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Fálica
de Ana Luisa Santos:
uma perfomance do atrito, um contramonumento
Sandra Bonomini
Para citar este artigo:
BONOMINI, Sandra.
Fálica
de Ana Luisa Santos: uma
perfomance do atrito, um contramonumento.
Urdimento
– Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0107
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de Ana Luisa Santos: uma perfomance do atrito, um contramonumento
Sandra Bonomini
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-19, set. 2024
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Fálica
de Ana Luisa Santos: uma perfomance do atrito, um contramonumento1
Sandra Bonomini2
Resumo
Esse artigo analisa e dialoga com a performance
Fálica
da artista visual e dramaturga
brasileira Ana Luisa Santos, na qual propõe-se uma mirada contrassexual e contra-
hegemônica, crítica
do cis-heteropatriarcado como regime dominante de poder. Ao
mesmo tempo conecta-se a proposta da artista, na qual a falência, a queda e a inversão
configuram-se como atributos essenciais a serem contemplados, com o movimento
atual de derrubada, remoção, ressignificação, intervenção, substituição e queda de
monumentos coloniais/racistas/patriarcais, estátuas hegemônicas que representam
horrores do passado, mas cuja presença no espaço público os atualiza.
Palavras-chave
: Performance. Contramonumento. Feminismos. Despatriarcalização.
Fálica
by Ana Luisa Santos: a performance of friction, a counter-monument
Abstract
This article analyzes and engages with the performance
Fálica
by Brazilian visual artist
and playwright Ana Luisa Santos, which proposes a countersexual and counter-
hegemonic perspective, criticizing the cis-heteropatriarchy as the dominant regime of
power. Simultaneously, it connects with the artist's proposition where bankruptcy,
downfall, and inversion emerge as essential attributes to be contemplated. This
connects with the current movement of toppling, removing, resignifying, intervening,
replacing, and toppling colonial/racist/patriarchal monuments, hegemonic statues that
represent past horrors but whose presence in public spaces updates them.
Keywords:
Performance. Countermonument. Feminisms. Depatriachalization.
Fálica
de Ana Luisa Santos: una performance del roce, un contramonumento
Resumen
Este artículo analiza y dialoga con la performance
Fálica
de la artista visual y dramaturga
brasileña Ana Luisa Santos, en la que se propone una mirada contrasexual y
contrahegemónica, crítica del cis-heteropatriarcado como régimen dominante de poder.
Por otro lado, se conecta la propuesta de la artista en la cual la falencia, el acto de caer
y la inversión constituyen atributos esenciales a ser contemplados, con el movimiento
actual de derrumbe, remoción, resignificación, intervención, substitución y caída de
monumentos coloniales/racistas/patriarcales, estatuas hegemónicas que representan
horrores del pasado, pero que son actualizados por su presencia en el espacio público.
Palabras clave
: Performance. Contramonumento. Feminismos. Despatriarcalización.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Paola Lopes Zamariola. Doutorado,
mestrado e graduação em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Especialização em Práctica
Escénica y Cultura Visual pelo Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia (MNCARS), e em Artes Visuais pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Escola de Arte Dramática da Universidade de
São Paulo (USP). paola.lopes.zamariola@gmail.com
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Artes Cênicas pela UNIRIO. Especialização em Movimento e Ação: Arte da Performance pela Faculdade Angel
Vianna (FAV). Graduação em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidad Católica del Peru (PUCP/Peru).
bonominisan@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9666749981630709 https://orcid.org/0000-0001-7032-165X
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Esse artigo nasce de uma parte do terceiro capítulo da minha tese de
doutorado3 defendida em janeiro deste ano.
Dri Azevedo, autore do artigo
Corpo-atritável ou uma nova epistemologia do
sexo,
propõe a “epistemologia do atrito”, uma forma de conhecimento que
escaparia da lógica falocêntrica e eurocentrada, apontando para outras formas de
ver e de pensar as práticas sexuais, e também outras esferas da vida como os
afetos, as relações humanas e de poder e dominação. Azevedo define o “atritar” -
sinônimo de friccionar, esfregar ou roçar - como “uma economia que pensa a
superfície da pele em sua totalidade como dimensão erótica, para além da
centralidade do genital - o próprio corpo da mulher como esse corpo-atritável,
como produtor de um prazer do atrito” (Azevedo, 2020, p. 308). Pensar no corpo-
atritável leva-nos ao universo sexual e afetivo do lesbianismo. O sexo lésbico,
atritável, e profundamente contrassexual evidencia e visibiliza essa outra
perspectiva de mundo proposta por Azevedo, na qual abre-se a possibilidade de
exercitar tal processo descolonizador do pensamento, do ser e do corpo.
