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Fálica
de Ana Luisa Santos:
uma perfomance do atrito, um contramonumento
Sandra Bonomini
Para citar este artigo:
BONOMINI, Sandra.
Fálica
de Ana Luisa Santos: uma
perfomance do atrito, um contramonumento.
Urdimento
– Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0107
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Fálica
de Ana Luisa Santos: uma perfomance do atrito, um contramonumento1
Sandra Bonomini2
Resumo
Esse artigo analisa e dialoga com a performance
Fálica
da artista visual e dramaturga
brasileira Ana Luisa Santos, na qual propõe-se uma mirada contrassexual e contra-
hegemônica, crítica
do cis-heteropatriarcado como regime dominante de poder. Ao
mesmo tempo conecta-se a proposta da artista, na qual a falência, a queda e a inversão
configuram-se como atributos essenciais a serem contemplados, com o movimento
atual de derrubada, remoção, ressignificação, intervenção, substituição e queda de
monumentos coloniais/racistas/patriarcais, estátuas hegemônicas que representam
horrores do passado, mas cuja presença no espaço público os atualiza.
Palavras-chave
: Performance. Contramonumento. Feminismos. Despatriarcalização.
Fálica
by Ana Luisa Santos: a performance of friction, a counter-monument
Abstract
This article analyzes and engages with the performance
Fálica
by Brazilian visual artist
and playwright Ana Luisa Santos, which proposes a countersexual and counter-
hegemonic perspective, criticizing the cis-heteropatriarchy as the dominant regime of
power. Simultaneously, it connects with the artist's proposition where bankruptcy,
downfall, and inversion emerge as essential attributes to be contemplated. This
connects with the current movement of toppling, removing, resignifying, intervening,
replacing, and toppling colonial/racist/patriarchal monuments, hegemonic statues that
represent past horrors but whose presence in public spaces updates them.
Keywords:
Performance. Countermonument. Feminisms. Depatriachalization.
Fálica
de Ana Luisa Santos: una performance del roce, un contramonumento
Resumen
Este artículo analiza y dialoga con la performance
Fálica
de la artista visual y dramaturga
brasileña Ana Luisa Santos, en la que se propone una mirada contrasexual y
contrahegemónica, crítica del cis-heteropatriarcado como régimen dominante de poder.
Por otro lado, se conecta la propuesta de la artista en la cual la falencia, el acto de caer
y la inversión constituyen atributos esenciales a ser contemplados, con el movimiento
actual de derrumbe, remoción, resignificación, intervención, substitución y caída de
monumentos coloniales/racistas/patriarcales, estatuas hegemónicas que representan
horrores del pasado, pero que son actualizados por su presencia en el espacio público.
Palabras clave
: Performance. Contramonumento. Feminismos. Despatriarcalización.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Paola Lopes Zamariola. Doutorado,
mestrado e graduação em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Especialização em Práctica
Escénica y Cultura Visual pelo Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia (MNCARS), e em Artes Visuais pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professora da Escola de Arte Dramática da Universidade de
São Paulo (USP). paola.lopes.zamariola@gmail.com
2 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
Artes Cênicas pela UNIRIO. Especialização em Movimento e Ação: Arte da Performance pela Faculdade Angel
Vianna (FAV). Graduação em Artes Cênicas pela Pontifícia Universidad Católica del Peru (PUCP/Peru).
bonominisan@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9666749981630709 https://orcid.org/0000-0001-7032-165X
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Esse artigo nasce de uma parte do terceiro capítulo da minha tese de
doutorado3 defendida em janeiro deste ano.
Dri Azevedo, autore do artigo
Corpo-atritável ou uma nova epistemologia do
sexo,
propõe a “epistemologia do atrito”, uma forma de conhecimento que
escaparia da lógica falocêntrica e eurocentrada, apontando para outras formas de
ver e de pensar as práticas sexuais, e também outras esferas da vida como os
afetos, as relações humanas e de poder e dominação. Azevedo define o “atritar” -
sinônimo de friccionar, esfregar ou roçar - como “uma economia que pensa a
superfície da pele em sua totalidade como dimensão erótica, para além da
centralidade do genital - o próprio corpo da mulher como esse corpo-atritável,
como produtor de um prazer do atrito” (Azevedo, 2020, p. 308). Pensar no corpo-
atritável leva-nos ao universo sexual e afetivo do lesbianismo. O sexo lésbico,
atritável, e profundamente contrassexual evidencia e visibiliza essa outra
perspectiva de mundo proposta por Azevedo, na qual abre-se a possibilidade de
exercitar tal processo descolonizador do pensamento, do ser e do corpo.
