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Transportar como foi desenhado? - abordagens
contemporâneas da mímica corporal de Étienne Decroux
George Mascarenhas
Para citar este artigo:
MASCARENHAS, George. Transportar como foi
desenhado? - abordagens contemporâneas da mímica
corporal de Étienne Decroux.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set.
2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0206
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George Mascarenhas
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Transportar como foi desenhado? - abordagens contemporâneas da mímica corporal de
Étienne Decroux1
George Mascarenhas2
Resumo
Encontrar uma voz própria que alinhe um sistema artístico tradicional às demandas da
contemporaneidade é um dos maiores desafios enfrentados por mímicos corporais. Pouco
mais de três décadas após o desaparecimento de Étienne Decroux, quais as estratégias
utilizadas por artistas-mímicos pós-decrouxianos para lidar com essas demandas? O artigo
destaca as estratégias utilizadas por mímicos contemporâneos na fricção entre o sistema e
sua expressão artística pessoal. Transportar como está desenhado, incorporar técnicas
distintas e explorar princípios de criação são algumas dessas estratégias que podem ser
também aplicadas a outras práticas artísticas baseadas em relações mestre-aprendiz.
Palavras-chaves
: Mímica corporal. Étienne Decroux. Treinamento para o ator. Técnica externa.
Processos de criação.
Transporting as devised? contemporary approaches to Étienne Decroux’s corporeal mime
Abstract
Finding ones own voice that could merge a traditional artistic system and the demands of
contemporary times is one of the most significant challenges faced by corporeal mime artists.
Just over three decades after the passing of Étienne Decroux, what are the strategies devised
by post-Decrouxian mimes to meet those demands? The article highlights some strategies
contemporary mimes employ to deal with the friction between the system and their own
artistic expression. Transporting as devised, incorporating di!erent techniques, and exploring
creative principles are some of those strategies that could also apply to other artistic practices
based on master-apprentice relationships.
Keywords
: Corporeal mime. Étienne Decroux. Actors training. External technique. Creative
processes.
¿Transportar como concebido? enfoques contemporáneos del mimo corpóreo de Étienne
Decroux
Resumen
Encontrar una voz propia que pueda fusionar un sistema artístico tradicional y las exigencias
de la contemporaneidad es uno de los mayores desafíos que enfrentan los mimos corpóreos.
Poco más de tres décadas después del fallecimiento de Étienne Decroux, ¿cuáles son las
estrategias ideadas por los mimos post-Decrouxianos para satisfacer esas demandas? El
artículo destaca algunas estrategias que emplean los mimos contemporáneos para lidiar con
la fricción entre el sistema y su propia expresión artística. Transportar como concebido,
incorporar diferentes técnicas y explorar principios creativos son algunas de esas estrategias
que también podrían aplicarse a otras prácticas artísticas basadas en relaciones maestro-
aprendiz.
Palabras clave
: Mimo corporal. Étienne Decroux. Formación actoral. Técnica externa.
Procesos creativos.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Aline Silva Santos. Graduação em Letras
Inglês pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Preparadora e revisora de textos da Editora da
Universidade Federal da Bahia (Edufba).
2 Pós-doutorado na Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3, França. Doutorado em Artes Cênicas pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Formado em Mímica Corporal Dramática de Etienne Decroux, na École
de Mime Corporel Dramatique in London, Grã-Bretanha. Professor da Escola de Teatro da Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
(PPGAC/UFBA). Ator, diretor, mímico corporal. george.mascarenhas@ufba.br
http://lattes.cnpq.br/2242471657037271 https://orcid.org/0000-0002-1189-0163
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De qualquer ponto em que se estava partia-se para o longe:
nunca se viu tanto caminho.
Clarice Lispector
Nos últimos trinta anos em que tive a oportunidade de investigar, criar e
ensinar a mímica corporal, em contextos diversos, uma questão sempre se fez
recorrente: de que modos os artistas-mímicos lidam com as tensões entre os
princípios e procedimentos corporais intrínsecos e os ideais de modernidade da
Mímica Corporal Dramática (MCD) na contemporaneidade?
Desenvolvida entre as décadas de 1920 e 1980 por Étienne Decroux (1898-
1991), a mímica corporal se configura como um sistema de formação e criação
artística. Para Decroux, a MCD seria uma forma de arte em si, separada do teatro:
A mímica, eu pensava, tem mais a fazer do que completar outra arte, declara.
(Decroux, 1994, p. 34) 3. O pensamento de Decroux se associa às tendências dos
movimentos de renovação do teatro das vanguardas europeias do início do século
XX. Mascarenhas (2021) afirma existir uma aproximação entre a mímica corporal
em seus primórdios e o Simbolismo, mesmo sem haver uma adesão formal de
Decroux a qualquer movimento de vanguarda.
A mímica corporal guarda a ideologia
antistanislavskiana
e
antiburguesa
de
Decroux, mantendo em seu arcabouço suas referências históricas, culturais,
estéticas, filosóficas e ideológicas. Como resultado, é quase indistinta a relação
entre o sistema, como o conjunto de princípios formativos e expressivos, e o estilo,
como o conjunto de procedimentos específicos do artista-criador. Essas
referências se fazem presentes nos exercícios técnicos, nos temas de improvisação
e no repertório artístico desenvolvido por ele. Por essas razões, a aprendizagem da
mímica corporal, ainda hoje, se alimenta dos modos de criação, dos gostos
pessoais e dos fundamentos estéticos adotados pelo próprio Decroux.
Pouco mais de três décadas após o desaparecimento de Decroux, de quais
modos artistas contemporâneos ultrapassam a técnica, assimilam ou se
distanciam do modus operandi original da MCD? Como as experiências com a
3 Le mime, pensai-je, a mieux à faire que de compléter un autre art (Decroux, 1994, p. 34). (Tradução nossa).
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mímica corporal dialogam com os diversos contextos culturais em que se inserem?
Quais as estratégias de abordagem da mímica corporal experimentadas por
artistas-mímicos pós-decrouxianos4?
Essas perguntas-passaporte5 constituem a base da pesquisa intitulada
Caminhos pós-decrouxianos: a criação contemporânea com a mímica corporal
6,
desenvolvida junto ao Laboratoire International de Recherches en Arts (LIRA), da
Université de la Sorbonne Nouvelle (Paris-III), ao longo de 2022. Para a presente
discussão, dialogamos com artistas exemplares, por sua formação e experiência
artística com a mímica corporal, tendo origens culturais distintas e instalados em
contextos culturais variados: Sophie Kasser (Moveo Teatro, Barcelona), Tania Coke
e Kentaro Suyama (Tarinainanika, Osaka, Japão), Janaina Tupan (Platform 88,
Montpellier, França) e Ricardo Gaete (Escenafísica Escuela y Compañia
Internacional de Teatro Corporal, Santiago, Chile). Os entrevistados são oriundos da
École de Mime Corporel Dramatique/Ange Fou International Mime School (Londres)
dirigida por Steven Wasson e Corinne Soum7. As entrevistas tinham como propósito
mapear as trajetórias e estratégias utilizadas por esses artistas em suas práticas
artísticas e formativas. Além disso, são utilizadas referências de trabalhos
realizados por artistas e pesquisadores brasileiros, como Victor de Seixas (2023) e
Bya Braga (2022), além da minha própria experiência com Deborah Moreira junto à
Mimus Companhia de Teatro e na Escola de Teatro da Universidade Federal da
Bahia.
