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Dispositivos de autodefesa no trabalho
performativo
de Ana Flávia Cavalcanti
Ines Bushatsky
Para citar este artigo:
BUSHATSKY, Ines. Dispositivos de autodefesa no trabalho
performativo
de Ana Flávia
Cavalcanti.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3,
n. 53, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0110
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Dispositivos de autodefesa no trabalho performativo
de Ana Flávia Cavalcanti
Ines Bushatsky
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-14, set. 2024
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Dispositivos de autodefesa no trabalho performativo de Ana Flávia Cavalcanti1
Ines Bushatsky2
Resumo
Este artigo buscou aprofundar a noção de dispositivo de autodefesa a partir da análise
do trabalho de Ana Flávia Cavalcanti na performance Pau no Rabo (2021). Partimos do
suporte teórico de Elsa Dorlin sobre o tema da autodefesa e, a partir dos alicerces
oferecidos pela performance de Cavalcanti, buscamos levantar questões acerca do
conceito de
male gaze
elaborado por Laura Mulvey, além de investigar práticas
performativas que buscam evidenciar a violência de gênero. O texto também procurou
interpretar outras obras que abordam a representação da mulher no espaço público,
como o caminhar e a ocupação das ruas, enquanto gestos que operam a noção de
autodefesa, oferecendo uma dimensão sobre a insurreição de corpos que se sublevam.
Palavras-chave:
Performance. Autodefesa. Male gaze. Elsa Dorlin. Ana Flávia Cavalcanti.
Self-defense devices in the performative work of Ana Flávia Cavalcanti
A
bstract
This article sought to deepen the notion of a self-defense dispositive based on the
analysis of Brazilian artist Ana Flávia Cavalcanti’s performative work Pau no Rabo (2021).
We start from Elsa Dorlin's theoretical support on the theme of self-defense and, based
on the foundations offered by Cavalcanti's performance, we seek to raise questions
about the concept of male gaze elaborated by Laura Mulvey, in addition to investigating
performative practices that highlight gender violence. The text also sought to analyze
other artistic works that address the representation of women in public space, regarding
walking and occupying the streets as gestures of self-defense, suggesting a dimension
of insurrection and uprising bodies.
Keywords
: Performance. Self-defense. Male gaze. Elsa Dorlin. Ana Flávia Cavalcanti.
Dispositivos de autodefensa en la obra performativa de Ana Flávia Cavalcanti
Resumen
Este artículo buscó profundizar en la noción de dispositivo de autodefensa a través del
análisis del trabajo de Ana Flávia Cavalcanti en la performance Pau no Rabo (2021).
Partimos del respaldo teórico de Elsa Dorlin sobre el tema de la autodefensa y, desde
los fundamentos proporcionados por la performance de Cavalcanti, buscamos plantear
cuestiones sobre el concepto de male gaze desarrollado por Laura Mulvey, así como
sobre prácticas performativas que buscan evidenciar la violencia de género. El texto
también exploró otras obras que abordan la representación de las mujeres en el espacio
público, el caminar y la ocupación de las calles como gestos que operan la noción de
autodefensa, ofrecimiento una dimensión de insurrección de los cuerpos que se
sublevan.
Palabras clave
: Performance. Autodefensa. Male gaze. Elsa Dorlin. Ana Flávia Cavalcanti.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por João Mostazo. Doutorado em Teoria
Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP).
