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Tempo de despertar:
um relato sobre a Rede de Bonequeiras Brasileiras
Fabiana Lazzari de Oliveira
Barbara Duarte Benatti
Joana Vieira Viana
Para citar este artigo:
OLIVEIRA, Fabiana Lazzari de; BENATTI, Barbara Duarte;
VIANA, Joana Vieira. Tempo de despertar: um relato sobre a
Rede de Bonequeiras Brasileiras.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0201
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Tempo de despertar: um relato sobre a Rede de Bonequeiras Brasileiras
Fabiana Lazzari de Oliveira | Barbara Duarte Benatti | Joana Vieira Viana
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-19, dez. 2024
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Tempo de despertar: um relato sobre a Rede de Bonequeiras Brasileiras1
Fabiana Lazzari de Oliveira2
Barbara Duarte Benatti3
Joana Vieira Viana4
Resumo
O presente artigo é um relato sobre o coletivo Rede de Bonequeiras Brasileiras (RBB). Entendem-se
como “bonequeiras” as artistas que trabalham com o teatro de animação (bonecos, objetos,
silhuetas/sombras e máscaras) nos mais diversos ofícios, entre produtoras, atrizes animadoras,
construtoras, dentre outros. Somos partícipes da referida Rede e trazemos reflexões sobre como surgiu
o coletivo, as principais ações realizadas e os possíveis rumos. Os principais autores que permeiam
nossas reflexões são Jacques Le Goff (2012), Maria Homem (2020), Grada Kilomba (2019) e bell hooks
(2019).
Palavras-chave
: Teatro de animação. Bonequeiras. Coletivo. Feminismos.
Awakening time: a reflection about the Brazilian Puppeteers Network
Abstract
This article is a report on the collective Rede de Bonequeiras Brasileiras (RBB). “Dollmakers” are
understood to be artists who work with animation theater (dolls, objects, silhouettes/shadows and
masks), in the most diverse activities, including producers, animating actresses, construction
companies, among others. We are participants in this Network, and we bring reflections on how the
collective emerged, the main actions carried out and possible directions. The main authors that
permeate our reflections are Jacques Le Goff (2012), Maria Homem (2020), Grada Kilomba (2019) and
bell hooks (2019).
Keywords:
Animation theater. Puppetry. Collective. Feminism.
La hora del despertar: una reflexión sobre la Red de Titiriteras Brasileñas
Resumen
Este artículo es un reportaje sobre el colectivo Rede de Bonequeiras Brasileiras (RBB). Se entiende por
“fabricantes de muñecas” a los artistas que trabajan con teatro de animación (muñecos, objetos,
siluetas/sombras y máscaras), en las más diversas actividades, incluyendo productoras, actrices de
animación, empresas constructoras, entre otras. Somos partícipes de esta Red, y traemos reflexiones
sobre cómo surgió el colectivo, las principales acciones realizadas y posibles rumbos. Los principales
autores que impregnan nuestras reflexiones son Jacques Le Goff (2012), Maria Homem (2020), Grada
Kilomba (2019) y bell hooks (2019).
Palabras clave
: Teatro de animación. Titiriteras. Colectivo. Feminismos.
1 Revisão gramatical, técnica e contextual do artigo realizada por Paulo Henrique de Castro e Faria. Graduação em Letras
(Português) pela Universidade de Brasília (UnB) e Comunicação Social (Jornalismo) pelo então Centro de Ensino Unificado
de Brasília (Ceub - UniCeub). paulo.castro.jornalista@gmail.com
2 Doutorado e Mestrado em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Licenciatura em Educação
Artística pela UDESC. Professora adjunta do Departamento de Artes Cênicas da UnB e do Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas (UnB). fabianalazzari@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5893257809893327 https://orcid.org/0000-0003-2757-2087
3 Doutoranda em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Mestrado em Artes Cênicas pela UnB. Bacharelado em
Administração, com ênfase em Hotelaria, pelo Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB). Licenciatura em Educação
Artística (Artes Cênicas) pela UnB. barbara.d.benatti@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0158261673539228 https://orcid.org/0000-0001-8301-6910
4 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestrado em Artes Cênicas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Especialização em Docência no Ensino Superior pela Universidade
Norte do Paraná (UNOPAR). Graduação em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Professora de Teatro na
Prefeitura Municipal de João Pessoa (PB). joanavieiraviana@hotmail.com
http://lattes.cnpq.br/5341365230814957 https://orcid.org/0000-0001-9980-8947
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Introdução
O presente manuscrito é um relato reflexivo entre nós, autoras, sobre o
coletivo do qual fazemos parte: a Rede de Bonequeiras Brasileiras (RBB). O título
do nosso manuscrito diz respeito às elucubrações que fizemos do enredo do filme:
“Tempo de Despertar”.5 Servem-nos de base teórica os escritos de Jacques Le
Goff (2012), Maria Homem (2020) e Grada Kilomba (2019), dentre outros.