A performance
Fálica
faz parte de uma série de trabalhos criados por Santos
-
Espécie
(solo de Igui Leal),
Viril e Queda Livre
(dramaturgia inédita de Santos com
Daniel Toledo) - sobre masculinidades, questão que ocupa um importante espaço
de investigação e criação na vida da artista, “um laboratório de criação e de luta
política”. (Santos, 2018, entrevista)
A série de trabalhos sobre masculinidades em que a artista vem transitando
desde 2017, tanto a partir da escrita da dramaturgia para performance e para
teatro performativo quanto da performance, propõe a vulnerabilidade, a
fragilidade, a precariedade e o movimento de queda como potências. A coluna
vertebral desses trabalhos é o movimento, com deslocamentos, inversões,
ressignificações, remoção e a urgente necessidade de cair. […] A queda da
estrutura patriarcal-colonial, da capitalização dos afetos, da normatividade, das
dicotomias, dos binarismos, da naturalização sexo-gênero, das ficções identitárias
que violentam, enquadram, nomeiam e diagnosticam. A queda do monumento
3 A minha tese de doutorado " Performances-saberes para fabular a despatriarcalização", foi defendida em
janeiro de 2024 no PPGAC da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
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fálico. O falo falido (Bonomini, 2021, p. 142 - 143).
A performer realiza experimentos coreográficos com um '
dildo
elétrico', um
dispositivo impulsional gasoso, de forma a compartilhar possibilidades
queers
de
leituras fálicas. Santos interage com uma enorme biruta, um equipamento
composto por um tubo de tecido acoplado a um exaustor elétrico. Após sua
interação, as pessoas do público são convidadas a experimentar tais possibilidades
com o falo. Enquanto a ação transcorre, ouve-se uma trilha sonora criada pela
artista, composta de sons variados: sons de guerra, tiros, gente conversando,
máquinas trabalhando, gente transando, ruídos de cidade, de trânsito, pessoas
marchando, sons militares. Ana Luisa Santos entra no espaço com a biruta
desligada, “brocha”, o falo falido.
Uma vez que a biruta é ligada na tomada, esta poderia manter-se ereta 24/7,
ao estilo
Viagra Way of life,
próprio da
era farmacopornográfica
e do atual sistema
econômico ou “capitalismo quente, psicotrópico e punk” (Preciado, 2017, p. 34) da
sociedade contemporânea onde nossos corpos e afetos são a principal
mercadoria, objeto de produção e de consumo. Paul B. Preciado, denomina
Era
farmacopornográfica
ao atual regime de poder e controle do corpo e da
subjetividade, através de substancias farmacêuticas (legais e ilegais) como o
Viagra, a testosterona, o Prozac, omeprazole,
speed,
heroína, etc. e da pornografia.
Fundada na sociedade científica e colonial do século XIX, mas materializada
durante o século XX, a era farmacopornográfica se caracteriza pela produção de
corpos viciados e sexuais, onde “o sexo e todos seus derivados semiótico-técnicos
são hoje o principal recurso do capitalismo” (Preciado, 2017, p. 34).
O filósofo assegura que o capitalismo farmacopornográfico inicia uma nova
era, cujo principal lucro seria (e de fato é), a produção da própria espécie, incluindo
a captura, inclusive, dos desejos e afetos. Quando a performance termina, após a
participação voluntária do público, a artista desliga a biruta e se retira com ela na
mão. Aqui os desejos e afetos, ao invés de serem capturados, conduzem a ação e
trilham caminhos nos quais as mudanças moleculares sugeridas por Preciado são
negociadas, agenciadas no intercâmbio entre a performer e a plateia participativa.
A performance
Fálica
(2018) faz parte da série de trabalhos da artista Ana
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Luisa Santos sobre masculinidades, e foi apresentada dentro da mostra
permanente
Quarta Queer
, que reúne na última quarta-feira de cada mês,
trabalhos de artistas LGBTQIA+ em Belo Horizonte a fim de celebrar manifestações
artísticas em múltiplas possibilidades discursivas.
Fálica
é um jogo de poder, de confronto e luta contra o material bélico, sobre
a necessidade de derrubar os monumentos fálicos ou, pelo menos, de fazer tremer
suas estruturas. Mas, também, simboliza essa cultura falida do mundo que o
capitalismo farmacopornográfico de Preciado ou da cafetinagem de Rolnik (2018)
representa: “é o pau duro no meio da cidade” (Santos, 2018), por meio de
apartamentos em prédios gigantes à venda, venda de carros, ofertas de tudo,
promoções. A performer não paquera a biruta/falo, ela tenta esvaziar seu poder e
convida pessoas da plateia a compartilharem a mesma experiência performática…
ou não. Os modos de interagir com a biruta-falo são múltiplos e variados. É
possível agarrá-la, pular em cima dela, masturbá-la, tocá-la, abraçá-la, correr à
sua volta, compartilhá-la, senti-la, observá-la… Mas como a artista afirma na
entrevista, “[a biruta-falo] sempre escapa”.