2 Doutoranda e Mestrado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Graduação em Artes Cênicas
pela USP. inescambio@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4487954266284403 https://orcid.org/0000-0002-3195-8217
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Este artigo busca dar continuidade a uma pesquisa iniciada em nossa
dissertação de mestrado, na qual estudamos a potencialidade do conceito de
autodefesa em contextos artístico-pedagógicos e analisamos obras que podem
ser lidas a partir do que chamamos de dispositivos de autodefesa.3 Esses
dispositivos, no contexto de nossa pesquisa, fomentam uma investigação sobre
ações sociais, artísticas e criativas, com vistas a um horizonte artístico-pedagógico,
baseado em elaborações e discussões sobre o ato de se defender diante de
violências coercitivas. Buscamos dar contorno ao conceito a partir de nossas
pesquisas anteriores e, principalmente, das ideias desenvolvidas pela
pesquisadora francesa Elsa Dorlin em seu livro
Autodefesa: uma filosofia da
violência
(2020), especialmente no que se refere às definições sobre o que ela
chama de “dispositivo defensivo” [
dispositif défensif
], que opera “[e]m face daquilo
que decorre de uma força, de um ímpeto, um movimento polarizado para se
defender, marcando a trajetória de uma vida” (Dorlin, 2020, p. 26). O conceito se
associa também à noção de “levantes”4 investigada por Georges Didi-Huberman
(2016) e Judith Butler (2018) na ocasião da exposição de mesmo título, que contou
com ações artístico-pedagógicas de mediação das obras curadas pelo autor.5
No presente artigo, buscamos analisar a performance intitulada
Pau no Rabo
de Ana Flávia Cavalcanti6, investigando quais os elementos que a tornam um gesto
de autodefesa. A performance foi realizada pela primeira vez no Rio de Janeiro,
em maio de 2021. O vídeo7 da performance mostra Ana Flávia caminhando na rua
3 Como parte da pesquisa, foi produzido um dossiê pedagógico contendo materiais sobre o tema da
autodefesa a serem utilizados em contextos artísticos e/ou educacionais. Desde então, buscamos expandir
nossa investigação, tanto na análise de gestos de autodefesa como o referido neste artigo quanto na
inclusão de novos materiais ao dossiê, que é um documento em constante atualização. Em 2022,
publicamos o artigo “Um soco pedagógico” na Revista de Estudos do Documentário, analisando um gesto
de autodefesa em um caso de discriminação racial ocorrido no Rio de Janeiro em 2021.
4 “Levantar-se é jogar fora o fardo que pesava sobre nossos ombros e nos impedia de nos mover. [...] É um
sinal de esperança e resistência. É um gesto e é uma emoção. [...] No gesto de se erguer, cada corpo protesta
com todos os seus membros, cada boca se abre e exclama em
não
-recusa [non
-refus
] e
sim
-desejo [oui
-
sir
]” (Didi-Huberman, 2016, p. 9 grifos do autor. (Tradução nossa).
5 Trata-se da exposição
Soulèvements
, aberta em 2016 no museu Jeu de Paume em Paris, organizada por
Didi-Huberman. Chegou ao Brasil em 2018 sob o nome de
Levantes
, no Sesc Pinheiros, em São Paulo.
6 Ana Flávia Cavalcanti é atriz, diretora e roteirista, nascida em São Paulo. Seus trabalhos mais recentes no
teatro são a peça
Conforto
(2022) e a performance
A babá quer passear
, realizada pela primeira vez em
2017.
7 O vídeo da performance foi exibido no Repensa Festival em 2021. O vídeo pode ser assistido em
https://www.instagram.com/reel/CP1QWeFDQLM/ Acesso em: 28 abr. 2023.
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com uma roupa preta, composta por uma blusa e uma
legging
, e um pênis de
borracha amarrado às suas costas, na altura do quadril. O vídeo segue Ana Flávia
pelas ruas enquanto a câmera focaliza os homens que a olham, os quais viram o
rosto rapidamente ao notarem o objeto em suas costas. Na performance, há uma
reflexão sobre a objetificação do corpo feminino, iniciando um jogo entre desejo e
repulsa a partir de uma prática de efeito imediato sobre os homens que cruzam
seu caminho. Para nós, na proposição de Ana Flávia um dispositivo de
autodefesa8, na medida em que, na performance, ela representa um corpo que é
político por existência, e, a partir da ação performática, transforma o olhar
direcionado a este corpo, produzindo uma reação imediata por parte do
male
gaze.
9 Portanto, na execução da performance, um efeito perturbador em
relação ao que é comum na experiência dos homens que observam as mulheres
na rua, buscando desestruturar as dinâmicas de opressão de gênero contidas
nessa experiência.