Estamos resgatando nossa memória sobre um movimento que cresceu e
tomou forma com bastante vigor em um contexto muito específico: durante a
pandemia de Covid-19.
A etimologia da palavra “memória”, de acordo com o que Marilena Chauí
(2005) discute em
Convite à Filosofia
”, deriva do grego (“mnemis”) e do latim
(“memor”). Em ambas as derivações, o termo remete ao sentido de conservar uma
lembrança. Chauí diz que, para os gregos, a memória estava rodeada pela luz da
divindade, por referir-se à “[...] Deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que protegem
as artes e a história” (2005, p. 138). Mnemosyne, segundo a mitologia grega, era a
deusa da memória, da lembrança; é aquela que tudo lembra e sabe. Mãe e
condutora das musas, a deusa da linguagem descendia de Urano – o céu – e Gaia
a terra. Descobriu o poder da memória, nomeando e criando conceitos para que
os mortais conversassem e pudessem se entender sem brigar.
Como menciona Chauí (2005) em relação à palavra “memória”, apresentamos
como apoio ao nosso raciocínio a obra de Jacques Le Goff (2012):
História e
Memória
”, que oferece um estudo aprofundado sobre o assunto, entendido como
uma prática social. Le Goff, na quarta parte do seu livro, intitulada: “A Ordem da
Memória”, conduz seu estudo, pontuando que a memória é seletiva, uma vez que
realiza a fixação, a conservação, a lembrança e o reconhecimento dos
acontecimentos.
A memória faz parte de um sistema informático, cujos dados são introduzidos
e conservados e podem ser posteriormente recuperados. Está inserida em um
5 “Tempo de Despertar” (título original: “Awakenings”, de 1990), filme do gênero de drama biográfico, lançado
no Brasil no ano de 1991, dirigido por Penny Marshall, com Robert De Niro, Robin Williams, entre outros. É
baseado nas memórias (1973) de mesmo título do médico neurologista inglês Oliver Sacks.
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contexto, seja ele social, familiar, nacional e histórico. Além disso, constitui um
elemento essencial da percepção de si, da identidade e de um grupo de pessoas.
Vem arraigada em cada visão de mundo, em maneiras de agir e pensar.
Segundo Le Goff, o que sobrevive do passado não é o que existiu, mas sim o
que se escolhe para estudar, pois o documento é a escolha, já o monumento é a
herança do passado.
Trazendo o tema para um contexto pessoal, iremos pensar em uma célebre
frase do poeta Waly Salomão (1996), que diz que “a memória é uma ilha de edição”.
Dessa forma, escolhemos, de maneira consciente ou não, o que lembrar e o que
esquecer.
Assim, para contarmos a história da RBB, traremos nossa percepção, o que
escolhemos rememorar e contar sucintamente neste artigo. Para isso, nós nos
baseamos em dados quantitativos e qualitativos, colhidos no espaço de tempo
dos anos de 2020 a 2024.
A artista, diretora, dramaturga e produtora Verônica Gerchman, em seu artigo:
A RBB Rede de Bonequeiras Brasileiras
”, publicado na Revista Mamulengo
(2022), conta-nos sobre como ela tomou conhecimento da RBB.
Era julho de 2020, estávamos vivendo a junção nefasta do governo
Bolsonaro e a pandemia da Covid-19 ceifando vidas em nosso país.
Medidas sanitárias que indicavam o isolamento social, repletas de
incongruência e informações dúbias, tentavam conter a disseminação do
vírus, deixavam tudo em suspenso. […] Várias mulheres começaram a me
falar de um grupo de bonequeiras no
WhatsApp
. Foi lá que eu soube que
a semente da rede de bonequeiras brasileiras havia sido plantada, em
dezembro, de 2019, para celebrar a beleza e força da mestra Dadi
Calungueira (1938-2021), brincante popular do teatro de bonecos da
cidade de Carnaúba dos Dantas (RN). As bonequeiras da Região Nordeste
do Brasil que iniciaram este movimento queriam homenagear em um
encontro presencial esta artista precursora, que começou a brincar com
o boneco quando poucas mulheres se atreviam a fazê-lo, pois esse fazer
sempre havia sido predominantemente masculino. O movimento tinha a
finalidade de reunir essas mulheres nesta celebração, mas com a
chegada da pandemia isso não foi possível. O coletivo começou a crescer
e mais mulheres, do país todo, foram se juntando por meio desse grupo
no
WhatsApp
(Gerchman, 2022, p.54).
O termo “brincante”, mencionado por Gerchman, refere-se ao nome que se
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às e aos artistas do Teatro de Bonecos Popular do Nordeste.6 Mestras são as
que conduzem o espetáculo e, em alguns casos, confeccionam os bonecos com
que trabalham. A mestra é alguém que também compartilha os conhecimentos
que adquiriu após um longo período de aprendizado e experiência (Brochado,
2014). É importante pontuar que, se compararmos o número de mestras com o
quantitativo de mestres homens no contexto do Teatro de Bonecos Popular do
Nordeste, as mulheres ainda buscam o espaço de equidade. Ou seja, na cultura
popular, não ocorre algo diferente do que vemos na política, nas grandes
corporações ou nos cargos de chefia, por exemplo.
