pela letra
sagrada y, que se refere, na língua guarani, às águas e a tudo o que é úmido.
Tratando da videoperformance - uma leitura dramatizada do livro homônimo
e produzida no contexto da pandemia de Covid-19, em 2020 -, Tybyra é um
personagem distribuído na corpa de quatro atores/atrizes indígenas: Barbara
Matias, Yamo Apurinã, Kay Sara e José Ricardo que, por meio de quatro cenas
atuam como Tybyra, desde seus hábitos, passando por sua captura e terminando
na boca do canhão. O livro é escrito em tupi-guarani com tradução para um
português com y (
potyguês
, segundo Nyn). Selecionei três trechos, da cena final,
com Tybyra amarrado na boca do canhão e as palavras que ele teria dito. No
primeiro trecho, Tybyra fala aos parentes presentes:
Vão embora parentes, arreda o pé, vão ... Cuyda, cuyda. Vocês não
precysam ver ysso. Quero que fiyque na memórya de vocês lembrança
da rrente nas festa, dos banho de mar, de ygarapé, dos rytuays tudo. Das
noytes ao redor da fogueyra. Ver o que eles ynventaram pra mym, pra
gente, é continuar a contaminar a mente. Cuyda, avya, vamo, xyspa daquy.
deyxem plantando na mente os momentos mays lyndos entre nós.
lascado ... Num deyxe ysso atyngyr vocês. Quando ynteyrar o prymeyro
ano do meu encantamento, façam uma festa! (Silva, 2020, p.87).22
A fala de Tybyra ressalta a vivência sem o adestramento colonial (Santos,
2023) e busca cura da violência iminente e traumática que está por ocorrer.
uma recusa em aceitar os padrões impostos e uma afirmação étnica que são o
que Tybyra quer deixar para os parentes. Num outro trecho Tybyra conversa com
21 https://www.instagram.com/indigenaslgbtq/. Acesso em: 24 jun. 2024.
22 Todos os “erros” ortográficos das citações do livro são onomatopeias e modos de escrita propostos por Nyn.
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um parente, que parece estar sentindo vergonha dos motivos da condenação de
Tybyra. Ele mesmo responde a isso:
Jeropaty não é o demônyo, Anhã não é o dyabo. Eu não sou o ynferno,
eles são encantados e a gente precysa entender ... Olhar de outra forma
... A natureza nos ensyna todo dya que não existe fronteyra entre o
sagrado e o profano. Tu se enganando ... Não yrmão ... Não escute eles,
me entenda ... Eu não quero ter corpo de mulher, os cabelos longos, não
é ysso ... (Silva, 2020, p.89-90).
Mais uma vez vemos como é justamente o olhar colonizador quem imputa
os gêneros binários e suas performatividades (“corpo de mulher”) e feminilidades
(“os cabelos longos”). Em momento anterior Tybyra conversa com o guarda da
cela, reconhece-o como uma das pessoas que o vinha visitar em casa para o sexo
e relata como sua casa era aberta a esses contatos.
O terceiro trecho selecionado é sua fala final, antes do fim do livro e da peça,
em que lemos:
Day-me, porém, um pouco de petun, quero fumo para que eu morra
alegremente, com voz e sem medo. Quero petun e tatá. É mynha forma
de dar as mãos ao fogo que me encantará. Atyrem! Atyrem enquanto eu
dou as mãos aos meus ancestrays. Cada pedaço do meu corpo esfolado
será semente, serey terra. Também serey fumaça, também vagarey pelos
ares, lyvre feyto um vento forte ... E essa ventanya um dya volta, em
outros tempos, de outra forma! Cheya de fome, brocada por Justyça!
(Silva, 2020, p.93).