O artigo tem como foco a compreensão das diferentes estratégias na
abordagem da técnica e a investigação de estilos pessoais de criação artística a
partir de dois aspectos: 1. a relação entre o sistema e o estilo; e 2. a reflexão sobre
4 Utilizo o termo
pós-decrouxiano
para artistas da chamada
terceira geração
, ou seja, formados por artistas
que estudaram com o próprio Étienne Decroux.
5 A noção de perguntas-passaporte se encontra na abordagem artístico compreensiva de Sonia Rangel (2019).
6 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
7 Steven Wasson e Corinne Soum foram os últimos assistentes de Étienne Decroux. Fundadores da Compagnie
de l’Ange Fou e da École de Mime Corporel Dramatique/Ange Fou International Mime School (Paris/Londres).
Atualmente dirigem o White Church Theater Project, nos Estados Unidos.
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estratégias de abordagem da mímica corporal, como sistema artístico e formativo
para a cena.
Sistema e estilo: entre a ginástica específica e a voz pessoal
Considero o
sistema
como o conjunto de princípios formativos que
compreende aspectos técnicos ou filosóficos da mímica corporal. Nesse conjunto,
estão os exercícios e procedimentos que fazem parte do que Decroux denomina
de
ginástica específica
(incluindo a aludida
gramática
), bem como suas bases
estéticas, de ordem filosófica. De natureza psicofísica, os exercícios propõem que
artistas da cena tenham conhecimento de suas possibilidades expressivas, a partir
da corporeidade, e que possam desenvolver o mesmo tipo de autonomia artística
que artistas de outras linguagens possuem.
O estilo, por sua vez, é a marca pessoal, reconhecível do artista em seu
trabalho (Eco, 1989, p. 165), uma voz particular. No caso da mímica corporal, Étienne
Decroux desenvolve a técnica ao mesmo tempo que elabora exercícios e peças
nos quais as suas referências e gostos pessoais estão impregnados. É assim que
a preferência por um movimento arredondado, para “não ferir os olhos do espaço,
é a tônica nos acordes das composições decrouxianas. O estilo de criação de
Étienne Decroux pode ser definido em torno da noção de
politesse
, para ele, uma
marca de civilidade: Quando nos separamos da
politesse
, isso significa que
andamos para trás” (Decroux, 2003, p. 203)8.
Nos processos de aprendizagem e criação com a mímica corporal,
compreender os limites entre o sistema e o estilo se configura como um desafio
importante para os/as artistas que desejam expressar-se com uma voz própria. A
adesão a um estilo ou técnica que se constitua pela relação mestre-aprendiz,
como é o caso da mímica corporal e de outras técnicas em diversas linguagens,
acaba por definir um padrão de dependência entre aprendizes e mestres. Não por
acaso, estabelece-se um vínculo que pode ser eventualmente associado a laços
familiares, com suas implicações de afetividade.
8 Quand on s’écarte de la politesse, ça veut dire qu’on marche en arrière (Decroux, 2003, p.203). (Tradução
nossa)
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Ao falar da sua experiência, Janaína Tupan (2022)9 declara:
A gente recebe tanto material, como é que usa isso? Aí vem a segunda
questão: como pôr em pratica com seu próprio universo? Eu já tinha me
desvinculado da École e eu sentia que precisava descobrir a minha própria
maneira de estar dentro da mímica. Tinha a necessidade de treinar, mas
eu queria buscar um caminho próprio. [...] É como um filho: tem uma hora
que tem de sair de casa.
Também Ricardo Gaete10 se utiliza da mesma analogia para falar da
construção de uma espécie de ruptura, mesmo que parcial, entre o estilo original
e a criação pessoal:
Há, muitas vezes, uma certa imitação sana de adolescência. Quando sai
da escola, é um adolescente que parece imitar seu pai. Mas depois tem
de entrar na profundidade de descobrir qual é a sua própria poética e
como a sua poética se distancia da particularidade da utilização da técnica
e da gramática de Decroux para encontrar a sua própria (Gaete, 2022).
Em outra perspectiva, mas também de algum modo associada a laços
familiares, aparece a noção de
legado
, compreendida a partir da ideia de
transmissão.
Alguns artistas que aderem à poética decrouxiana e talvez seja possível
generalizar esse sentido para outros artistas e linguagens lidam com a prática
artística como um patrimônio legado a ser cuidado e gerido. A preservação desse
patrimônio também é acompanhada pela ideia de
transmissão
, compreendida
como compartilhamento da tradição artística e pertencimento a uma linhagem.
Essas noções aparecem, por exemplo, no texto
Petite histoire d’une grande
transmission
de Corinne Soum (2003, p. 466):
Transmitir é dar a mão, é ligar o passado ao presente para se
comprometer no futuro. [...] Nós tentamos, para nossa maior satisfação e
na medida de nossa vida, manter uma promessa feita a Decroux. Ele tinha
feito esse pedido depois de um ensaio: « Prometam-me que vão
9 Atriz e mímica corporal brasileira radicada na França. Além de performer, é diretora, produtora e cofundadora
da Plaform88, ao lado do francês Sebastien Loesner.
10 Ator, mímico corporal e diretor chileno, dirige a Escenafísica Escuela y Compañia Internacional de Teatro
Corporal (Chile).
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continuar, como os homens que construíram o túnel do Simplon11, vale a
pena. »12
Considerar a formação na mímica corporal e, arrisco mais uma vez, em
outras técnicas externas como uma espécie de legado se, por um lado, possibilita
aos artistas o reconhecimento da filiação a uma determinada linhagem, por outro,
sublinha a problemática em torno dessa mesma fidelidade e das possibilidades de
transformação ou transgressão do sistema original.