A mestra Dadi (1938-2021), na época em que se mobilizou um grupo de
mulheres a se reunir com o propósito de homenageá-la, estava muito idosa e
vivia em uma casa de repouso em Caicó (RN). Ela atuava há mais de duas décadas
na arte de dar vida aos bonecos, apresentando para diversos públicos os
personagens consagrados pelo João Redondo. Foi a única mulher identificada no
processo que celebra nove anos de registro da referida arte como Patrimônio
Cultural do Brasil, inscrito no Livro de Formas de Expressão do Patrimônio Cultural
Brasileiro desde 5 de março de 2015.
Sobre o fazer e a importância da mestra Dadi, existe o trabalho realizado pela
pesquisadora Maria das Graças Cavalcanti Pereira, que produziu uma importante
obra que resultou na publicação do seu livro, intitulado:
Dadi e o Teatro de
Bonecos: Memória, Brinquedo e Brincadeira
(2011), cujos escritos revitalizam e
atualizam a reflexão da atuação de mestra Dadi.
A semente citada por Verônica Gerchman (2022) foi plantada por Catarina
Araújo de Medeiros, a Catarina Calungueira, cujo sonho era o de reunir mulheres
brincantes em um evento no Rio Grande do Norte. O grupo, criado no
WhatsApp
,
tinha o objetivo de discutir, organizar e planejar tal encontro. Estávamos em
dezembro de 2019
e, logo depois, com as medidas de isolamento, por conta da
pandemia de Covid-19, vimos a impossibilidade de realizar o evento de forma
6 O Teatro de Bonecos Popular do Nordeste abrange o Mamulengo, o Babau, o João Redondo/Calunga e o
Cassimiro Coco. Apresenta nomes diversos, dependendo do estado: Cassimiro Coco no Piauí e também em
algumas regiões do Ceará e do Maranhão; João Redondo ou Calunga no Rio Grande do Norte; Babau na
Paraíba; Mané Gostoso na Bahia; Briguela em Minas Gerais; e Mamulengo em Pernambuco e também no
Distrito Federal.
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presencial.
Nas configurações do grupo no
WhatsApp
, todas as mulheres são
administradoras, de tal forma que todas podem adicionar novas participantes. Em
questão de dias, estava formada uma grande rede de conexão (mais de 257
participantes): mulheres de vários estados brasileiros, artistas atuantes do Teatro
de Animação.7
Em um dado momento de muitas conversas, apresentações, “bom dia” e “boa
noite”, figurinhas, reações com
emojis
e notícias das mais diversas, uma pauta
entrou em discussão: como nos nomear, que éramos tantas mulheres com
diferentes atuações e especificidades dentro do Teatro de Animação? Após muitas
trocas, todas concordaram que “bonequeiras” era o termo que dava conta de
representar a multiplicidade desse fazer. Assim, foi deliberado que o nome do
grupo seria: “Bonequeiras Brasileiras”. O movimento, empolgado no
WhatsApp
, era
o nosso tempo de despertar e nos congregar como rede.
Aproveitando-se o ensejo, o título do nosso manuscrito foi pensado a partir
do enredo do filme: “Tempo de Despertar” (1990). O longa-metragem, baseado em
fatos reais, conta a história de um médico neurologista, Malcolm Sayer,
interpretado por Robin Williams, que, em 1969, trabalhava em um hospital
psiquiátrico, no qual vários pacientes estão aparentemente catatônicos. Sayer
aplica alguns testes simples nos pacientes, como o de atirar uma bola. Em seguida,
ele observa a reação deles com uma música ao fundo e percebe alguns reflexos.
Dessa forma, ele chega à ideia clínica de que os pacientes não estão catatônicos,
mas sim em um estado de sono profundo. Assim, o seu desafio como médico
passa a ser o de “despertá-los”. Empolgado com o fenômeno, ele parte para a
pesquisa sobre o assunto e chega à conclusão de que a L-Dopa, uma nova droga
que estava sendo usada para pacientes com doença de Parkinson, deveria ser o
medicamento ideal para os referidos casos.
Contudo, ao conversar com o diretor do hospital, ele o autoriza a usar o
medicamento com apenas um paciente. Sayer, então, escolhe Leonard Lowe,
7 Para uma compreensão mais detalhada sobre a amplitude da linguagem do Teatro de Animação, trazemos
a seguinte definição: “Marionete, boneco, figura, objeto ou forma. Qualquer que seja sua nomenclatura,
estamos falando de um teatro onde o inanimado é o personagem central” (Amaral, 2007, p. 16).
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interpretado por Robert De Niro. Leonard, aos poucos, se recupera. Assim, Sayer
passa a administrar a L-Dopa em outros pacientes sob a sua supervisão. No
decorrer da narrativa, os pacientes mostram sinais de melhoria; entretanto,
Leonard começa a apresentar efeitos colaterais. Por um tempo, houve um grande
despertar em todos os pacientes, que “acordaram” para a vida e puderam sentir e
viver várias experiências, de forma que a narrativa do filme nos afeta com o
momento de seu despertar e de viver a vida na sua plenitude.