O caminhar e o male gaze
No interior da operação performativa de Ana Flávia Cavalcanti está o ato de
caminhar, ação que a coloca em movimento e a faz ser vista. O corpo feminino
em movimento no espaço público está sujeito a ser objetificado por uma cultura
que normalizou olhares e atitudes carregados de violências, veladas ou não. É
interessante notar que o caminhar é parte constitutiva da ação performativa de
Ana Flávia; sem o caminhar, o efeito de estranhamento diante da imagem talvez
não fosse tão imediato. entre a performer e a espectadora do vídeo uma
cumplicidade; em relação ao público feminino de sua performance, esse acordo
parece ter um elo ainda mais forte, pois, a partir de seu ato de coragem em
desenvolver tal ação e lançar mão do próprio corpo para o experimento
performático, Ana Flávia representa as mulheres que a assistem: todas aquelas
8 O estudo sobre esses dispositivos foi iniciado em nossa dissertação de mestrado “Sobre a violência: mixtape
e autodefesa no âmbito artístico-pedagógico”
,
defendida em 2021 na Escola de Comunicações e Artes da
USP. A partir da dissertação, seguimos a investigação sobre diferentes ações e performances que poderiam
ser lidas à luz do conceito de autodefesa.
9 Cunhado pela pesquisadora em
film studies
Laura Mulvey em 1975, o termo
male gaze
define um
determinado olhar masculino heteronormativo que tem em sua constituição bases ideológicas e idealizadas
a partir de descrições e representações imagéticas distorcidas das mulheres.
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que passaram por assédios de qualquer tipo durante uma simples caminhada no
espaço público.
Ao analisar as ações de autodefesa de associações feministas e sufragistas
britânicas, Dorlin (2020) sublinha o potencial transformador das técnicas marciais
e das práticas defensivas. Sua abordagem teórica tem sempre por base a análise
de eventos históricos e, principalmente, a relação entre a autodefesa e o corpo,
isto é, como as práticas autodefensivas afetam os corpos daqueles que se
levantam diante das violências coercitivas. O texto de Dorlin possui descrições
apuradas que nos oferecem a dimensão da sensação que os gestos de autodefesa
podem causar a partir de uma perspectiva sensorial. Seguindo na análise do
trabalho desenvolvido pelo grupo Suffragettes Self-Defense Club em 1909, Dorlin
aponta o efeito das práticas de autodefesa:
Ao libertar o corpo das roupas que dificultam os gestos, ao desdobrar os
movimentos, ao desviar ou desvirtuar o uso de objetos familiares (guarda-
chuva, alfinete, broche, casaco, salto alto), ao despertar os músculos,
exercitar um corpo que habita, ocupa a rua, movimenta-se, equilibra-se,
a autodefesa instaura outra relação com o mundo, outra forma de ser.
As militantes, aprendendo a se defender, criam e modificam seu
esquema corporal, que então se torna, em ato, a caldeira de um processo
de conscientização política (Dorlin, 2020, p.106).
De maneira similar, na performance de Cavalcanti o caminhar pressupõe
reclamar no sentido estrito da palavra o espaço público para si. O que
inicialmente, de frente, parece apenas um caminhar habitual de uma mulher na
rua, se transforma completamente quando ela passa e os homens a veem de
costas, revelando o objeto. A performer, então, passa a ocupar, literalmente, o
espaço público, tornando-se completamente notada e presente, ao mesmo tempo
em que é imediatamente repelida e excluída pelo olhar masculino. A operação é
autodefensiva e distorce o
status quo
de uma das violências de gênero mais
praticadas contra mulheres nesse mesmo espaço público. Ao mesmo tempo em
que Cavalcanti consegue se fazer presente dessa forma, também se faz livre do
olhar dos homens – condição comumente almejada pelas mulheres que desejam
partilhar do espaço sem precisar estar alertas e em estado de desgaste constante
diante das possibilidades de atos de violência. É explicitamente nesse movimento
da performance que reside o gesto de autodefesa. Trata-se de
não
ser olhada;
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nisso um potencial significativo de transformação e o abalo de estruturas
convencionais que reproduzem as violências de gênero e o privilégio da ocupação
do espaço público.