Na busca de uma poética pessoal, em que medida a dita manutenção do
legado recebido não implica em uma reprodução do estilo? Ou como tradição
transmitida pela
(corp)oralidade
, de que modos os olhares dos artistas,
influenciados por seu tempo, permitem, de modo dinâmico, as transformações
necessárias para que ela se mantenha como uma língua viva? E em que medida
estratégias utilizadas pelos artistas em sua abordagem da mímica corporal não
afastam as poéticas pessoais das bases originais? Sobre esses aspectos, Sophie
Kasser (2022)13 afirma:
Nós queremos ao mesmo tempo ser fiéis à herança que nós recebemos,
ao legado que recebemos de Étienne Decroux [...]. Então nós honramos o
conhecimento, mas não queremos que seja uma pedra fixa que não se
move e que vai ser transmitida de geração em geração, mas que possa
ser mudada com as pessoas, com o tempo, e que se transforme. [...] No
museu, temos uma pedra egípcia e é necessário que ela fique lá, que o
museu a preserve durante séculos e séculos. A mímica não é uma coisa
fixa.
O delicado equilíbrio instável da relação entre o sistema e o estilo se
estabelece sobre a
pirâmide invertida
14 daquilo que se guarda, do que se adapta e
do que se transforma. No entanto, essas fricções se revelam também a partir de
escolhas artísticas próprias tomadas pelos artistas individuais ou em suas relações
11 Túnel ferroviário nos Alpes que interliga a Suíça e a Itália.
12 Transmettre cest tendre la main, cest relier le passé au présent pour sengager dans lavenir. [] Nous
essayons pour notre plus grand plaisir et dans la mesure de notre vie, de tenir une promesse faite à Decroux.
Il en avait ainsi formulé la demande après unetition : « Promettez-moi de continuer, comme les gars là-
bas qui ont creusé le tunnel du Simplon, ça vaut le coup ». (Soum, 2003, p. 466) (Tradução nossa)
13 Atriz, mímica corporal, criadora e professora, de origem suíça radicada na Espanha, é cofundadora da Moveo
Teatro (Barcelona).
14 A imagem da pirâmide invertida
pyramide sur la pointe
é utilizada por Decroux para falar da colocação
do peso corporal e do centro de gravidade em equilíbrio instável. “Mime is like a pyramid on its point(A
mímica é como uma pirâmide sobre a ponta). (Decroux apud Leabhart, 2008, p. 116)
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de grupo, quando, por adesão poética, desejam continuar investigando o sistema.
E é nessa direção que seguimos, para compreender um pouco como esses artistas
abordam, atualmente, a MCD em seus trabalhos de ensino e criação artística.
Transportar como foi desenhado: estamos fazendo igualzinho?
A ordem da filiação, do legado ou da transmissão configura uma estratégia de
abordagem para a mímica corporal que será nomeada aqui de “transportar como
foi desenhado. O termo é um princípio técnico da mímica corporal:
le transport
ainsi dessiné
. Trata-se do deslocamento de uma curva, de um gesto ou de uma
atitude exatamente como está “desenhado no corpo. O transporte como foi
desenhado remete à perspectiva da estatuária móvel
la statuaire mobile
15 ,
princípio decrouxiano desenvolvido a partir da observação da impressão de
movimento tridimensional das esculturas.
Tomo o termo de empréstimo como imagem para tratar daquela que se
constitui como a primeira e talvez inevitável estratégia de abordagem da mímica
corporal utilizada por artistas formados em uma relação de mestre e aprendiz.
Transportar como foi desenhado
significa transferir para outro espaço, levar de um
lugar para outro, como uma planta que é transvasada. Há, certo, pequenos ajustes
que podem ser necessários, mas não há alterações significativas estruturais.
Artistas saídos da relação mestre-aprendiz seguem uma tendência de
imitação, de transplante do sistema para seus novos contextos. Ao deixar os
espaços escolares ou de experiência artística junto aos mestres, o estilo, o
modus
operandi
, as perspectivas teórico-filosóficas, as abordagens originais são
transportadas
por aqueles artistas para seus novos contextos
como foram
desenhadas
.
Yoshi Oida refere-se a isso a propósito da busca do virtuosismo técnico e da
ausência de uma voz pessoal:
A cnica não basta. Se você conseguir ultrapassar a técnica, você será
muito forte. Mas por enquanto você se contenta com sua compreensão
15 A
estatuária móvel
é um modo de movimentação da mímica corporal que se define pela conscientização
da tridimensionalidade do corpo, especialmente através do princípio da articulação. É a ideia de que o
próprio fenômeno do pensamento possa ser materializado por um trajeto efetuado pelas diferentes partes
do corpo, que seduz Decroux”. (Soum, 2003, p. 415) (Tradução nossa)
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técnica e você pensa que isso o torna um expert. É um erro. Você deve ir
além da técnica.
O que há além da técnica?
Uma outra existência. No interior de sua existência física, uma outra
existência. Quando vo tiver a experncia disso, você compreende
(Oida, 1988, p.155)16.
Há, nessas circunstâncias, uma raridade ou mesmo ausência de mudanças
significativas e de ruptura com o estilo do mestre e, talvez, a necessidade de uma
voz própria ainda nem se manifeste claramente.
O reconhecimento do
transporte
da técnica
como foi desenhada
se revela nas
entrevistas realizadas. Janaína Tupan (2022) confirma: Quando a gente tem um
mestre, a gente segue a própria estética do mestre. Qual era a minha? Eu precisava
descobrir.
Os desafios dessa busca, a necessidade de ruptura e o reconhecimento da
proximidade com o estilo original são evidenciados também no depoimento de
Sophie Kasser:
Eu acho que uma das coisas mais desafiadoras no início foi encontrar o
nosso próprio estilo porque estávamos muito imbuídos do estilo do
l’Ange
Fou
e muito reconhecidos de tudo que nós aprendemos e toda a bagagem
que nós temos. Eles nos influenciaram muito no nível físico e pedagógico.
Então encontrar nossa linha de trabalho, nossa maneira de fazer, não foi
cil (Kasser, 2022).
Ao se defrontar com a distância dos seus mestres, os aprendizes, agora donos
dos próprios encaminhamentos artísticos,
transportam seu conhecimento como
foi desenhado
, possivelmente na expectativa da manutenção do sistema, da
técnica, da poética, do desejo de preservação do legado. Em várias experiências,
isso implica em uma reprodução ou imitação do estilo e metodologias do mestre
por um certo período. “É parte do que eu disse quando estava com Steve e Corinne.
Eles me deram tanto e quero honrar isso!”, declara Tania Coke17 (Suyama; Coke,
2022).
16 La technique ne suffit pas. Si vous parvenez à dépasser la technique, vous serez très fort, mais pour l’instant
vous vous contentez de votre compréhension technique et vous pensez qu’elle fait de vous un expert. C’est
une erreur. Vous devez aller au-délà de la technique. Qu’y a-t-il au-delà de la technique ? Une autre
existence. A l’interieur de votre existence physique, il y a une autre existence. Quand vous en ferez
l’expérience, vous comprendrez” (Oida, 1998, p. 155). (Tradução nossa)
17 Tania Coke é atriz, diretora e professora, de origem inglesa. Radicada atualmente no Japão, é cofundadora
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Como artista formado nessa técnica, compreendo que essa também foi a
perspectiva que se manifestou para mim, quando comecei o trabalho de ensino e
criação com a mímica corporal, em 1998.