O filme nos remete a uma reflexão, fazendo-nos não olhar para o passado,
pensando no que vivemos até aqui, mas também de modo a propiciar a
valorização do momento presente, uma vez que devemos dar importância ao que
temos hoje, lançando um olhar para o futuro, por mais breve que possa parecer.
O contato com a morte de alguma forma opera uma transformação na nossa
percepção da vida. Instiga-nos a refletir sobre a importância de “despertar” não
para novas experiências e possibilidades, mas também para viver a vida com
intensidade.
Nossa hipótese é que a vida cotidiana e atribulada, imposta pela rotina
exaustiva com o trabalho, nos faz agir “no automático”, como se estivéssemos
adormecidas. O contexto da pandemia, com a paralisação imposta pelo
isolamento social, despertou-nos para o coletivo, fazendo-nos valorizar as
relações pessoais, a saúde e o contato com a natureza – individual e socialmente
(a exemplo da Rede de Bonequeiras Brasileiras).
Paradoxalmente, entre o despertar também havia a necessidade de apagar,
no sentido de evitar a paralisia diante do medo, das mortes e da necropolítica.
Sentimentos diversos de polaridades opostas: euforia/melancolia;
medo/esperança; despertar/apagar; sorrir/chorar.
O aninhar da RBB
Os pássaros se aninham nas copas das árvores para fazer seus ninhos.
Aninhar, no sentido figurado, é acolher, abrigar, o ato de aconchegar-se. O aninhar
da RBB teve o ano de 2020 como um marco. Como sabemos, o período
representou um momento de profundas transformações em nossas vidas. Com a
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pandemia de Covid-19, o ambiente virtual preenchia um espaço importante.
Naquele contexto, a RBB representava o aninhar do qual precisávamos em um
momento de muito medo e de incertezas.
Estávamos diante de um crescimento exponencial de mortes todos os dias
nos jornais, nas redes sociais e nos demais veículos de comunicação.
Acompanhávamos o avanço da pandemia no Brasil e no mundo: superlotação de
hospitais, colapso do sistema de saúde em muitas regiões brasileiras, falta de
leitos nas UTIs para pacientes graves, momentos de escassez de materiais de
segurança para profissionais de saúde e, também, não podemos nos esquecer dos
elementos básicos para o tratamento dos doentes — como foi o caso da crise de
oxigênio em Manaus (AM). Enquanto tudo isso acontecia, o governo brasileiro
parecia querer sabotar o
lockdown
feito por governadores. Nosso então presidente
divulgava e indicava o uso de um medicamento sem eficácia comprovada,
promovia aglomerações e se dizia contrário à vacinação obrigatória.
A autora Maria Homem, em seu livro:
Lupa da Alma: Quarentena e Revelação
(2020), tece a complexidade daquele período nas mais diversas esferas da vida
humana, passando por reflexões sobre o eu, o outro, amor, ódio, família, filiação,
trabalho, laço social, coletivo, planeta, luto e morte. Na introdução da obra, ela
questiona: “Agudizar seria o verbo desses tempos?” (Homem, 2020). A autora
discorre também sobre como estávamos em um estado de adormecimento, como
se fosse uma estratégia de anestesiarmo-nos para sobreviver diante do caos. Maria
Homem alcunha o termo “carentena”, ligado à ideia de carência, diante de
slowdowns
e
lockdowns
, junto com a sensação invasiva da precariedade que,
segundo ela, atravessou a alma contemporânea e desvelou a nossa fragilidade
tanto como sujeito individual quanto coletivo. Corpos, emoções, razões, trabalhos
e relações parecem ter sido postos em suspenso, impelindo-nos a encarar de
frente o desarranjo econômico, as desigualdades sociais acentuadas, a crise
política, o aumento da violência doméstica, as inúmeras mortes e a mente, diante
de tudo isso, em desorientação.
Para algumas pessoas com acesso à
internet
e que tiveram o privilégio de
manter-se em isolamento social, o ambiente virtual, paradoxalmente, também
representava um pouco de acalento. Diversos artistas encontraram nas
lives
uma
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forma de expressão artística, possibilitando entrar em contato com o público e,
muitas vezes, manter as agendas de shows e espetáculos, que foram cancelados
por conta do isolamento. Não artistas, como também instituições de ensino e
diversos outros profissionais começaram a fazer
lives
com o objetivo de não
congelar totalmente a rotina, representando ainda a possibilidade de arrecadar
recursos para tentar conter os agravos e danos econômicos causados pela
pandemia.
Maria Homem (2020) nos revela esse sistema mental e subjetivo que moldará
nossa forma de sentir, pensar e se relacionar. Assim, videochamadas,
meetings
,
redes sociais, plataformas,
apps
e
sites
passaram a ampliar a experiência humana
nos processos virtuais.