Sobre esses dois tempos conquistados por Cavalcanti, ser e não ser olhada,
trata-se de uma perspectiva associada aos efeitos do
male gaze
e à sua influência
na forma como enxergamos as pessoas e as performances de gênero. Laura
Mulvey (1989) aprofunda a questão sobre essa espécie de olhar viciado indicando
que a mulher “é transformada o tempo todo em objetos de exibição [
objects of
display
], para serem observadas [
gazed at
]
por homens” (Mulvey, 1989, p. 13
tradução nossa). Mulvey, porém, vai além e atesta que isso acontece diante de um
cenário em que a mulher está, na verdade, ausente. Para ela, a mulher é o cenário
no qual o homem projeta suas fantasias fálicas e opera seu olhar idealizado como
forma de ver um mundo que, a todo o tempo, o agrada e seduz. Diante dessa
constatação, Mulvey também nos convida a questionar a constituição artificial
desse olhar e assumir o controle do “show”, do desfile e da passeata para colocar
em voga nossos próprios medos e desejos, sem a mediação do olhar masculino.
A partir dessas perspectivas, é instigante analisar como a obra de Cavalcanti
trabalha com a transformação do olhar de forma direta e efetiva. Em alguma
medida, Cavalcanti consegue colocar em voga os medos e desejos das mulheres
de modo geral, atingindo um estado de presença e ausência que impõe ao
male
gaze
uma dificuldade. As interpretações permeadas por esse tipo de olhar são
afastadas e distorcidas na presença do objeto fálico. Cavalcanti se coloca
enquanto uma passante, não emite muitas palavras, apenas caminha. Essa
naturalidade do caminhar confere à performance um
status
de atividade cotidiana.
Ao comentar sobre a perspectiva de gênero associada às performances do
caminhar, Verônica Veloso (2021) aponta que o espaço público as dimensiona
consideravelmente, “como se a rua colocasse em relevo qualquer ação realizada
por uma mulher, por mais simples que seja, como andar” (Veloso, 2021, p. 242). Se
Cavalcanti se apropria dessa noção, acaba por aproveitá-la como uma espécie de
megafone de sua vontade política de reorientação do olhar. É como se a
performance se aproveitasse do “relevo” a que Veloso se refere como parte
constituinte de ser uma mulher no espaço público, para que sua operação pudesse
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funcionar plenamente.
também uma dimensão autodefensiva na documentação da obra, no
sentido de que o vídeo e a narração em voz
off
da artista a mantêm na posição
de sujeito que organiza o acontecimento do qual faz parte. Seria também
interessante poder observar a performance ao vivo, porém é a partir de sua
documentação que se torna possível realizar a montagem dos planos que
colaboram para a sua construção narrativa, potencializando o efeito sobre o
espectador. Além disso, ainda uma outra possibilidade de leitura sobre a
montagem e organização do vídeo da performance. Podemos notar no vídeo que
a performer
caminha, enquanto os homens estão parados, termo que a própria
artista usa em narração em
off
no vídeo:
Eu tenho essa sensação muito forte de caminhar na rua e avistar um bar
assim com alguns
homens parados
do lado de fora na porta do bar
conversando entretidos no assunto deles e sustentar ali uma força para
passar porque eu sei que que vai acontecer eles vão me olhar quando
eles fazem com praticamente todas as mulheres (Cavalcanti, 2021, grifo
nosso).
As mulheres que desejam caminhar, destruir paradigmas e abrir caminho
diante da violência de gênero são aquelas que se movimentam, que passam, que
buscam novos horizontes de deslocamento e significado para a presença do corpo
no espaço público. Por sua vez, os homens que aparecem no vídeo, em sua grande
maioria, estão parados, e mesmo os homens que estão também caminhando são
acometidos por uma espécie de paralisação do movimento, um desconcerto total
que por vezes interrompe sua caminhada e a continuidade da sua trajetória.