Durante cerca de 10 anos, mantive, junto com Nadja Turenkko18, um curso livre
de MCD, em Salvador, pelo qual passaram diversos artistas de diferentes
linguagens artísticas. O curso despertou para a atriz Deborah Moreira19 o desejo de
uma formação completa na técnica, o que a assegurou um diploma em mímica
corporal, em 2004, nos mesmos moldes que Turenkko e eu tínhamos recebido da
École de Mime Corporel Dramatique (Paris/Londres). Após um estágio com Steven
Wasson e Corinne Soum, em Londres, a atriz se submeteu, sob nossa coordenação
e com aval dos mestres, a seu exame público de diplomação.
Sobre essa experiência em Londres e no curso livre na Bahia, a atriz recorda:
Era igual. Vocês faziam igualzinho a Steven e Corinne. Lembro que ao
chegar nas aulas em Londres não tive nenhum problema de adaptação.
As aulas na École eram do mesmo jeito que vocês faziam. E lembro de
ter dito isso a vocês na época, porque isso me chamou muita atenção.
(Moreira, 2022).
Naquele momento, a ideia de que fazíamos igualzinho trouxe uma grande
satisfação e mesmo orgulho, no sentido de “honrar o legado, de “pertencer à
linhagem. “Fazer igualzinho, nesse caso, é emblema do
transporte como foi
desenhado
: utilizávamos as mesmas práticas, nos apoiávamos nas mesmas
referências, nas mesmas anedotas. Utilizávamos as mesmas regras de conduta e
vestimentas, a mesma organização espacial, os mesmos métodos de ensino, a
mesma musicalidade na condução dos exercícios, a mesma divisão das aulas. Os
artistas que passaram por aquele curso puderam experimentar um pouco daquilo
que Nadja Turenkko e eu tínhamos recebido diretamente dos mestres que
estudaram e viveram com Decroux.
da companhia Tarinainanika, ao lado de Kentaro Suyama, sediada em Osaka.
18 Nadja Turenkko (1968-2016), atriz e diretora teatral paraense, radicada em Salvador-Ba durante a maior parte
de sua vida, foi a primeira brasileira diplomada na técnica pela École de Mime Corporel Dramatique (Paris),
em 1995.
19 Deborah Moreira é atriz, dramaturga, diretora e professora. Formada em mímica corporal no Brasil, por Nadja
Turenkko e George Mascarenhas, com aval da École de Mime Corporel Dramatique de Londres, é
cofundadora da Mimus Companhia de Teatro (Salvador Ba) ao lado de George Mascarenhas.
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Um conhecimento raro, complexo, de difícil acesso estava sendo
compartilhado no Brasil, na Bahia, com fidelidade ao sistema artístico, do ponto de
vista técnico e metodológico. Mas
transportar como foi desenhado
não significa
ausência total de adaptações. Colocar uma planta em outro vaso requer alguns
ajustes para a própria planta, noção que também é compartilhada por Kentaro
Suyama:20
Eu queria ensinar do modo que aprendi. Claro que por causa de nossa
personalidade, as coisas são ligeiramente diferentes, mas a essência é o
que mantemos. Eu acho (Suyama; Coke, 2022).
Em nosso caso, as adaptações evidentes eram de ordem objetiva: carga
horária, mudanças de espaço constantes, alta rotatividade dos/as participantes.
Todavia, naquele momento, não tínhamos consciência dos ajustes que já estavam
acontecendo, na ordem do conhecimento escondido, intuitivo, pelo fato de sermos
pessoas diferentes, com origens distintas e radicadas em lugares diversos.
Embora natural e legítima, essa estratégia traz limites importantes na
condução do trabalho. Com o passar do tempo, começaram a brotar questões
nessa direção: por que fazíamos “igualzinho se somos distintos e temos uma
perspectiva cultural tão distante da original? Em que medida essa formação precisa
obedecer àqueles parâmetros metodológicos, quando os participantes estão
imersos em outros referenciais culturais, poéticos, artísticos e outras condições de
ensino-aprendizagem? Como a mímica corporal poderia se tornar mais acessível
nessas dimensões?
Ter distanciamento, problematizar, criticar e gerar rupturas durante o
processo de formação ou de experiência criativa com seus mestres e mesmo
imediatamente após intensos períodos de convivência não é uma tarefa fácil. O
transporte como foi desenhado
talvez seja a estratégia de abordagem mais ao
alcance desses artistas.
Isso se em função da própria natureza do trabalho que impõe um mergulho
profundo na técnica e na adesão poética a partir do gosto pessoal ou
20 Ator e diretor teatral, de origem japonesa. Formado em mímica corporal pela École de Mime Corporel
Dramatique de Londres, onde permaneceu durante 13 anos, atuando na companhia Théâtre de l’Ange Fou,
dirigida por Steven Wasson e Corinne Soum. Cofundador, ao lado de Tania Coke, da companhia Tarinainanika,
com sede em Osaka, no Japão.
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identificações com metodologias e perspectivas filosóficas. Tudo isso alinhavado
por transferências afetivas um pouco talvez como nos processos de terapia
psicanalítica (Freud, 1910)21 , que mesmo sendo eventualmente negativas,
estruturam e mantêm a relação entre mestres e aprendizes durante um longo
período ou por toda a vida dos envolvidos. Em alguns casos, para haver uma ruptura
estética é preciso que haja uma ruptura afetiva com os mestres, o que pode levar,
inclusive, ao eventual abandono daquela linha de trabalho.
Essas rupturas estéticas, quando acontecem, derivam de um processo de
maturação longo e contínuo, de reflexões críticas conscientes e de prática criativa.
Trata-se de um processo laboratorial ou, como afirmam Bya Braga e Alexandre
Correia (2022), de artesania:
A noção de artesania demanda uma prática especíca aprofundada que
pretambém a reflexão sobre a materialidade artística, não se reduzindo
a formalismos. Trata-se de uma prática de si mesmo, na qual a intimidade
de cada um joga com uma realidade material instalada, expressando algo
de modo singular, mediado por uma habilidade corpórea desenvolvida em
grau mais elevado (Braga; Correa, 2022, p. 10).
A problematização acerca da relação mestre-aprendiz, mas também das
abordagens metodológicas de ensino-aprendizagem e criação na técnica, está na
origem do reconhecimento e construção de uma voz própria, mantendo-se,
quando desejado, a adesão poética inicial.
Para os artistas entrevistados, essa problematização aparece em torno de
dois aspectos: a discussão dos limites inerentes ao próprio sistema decrouxiano e
as reflexões sobre as metodologias de ensino-aprendizagem utilizadas nos
processos formativos em mímica corporal.