O espaço do virtual nos despertou: percebemos a praticidade desse veículo
e como podemos ser mais econômicos, menos danosos para o planeta, ao
diminuir os custos e o tempo dedicado ao deslocamento. Havia, além das
lives
, o
engajamento e debates sobre quaisquer assuntos nos grupos do
WhatsApp
e do
Telegram.
Assim como no filme, estávamos saindo do estado catatônico
provocado pelo medo. O grupo da RBB nos possibilitou o tempo de despertar, uma
outra forma de ver e viver a vida. Além de discussões divertidas e empolgantes no
WhatsApp
, a RBB também estava em diversas outras mídias: o canal no
Youtube
,8
as páginas nas redes sociais do
Facebook
9 e do
Instagram
10 e, ainda, um
blog.
11 E,
para a nossa organização, criamos Comissões de Comunicação, Pesquisa,
Mapeamento e Formação, cada uma com suas funções específicas, mas
interagindo entre elas.
Além de sermos ponte entre mulheres, comunicando e informando,
tínhamos no espaço virtual um lugar de encontro entre nós, de conversas,
partilha de sentimentos, de questões do feminino, da maternidade e
muito riso. Às vezes as conversas nesse grupo de comunicação iam até
tarde da noite, quase como uma festa do pijama virtual, em que se falava
de assuntos sérios, mas também em que havia muitas brincadeiras
(Gerchman, 2022, p. 57).
8 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UC13EGG9aFP3Mn5NxDWcKZuA. Acesso em: 4 jul. 2023.
9 Disponível em: <https://www.facebook.com/bonequeirasbrasileiras/>. Acesso em: 4 jul. 2023.
10 Disponível em: <https://www.instagram.com/bonequeirasbrasileiras>. Acesso em: 4 jul. 2023.
11 Disponível em: <https://bonequeirasbrasileiras.wordpress.com/>. Acesso em: 4 jul. 2023.
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10
A RBB promoveu uma
live
em celebração ao Dia Internacional da Mulher (no
dia 8 de março de 2021, homenageando a artista e pesquisadora Ana Maria
Amaral12) e realizou o lançamento da edição 23 da Revista de Estudos sobre o
Teatro de Animação, a Móin-Móin,13 com a temática:
A atuação das mulheres no
Teatro de Animação
”.14
Outra
live
marcante foi a de “Conversas de Atelier”, que aconteceu em 28 de
maio de 2021 e deu início a um projeto contínuo de produção de conteúdos.
Acontecia uma vez por mês, no período da lua cheia. Tinha o objetivo de falar
sobre os processos criativos e promover a troca de saberes entre as bonequeiras.
A primeira edição das “Conversas de Atelier Celebração da Lua Cheia/Mulheres
Construtoras” contou com a mediação das mamulengueiras Cida Lopes (PE) e
Neide Lopes (PE) e as participações de Lena Martins (RJ), Rocio Walls (Argentina),
Júlia Barnabé (SP) e Genifer Gerhardt (RS).
Além das
lives
, a presença da RBB se deu em vários eventos, como o
Poéticas do Inanimado; na homenagem à mestra Dadi, no Seminário de Teatro
de Animação de Joinville; na mesa Grandes Mulheres e seus Espetáculos em
Pequenas Caixas, do evento Anima Praça; em vídeos-pesquisa nos eventos
acadêmicos e nas falas das integrantes da Rede em diversas ocasiões.
Havia também no coletivo uma preocupação em acolher mulheres que
precisavam de ajuda econômica. Assim, a Comissão de Apoio da RBB
disponibilizava e ainda disponibiliza mensalmente uma lista com dados bancários
de companheiras bonequeiras com dificuldade financeira nos grupos do
WhatsApp
e do
Telegram.
Para além da ajuda econômica, outra ação da RBB foi a de organizar
um grupo de terapeutas voluntárias, que deram suporte, levando em consideração
a sobrecarga emocional que a pandemia trouxe às mulheres, principalmente se
pensarmos na jornada dupla de trabalho que já recai sobre nós.
12 Ana Maria Amaral é diretora, dramaturga e pesquisadora. Ela criou, no Departamento de Artes Cênicas da
Universidade deo Paulo (USP), os primeiros cursos de graduação e pós-graduação na área de Teatro de
Animação, tendo então surgido as primeiras pesquisas acadêmicas na área.
13 Uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas do Centro de Artes da
Universidade do Estado de Santa Catarina, em uma ação do Programa de Extensão de Formação Profissional
no Teatro Catarinense.