Tybyra ressignifica sua morte, assentando-a nos encantados e em seu
retorno à terra, bem como seu pedaço de corpo virando semente, de onde
brotarão mais tybyras. Essa corpa-território cumpre seu destino e curva o tempo
(Martins, 2021), espiralando as temporalidades, de mãos dadas aos ancestrais,
virando fumaça e ventania. O corpo virando terra. Relembrando a parte final do já
citado poema “Ouve Wapichana”:
Ouço a terra. Piso./ Ao alto da terra. Chão./ Morte
na terra. Subterrâneo./ Retorno à terra. Caminho
. As corpas-território se unem à
terra pois o tempo é cíclico, arredondado, espiralar. Começo, meio, começo, diria
Nego Bispo (Santos, 2023). Estão ligadas aos corpos ancestrais e aos encantados,
ao mesmo tempo em que participam da água, do vento, da mata. Esses seriam os
significados mais profundos dessa corpa-território, que as indígenas artes
materializam.
Por fim, passamos ao último trabalho convocado:
Arreia
(2020), da dupla de
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brincantes de Caboclinhos Iara e Iris Campos. As brincantes atuam, há mais de 20
anos, no brinquedo Caboclinho 7 Flexas, baseado em Recife (PE) desde sua
fundação nos anos 1970. De acordo com a pesquisadora Laís Monteiro (2024, p.22):
[...] a linguagem dos Caboclinhos pode ser compreendida como uma
performance cultural de reminiscências indígenas encontrada em alguns
estados do Nordeste brasileiro (Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte
e Alagoas), cuja manifestação primeira teria sido a de apresentação das
danças indígenas aos recém-chegados europeus. Entretanto, esses
gestos históricos desvelados no iniciar da experiência colonial nas
Américas podem ter seus sentidos esgarçados.
Gostaria de ressaltar justamente o caráter reminiscente indígena que foi
sendo transformado e mesclado a outros saberes, mas que parece permanecer
vivo pelos modos de ser das comunidades, ainda que a auto-afirmação dos seus
participantes não esteja em primeiro plano. Entramos num terreno arenoso e
movediço, obviamente, mas que traz uma importante contribuição.
À título de esclarecimento, não se trata de afirmar o Caboclinho ou os seus
participantes como indígenas (cabe a eles/elas mesmos/as fazê-lo, se assim o
perceberem) mas sim notar que, devido ao processo de embranquecimento e
tentativa de apagamento colonial, há um direito à memória, a recobrar sua própria
história que pertence a todes que têm ascendência nesse território pindorâmico.
Isso é muito diferente, obviamente, de afirmar-se como indígena, e está sempre
sob o risco de generalizações homogeneizantes que encobrem o racismo anti-
indígena. Um exemplo bastante comum disso é a afirmação: “tenho uma avó que
era indígena, mas não sei de qual povo” ou “que foi pega no laço” (leia-se estuprada
e sequestrada), entre outros. Fiquemos atentos, mas vamos avançar.
Os signos e símbolos que constituem o Caboclinhos como performance
cultural remetem às sobrevivências indígenas, desde o próprio nome da
manifestação que, amalgamada na religiosidade da umbanda e da jurema, traz a
figura do caboclo como protagonista. Perguntamos: quem é o caboclo, ou caboco?
Além de figura da umbanda, caboclo é o indígena que, pela mestiçagem como
processo de apagamento étnico, vai se afirmando como caboclo. Além disso, a
indumentária da performance cultural contém a preaca, instrumento percussivo
em formato de arco e flecha que, tensionados, emite um estalido que dá ritmo ao
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canto e dança, além de cocares, saiotes, sementes e maracás que fazem parte
das culturas indígenas.
Monteiro (2024) cita o Dossiê do Inventário Nacional de Referências Culturais
do Caboclinhos/PE (Dossiê INRC, 2012) na parte especificamente sobre a
manifestação:
Foram verificadas diferentes instâncias de tensões sociais como
questões de clivagens raciais e de classe, tensões de ordem religiosa,
questões relativas à integração dos Caboclinhos ao mercado de bens na
cultura de massa, em contraste com a relativa invisibilidade e exclusão
socioeconômica das comunidades e grupos tradicionais (Dossiê INRC
apud Monteiro, 2024, p.20).
Tal exclusão socioeconômica, também tem a ver com os mecanismos da
branquitude, constituintes da arte hegemônica. É nessa intersecção, entre arte
hegemônica e manifestação popular, que Iris e Iara atuam, já que têm uma dupla
pertença em circular em ambientes cênicos institucionalizados e integrarem o
Caboclinho 7 Flexas.