Quando o tema da discussão é a própria mímica corporal, os artistas referem-
se a um jogo de tensões entre a liberdade criativa, proporcionada pela assimilação
técnica, e as restrições do próprio sistema. Observam-se atribuições de valor para
a mímica corporal que recaem tanto sobre a perspectiva técnica quanto filosófica,
com efeitos na ordem do amadurecimento pessoal e expressivo.
21 “Não pensem, além disso, que o fenômeno da transferência, a respeito do qual infelizmente pouco posso
dizer aqui, seja produzido pela influência da psicanálise. A transferência surge espontaneamente em todas
as relações humanas e de igual modo nas que o doente entretém com o médico.” (Freud, 1910, p. 36-37).
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A mímica corporal me trouxe fundamentalmente uma grande liberdade,
uma estrutura. Trouxe estrutura física, de visão da cena, do “
homem que
quer ficar de
22. Me trouxe muita estrutura para o estudo da poética do
corpo. Eu me emociono a cada vez que volto a ler e escutar Decroux. Com
essa estrutura, também me trouxe muita liberdade. Me sinto livre a partir
da mímica. Quando eu vou dar aula, se a gente consegue ultrapassar as
etapas mais difíceis, se chega no lugar da liberdade. Para mim, foi um
ponto firme, uma raiz. É bom ter raiz (Tupan, 2022).
Em sua trajetória, o artista chileno Ricardo Gaete também reconhece a
mímica corporal como sendo uma raiz do seu trabalho:
Um trabalho como esse se faz na ação. E esse é o tronco da árvore,
sempre. O aspecto técnico, na parte da
gramática
, ou na estética de como
resolvo [as cenas], essa é a raiz. Porque, justamente, por ser a raiz, posso
chamar, a partir da mímica, outros elementos, e identificar outros passos
que podem ser dados. Esse corpo formado em mímica decrouxiana, que
tem precisão ou outro nome, se quiser é o central (Gaete, 2022).
Para Tania Coke, sua formação na MCD ultrapassa a perspectiva artística e
integra uma trajetória de desenvolvimento pessoal:
Eu diria que para alguém que era completamente fora do mundo da arte
foi uma mudança importante. [...] Eu trabalhava num escritório [no
mercado nanceiro] o dia todo. E eu tenho o sentimento de que a
sabedoria que é mais necessária - ou um dos tipos de sabedoria mais
necessários - no mundo hoje é a sabedoria física, do corpo pensante. Em
colaboração com o coração e a mente (Suyama; Coke, 2022).
Paralelamente, a reflexão crítica sobre a própria técnica e sobre as
metodologias de ensino-aprendizagem nos processos de treinamento aponta
perspectivas que parecem contraditórias com o valor atribuído por esses artistas
praticantes: a aridez da técnica, as excessivas repetições e mesmo o cerceamento
da pulsão criativa aparecem de modo vigoroso nos relatos.
Janaína Tupan argumenta que questões inerentes à própria mímica
corporal. Com formação inicial em dança, a artista compreende que uma
aprendizagem técnica passa por momentos de rigor para o seu aprimoramento.
Como estratégia, em geral, escolhe-se o caminho da
repetição
, da concentração
22 L’homme qui voulait rester debout
(
O homem que queria ficar de
) é o título do espetáculo criado pela
Compagnie Théâtre de l’Ange Fou, em 1992, que reúne 12 peças do repertório de Étienne Decroux, algumas
das quais recuperadas por Steven Wasson e Corinne Soum. Esse título sintetiza uma declaração de Decroux
na abertura do espetáculo: “Ser mímico corporal é ser um militante, um militante de alguma coisa, um
militante do movimento em um mundo que está sentado”.
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no estudo técnico, descolado da perspectiva criativa. É nesse campo que pode se
instalar a
aridez da técnica
, em que se colocam metas de superação.
O trabalho somente com a mímica pode ter uma coisa meio árida, car
na frente do espelho e ter de fazer exercícios muito técnicos.
Intuitivamente, eu acho que essa aridez é uma coisa inerente à mímica
corporal. Não acho que em 100%, mas em grande parte. Claro que a gente
pode trabalhar de maneira mais lúdica, numa abordagem que a gente
possa sentir menos árida [...] E eu venho da dança e sei que a gente tem
de fazer muito
plié, degagé
. [...] Tem um lado que eu acho que é árido e
que pode ser difícil, mas é necessário. Mas ter uma abordagem que se
distancie muito desse lugar, da escala23, eu não sei se a aprendizagem da
técnica vai ser interiorizada de uma maneira profunda no corpo. [...]. Então,
tem uma coisa que acho que sim, é inerente à mímica e acho que a gente
tem de aceitar que é isso (Tupan, 2022).
A ênfase excessiva no trabalho técnico, justificada pela necessidade de
aprimoramento vinculado à repetição, eventualmente se manifesta com uma
natureza cerceadora da liberdade criativa. Nessa perspectiva, o trabalho técnico
implicaria em ignorar características pessoais que
interfiram
na aprendizagem ou
mesmo na execução da técnica. Gaete (2022) relata:
Eu vinha com um trabalho criativo muito forte e creio que, durante a
minha formação na mímica, eu tive de voluntariamente não me calar
exatamente mas colocar a parte do criador em segundo plano, quando
eu era estudante. Steven [Wasson] e Corinne [Soum] sempre me diziam,
quando eu improvisava, que eu tinha uma improvisação forte, mas que eu
precisava trabalhar a técnica. Então eu tive de me dedicar a trabalhar
puramente a técnica. De certa forma, eu tive de me relegar como criador.
Quando eu saí da escola e comecei a trabalhar na companhia [Théâtre de
l’Ange Fou] o que interessava a Steven era esse traço raro. Ele dizia: A
outra pessoa que é mais doida do que eu nessa escola é você. Isso é
ótimo!”.
Para enfrentar essa perspectiva, Janaína Tupan e Sebastien Loesner, nos
trabalhos com o Platform88, optaram por mesclar outros conhecimentos à mímica
corporal.
Eu senti, como eusentia na escola, que me faltavam alguns apoios para
interiorização da técnica. [...] Eu sempre pensei que quando a gente
oferecesse uma formação mais longa, o que poderia entrar em acordo
com isso? Que técnicas poderiam casar? A mímica te dá uma coisa muito
forte, mas eu acho que se a gente puder enriquecer, ela se potencializa,
23 Na mímica corporal, a escala é uma série de exercícios de segmentação corporal para trabalhar o princípio
da articulação”. Decroux desejava que o ator tivesse com seu corpo o mesmo conhecimento e precisão
que um músico tem com seu instrumento musical. As escalas seriam o equivalente corporal do estudo de
uma escala musical.