14 Disponível em: <https://revistas.udesc.br/index.php/moin/issue/view/751>. Acesso em: 4 jul. 2023.
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Logo no começo da RBB, quando aconteceu a primeira reunião pelo aplicativo
Zoom
(em junho de 2020), identificou-se a necessidade de formar comissões para
que as ações pudessem ser viabilizadas. Dessa forma, surgiu a demanda de
realizar um mapeamento entre nós, na tentativa de nos reconhecer e nos organizar
como um coletivo (Benatti; Viana, 2021). Uma comissão com 10 participantes foi
formada para atuar na elaboração desse questionário. Após sua elaboração no
Google Forms
, ele foi lançado no encerramento do evento Seminário
Internacional de Teatro de Bonecos de Joinville, na mesa: “Reflexões, experiências
e pesquisas da atuação da mulher no Teatro de Animação”, que contou com a
participação das convidadas Clorys Daly (RJ), Verônica Gehrmann (SP) e Catarina
Calungueira (RN). A mesa foi mediada pela Profa. Dra. Sassá Moretti (UFSC) e sua
apresentação foi realizada pela Profa. Dra. Fabiana Lazzari (UnB).
A realização do mapeamento teve um papel fundamental na RBB,
evidenciando que fazemos parte de uma maioria, que é branca, cisgênero, sem
deficiência, com formação acadêmica e de classe média, conforme mostra a
análise dos dados a seguir.
Figura 1 - Em qual Estado você reside? Fonte: Mapeamento da RBB
Na Região Nordeste, por exemplo, um fenômeno relativamente recente diz
respeito ao protagonismo com grupos de Teatro de Bonecos Popular do Nordeste
(Mamulengo) formados por mulheres. Nós sabemos da existência delas, mas
foram poucas que preencheram o questionário do mapeamento. Algumas vezes,
a participação estava centralizada em uma pessoa para preencher o formulário.
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12
Com relação à pergunta sobre cor/etnia, evidenciou-se certa complexidade.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), principal provedor de dados
e informações do País, pesquisa a cor ou a raça da população brasileira com base
na autodeclaração. A classificação da cor da pele é baseada em uma categorização
que reconhece as seguintes características: branca, preta, parda, amarela e
indígena. Segundo o IBGE, a identificação da cor e da raça de uma pessoa envolve
considerações tanto fenotípicas quanto de ancestralidade.
Sabemos que, na formação da população brasileira, são diversos os povos
que a compuseram: negros de várias regiões do continente africano, indígenas de
diversas etnias, europeus, árabes, japoneses etc. Portanto, a cor “branca” é
atribuída a pessoas com características análogas a ancestralidades europeias.
a cor “preta” é utilizada para pessoas com características fenotípicas associadas a
ancestralidades africanas. A categoria “parda” é usada para descrever pessoas
miscigenadas com descendência de diversos grupos. A categoria “amarela” é
associada a pessoas com ascendência oriental (japonesa, chinesa, coreana etc.).
a categoria “indígena” é utilizada para pessoas com ascendência indígena. No
mapeamento da RBB, ofereciam-se as quatro opções: branca, negra, indígena e
outro
, oferecendo espaço para que a bonequeira pudesse preencher e se definir
de uma forma diferente das quatro anteriores. O resultado obtido pode ser
observado conforme a figura a seguir.
Figura 2 - Pergunta sobre cor/etnia. Fonte: mapeamento da RBB
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Assim, 65,9% das mulheres que responderam ao questionário disseram que
são brancas, enquanto apenas 11,3% consideram-se pretas e 3,3% marcaram a
opção indígena. As 19,5% restantes optaram por denominar sua cor de outra forma.
Do total de respostas, 7% se descreveram como pardas, 0,7% como amarelas e
10,8% deram respostas que aludem à miscigenação, como “não branca”, “morena”,
“mestiça”, “misturada”, “brasileira”, “miscigenada”, “mesclada”, “vira-lata brasileira”,
“branca misturada”, “cabocla”, dentre outras. O fato de termos colocado no
questionário do mapeamento a opção
outro
nos possibilitou ver uma gama de
respostas, que refletem uma falta de letramento sobre a questão racial e/ou uma
dificuldade de percepção sobre si.
A artista feminista negra Grada Kilomba, em seu livro:
Memórias da
Plantação
(2019), em um tópico intitulado: “Cartas da autora à edição brasileira”,
diz que a língua, por mais poética que seja, tem também uma dimensão política
de fixar e perpetuar relações de poder e de violência, “pois cada palavra que
usamos define o lugar de uma identidade”. As palavras que apareceram no
mapeamento da RBB, utilizadas para fazer alusão ao processo de miscigenação,
também refletem a história das políticas de insulto e o racismo diário na língua
portuguesa. Termos como “mulata” e “mestiça”, por exemplo, foram criados
durante os projetos europeus de escravatura e colonização, conforme pontua
Kilomba (2019, p. 20), reduzidos às “novas identidades” frutos da miscigenação a
uma nomenclatura animal: “o que é particular a toda essa terminologia é o fato de
estar ancorada num histórico colonial de atribuição de uma identidade à condição
animal”.
Sobre trabalho e renda, podemos perceber que a maioria das mulheres
mapeadas faz parte do que se entende por classe C, tendo como renda mensal
domiciliar algo entre R$ 2,9 mil e R$ 7,1 mil. Pelo critério monetário do IBGE, a
classe média é a classe C, que está na média da renda da população brasileira.