Cavalcanti não se coloca enquanto ideia parada, em estado de objeto a ser
observado; ela opta por colocar as questões mobilizadas pela obra em dimensão
de passagem, com algo fugaz e ágil. A forma da performance a mulher em
movimento, de passagem, refratária cria um cenário no qual a figura de
Cavalcanti não pode ser inteiramente capturada pelo olhar externo e definida nos
termos conhecidos da observação do corpo da mulher pelo
male gaze
. A prótese
afixada nas costas da performer desvia e desarma o olhar que, em outras
circunstâncias, seria o elemento que define, através da objetificação, os limites da
ocupação do espaço público.
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Estratégias de montagem
A comparação entre essas duas formas e olhares pode ser observada a partir
de um paralelo com uma cena análoga presente no filme
F for Fake10
de Orson
Welles, de 1973. Seria oportuno comparar a cena de Welles com a performance de
Cavalcanti. Na obra, Welles desenvolve um verdadeiro espetáculo de montagem,
no qual esta se torna uma espécie de protagonista do próprio filme. Para além das
experimentações com a edição, são reveladas suas engrenagens: diversas cenas
de Welles sentado na mesa de edição, mostrando a manipulação de negativos
cinematográficos e os visores pelos quais os editores faziam suas seleções e
escolhas. Em um desses experimentos, Welles nos apresenta a atriz Oja Kodar
caminhando na rua com um vestido curto. A montagem da cena é orquestrada na
alternância entre planos de Kodar e planos de diferentes homens olhando com
expressões de atenção e tentação para a mulher que passa diante deles. Ao longo
da cena, escutamos uma música lenta de melodia calma e doce, algo que beira
um som afetuoso. A cena também é composta pela narração em
off
de Welles,
tecendo comentários sobre a edição e
explicando o truque utilizado para a sua
composição:
Escondidos em caminhões camuflados e em meio a caixas de papelão,
nossa equipe de cinegrafistas arranjou a situação para que ela atuasse
para eles. Como isca. Você vê como funcionou? Todo o elenco, todos os
performers, exceto uma, atuando como loucos para nós, sem sequer ser
pagos por isso. Sem sequer saber que são atores de cinema11 (Welles,
1973).
Para Welles os homens são meros artifícios para a composição de sua cena,
e tudo ganha um tom performativo. Contudo, certa mistificação da ação que
ele chama de “esporte de assistir mulheres” [
girl watching sport
]. A partir de suas
escolhas de montagem, a mulher é vista e o homem vê; não obstante, nessa
representação a mulher ainda é objetificada e o homem ainda está na posição de
10
F for Fake
(1973), dirigido por Orson Welles,
é um falso documentário, pioneiro no gênero do filme-ensaio,
que retrata histórias sobre falsificações, entre elas a de Elmyr de Hory, notório falsificador de arte que atuava
entre os anos 1940 e 1970.
11 “Our sneaky crew of cameramen hidden away in camouflage trucks and packing boxes arranged for her to
act for them. To act as bait. You see how it worked? The entire cast, all the performers, except one, acting
away like crazy for us without getting paid for it. Without even knowing they were movie actors”. (Tradução
nossa).
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objetificá-la. No contexto das escolhas de montagem do filme, não saída diante
dessa equação.
Cavalcanti também coloca em xeque questões relativas ao que é
documental. De saída, as circunstâncias em que a obra foi filmada foram muito
diferentes das de Welles: apesar de haver alguém filmando a performance, não
parece haver indícios de que havia uma grande equipe de cinema por trás que
garantisse a segurança da atriz. Este também é um dado interessante que a
performance levanta, trazendo ainda mais à tona uma noção de autodefesa
relacionada ao ato da performer, que inclusive é mencionado pela artista em
off
:
“fiquei com medo de ser agredida algumas vezes, de algum homem se sentir muito
ofendido de ter sido decepcionado. Afinal de contas as mulheres existem, na lógica
deles, para servi-los” (Cavalcanti, 2021).