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faz mais sentido para as pessoas que vão receber. [...] Eu sinto que a
pedagogia confirma para mim que a mímica corporal pura, eu acho,
não se sustenta (Tupan, 2022).
Além dos fundamentos decrouxianos, esses artistas experimentam a
investigação de duas técnicas de suporte: a anatomia aplicada ao ator e o
ActionTheatre
24. A anatomia aplicada ao ator se configura como um trabalho de
natureza pré-expressiva para ampliação da consciência corporal, enquanto o
Action Theatre
se define como uma possibilidade estrutural para as improvisações,
inteiramente baseadas na fisicalidade. Segundo Tupan, essa experiência trouxe
grandes contribuições:
Quando a gente ia para a mímica e fazia alguma exploração, de criação
expressiva, para tentar encontrar caminhos de como expressar isso ou
aquilo, os apoios dessas outras disciplinas foram fundamentais porque
dialogaram muito bem com a mímica (Tupan, 2022).
Nota-se que, aos poucos, os artistas afastam-se do como desenhado e
começam a investir em processos que agregam conhecimentos distintos para
suprir o que consideram lacunares em sua formação ou mesmo na própria
exploração artística da mímica decrouxiana. Esse diálogo íntimo com outros modos
de trabalho pode ser observado, por exemplo, nas investigações de fotogramas,
por Ricardo Gaete, nos jogos mímicos de Deborah Moreira e George Mascarenhas,
na dança contemporânea e acrobacia, da Moveo (Barcelona) e no teatro dançado
de Victor de Seixas. Observa-se, no entanto, que o
transporte como foi desenhado
espaço para essa hibridização técnica quando os artistas se colocam em
busca de sua própria voz, mesmo quando não têm originalmente o desejo de
ruptura com o sistema original.
Outro aspecto problematizado pelos artistas se refere a questões
contemporâneas de tempo e espaço. Atingir certo nível de liberdade artística
depende da inteireza da assimilação, de modo que, em algum momento do
24
Action Theatre
é um método de treinamento para o teatro sico desenvolvido pela artista estadunidense
Ruth Zaporah na década de 1990. O trabalho se concentra na ampliação da expressão (movimento, voz e
fala) e na experimentação dos componentes da ação (tempo, espaço, forma e energia).
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processo, assim como propunha Stanislavski, a técnica se torne uma espécie de
segunda natureza.25
Hoje vocês aprendem alguma coisa. E amanhã estão pensando que
podem dominar perfeitamente a técnica. Mas o
sistema
não é uma roupa
feita que a gente ena e sai andando, nem um livro de cozinha que basta
se achar a página e lá está a receita. Não. [...] [vocês] não podem assimilá-
lo, absorvê-lo na carne e no sangue até que ele se torne uma segunda
natureza, uma parte de tal modo orgânica de seus seres, que vocês, como
atores, sejam transformados por ele para o palco e para sempre
(Stanislavski, 1986, p. 316).
Ricardo Gaete (2022) acrescenta: A coisa mais difícil é fazer com que o
trabalho se torne a sua primeira natureza, não a segunda, mas a primeira, para
estar em cena.
Esse aspecto, todavia, se esbarra nas relações com o tempo na
contemporaneidade: o desejo e necessidade de assimilação de conhecimentos
diversos em um curto período, de modo cada vez mais rápido, assegurando sua
aplicação imediata. Essa característica se choca com as demandas de
aprendizagem técnica configuradas em torno do tempo dilatado, de longo prazo.
Eu acho que as pessoas [que iniciam o trabalho] se deparam com a noção
de que não é assim: sair com um truque na mão. Tem um trabalho árduo
por trás. Tem essa frase do Decroux “eu só vendo coisas caras26. Tem de
pagar o preço se quiser passar para o próximo nível. (Tupan, 2022).
A tentativa de encontrar soluções que possam responder a essas percepções
não se configura, no entanto, como modos de consumo” rápido da técnica ou de
redução da complexidade e profundidade da investigação. Essa é também uma
reflexão trazida por Kentaro Suyama e Tania Coke (2022), sobre seu trabalho no
Japão. O equilíbrio instável entre o rigor metodológico, as exigências da própria
técnica e a ampliação das possibilidades de acesso está no horizonte desses
artistas.
Coke: Do ponto de vista do professor, também é o mesmo tipo de coisa:
como eu posso ensinar adequadamente? Não sei se essa é a palavra
correta. Mas como não tornar superficial, não baixar o nível? É uma
tentação com os alunos: tornar mais fácil.
25 Sobre “segunda natureza, v. Whyman (2014)
26 « Je ne vends que des choses chères… » (Decroux apud Leabhart, 2003, p. 232)
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Suyama: ...de algum modo, criar pontos de identificação entre as pessoas
e a mímica.
Coke: Eu acho também que tem a ver com o vel técnico... Até onde você
pode exigir das pessoas, incluindo nós mesmos?
Suyama: E não deixar no vel superficial. Realmente tentar ensinar a
importância de tudo. (Suyama; Coke, 2022).
Similarmente, como estratégia de abordagem para a mímica corporal, Sophie
Kasser relata o modo como o trabalho da Moveo (Barcelona) vem sendo
desenvolvido:
Tomber
foi nosso primeiro espetáculo de rua. Foi uma ideia muito simples
e que funcionou e nos surpreendeu. Foi a primeira vez que trabalhamos
com pessoas que não tinham uma formação. Ríamos porque não
fazíamos
annelés
ou triplos desenhos27. Mas havia
causalidades, dínamo-
ritm
o, a hierarquia do movimento, a lógica da ão-reação. Enm, todos
os princípios. E, claro, eles tinham uma formação em teatro físico do
Conservatório. [...] Isso nos abriu uma porta para trabalhar com pessoas
que tinham uma formação ou não e que tinham vontade de misturar
ainda mais as coisas. Como eu tinha dito antes, ao vermos como esses
princípios funcionam, nós podemos trabalhar com qualquer pessoa
(Kasser, 2022).
A associação com a dança, tão rejeitada por Decroux28, aparece também
como estratégia no pensamento e práticas artísticas de Victor de Seixas e seu
“teatro dançante”:
Teatro dançante é o outro caminho, partimos do teatro em direção a
dança, não é um teatro que dança ocasionalmente como o teatro musical,
mas um ‘teatro dançadoque parte inicialmente da proposta
Decrouxiana
,
mas não busca segui-la à risca originalmente. De certa forma, acredito
que quando Decroux criava gestos simbólicos e movimentações
baseadas em seus pensamentos e sentimentos estava, de alguma forma,
dançando o seu mundo interior, mesmo que ele nunca tenha dado essa
nomenclatura, essa transposição é algo bem comum e conhecido no
universo da dança (Seixas, 2023, p.185).