Fálica
de Santos, na sua proposta de deslocar a centralidade do falo patriarcal
convida-nos a pensar a partir de outras lógicas ou economias, outros modos de
ver e entender não a sexualidade mas os afetos e as relações de poder, uma
economia ‘do atrito’ na qual, como coloca Dri Azevedo, pensa-se “a superfície da
pele em sua totalidade como uma dimensão erótica” (Azevedo, 2020, p. 308). O
‘corpo atritável’ que Azevedo propõe a partir do sexo lésbico como uma potência
de outra ordem ou lógica, e do lesbianismo como ponto de fuga, foge do binarismo
ativo-passivo, colonizador-colonizado e nos permite, ao menos utopicamente
imaginar um mundo não penetrável (onde penetrável no imaginário cis-
heterossexual seria o corpo feminino), e sim baseado na epistemologia do atrito.
Uma lógica que não tem como ponto de partida o referencial corpóreo
eurocêntrico. Uma lógica que se propõe a apontar para uma nova forma
de ver a prática sexual, mas também que pretende escavar formas de
sexualidade geolocalizadas no contexto brasileiro e latino-americano
(Azevedo, 2020, p. 308).
O trabalho de Santos suscita encontros potentes, passados e presentes, ao
dialogar com criações, processos, performances, inquietações, desejos, angústias,
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etc. de alguns artistas brasileirxs que deixaram - e vem deixando - não apenas
vestígios, mas marcas sonoras e ecos necessários em suas travessias. É assim que
costuro alguns fios existentes entre
Fálica
e, por exemplo, a série
Fábrica Fallus
4
(1992-2004) da artista plástica e performer Márcia X (1959 - 2005). A artista criou
uma instalação com diversos pênis de borracha, vibradores coloridos, brilhantes e
lúdicos, variados artefatos fálicos que, por vezes, parecem pessoas, com os quais
critica diretamente a pornografia cis-heteronormativa, a religião católica, e o culto
ao prazer falocêntrico inserido na cultura ocidental da modernidade.
A partir de 1990, a artista centrou seu trabalho na destruição sistemática “de
valores estéticos, éticos e políticos do machismo e da fase mais opressiva da
instituição religiosa do catolicismo” (Falo Magazine, 2021). Entre as diferentes
representações fálicas-lúdicas debochadas que a artista cria em
Fábrica fallus
,
chama a minha atenção uma intitulada “pai e filho” (1997), composta de dois ‘falos
compridos de tecido’: ou dois vibradores forrados em tecido, de cuja base
continuam extensões do próprio tecido.
Os objetos deitados numa mesa parecem duas espadas. Os vibradores pai e
filho parecem colocar em questão uma herança patriarcal que prevalece e
continua a ser reproduzida de geração em geração, justamente aquilo que Santos,
em
Fálica
, tenta desestabilizar. A interação de Santos com seu monumento fálico
traz à lembrança, também, a série de fotografias
Amsterdã Erótica
(1982 / 2017),
do artista multimídia e poeta Paulo Bruscky (Recife,1949). Bruscky intervém no
espaço público e no modo de paródia compõe, com o corpo, duas figuras humanas
de falo gigante, “falos de rua” eretos, outros monumentos passíveis de serem
derrubados, ridicularizados.
Em
Fálica
, por meio da prótese-falo-biruta vermelha-ereta-brocha que entra
em colapso, a artista convida-nos a pensar na falência ou no viril falido por meio
de uma prótese gigantesca. Essa performance, com aquele gesto “brocha” como
possibilidade perturbadora da ordem patriarcal-colonial que a artista nos oferece,
não apenas simboliza a tremedeira ou a espécie de agonia na qual o regime
capitalista cis-hetero-falo-centrado se encontra atualmente - e pela qual estamos
4 Para ver algumas imagens da série Fábrica Fallus acessar o link:
https://issuu.com/falonart/docs/falo16/s/11919278.
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pagando as consequências de uma violência sem precedentes e de extrema
crueldade contra as mulheres, crianças e dissidências -, mas representa e traz
para o debate a mudança de paradigma que vem acontecendo, justamente, nas
fendas do atual (cis)tema.
Essa mudança de paradigma que várixs dxs autores aqui presentes anunciam
e sugerem tem a ver, em parte, com o fim das políticas identitárias, os binarismos
sexuais, a abertura de fronteiras. Tem a ver com nos pensar como parte de uma
comunidade planetária, “um parlamento de corpos vivos (vulneráveis) que habitam
o planeta terra” (Preciado, 2020, s/p), no qual as noções de cuidado, cooperação e
cura seriam o resultado de tal transformação política e do modo de entender o
sentido de comunidade.