A performance
Fálica
faz parte de uma série de trabalhos criados por Santos
-
Espécie
(solo de Igui Leal),
Viril e Queda Livre
(dramaturgia inédita de Santos com
Daniel Toledo) - sobre masculinidades, questão que ocupa um importante espaço
de investigação e criação na vida da artista, “um laboratório de criação e de luta
política”. (Santos, 2018, entrevista)
A série de trabalhos sobre masculinidades em que a artista vem transitando
desde 2017, tanto a partir da escrita da dramaturgia para performance e para
teatro performativo quanto da performance, propõe a vulnerabilidade, a
fragilidade, a precariedade e o movimento de queda como potências. A coluna
vertebral desses trabalhos é o movimento, com deslocamentos, inversões,
ressignificações, remoção e a urgente necessidade de cair. […] A queda da
estrutura patriarcal-colonial, da capitalização dos afetos, da normatividade, das
dicotomias, dos binarismos, da naturalização sexo-gênero, das ficções identitárias
que violentam, enquadram, nomeiam e diagnosticam. A queda do monumento
3 A minha tese de doutorado " Performances-saberes para fabular a despatriarcalização", foi defendida em
janeiro de 2024 no PPGAC da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
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fálico. O falo falido (Bonomini, 2021, p. 142 - 143).
A performer realiza experimentos coreográficos com um '
dildo
elétrico', um
dispositivo impulsional gasoso, de forma a compartilhar possibilidades
queers
de
leituras fálicas. Santos interage com uma enorme biruta, um equipamento
composto por um tubo de tecido acoplado a um exaustor elétrico. Após sua
interação, as pessoas do público são convidadas a experimentar tais possibilidades
com o falo. Enquanto a ação transcorre, ouve-se uma trilha sonora criada pela
artista, composta de sons variados: sons de guerra, tiros, gente conversando,
máquinas trabalhando, gente transando, ruídos de cidade, de trânsito, pessoas
marchando, sons militares. Ana Luisa Santos entra no espaço com a biruta
desligada, “brocha”, o falo falido.
Uma vez que a biruta é ligada na tomada, esta poderia manter-se ereta 24/7,
ao estilo
Viagra Way of life,
próprio da
era farmacopornográfica
e do atual sistema
econômico ou “capitalismo quente, psicotrópico e punk” (Preciado, 2017, p. 34) da
sociedade contemporânea onde nossos corpos e afetos são a principal
mercadoria, objeto de produção e de consumo. Paul B. Preciado, denomina
Era
farmacopornográfica
ao atual regime de poder e controle do corpo e da
subjetividade, através de substancias farmacêuticas (legais e ilegais) como o
Viagra, a testosterona, o Prozac, omeprazole,
speed,
heroína, etc. e da pornografia.
Fundada na sociedade científica e colonial do século XIX, mas materializada
durante o século XX, a era farmacopornográfica se caracteriza pela produção de
corpos viciados e sexuais, onde “o sexo e todos seus derivados semiótico-técnicos
são hoje o principal recurso do capitalismo” (Preciado, 2017, p. 34).
O filósofo assegura que o capitalismo farmacopornográfico inicia uma nova
era, cujo principal lucro seria (e de fato é), a produção da própria espécie, incluindo
a captura, inclusive, dos desejos e afetos. Quando a performance termina, após a
participação voluntária do público, a artista desliga a biruta e se retira com ela na
mão. Aqui os desejos e afetos, ao invés de serem capturados, conduzem a ação e
trilham caminhos nos quais as mudanças moleculares sugeridas por Preciado são
negociadas, agenciadas no intercâmbio entre a performer e a plateia participativa.
A performance
Fálica
(2018) faz parte da série de trabalhos da artista Ana
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Luisa Santos sobre masculinidades, e foi apresentada dentro da mostra
permanente
Quarta Queer
, que reúne na última quarta-feira de cada mês,
trabalhos de artistas LGBTQIA+ em Belo Horizonte a fim de celebrar manifestações
artísticas em múltiplas possibilidades discursivas.