27
Annelés, triplos desenhos, causalidades
e
dinamo-ritmos
são fundamentos técnicos da mímica corporal. v.
Mascarenhas (2021).
28 No livro
Paroles sur le Mime
, Decroux dedica um capítulo à distinção entre a dança e sua mímica corporal,
no qual caracteriza as duas formas de arte com perspectivas até mesmo antagônicas. Os textos que
compõem o capítulo, escritos entre 1951 e 1962 e revistos para a publicação do livro, adotam uma posição
de separação nas artes cuja discussão se define em clara oposição à compreensão contemporânea de
apagamento de fronteiras entre as linguagens artísticas.
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Em minha experiência, as primeiras fricções giravam em torno da mímica
corporal como sistema em relação aos contextos culturais nos quais eu estava
inserido, particularmente na cidade de Salvador (BA).
Estudantes e artistas que participaram de processos de criação ou formação,
ainda durante os períodos do curso livre mencionado, aludiam algumas vezes ao
excessivo rigor ou às referências europeias presentes na técnica como dificuldades
para ultrapassar os choques entre os desejos de expressão pessoais e as
perspectivas procedimentais da MCD.
Há, no estilo decrouxiano, aspectos que apontam para a destituição do
individual em prol de imagens supostamente universais, a partir de temas como o
trabalho, a luta, o pensamento, o amor, a morte, o sonho etc. “E quando vejo um
corpo se levantar, é como se a humanidade estivesse se levantando, declara
Decroux (1978, p. 10)29
Mas, como ser “universalquando o corpo é tão subjetivado e encarnado na
cultura? Um processo de aprendizagem técnica é, de algum modo, uma forma de
aculturação do corpo. Então, seria evidente que tensões pudessem surgir no
ensino-aprendizagem da mímica corporal, como técnica externa, repleta de
referências culturalmente distanciadas.
A questão é discutida por Tania Coke, em sua experiência no Japão. Em seu
depoimento, ela argumenta, porém, não identificar, em seu trabalho de formação
e criação artística, barreiras culturais na exploração da técnica, advogando em prol
de uma sensibilização humana, de natureza universal:
De algum modo, eu tento ter consciência de que as referências culturais
[da mímica corporal] são ocidentais. Os nomes das guras, por exemplo,
como
L’adieu du lys dans la valée
30. Mas são expressões humanas com as
quais todo mundo pode se relacionar. Você não precisa ser francês para
entender a beleza daquele adeus. Eu não vejo nenhuma barreira aqui
(Suyama; Coke, 2022).
Contrariamente, em minha experiência, observo que esse desejo
universalizante
, que está presente na mímica corporal, se baseia em uma
29 And when I see a body rise, I feel as if it’s humanity that’s rising up (Decroux, 1978, p. 10). (Tradução nossa)
30 O
Adeus do rio do Vale
é uma
partitura
decrouxiana que compõe uma série de estudos de “adeuses”. O
título é retirado do romance de 1835 do escritor francês Honoré de Balzac (1799-1850).
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compreensão da corporeidade que pode travar um difícil diálogo com os modos
de comportamento culturais locais.
O trabalho decrouxiano sobre o tronco, por exemplo, a partir do estilo da
politesse
, condiciona o movimento do quadril ao posicionamento do peso ou em
relação ao alto do corpo (cintura, busto, cabeça) como um bloco. Essa
sistematização do movimento determina um contraste absoluto para um grupo
cultural que tem sua base de movimentação na liberdade do quadril. Ricardo Gaete
discute essa reflexão:
O que pode haver de
afro
na mímica corporal? No seu país tem uma
influência africana muito forte, no meu não tem. Ai também tem alguma
coisa dos quadris, de um ritmo distinto, um suingue diferente. E creio que
podemos lidar com o nosso corpo desse modo também. Imaginemos
como seria a mímica corporal africana que creio que também mudaria
para se tornar uma coisa diferente (Gaete, 2022).
Um aspecto exemplar dessa reflexão se encontra na técnica do rosto coberto
da MCD e suas aplicações. Nas fotografias de Étienne Decroux, publicadas tanto
no
Paroles sur le mime
quanto em livros e artigos de autores/as diversos/as,
várias menções sobre o
rosto coberto
. Decroux optou, no processo de
desenvolvimento da MCD, pela busca de dispositivos que possibilitassem a
anulação da face. A literatura decrouxiana indica algumas razões para isso: o valor
da máscara neutra nos trabalhos do Vieux Colombier; o excessivo foco no rosto
que denuncia expressões desgastadas e que restringe as possibilidades de
interpretação pelo espectador; a ritualização do trabalho do ator, em torno da ideia
da
supermarionete
de Gordon Craig; o desejo radical de se afastar da pantomima,
aquele jogo de mãos e rosto”; a perspectiva de centralidade na expressividade
corporal mais abrangente, dentre outros. Decroux chegou a criar um dispositivo
com aquele objetivo:
Quando eu comecei a fazer mímica sozinho, eu convidava pequenos
grupos, nunca mais do que cinco, aqui nessa casa, e escrevia o que eles
diziam sobre o meu trabalho. Uma vez, uma mulher jovem perguntou: “por
que você usa isso em sua cabeça?” Eu não tinha condição de comprar
uma máscara, então eu colocava uma máscara de esgrima que tinha
pedaços de fita amarrados através de toda a tela metálica. “É para que
você aprecie os movimentos do corpo e o se distraia com o rosto”, eu
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respondi. “Sim, mas isso nos faz querer ver apenas o rosto!, ela riu. [...]
(Decroux, 1978, p.36)31.
A utilização de um véu semitransparente que pudesse servir como uma
espécie de máscara neutra é a configuração última, feita por Decroux, nessa busca
de anulação da face. “Mas o véu distrai menos e efetiva o desejado grau de
abstração, diz Decroux (1978, p. 36)32. Embora ele mesmo confesse ter hesitado
posteriormente entre usar ou não a máscara, a
técnica do rosto coberto
é
frequentemente utilizada em processos pedagógicos com a mímica corporal para
dilatação da expressividade. Porém, se por um lado o rosto coberto pode ser
utilizado como um modo de ampliação da percepção corporal, por outro, traz
questões importantes em torno da subjetividade dos artistas.
Aplicado sobre a cabeça e com o corpo seminu (ou com vestimentas que
marquem as linhas corporais) o véu teria a função de criar um perfil em que todo
o contorno corporal se mantivesse legível, como nas imagens para estudo
anatômico. Nessas experiências, o véu ajusta-se rigorosamente, mantendo-se, o
máximo possível, o contorno das estruturas da face e do crânio. Criar-se-ia, nesse
sentido, a imagem de um corpo humano supostamente universalizado.
Em uma cidade cuja população é majoritariamente negra e que guarda a sua
expressão cultural pela assunção de valores e marcadores corporais de matriz
africana e pela luta antirracista, a técnica do rosto coberto ganha outros contornos.