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Figura 3 - Renda mensal. Fonte: mapeamento da RBB
Mais da metade das bonequeiras mapeadas (63,2%) possui renda mensal, ao
contrário do restante (36,8%), que não possui. Sobre o valor médio, pouco mais da
metade (51,3%) das mulheres que responderam ao questionário afirmou que elas
recebem de 2 a 5 salários mínimos. Acima do referido valor, 7,3% assinalaram que
recebem de 5 a 10 salários mínimos. Por sua vez, 2% do total respondeu que elas
recebem de 10 a 15 salários mínimos e apenas 0,3% das mulheres responderam
que recebem 15 salários mínimos ou mais. 24,2% do total marcou a opção 1
(salário mínimo), e 0,7%, menos de um salário mínimo. O restante das respostas
foi mais específico, o que demonstrou sazonalidade ou instabilidade quanto a um
valor médio de renda mensal ou apontou para a ausência de renda, muitas vezes
por consequência da pandemia.
Em geral, é uma parcela da população que depende quase exclusivamente
da renda do trabalho, seja ele formal ou informal. É importante frisar que 64,4%
responderam que não têm no teatro de animação sua principal fonte de renda,
pois muitas vezes são profissionais da educação (professoras ou oficineiras),
realizam trabalho autônomo (como produtoras ou artesãs, por exemplo) ou têm
outras formas de subsistência. Por sua vez, 64,8% das mulheres mapeadas (mais
da metade) não são as únicas a contribuir com a renda familiar, enquanto 35,2%
delas representam a única renda da família.
Quando questionadas sobre as formas de gerar renda, 301 mulheres que
responderam ao questionário poderiam assinalar mais de uma opção dentre as
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nove oferecidas ou ainda preencher o espaço do texto com suas próprias palavras.
Os resultados obtidos foram os seguintes:
227 marcaram a
apresentação de espetáculos
como opção de geração de
renda, perfazendo 75,2% do total;
221 (66,6%) marcaram a opção
cursos e oficinas
;
194 (64,2%) marcaram a opção
editais públicos
;
120 (39,7%) marcaram
contratos com empresas privadas
;
119 (39,4%) marcaram
construção de bonecos e adereços
;
104 (34,4%) marcaram
chapéu
(arrecadação com espectadores, geralmente
em espaços públicos);
77 (25,5%) marcaram
leis de incentivo à cultura/mecenato;
36 (11,9%) marcaram
venda de bonecos em feiras.
Foram registradas, ainda, 36 respostas pessoais, mais específicas quanto às
formas de geração de renda.
Foi muito importante para a RBB ter acesso aos dados gerados pelo
mapeamento; porém, devemos ponderar algumas questões. A primeira diz
respeito ao aplicativo escolhido, o formulário de coleta de dados do
Google Forms
.
Alguns elementos são práticos, principalmente no que diz respeito à elaboração e
à veiculação do formulário, cujo preenchimento foi feito de forma coletiva e à
distância. Contudo, algumas funções do formulário são complicadas de se lidar,
como, por exemplo, a impossibilidade de alteração de dados, depois que ele já foi
enviado preenchido. Temos respostas duplicadas, além de dados que depois
percebemos que foram preenchidos de maneira errada (data de nascimento, por
exemplo). Ou seja, questões pendentes que não temos como resolver no próprio
formulário, razão pela qual tivemos que exportar os dados e lidar com ele em
outra plataforma ou arquivo.
Outra questão diz respeito ao próprio formato do questionário de
mapeamento, pois é muito extenso (possui 103 perguntas no total) e conta com
espaços indesejados para que as bonequeiras escrevessem suas respostas.
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Mesmo as questões de múltipla escolha ofereciam sempre a opção “outro” para
preenchimento, o que dificultou a análise dos dados, por não oferecer uma
precisão na resposta. Vale refletir também sobre o alcance do mapeamento, uma
vez que a coleta de dados foi feita pela
internet
e a divulgação ocorreu por meio
das redes sociais. Os dados mostram uma predominância maior de bonequeiras
nas Regiões Sudeste e Centro-Oeste, sendo quase inexistentes na Região Norte do
País. Temos consciência de que os dados não representam a realidade, uma vez
que muitas mulheres que trabalham com teatro de animação não tiveram acesso
ao mapeamento, por conta dos algoritmos das redes sociais ou por não terem
acesso à
internet
(lembramos que, pelo tamanho do questionário, a
internet
deveria ser estável e a mulher deveria ter a disponibilidade para se dedicar ao
preenchimento) ou mesmo por falta de tempo ou interesse.
Todas as mencionadas questões relacionadas à elaboração e ao
preenchimento do questionário de mapeamento nos fizeram pensar que é
necessário um outro formulário, mais simples e objetivo, que nos mostre dados
apenas quantitativos e que tenha outras formas de acesso para as bonequeiras.