Fálica
é um jogo de poder, de confronto e luta contra o material bélico, sobre
a necessidade de derrubar os monumentos fálicos ou, pelo menos, de fazer tremer
suas estruturas. Mas, também, simboliza essa cultura falida do mundo que o
capitalismo farmacopornográfico de Preciado ou da cafetinagem de Rolnik (2018)
representa: “é o pau duro no meio da cidade” (Santos, 2018), por meio de
apartamentos em prédios gigantes à venda, venda de carros, ofertas de tudo,
promoções. A performer não paquera a biruta/falo, ela tenta esvaziar seu poder e
convida pessoas da plateia a compartilharem a mesma experiência performática…
ou não. Os modos de interagir com a biruta-falo são múltiplos e variados. É
possível agarrá-la, pular em cima dela, masturbá-la, tocá-la, abraçá-la, correr à
sua volta, compartilhá-la, senti-la, observá-la… Mas como a artista afirma na
entrevista, “[a biruta-falo] sempre escapa”.
Fálica
de Santos, na sua proposta de deslocar a centralidade do falo patriarcal
convida-nos a pensar a partir de outras lógicas ou economias, outros modos de
ver e entender não a sexualidade mas os afetos e as relações de poder, uma
economia ‘do atrito’ na qual, como coloca Dri Azevedo, pensa-se “a superfície da
pele em sua totalidade como uma dimensão erótica” (Azevedo, 2020, p. 308). O
‘corpo atritável’ que Azevedo propõe a partir do sexo lésbico como uma potência
de outra ordem ou lógica, e do lesbianismo como ponto de fuga, foge do binarismo
ativo-passivo, colonizador-colonizado e nos permite, ao menos utopicamente
imaginar um mundo não penetrável (onde penetrável no imaginário cis-
heterossexual seria o corpo feminino), e sim baseado na epistemologia do atrito.
Uma lógica que não tem como ponto de partida o referencial corpóreo
eurocêntrico. Uma lógica que se propõe a apontar para uma nova forma
de ver a prática sexual, mas também que pretende escavar formas de
sexualidade geolocalizadas no contexto brasileiro e latino-americano
(Azevedo, 2020, p. 308).
O trabalho de Santos suscita encontros potentes, passados e presentes, ao
dialogar com criações, processos, performances, inquietações, desejos, angústias,
Fálica
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Florianópolis, v.3, n.52, p.1-19, set. 2024
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etc. de alguns artistas brasileirxs que deixaram - e vem deixando - não apenas
vestígios, mas marcas sonoras e ecos necessários em suas travessias. É assim que
costuro alguns fios existentes entre
Fálica
e, por exemplo, a série
Fábrica Fallus
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(1992-2004) da artista plástica e performer Márcia X (1959 - 2005). A artista criou
uma instalação com diversos pênis de borracha, vibradores coloridos, brilhantes e
lúdicos, variados artefatos fálicos que, por vezes, parecem pessoas, com os quais
critica diretamente a pornografia cis-heteronormativa, a religião católica, e o culto
ao prazer falocêntrico inserido na cultura ocidental da modernidade.
A partir de 1990, a artista centrou seu trabalho na destruição sistemática “de
valores estéticos, éticos e políticos do machismo e da fase mais opressiva da
instituição religiosa do catolicismo” (Falo Magazine, 2021). Entre as diferentes
representações fálicas-lúdicas debochadas que a artista cria em
Fábrica fallus
,
chama a minha atenção uma intitulada “pai e filho” (1997), composta de dois ‘falos
compridos de tecido’: ou dois vibradores forrados em tecido, de cuja base
continuam extensões do próprio tecido.
Os objetos deitados numa mesa parecem duas espadas. Os vibradores pai e
filho parecem colocar em questão uma herança patriarcal que prevalece e
continua a ser reproduzida de geração em geração, justamente aquilo que Santos,
em
Fálica
, tenta desestabilizar. A interação de Santos com seu monumento fálico
traz à lembrança, também, a série de fotografias
Amsterdã Erótica
(1982 / 2017),
do artista multimídia e poeta Paulo Bruscky (Recife,1949). Bruscky intervém no
espaço público e no modo de paródia compõe, com o corpo, duas figuras humanas
de falo gigante, “falos de rua” eretos, outros monumentos passíveis de serem
derrubados, ridicularizados.
Em
Fálica
, por meio da prótese-falo-biruta vermelha-ereta-brocha que entra
em colapso, a artista convida-nos a pensar na falência ou no viril falido por meio
de uma prótese gigantesca. Essa performance, com aquele gesto “brocha” como
possibilidade perturbadora da ordem patriarcal-colonial que a artista nos oferece,
não apenas simboliza a tremedeira ou a espécie de agonia na qual o regime
capitalista cis-hetero-falo-centrado se encontra atualmente - e pela qual estamos
4 Para ver algumas imagens da série Fábrica Fallus acessar o link:
https://issuu.com/falonart/docs/falo16/s/11919278.