Na cena de Welles, por sua vez, a matemática do
male gaze
é muito evidente,
misturando os
frames
de Kodar e dos homens na rua com a ocasional duplicação
dessas mesmas cenas em um visor na sala de edição, e de cenas do próprio Welles
comentando sobre o que estamos assistindo. É visível a dimensão de “controle”
que Welles detém sobre a sequência que está organizando. É como se dirigisse a
cena ao mesmo tempo em que a assistimos, colocando sua voz narrada como
dominante, em um volume mais alto: isto é, aquilo que ele diz é soberano diante
das imagens e da trilha sonora. Welles não controla a câmera propriamente, mas
é quem organiza o que ela captura, e, assim, domina o sentido e sugere
determinadas interpretações. Por exemplo, na cena, enxergamos dois movimentos
concomitantes, ambos reforçados por Welles: ao mesmo tempo em que o autor
reflete sobre a beleza da atriz caminhando na rua, ele também retrata com ironia
e sarcasmo os homens que a observam, e que, sem saber, estão sendo filmados,
hipnotizados por ela, capturados em sua vulnerabilidade.
Os planos em Cavalcanti são pensados com outro foco. Os
frames
não
separam a performer dos homens que a olham, e buscam retratar os movimentos
que definem a ação. Na maioria das cenas, temos uma sequência em quatro
planos: 1) a câmera capta Ana Flávia caminhando de frente; 2) em seguida, vemos
o homem ou grupo de homens que a olha; 3) vemos Ana Flávia de costas e o falo
de borracha; e, por fim, 4) vemos a reação daqueles que a viram passar. Ana Flávia
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passa, sai do quadro e podemos observar a reação dos homens com atenção, seja
no virar do rosto, na paralisação das ações, na demonstração de vergonha, entre
outras. A montagem nesse caso permite que tenhamos tempo suficiente para
analisar a dimensão e o significado das reações causadas pela performance.
também, na dimensão narrativa da voz de Ana Flávia, uma colaboração com os
outros elementos do vídeo, equilibrando-se com as imagens, a trilha sonora e os
sons ambientes da rua. O que é dito pela performer em voz
off
nos faz pensar
sobre as engrenagens da performance de forma a instigar nossa curiosidade sobre
o que estamos assistindo.
A documentação da performance de Cavalcanti adiciona uma camada que a
torna ainda mais instigante, por sua capacidade de nos oferecer um outro ponto
de vista sobre a ação, mediado pela câmera e pelas escolhas de edição. Amelia
Jones (2013) chama a atenção para esse tipo de relação mediada entre espectador
e documento na análise de performances (mais especificamente da
body art
),
indicando o potencial transformador que a documentação pode proporcionar ao
criar uma espécie de enigma para a fruição, que precisa ser desvendado e
analisado para além do tempo presente e efêmero da performance. Para Jones,
esse deslocamento entre a ação e a sua reprodução em registro pode
desestabilizar normas, e, no caso da performance de Cavalcanti, apresentar
desafios diante do olhar padronizado sobre questões de gênero. O gesto de
autodefesa da performance também reside nas escolhas de como narrar a própria
história a partir de um pensamento sobre a montagem dos materiais coletados, o
que traz à tona a possibilidade de possuir e organizar as imagens. Essa prática
busca abrir espaço para outros pontos de vista e camadas de sentido que colocam
a performer como sujeito da ação.
A obra, ainda, elabora as questões sobre o
male gaze
em duas instâncias. A
primeira diz respeito ao que poderíamos chamar de primeiro momento da
performance, para aqueles que a acompanharam ao vivo; o segundo movimento
reflexivo acontece para nós que observamos a performance em vídeo. Sobre esse
tema, Verônica Veloso (2021) dialoga com Jonathan Lamy (2013), buscando
investigar o valor desses registros, que podem, por exemplo, ser vistos por um
número maior de pessoas do que as que puderam presenciar as ações ao vivo. A
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11
documentação das performances, nesse caso, proporciona uma divulgação do
trabalho de forma mais ampla e, para além de as imagens serem vistas apenas
como resquícios de um material incompleto, “permitem não somente aos
espectadores entrar em relação com essas performances após sua realização,
mas constituem-se uma parte intrínseca da obra” (Lamy apud Veloso, 2021, p. 382).