Está também em questão a passagem de um modelo binário de diferença
sexual para um paradigma mais aberto, no qual a morfologia dos órgãos genitais
e a capacidade reprodutiva de um corpo não definam sua posição social desde o
momento do nascimento; e de um modelo heteropatriarcal para formas não
hierárquicas de reprodução da vida (Preciado, 2020, s/p).
Figura 1
Fálica
, de Ana Luisa Santos, 2018. Foto: Luiza Palhares
Parodiar, perturbar os modos falocêntricos, deslocar o prazer mediante o jogo
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performático com as pessoas do público, na tentativa de deslocar, desconstruir e
ressignificar a cultura "falocêntrica heterocentrada" (Preciado, 2014). É nesse
paradigma de fronteiras abertas, contrassexual e atritável, que habita a proposta
de Santos, é ali que a performance
Fálica
é construída e apresentada.
A performance precisa do encontro, primeiramente da artista com a biruta-
falo e do encontro de pessoas voluntárias do público com a biruta-falo. Essa
proposta artística precisa de corpos interagindo com a prótese vermelha gigante,
é quase uma proposta de contato improvisação (luta) entre sujeito e objeto, entre
um corpo e um dos maiores - se não o maior - símbolos patriarcais da nossa
história que urgentemente precisa cair. O corpo presente da artista luta, literal e
simbolicamente, contra a estrutura patriarcal representada aqui por uma biruta
vermelha ereta de tecido que irrompe na sala teatral e, também, numa praça
pública da cidade de Belo Horizonte.
Figura 2 -
Fálica
, de Ana Luisa Santos, 2018. Foto: Luiza Palhares
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Em 2014, a artista de performance e antropóloga visual Pêdra Costa5 escreveu
o
Manifesto contra os desejos capitalistas
6
,
no qual, como Santos, critica e se
posiciona longe das criações e desejos capitalistas que veneram “os homens de
estereótipo macho, agressivo, jovem, perfumado e perfeito” (Costa, 2014). Costa
chama a atenção para certas criações ou dispositivos de controle que o
capitalismo usa para exercer seu poder sobre nossos corpos e desejos como, por
exemplo, o medo, a felicidade e a depressão (Costa, 2014). É na dissidência que se
afirma de modo coletivo, em comunidade, e longe do individualismo.
Nós somos a guerrilha encarnada. Somos aquelxs que não temos medo
[…]. Somos a urgência de conexão e quanto mais urgente, mais profunda
é nossa conexão. […] Nossa imaginação e desejos são livres e anteriores.
Nós somos muito antigxs, por isso mesmo, tão resistentes e atacadxs
[…]. Quando um de nós é feridx, todos nós sentimos. […] Quanto mais nos
violentam, mais de nós surge, porque atuamos em conexão, e vocês, em
solidão. (Costa, 2014).
Conecto o manifesto da artista, de se reconstruir e de se libertar dos desejos
capitalistas, com a proposta de Santos de repensar os gestos de olhar e de ouvir,
isto é, não apenas o lugar de fala, mas o lugar de escuta. Para quem olhamos e
quem ignoramos? Por fim, quem ouvimos e com quem fechamos qualquer
tentativa de diálogo? A proposta participativa de Santos é também um convite
para uma escuta coletiva e conectada, que são dois atributos próprios das artes
da cena, além de que não é em solidão que se combate o inimigo patriarcal-
colonial.
Fálica
simboliza a ordem vertical hétero-patriarcal instaurada em nossa
sociedade ocidental. E é por isso que considero necessário, dado o momento atual
que como mundo atravessamos, estabelecermos aqui uma relação direta entre a
proposta artística de Santos, na qual a falência, a queda e a inversão configuram-
se como atributos essenciais a serem contemplados na hora de pensarmos nas
derivas e desvios que guiam a nossa rota, e no importante movimento de
5 Pêdra Costa (Brasil, 1978) é artista de performance e antropóloga radicada em Berlim. Seu trabalho transita
entre a estética pós-pornô e a investigação sobre conceitos anti-coloniais. Informação extraída do site da
artista. Ver: http://cargocollective.com/pedra.