Pensamos também que o ideal seria implementar uma sistemática com equipes
de pesquisadores que realizassem as buscas
in loco
. Assim, teríamos dados mais
precisos e atualizados, de maneira que dessem conta de dizer, com precisão,
quem somos e quantas somos.
Para não concluir
Nosso objetivo com este escrito é, de certa forma, refletir sobre os rumos da
RBB, sabendo que, assim como no filme: “Tempo de Despertar”, saímos diferentes
após as experiências vividas.
Foram quase um ano e meio de isolamento em decorrência da pandemia e,
por conta disso, estávamos mais conectadas, mais sedentas e carentes por
notícias e contatos. Com a reabertura do comércio e com o retorno dos
espetáculos e da rotina presencial, fomos perdendo a intensidade das nossas
ações por meio de encontros e conversas na RBB. Claro que não podemos
romantizar a pandemia, dizendo simplesmente que o isolamento nos aproximou.
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Também não podemos chamar aquele período macabro de uma experiência rica,
quando as pessoas se reinventaram.
Além dos impactos na saúde, ainda ocorreram outros efeitos negativos em
um país como o Brasil, com desigualdades sociais elevadas, uma vez que as
devastações provocadas pela pandemia também se estenderam aos aspectos
socioeconômicos globais, com recessões, falta ou dificuldade de acesso à
alimentação básica, saúde e educação. Não vamos nos esquecer de que mais de
700 mil pessoas morreram e que o negacionismo fez e ainda faz parte da
mentalidade de muitos brasileiros e brasileiras. Não faz tanto tempo assim. Foi
uma grande tragédia que aconteceu em nossas vidas. Muitos enfrentaram uma
dor inesperada e ficaram desamparados. Mas não deixa de ser um fato: a RBB foi
uma experiência muito especial naqueles dias tenebrosos de Covid-19.
O convívio na RBB nos ajudou a perceber, assim como em “Tempo de
Despertar”, a importância de valorizar a ciência e a pesquisa, as relações humanas,
o cuidado, o afeto e, no nosso caso, como mulheres, a importância da sororidade.
É importante trazermos à tona a ideia de sororidade, conceito tão importante
para os feminismos. Nosso processo de socialização foi marcado pela
inferiorização das nossas existências. A sociedade patriarcal criou mecanismos
que nos colocaram em situações de competição umas com as outras. Assim,
nossa amizade percorreu caminhos tortuosos, foi tida como frágil e falsa. A RBB
nos relembrou da importância de ressignificar o que foi construído em irmandade,
como a união, a amizade, a empatia, o respeito e o afeto entre nós, mulheres. E, a
partir desse sentimento, transformá-lo em ação. Foi assim que a RBB foi pensada:
como rede capaz de mover espaços políticos, culturais e cotidianos. Contudo, bell
hooks (2019) nos chama a atenção sobre como o movimento feminista blindou a
sororidade de uma ideia de solidariedade política. A autora nos lembra de que não
existem saídas individuais, mas sim coletivas. A união entre nós, mulheres, é
capaz de mudar a realidade a partir da percepção dos sofrimentos de todas,
chamando a atenção aqui para os recortes de raça e classe.
E, por falar em sofrimento, no momento em que concluímos este manuscrito,
nós nos deparamos com o desaparecimento, em 23 de dezembro de 2023, até a
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atualização da notícia, em 5 de janeiro de 2024, do feminicídio de Julieta
Hernandez, que foi brutalmente assassinada em Presidente Figueiredo, no
Amazonas. Artista venezuelana, ela vivia no Brasil desde 2015. Era palhaça e
bonequeira. Percorria o país de bicicleta, atravessando cidades do interior.
Compartilhando sua arte, ela se conectava com pessoas, fotografando, levando o
riso e o encanto.
Em uma sexta-feira, 12 de janeiro de 2024, as ruas de diversas cidades do
Brasil e da América Latina foram ocupadas por manifestantes, em um ato de
repúdio ao feminicídio. O chamado foi lançado pela família de Julieta Hernandez
pelas redes sociais, ato que, em meio à dor, transformou a tragédia em uma
mobilização para conscientização. O movimento ganhou força com as
hashtags
“#JustiçaParaJulieta” e “#Julieta,presente”, sendo compartilhado por milhares de
usuários em todo o continente. O ato não foi apenas um protesto contra a barbárie
que tirou a vida de Julieta Hernandez, o feminicídio, mas também foi uma
reivindicação por mais segurança e respeito às mulheres que viajam sozinhas.
Tragédias assim nos reaproximam não no olhar para o presente, pensando
no que vivemos até aqui, mas também na valorização do momento, porque
devemos dar importância e chamar a atenção para o que temos hoje, lançando
um olhar para o futuro, por mais breve que possa parecer. Como já mencionamos
neste escrito, o contato com a morte, de alguma forma, opera uma transformação
na nossa percepção da vida, uma vez que nos instiga a refletir sobre a importância
de “despertar” não para novas experiências, mas também para reagir aos
absurdos da vida com mais intensidade.
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Algaravias: câmara de ecos
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Recebido em: 29/05/2024
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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