Desse modo, por mais impactante que tenha sido a performance ao vivo, a
obra de Cavalcanti ganha amplitude considerável em seu formato videográfico,
que pode ser divulgado de forma expressiva, e, com isso, criar aberturas para o
debate e a reflexão sobre os temas ali tratados. Além disso, podemos experienciar
nosso próprio
gaze
diante da obra e investigá-lo a partir de nossas reações e
sensações em face da radicalidade da ação. Mesmo ao assistir ao vídeo da
performance em um ambiente privado, as espectadoras são convidadas a pensar
sobre a ocupação dos corpos no espaço público enquanto sujeitos políticos.
The Walk
Cabe analisar brevemente aqui outra performance que também aborda o
direito ao caminhar, ainda que se trate de outro contexto e operação. Trata-se da
performance
The Walk
, de Maya Krishna Rao, artista contemporânea indiana. A
performance ocorreu pela primeira vez em 31 de dezembro de 2012 em Nova Deli,
como uma reação imediata à morte de Jyoti Singh após sofrer um estupro coletivo
em um ônibus. Na mesma noite da morte da jovem, Rao efetua a performance e,
em seguida, marcha em procissão com uma multidão de alunas da Universidade
Jawahar-lal Nehru até o ponto de ônibus em que Singh esteve antes de morrer. A
performance em questão é uma ação em que se mistura música, poesia e
movimento (baseada em seu treinamento de Kathakali),12 abordando questões
sobre feminismo, igualdade, equidade e justiça. Na análise da pesquisadora Jisha
Menon, em seu artigo “Performance Interventions”, encontramos um trecho do
texto dito por Rao em uma das versões de
The Walk:
“Eu quero, posso, devo, vou.
. . andar? . . . Quero andar na rua às duas, três e quatro da manhã, sentar no ônibus,
12 Kathakali é uma dança cultural indiana, criada por volta do século XVI, que representa histórias épicas entre
homens, deuses e demônios.
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12
andar na rua, deitar no parque, procuro não ter medo do escuro”13
(Rao apud
Menon, 2020, p. 230).
Em seu texto, Rao convida o espectador a refletir sobre o ato de caminhar,
permeado por condições sociais e de gênero que alteram a suposta “simplicidade”
dessa ação tão cotidiana, definida por Rebecca Solnit (2001) como o ato que
idealmente proporcionaria o alinhamento entre corpo, mente e entorno. Mais
adiante, Rao também oferece companhia àquela espectadora que a escuta,
reorientando seu texto para uma situação conjunta: “você vai andar? Vai andar?
Eu vou andar com você, não ande com ele” (Rao apud Menon, 2020, p. 230).14 Na
análise de Menon, um propósito evidente na repetição e na insistência da
palavra “andar” [“
walk
”], como algo que funciona enquanto ferramenta propulsora
da ação, que encoraja os ouvintes a levantar e caminhar no espaço público.
Historicamente, as lutas sociais envolvem a ação de caminhar, isso é, ocupar
coletivamente o espaço público, uma ação imprescindível que faz parte dos
movimentos e conquistas políticas, como em marchas, passeatas, demonstrações,
manifestações e levantes.
As análises das performances de Rao e Cavalcanti nos apresentam uma
questão cara sobre a recepção das obras e como elas podem inspirar outras
pessoas. Por serem performances que lidam com sentimentos de ordem coletiva,
ganham uma potência considerável de transformação ao reorientar o olhar e
colocar em relevo justamente as práticas de violência que muitas vezes são
acobertadas, esquecidas ou deixadas de lado sem resolução. Tratam-se de ações
e gestos que buscam escancarar tais violências e colocá-las em destaque para
que um debate público possa ser iniciado.