6 Para acessar o manifesto completo, ver: http://pedrapedro.blogspot.com/2014/02/manifesto-contra-os-
desejoscapitalistas.html
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derrubada, remoção, ressignificação, intervenção, substituição e queda de
monumentos coloniais/racistas/patriarcais, estátuas hegemônicas que
representam horrores do passado, mas cuja presença ao longo do tempo
ocupando praças, avenidas importantes ou parques não atualiza as marcas,
mas normaliza a violência e o genocídio, obedecendo a uma lógica opressora, que
perdura no tempo, no espaço e, portanto, permanece no nosso arquivo
inconsciente colonial racista capitalista. Precisamos de “menos metal e mais
vozes, menos pedra e mais carne” (Preciado, 2020, p. 2), porém carne viva.
O falo falido que a artista apresenta, tanto no palco teatral quanto no meio
da cidade, anuncia uma urgência, uma ordem de inversão, aquele falo gigantesco
passível de ser derrubado, é o dispositivo, a prótese cênica que nos lembra dos
perigos da normalização - presente - da violência sexual-colonial, do perigo de
esquecermos dores passadas e presentes ou, como adverte o filósofo em seu
texto
Por um monumento à necropolítca
, corremos o perigo de naturalizarmos e
estetizarmos narrativas históricas e épicas sem percebermos a violência cognitiva
que carregam (Preciado, 2020). No entanto, é em algumas práticas artísticas
performáticas e/ou intervenções ativistas que vêm permeando as cidades, que os
perigos acima mencionados podem, acredito, ser revertidos e as narrativas
ressignificadas. Respostas chegam na forma de contrapráticas do esquecimento,
possibilidades de reinvenção, utopias do presente. Antimonumentos e
contramonumentos são erguidos ao passo que monumentos precisam cair.
A exaltação pública dos valores de supremacia branca, masculina e
heterossexual por estátuas eclesiásticas, militares, governamentais… faz
da cidade moderna um parque de diversões patriarco-colonial, onde as
estátuas funcionam como avatares que servem para construir narrativas
de dominação, pertença e reconhecimento, ou de submissão, exclusão e
invisibilidade. É por isso que todas as estátuas devem cair. (Preciado,
2020, p. 1).
Fálica
, um contramonumento
E quanto maiores são as estátuas, melhores serão seus escombros
(Paul B. Preciado)
A performance de Santos configura-se como uma possibilidade de
desmantelamento no sentido de desestabilizar a ordem patriarcal/heterossexual
instaurada e perpetrada até hoje. É uma ação de deslocamento, transgressão, uma
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possibilidade performática de emancipação. Vejo-a como prática de inversão e/ou
substituição.
O termo
monumento
significa advertir, exortar, lembrar, e tradicionalmente
sua construção esteve relacionada, antes de tudo, à comemoração de vitórias
bélicas (Seligmann-Silva, 2016), permanecendo no tempo, portanto, a história
narrada de uma perspectiva oficial, na qual o vencedor/colonizador é lembrado e
seus horrores naturalizados, esquecidos. Para a pesquisadora Larissa Bery, os
monumentos selecionam o que lembrar e o que esquecer, e a história não se
reduz a uma marca passada, mas permanece presente, atualizada e reatualizada
na cidade (Bery, 2019).
Os monumentos são “construções materiais de imaginário histórico, mas de
uma perspectiva que atende aos interesses do colonizador servindo à
naturalização de sua dominação. […] No entanto, ao mesmo tempo em que
produzem memórias também projetam esquecimentos” (Bery, 2019). o
antimonumento, nasce da necessidade de recordar um passado doloroso e
compreende a elaboração do trauma e do luto, e abre espaço para a simbolização
(Seligmann-Silva, 2016). Os antimonumentos, seguindo as definições do autor, são
“obras que trazem em si um misto de memória e de esquecimento, de trabalho
de recordação e resistência” (Seligmann-Silva, 2016, p. 51), é uma estratégia
artística de passados que prevalecem, ou, “uma nova modalidade de lidar com o
novo papel da memória” (Seligmann-Silva, 2016, p. 49). Um contramonumento, em
vez disso, surge como modo de resposta principalmente vinda da arte, que
vislumbra possibilidades outras de ser e estar no mundo.
Enquanto os antimonumentos se voltam à memória do trauma e do luto com
base na perspectiva da recordação e do desarquivamento, os
contramonumentos apontam para o porvir a partir da perspectiva do imaginário
e da ficcionalização do real. Para o contramonumento, o foco da memória está
no horizonte para o qual ela aponta. Mais do que se colocar como dispositivo de
produção de memória, os contramonumentos focam na produção de imaginário.
Nesse sentido, a ficção e a fantasia são abordadas o para criar versões
alternativas para os fatos, ou seja, mentiras convenientes, mas como materiais
capazes de inspirar a imaginação de um horizonte mais esperançoso para o
futuro (Bery, 2019, p. 148).