O trabalho
Arreia
(2020) foi inicialmente recebido23, no contexto da pandemia
de Covid-19, como vídeo-performance no terreiro da casa das artistas, em Recife
(PE). Por meio de um processo de criação que mesclou a experiência das artistas,
o recebimento e guiança de instruções espirituais, o trabalho acontece em torno
de uma árvore, na qual oferendas de frutas e mel são colocadas. O trabalho
consiste em uma longa e vigorosa preparação para a saída do Caboclinhos, na qual
cada elemento da cena (ou cada entidade) são cuidadosamente manejados/as
pelas artistas, desvelando uma série de camadas até a composição do traje e
estado dessa corpa-território Caboclinho. Elas recorrem à gestos, danças, gritos
de guerra, instrumentos percussivos e pedidos de proteção que, ao som de uma
elaborada trilha sonora, especializada e cheia de silêncios, “cheganças” de sons de
flautas, de coletivos percussivos, de som da mata e vai enovelando o espectador
pouco a pouco. Na última cena do trabalho recorrem a um grito de guerra, em
jogral, em que ouvimos:
Que caboco são vocês?
Sete Flexas
Sete flexas no alto daquela serra pede paz ou guerra?
23 Segundo as artistas, o processo de feitio do trabalho também foi por meio de um trabalho espiritual (notas
de conversa pública com as artistas no Festival Marco Zero, em 2022).
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21
Guerra!
[...]
Caboco é esse que tanto chora?
É Sete flexa que vai embora! (2x)
(transcrição de vídeo cedido pelas autoras para este artigo, 2022).
Essa corpa-território caboclinha mistura guerra e dança, preparação e
proteção, oferenda e agradecimento espirituais-cênicos. O trabalho é um rito, exige
das artistas um engajamento terreno e uma conexão espiritual por meio do
Caboclinho que se expressa em dança, gasto de energia, corpas suadas e
celebração. Homenageando o 7 Flexas, Íris e Iara nos oferecem sua dança como
quem oferece comida bem cozida, como quem assenta ou arreia forças na terra.
Ainda que não diretamente afirmado como indígena arte, muitos elementos e
modos desse trabalho têm parentela com que procurei discorrer até aqui.
No Festival Marco Zero de 2023, pude testemunhar a apresentação de
Arreia
ao lado do Refeitório Universitário da Universidade Federal de Brasília, num
gramado e ao redor de uma palmeira. Ao ar livre, com a incidência do sol e da
natureza circundante, o trabalho ganha contornos integrado visualmente à terra.
Depois da apresentação foi realizada uma conversa com o coletivo indígena desta
universidade, além de parentes de fora da universidade que vieram prestigiar, tal
como Ruan Guajajara, que liderava a
ball-room
ancestral no território do Mercado
Sul. Nessa conversa, as artistas encontraram pontos em comum com os/as
indígenas presentes, refletindo sobre a atuação cênica relacionada a essas corpa-
territórios.
Considerações Finais
Este artigo procurou abordar o fenômeno das artes indígenas, ou indígenas
artes, por meio de uma bibliografia multidisciplinar e da breve análise de três
trabalhos artísticos. O intuito foi o de estender a conversa sobre os caminhos
originários das artes indígenas bem como reconhecer seus elementos e
cosmopercepções. Recobrando Matias, essas análises têm a ver com retomadas,
no sentido material e subjetivo:
As retomadas firmam a ancestralidade, na busca do resgate da etnia, da
língua, ocupação do território ancestral/originário e fortalecimento das
cosmovisões que são repassadas pelos troncos velhos (avós, pais e o
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22
ensinamento da natureza) (Matias, 2024, p.39).
Outro artista relevante, ainda que não tratado neste artigo, sobre arte indígena
é Denilson Baniwa. Segundo ele, a arte indígena é um direito de resposta, uma
redução de danos do processo colonizador (Denilson
apud
Matias, 2024). O