Transportar como foi desenhado? - abordagens contemporâneas da mímica corporal de Étienne Decroux
George Mascarenhas
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-24, set. 2024
A mímica corporal me trouxe fundamentalmente uma grande liberdade,
uma estrutura. Trouxe estrutura física, de visão da cena, do “
homem que
quer ficar de pé
”22. Me trouxe muita estrutura para o estudo da poética do
corpo. Eu me emociono a cada vez que volto a ler e escutar Decroux. Com
essa estrutura, também me trouxe muita liberdade. Me sinto livre a partir
da mímica. Quando eu vou dar aula, se a gente consegue ultrapassar as
etapas mais difíceis, se chega no lugar da liberdade. Para mim, foi um
ponto firme, uma raiz. É bom ter raiz (Tupan, 2022).
Em sua trajetória, o artista chileno Ricardo Gaete também reconhece a
mímica corporal como sendo uma raiz do seu trabalho:
Um trabalho como esse se faz na ação. E esse é o tronco da árvore,
sempre. O aspecto técnico, na parte da
gramática
, ou na estética de como
resolvo [as cenas], essa é a raiz. Porque, justamente, por ser a raiz, posso
chamar, a partir da mímica, outros elementos, e identificar outros passos
que podem ser dados. Esse corpo formado em mímica decrouxiana, que
tem precisão – ou outro nome, se quiser – é o central (Gaete, 2022).
Para Tania Coke, sua formação na MCD ultrapassa a perspectiva artística e
integra uma trajetória de desenvolvimento pessoal:
Eu diria que para alguém que era completamente fora do mundo da arte
foi uma mudança importante. [...] Eu trabalhava num escritório [no
mercado financeiro] o dia todo. E eu tenho o sentimento de que a
sabedoria que é mais necessária - ou um dos tipos de sabedoria mais
necessários - no mundo hoje é a sabedoria física, do corpo pensante. Em
colaboração com o coração e a mente (Suyama; Coke, 2022).
Paralelamente, a reflexão crítica sobre a própria técnica e sobre as
metodologias de ensino-aprendizagem nos processos de treinamento aponta
perspectivas que parecem contraditórias com o valor atribuído por esses artistas
praticantes: a aridez da técnica, as excessivas repetições e mesmo o cerceamento
da pulsão criativa aparecem de modo vigoroso nos relatos.
Janaína Tupan argumenta que há questões inerentes à própria mímica
corporal. Com formação inicial em dança, a artista compreende que uma
aprendizagem técnica passa por momentos de rigor para o seu aprimoramento.
Como estratégia, em geral, escolhe-se o caminho da
repetição
, da concentração
22 L’homme qui voulait rester debout
(
O homem que queria ficar de pé
) é o título do espetáculo criado pela
Compagnie Théâtre de l’Ange Fou, em 1992, que reúne 12 peças do repertório de Étienne Decroux, algumas
das quais recuperadas por Steven Wasson e Corinne Soum. Esse título sintetiza uma declaração de Decroux
na abertura do espetáculo: “Ser mímico corporal é ser um militante, um militante de alguma coisa, um
militante do movimento em um mundo que está sentado”.