Entendo a proposta paródica-fálica, ereta-brocha de Santos como potente
resposta da arte performática diante do genocídio perpetuado pela violência
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patriarcal colonial racista capitalista e a identifico como um contramonumento
performativo. Contudo, me parece importante mencionar outras iniciativas que
respondem a tal urgência de reivindicar o passado violento presente em estátuas
e de mudar as estruturas opressoras, por meio de remoções, derrubadas,
incêndios, ressignificação, intervenção e/ou imaginação utópica que vem
acontecendo ao longo dos últimos anos em diferentes cidades da América Latina,
Europa e os Estados Unidos. Esses movimentos fazem parte, sem dúvida, da
mencionada revolução em curso, na qual as aberturas, a horizontalidade, a
coletividade, a volta da perspectiva e a queda resultam fundamentais e
esperançosas, pois como argumenta Vladimir Safatle em
Do direito inalienável de
derrubar estátuas
, a propósito da queima da estátua do bandeirante Borba Gato
em São Paulo7, “quem luta pela liberação do passado, luta pela modificação do
horizonte de possibilidades do presente e do futuro” (Safatle, 2021, p. 2). Para
Safatle, uma estátua é um dispositivo de celebração que naturaliza dinâmicas
sociais e, portanto, contribui com o perigoso apagamento de violências do
passado, mas que continuam no presente. A derrubada, coloca o autor, é uma
autodefesa que nos indica que começamos a transitar pelo caminho certo (Safatle,
2021).
A escritora, poeta e acadêmica norte-americana Caroline Randall Williams
afirma, em seu artigo
You Want a Confederate Monument? My Body Is a
Confederate Monument
que seu próprio corpo e sua pele são um monumento
(Williams, 2020), e que a cor de sua pele é a cor do estupro -
rape-colored skin
-,
pois ela descende dos negros que pertenciam aos brancos dos quais ela também
descende. Apresenta-se como uma mulher negra do Sul dos Estados Unidos que
se sente fortalecida e encorajada pelas manifestações e protestos contra o
racismo após o assassinato de George Floyd8, e nos quais as bandeiras dos
7 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-07-24/estatua-do-borba-gato-simbolo-da-escravidao-
em-sao-paulo-e-incendiada-por-ativistas.html
8 George Floyd (40), foi um homem negro assassinado em maio de 2020, por um policial branco em
Minneapolis, Estados Unidos. Floyd foi imobilizado no chão, enquanto o policial mantinha o joelho no
pescoço dele até a morte. Enquanto isso, uma menina negra de 17 anos filmou a cena traumática e
desesperadora, assim como a frase tantas vezes repetida - e depois reproduzida no mundo inteiro - por
Floyd,
I can’t breathe /
não consigo respirar”. Dias depois, e apesar da quarentena, multidões saíram às
ruas para protestar contra o racismo causante da morte de Floyd. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/caso-george-floyd-morte-de-homem-negro-filmado-
com-policial-branco-com-joelhos-em-seu-pescoco-causa-indignacao-nos-eua.ghtml
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confederados, alguns monumentos aos soldados do Sul e nomes de algumas
bases militares norte-americanas que simbolizam os vestígios do sistema
escravista do país, foram questionados, e algumas estátuas foram retiradas. Para
Williams existem pessoas, como por exemplo o ex-presidente Donald Trump, que,
ainda hoje, não entendem a diferença fundamental entre “reescrever e reafirmar
o passado” (Williams, 2020), isto é, o fascismo insiste em manter e reafirmar os
símbolos violentos da opressão, do horror e da tortura, como ocorrido aqui no
Brasil durante o governo de Jair Bolsonaro. A autora desafia e propõe: “Se existem
aqueles que querem relembrar o legado da Confederação, se querem
monumentos, então, meu corpo é um monumento. Minha pele é um monumento”
(Williams, 2020)9.
A ideia do próprio corpo como monumento apresentada por Williams é, a
meu ver, extremamente forte e dolorosa, pois carrega as marcas, a ferida aberta
e constantemente atualizada da violência estrutural que são o racismo e o
sexismo. Um (anti)monumento vivo que, como a autora coloca, materializa a
verdade do passado, portanto, um corpo-depoimento de memórias que
dificilmente serão esquecidas. Daí a importância de reescrever a história, de
ressignificar os espaços, de remover e derrubar. E, de certa forma, é o que
acontece na proposta
contramonumental
de Santos com
Fálica.
A biruta vermelha
cai, mas não cai sozinha, é a performer que a manipula, a deixa cair, e deixa morrer.
E é no ato da queda que acontece uma transformação, simbólica, da ordem
imposta.
