Dispositivos de autodefesa no trabalho performativo
de Ana Flávia Cavalcanti
Ines Bushatsky
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-14, set. 2024
Este artigo busca dar continuidade a uma pesquisa iniciada em nossa
dissertação de mestrado, na qual estudamos a potencialidade do conceito de
autodefesa em contextos artístico-pedagógicos e analisamos obras que podem
ser lidas a partir do que chamamos de dispositivos de autodefesa.3 Esses
dispositivos, no contexto de nossa pesquisa, fomentam uma investigação sobre
ações sociais, artísticas e criativas, com vistas a um horizonte artístico-pedagógico,
baseado em elaborações e discussões sobre o ato de se defender diante de
violências coercitivas. Buscamos dar contorno ao conceito a partir de nossas
pesquisas anteriores e, principalmente, das ideias desenvolvidas pela
pesquisadora francesa Elsa Dorlin em seu livro
Autodefesa: uma filosofia da
violência
(2020), especialmente no que se refere às definições sobre o que ela
chama de “dispositivo defensivo” [
dispositif défensif
], que opera “[e]m face daquilo
que decorre de uma força, de um ímpeto, um movimento polarizado para se
defender, marcando a trajetória de uma vida” (Dorlin, 2020, p. 26). O conceito se
associa também à noção de “levantes”4 investigada por Georges Didi-Huberman
(2016) e Judith Butler (2018) na ocasião da exposição de mesmo título, que contou
com ações artístico-pedagógicas de mediação das obras curadas pelo autor.5
No presente artigo, buscamos analisar a performance intitulada
Pau no Rabo
de Ana Flávia Cavalcanti6, investigando quais os elementos que a tornam um gesto
de autodefesa. A performance foi realizada pela primeira vez no Rio de Janeiro,
em maio de 2021. O vídeo7 da performance mostra Ana Flávia caminhando na rua
3 Como parte da pesquisa, foi produzido um dossiê pedagógico contendo materiais sobre o tema da
autodefesa a serem utilizados em contextos artísticos e/ou educacionais. Desde então, buscamos expandir
nossa investigação, tanto na análise de gestos de autodefesa – como o referido neste artigo – quanto na
inclusão de novos materiais ao dossiê, que é um documento em constante atualização. Em 2022,
publicamos o artigo “Um soco pedagógico” na Revista de Estudos do Documentário, analisando um gesto
de autodefesa em um caso de discriminação racial ocorrido no Rio de Janeiro em 2021.
4 “Levantar-se é jogar fora o fardo que pesava sobre nossos ombros e nos impedia de nos mover. [...] É um
sinal de esperança e resistência. É um gesto e é uma emoção. [...] No gesto de se erguer, cada corpo protesta
com todos os seus membros, cada boca se abre e exclama em
não
-recusa [non
-refus
] e
sim
-desejo [oui
-
désir
]” (Didi-Huberman, 2016, p. 9 – grifos do autor. (Tradução nossa).
5 Trata-se da exposição
Soulèvements
, aberta em 2016 no museu Jeu de Paume em Paris, organizada por
Didi-Huberman. Chegou ao Brasil em 2018 sob o nome de
Levantes
, no Sesc Pinheiros, em São Paulo.
6 Ana Flávia Cavalcanti é atriz, diretora e roteirista, nascida em São Paulo. Seus trabalhos mais recentes no
teatro são a peça
Conforto
(2022) e a performance
A babá quer passear
, realizada pela primeira vez em
2017.
7 O vídeo da performance foi exibido no Repensa Festival em 2021. O vídeo pode ser assistido em
https://www.instagram.com/reel/CP1QWeFDQLM/ Acesso em: 28 abr. 2023.