O problema fundamental colocado por essas e outras performances que
abordam as violências de gênero se apresenta em sua forma mais crua e concreta,
tendo lastro nas realidades vividas ainda hoje por muitas mulheres. Estas
elaborações performativas são formas de criar conexões e iniciar debates que
visam o fim de práticas racistas, machistas e misóginas, criando imagens e
13 I want to, can I, should I, will I . . . walk? . . . I want to walk the streets at two, three, and four in the morning,
to sit on a bus, walk on the street, to lie in a park, I try not to be afraid of the dark. (Tradução nossa)
14 Will you walk? Will you walk? I’ll walk with you, don’t walk with him. (Tradução nossa).
Dispositivos de autodefesa no trabalho performativo
de Ana Flávia Cavalcanti
Ines Bushatsky
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-14, set. 2024
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referenciais que tocam a um coletivo muito numeroso. Ainda, as obras oferecem
a potencialidade concreta de se autodefender de violências sistêmicas de gênero,
pela via da
práxis
, da ação transformadora e da distorção e subversão de um olhar
marcadamente patriarcal. Uma obra que possui em sua operação um dispositivo
autodefensivo coloca no mundo a voz de várias pessoas, abarca sentimentos
gerais de indignação e desejo de mudança, e marca o chão com setas que
apontam para frente e nos inspiram a caminhar, indicando os passos para a ação,
os levantes e as transformações, assegurando a vida, permanência e ocupação
das mulheres no espaço público.
Referências
BUSHATSKY, Ines.
Sobre a violência
: mixtape e autodefesa no âmbito artístico-
pedagógico. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) Escola de Comunicações
e Artes da Universidade de São Paulo, 2021.
BUTLER, Judith. Introdução. In DIDI-HUBERMAN, Georges.
Levantes
. Catálogo da
exposição, São Paulo: SESC, 2018.
DIDI-HUBERMAN, Georges.
Soulèvements
: Dossier Documentaire, Paris: Jeu de
Paume/Gallimard, 2016.
DORLIN, Elsa.
Autodefesa
: uma filosofia da violência. Trad. Jamille Pinheiro Dias e
Raquel Camargo. São Paulo: Crocodilo/Ubu Editora, 2020.
JONES, Amelia. ‘Presença’ ‘In Absentia’: A Experiência da Performance como
Documentação. Trad. Ana Ban.
eRevista Performatus
, Inhumas, ano 1, n. 6, set. 2013.
LAMY, Jonathan. D’autres images, s’il vous plaît ! Amérindianité et performativité
dans le photographie. In. FÉRAL, Josette ; PERROT, Edwige (org
.). Le reél à l’épreuve
des technologies
: Les arts de la scène et les arts médiatiques. Rennes : Presses
Universitaires de Rennes/Québec: Presses de l’Université du Québec, 2013.
MENON, Jisha. Performance Interventions: Natality and Carceral Feminism in
Contemporary India. In: COLBERT, Soyica Diggs; JONES JR., Douglas A.; VOGEL,
Shane (org.).
Race and Performance After Repetition.
Durham/Londres: Duke
University Press, 2020.
MULVEY, Laura.
Visual and Other Pleasures
. Palgrave: New York, 1989.
SOLNIT, Rebecca.
Wanderlust
: a history of walking. Penguin Books, 2001.
Dispositivos de autodefesa no trabalho performativo
de Ana Flávia Cavalcanti
Ines Bushatsky
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-14, set. 2024
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VELOSO, Verônica.
Percorrer a cidade a
: ações teatrais e performativas no
contexto urbano. Curitiba: Appris, 2021.
Referências audiovisuais
F FOR FAKE. Direção: Orson Welles, François Reichenbach, Gary Graver, Oja Kodar.
Les Films de l'Astrophore. França/Irã/Alemanha Ocidental. 1973 (95 min).
PAU NO RABO. Ana Flávia Cavalcanti. Brasil. 2021 (5 min).
Recebido em: 28/05/2024
Aprovado em: 17/08/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br