Após o assassinato de Floyd, estátuas de Cristóvão Colombo começaram a
ser derrubadas, decapitadas, demolidas, e também pintadas ou tornaram-se alvos
de numerosas pichações10 em várias cidades dos Estados Unidos, em protesto
contra a imposição colonial, ao massacre dos povos indígenas nas Américas e o
racismo estrutural que, nos Estados Unidos assim como no Brasil, ocupa um lugar
central na violência e opressão contra as populações negra e indígena.
9 If there are those who want to remember the legacy of the Confederacy, if they want monuments, well,
then, my body is a monument. My skin is a monument. (Williams, 2020). (Tradução nossa)
10 Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-06-12/estatuas-de-colombo-sao-o-novo-alvo-
do-movimento-revisionista-nos-eua.html?rel=listaapoyo
Fálica
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Continuando com esse movimento de revisão dos símbolos de metal e
cimento que permeiam as nossas cidades, e que conecto aqui com a ação e a
imagem que Santos propõe, outra estátua de Cristóvão Colombo foi removida em
outubro de 2020 do
Paseo de la Reforma,
na cidade do México, e em 2023 foi
substituída pela estátua de uma mulher indígena mexicana. A prefeita da cidade,
afirmou que a ação reivindica e faz justiça social em relação ao processo histórico
tão violento e doloroso das mulheres nesse país11. Um fato muito importante, e
que faz parte do movimento de descolonização do espaço público mexicano, é
que o anúncio da nova estátua feminina chamada
La joven de Amajac12
foi feito no
dia 12 de outubro, aniversário da “descoberta” do continente Americano, dia em
que no México comemora-se
el Día de la raza,
como recordação da resistência
dos povos indígenas contra o colonialismo13. No Rio de Janeiro, a estátua do
colonizador Pedro Álvares Cabral, localizada no bairro de Glória, foi incendiada na
madrugada de 24 de agosto de 2021. O ato foi considerado um ato de vandalismo
pela Secretaria de Conservação, e foi aberta uma ocorrência, porém associa-se o
incêndio aos protestos contra o Marco temporal, “tese que prevê que os povos
indígenas tenham direito às terras que ocupavam somente na data em que a atual
Constituição foi promulgada”14. o Instituto Marielle Franco narra a notícia de
maneira não oficial no seu perfil de Instagram15:
Estátua de Pedro Álvares Cabral, invasor do Brasil, foi incendiada hoje, no
Rio de Janeiro em um ato de protesto contra o Marco Temporal que está
sendo analisado pelo STF e ameaça reduzir ainda mais as poucas terras
indígenas que sobraram. E o pior é que ainda vai ter gente preocupada
mais com a vida da estátua do que com as vidas indígenas assassinadas
e perseguidas há 521 anos nessa terra (Instituto Marielle Franco, 2021).
No dia 7 de setembro de 2021, dia do 199o aniversário da independência do
11 Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/cidade-do-mexico-substituira-estatua-de-
colombo-por-monumento-de-mulher-indigena/
12 Disponível em: https://www.elfinanciero.com.mx/cdmx/2023/07/23/paseo-de-la-reforma-estrena-nuevo-
monumento-la-joven-de-amajac-es-develada-en-cdmx/
13 Disponível em: https://www.independentespanol.com/noticias/mundo/ciudad-mexico-mujer-indigena-
estatua-colon-b1938763.html
14 Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/08/estatua-de-pedro-alvares-cabral-e-
incendiada-na-zona-sul-do-rio.shtml
15 Disponível em: https://www.instagram.com/p/CTANMhyrfZU/
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Brasil, a Avenida Paulista foi tomada pelo fascismo e a supremacia branca, fiel
apoiadora do regime de extrema direita encabeçado pelo então presidente
Bolsonaro. Era certamente uma manifestação golpista repleta de homens brancos,
velhos e cheios de raiva (Arias, 2021). Um dos objetos que mais chamou a atenção
foi a presença de um gigantesco falo verde e amarelo - que poderia nos lembrar
de um míssil -, cuja base era um carrinho vazio de supermercado16. Meu primeiro
pensamento foi na relação direta com a performance
Fálica
de Santos, porém,
parecia extremamente absurdo pensar na possibilidade de que a iniciativa fosse
do grupo golpista, que nada descreve melhor a essência do macho viril
colonizador, fascista e tóxico do que um monumento fálico se apropriando das
cores (símbolos) da pátria. Ainda assim, a iniciativa vir desse grupo parecia
hilariante e maluca porque o inflável fálico trazia uma inscrição, o lema do Exército
brasileiro: “Braço forte, mão amiga”. Como é possível? As imagens, naturalmente,
viralizaram nas redes sociais. No dia seguinte veio o esclarecimento. Foram
estudantes infiltrados no ato golpista que ergueram “o pirocão verde e amarelo”17
(Hailer, 2021), para zombar do culto ao falo que representa a população apoiadora
do anterior governo e o neofascismo brasileiro, cúmplice da perpetuação do
horror.