Os cabelos, com penteados nas mais diversas configurações, são emblema de
identidade, expressão pessoal e afirmação racial. Delimitar o contorno do crânio
com a técnica do rosto coberto, achatando os cabelos, tirando-lhes volume e
forma, pode se configurar como uma profunda agressão pela eliminação do que
se constitui como construção identitária cultural, pessoal, subjetivada, racial.
31 “When I first began performing mime on my own, I invited small audiences, never more than five, here to
this little house, and I wrote down what they said about my work. Once a young woman asked, “Why do you
have that on your head?” I didn’t have the means to buy a mask, and so I’d put a fencing mask on that had
bits of ribbon woven through the wire mesh. “It’s so you’ll appreciate the movements of the body and not
be distracted by the face”, I replied. “Yes, but that makes us want to watch only the face”, she laughed”
(Decroux, 1978, p. 36). (Tradução nossa.)
32 But the veil is less distracting, and accomplishes the desire degree of abstraction (Decroux, 1978, p. 36)
(Tradução nossa)
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Sabe-se que o alisamento de cabelos de pessoas negras se configurou,
durante muito tempo, como uma prática repetida de intervenção corporal com
instrumentos de tortura (produtos químicos de alta toxicidade e ferros em brasa),
que resultava em queimaduras no crânio e nas identidades.
A técnica do rosto coberto, ao ser experimentada, traz problemas importantes
quando transportada ainsi dessiné. Como recurso didático e mesmo expressivo, o
rosto coberto pode ser aplicado para garantir o princípio de ampliação da
consciência e dilatação da corporeidade. No entanto, sua prática reconfigurada,
deixando de lado os contornos cranianos e assumindo a forma corporal existente,
inclusive pelos penteados, permite integrar as diferenças e as individuações dos/as
participantes. O rosto coberto à baiana afasta-se radicalmente de uma noção de
universalidade e desconsidera a ideia de proporcionalidade corporal. Em lugar do
contorno do crânio, o rosto coberto abre espaço para a compreensão das
singularidades corporais e das afirmações individuais, subjetivadas e culturalmente
construídas. Assim, uma possibilidade de exploração do rosto coberto
pós-
decrouxiano
identifica, singulariza, caracteriza.
O uso do véu, em sua materialidade, ao promover o exercício de singularização
e não de universalização, se constitui como uma metáfora às avessas33 para
compreender os caminhos e possíveis categorias de estratégias utilizadas por
artistas-mímicos contemporâneos em suas trajetórias e diálogos com a mímica
corporal. A busca de uma voz própria tende a passar pelo reconhecimento de si e
do outro e do entendimento da técnica, cada vez mais, como um sistema
expressivo que ultrapassa os limites temporais, poéticos e estéticos da criação
decrouxiana.
Novos desenhos...
Encontrar uma voz própria que alinhe, por um lado, a adesão a um sistema
poético e artístico e, por outro lado, as demandas do tempo se configura como um
33 A
metáfora às avessas
(
métaphore à l’envers
) é um princípio metodológico desenvolvido por Decroux para
dar conta da natureza das imagens criadas pela corporeidade. Ao contrário da figura de linguagem que se
define pela tradução de uma imagem subjetiva por uma imagem concreta por exemplo, estar com a
cabeça nas nuvens - a
metáfora às avessas
propõe a realização de ações concretas, fisicamente
materializadas, que possam se abrir para a criação de imagens abstratas.
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dos maiores desafios enfrentados por mímicos corporais contemporâneos. Essa
construção, que implica no reconhecimento do sujeito criante em um processo de
construção individual e coletivo, se manifesta na identificação de diversas
estratégias que se situam entre o respeito pelos princípios fundamentais da
mímica corporal e o desejo de diálogo com perspectivas mais subjetivas, pessoais
e culturalmente inclinadas.
Em primeiro lugar, os artistas defendem e se posicionam como descendentes
de uma linhagem de artistas na qual Étienne Decroux é um ponto de referência
fundamental, senão um marco fundador. Nessas circunstâncias, a relação de
lealdade ao sistema e, em alguns casos, também à sua poética, se mantém viva
através das práticas pessoais de estudo da técnica e nos modos de ensino-
aprendizagem. Os mímicos continuam a sua jornada de aprofundamento e
aprimoramento da técnica, em busca do domínio do sistema que, compreendem,
permitirá o desenvolvimento do seu trabalho artístico.
Aliado a isso, a própria vivência do método e os desejos de expressão pessoal
apontam possibilidades ou despertam interesse em ampliar as fronteiras poéticas
do sistema decrouxiano, de modo que o pensamento contemporâneo sobre a
corporeidade e a arte se manifestem com mais precisão nos trabalhos artísticos.
O reconhecimento das dissonâncias do pensamento decrouxiano com a
contemporaneidade, a invenção de novas formas de ensino-aprendizagem, a
associação de técnicas artísticas diversas, a identificação de espaços de ampliação
das possibilidades de desenvolvimento cênico-criativo, o mapeamento de limites
de tradução da técnica para outros contextos socioculturais e a construção de
críticas de natureza decolonial sobre a suposta universalidade do sistema são
algumas dessas estratégias apontadas por artistas cuja prática, de longa duração,
se enraíza na mímica decrouxiana.
Cerca de 30 anos após o desaparecimento de Étienne Decroux,
transportar
como desenhado
se reorganiza em diversos caminhos, em busca de uma espécie
de pluriversalidade, na qual as singularidades dos artistas criadores se somam,
coletivamente, aos pensamentos e desejos de expressão contemporâneos. Na
perspectiva que poderíamos chamar de
pós-decrouxiana
, esses artistas mantêm,
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de modo resistente, os princípios técnicos e filosóficos do sistema criado por
Étienne Decroux, acrescentando suas próprias vozes e olhares, garantindo, de
algum modo, a preservação pela transformação da técnica.
Compreendo que reside no abandono da ideia de universalidade e na busca
de abordagens singulares da mímica corporal, a potência de assimilação,
aprofundamento e exploração do sistema, não em sua configuração histórica,
como tradição artística, mas como língua viva, transformada cotidianamente em
sua dinâmica. Nessa reconfiguração, o corpo que se levanta talvez não seja o da
humanidade, mas de um sujeito, específico, particular, com suas dúvidas e lutas,
seus desejos de expressão.
Nesse sentido, estabelece-se um paradoxo curioso: ao se afastarem relativa
ou criticamente dos fundamentos decrouxianos, os artistas-mímicos tornam-se
ainda mais próximos do pensamento de Étienne Decroux (2003, p. 200) para quem
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Revista Brasileira de Estudos da Presença
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Recebido em: 05/06/2024
Aprovado em: 11/09/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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