Embora a biruta vermelha que Santos apresenta pertença a uma obra
performática, ela dialoga de forma muito coerente com a - hoje podemos dizer -
intervenção/infiltração urbana do pênis inflável gigante na manifestação da Av.
Paulista. Pois ambas as próteses contestam os relatos supremacistas de
dominação através da paródia, ridicularizando os sonhos nacionalistas de pureza
e virilidade, que “determinam um ideal de cidadão colonial e sexual” (Preciado,
2020), e que, no momento atual, encontram-se em falência.
É precisamente a queda o que atravessa toda a série de trabalhos da artista
sobre masculinidades. Porém, na performance
Fálica
o objeto - por vezes ereto,
por vezes 'brocha' - e a ação paródica evidenciam esse desejo, como também a
necessidade de que atributos como a vulnerabilidade e a fragilidade surjam como
16 Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-08/o-misterioso-penis-gigante-verde-e-amarelo-
na-manifestacao-golpista-da-avenida-paulista.html
17 Disponível em: https://revistaforum.com.br/noticias/pirocao-trollagem-estudantes/#
Fálica
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alternativa fundamental de substituição (ou de inversão) do viril.
Finalmente, o monumento fálico que representa a supremacia branca e
hétero-colonial, embora impressionante, também é manipulável, a máquina
produtora 24/7 é suscetível de ser esvaziada. A performance de Santos, de alguma
maneira, pode nos indicar o neon vermelho que diz “saída”, aquele desvio
necessário. A biruta vermelha, quase sempre ereta, é também, intuo, sinal desse
momento atual de crise em que a masculinidade cruel e dominante se encontra,
momento ideal para repensarmos ou imaginarmos, como sugere o psicanalista
Eduardo Leal Cunha, “outras formas de ser homem” (Cunha, 2019, p. 27), o que
também seria uma construção ao longo da vida.
Pelo menos eu pari um ser humano com genitália masculina e tento escutar
seus sinais, tentarei guiá-la para se tornar o que ela imagine, mas se for o caso,
quem sabe o homem novo, uma nova masculinidade deslocada de seu lugar
dominante, como Gloria Anzaldúa (1987) sugere, e é urgente. Isto apesar da
sentença enunciada pela maioria dos médicos - “é menino” ou “é menina” - no
ultrassom às 16 semanas de gestação e posteriormente, no momento do
nascimento. Esses enunciados de gênero, adverte Preciado em relação às
conclusões de Judith Butler sobre a performatividade, “não são enunciados
constatáveis, não descrevem nada. São antes enunciados performativos (ou
realizativos), isto é, invocações ou citações ritualizadas da lei heterossexual”
(Preciado, 2014, p. 92).
Santos e sua prática, fazem parte de uma luta frontal e sensível contra o
regime colonial capitalista, na tentativa performática e coletiva de deslocar, de
forma lúdica, a cultura falocêntrica, viril e violenta do lugar hegemônico que ocupa
na sociedade; uma tentativa, nas palavras de Rita Segato de “desmontar o
mandato de masculinidade” (Segato, 2028, p. 40).
A queda necessária que atravessa a elaboração e a apresentação da
performance
Fálica
fala da própria potência da obra, e de sua capacidade
descolonizadora e despatriarcalizadora da vida, do corpo, da existência, do
conhecimento e do pensamento. Nesse sentido, a ativista e artista anarco-
feminista boliviana María Galindo, nos alerta que o verbo despatriarcalizar -
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necessariamente imbricado na ação de descolonizar - atua como ‘chave' para
abrir um novo sentido no tempo, o tempo das utopias no qual inscrever práticas
e saberes é urgente. Despatriarcalizar “é o que queremos fazer e fazemos as
feministas com a família, com a terra, com a comida, com o trabalho, com a arte,
com a vida cotidiana, com o espaço, com a saúde, com o sexo” (Galindo, 2022, p.
50).
A performance de Ana Luisa Santos mobiliza e reconstrói os afetos, devolve-
nos cumplicidade, as “irmandades políticas” (Spinelli, 2018, p. 78) para continuar
apesar das mortes e do luto necessário.
Fálica
é uma performance-deriva para
driblar caminhos normativos constantemente policiados, uma performance-
desvio que nos lembra que outras vidas são possíveis, que a rejeição e a interdição
pode, contrariamente ao esperado, fortalecer nosso sistema imunológico e fazer
de nós uma síndrome viral - positiva - afetiva e múltipla.
Figura 3 -
Fálica
, de Ana Luisa Santos, 2018. Foto: Luiza Palhares
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Recebido em: 30/06/2024
Aprovado em: 17/08/2024
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