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A virada decolonial nas artes da cena
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
Para citar este artigo:
MONTEIRO, Gabriela Lírio Gurgel. A virada decolonial nas
artes da cena.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0117
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A virada decolonial nas artes da cena
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-21, jul. 2024
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A virada decolonial 1 nas artes da cena 2
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro 3
Resumo
O artigo propõe, a partir da análise das dramaturgias
Macacos e Makunaimã. O
mito através do tempo
debater a virada decolonial no teatro brasileiro. Parto da
hipótese de que o questionamento artístico sobre a realidade política do país em
seus recentes enfrentamentos ameaça de golpe militar no Governo Bolsonaro,
censura a inúmeras obras artísticas no período, perdas de milhares de vidas pela
pandemia de Covid-19 contribuiu para a problematização e, consequente,
crescimento de temáticas decoloniais na contraposição à repressão, ao
conservadorismo da extrema-direita e à luta pela igualdade de direitos e justiça
social.
Palavras-chave
: Decolonialidade. Teatro. Processos de criação.
The decolonial turn in performing arts
Abstract
The article proposes, based on the analysis of dramaturgy
Macacos and
Makunaimã. O mito através do tempo
to debate the decolonial turn in Brazilian
theater. I start from the hypothesis that the artistic questioning of the country's
political reality in its recent confrontations - threat of a military coup in the
Bolsonaro Government, censorship of countless artistic works in the period, loss of
thousands of lives due to the Covid-19 pandemic - contributed to the
problematization and, consequently, growth of identity themes in opposition to
repression, far-right conservatism and the fight for equal rights and social justice.
Keyword
: Decoloniality. Theater. Creation processes.
El giro decolonial en las artes escénicas
Resumen
El artículo propone, a partir del análisis de las dramaturgias
Macacos y
Makunaimã. O mito através do tempo
debatir el giro decolonial en el teatro
brasileño. Parto de la hipótesis de que el cuestionamiento artístico de la realidad
política del país en sus recientes enfrentamientos - amenaza de golpe militar en el
Gobierno de Bolsonaro, censura de innumerables obras artísticas del período,
pérdida de miles de vidas debido a la pandemia de Covid-19 - contribuyó a la
problematización y, en consecuencia, al crecimiento de los temas decoloniales en
oposición a la represión, el conservadurismo de extrema derecha y la lucha por la
igualdad de derechos y la justicia social.
Palabras clave
: Descolonialidad. Teatro. Procesos de creación.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada pela autora com formação na área de Letras.
2 Este artigo é fruto de pesquisa desenvolvida com bolsa de Produtividade em Pesquisa nível 2- CNPq.
3 Pós-doutorado na Université Sorbonne Nouvelle Paris 3. França. Doutorado e Mestrado em Letras pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Professora Associada IV do Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena (PPGAC/UFRJ), do Programa de Estudos Contemporâneos das Artes
(PPGCA/UFF) e do curso de Direção Teatral na Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ)
gabriela.lirio@eco.ufrj.br
http://lattes.cnpq.br/5144170619756716 https://orcid.org/0000-0002-7466-960X
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A virada decolonial nas artes da cena caracteriza-se pelo aumento
significativo de espetáculos e dramaturgias cujas temáticas refletem questões
ligadas aos estudos de gênero, raça, etnia, classe e sexualidade, inseridas no
debate geopolítico, que investiga a realidade brasileira em cenário
latinoamericano. Em um primeiro momento, nota-se que a produção acadêmica
brasileira sobre o tema na área de artes, e especificamente nas artes da cena, é
relativamente recente. Entretanto, não é de hoje que as artes contemporâneas
problematizam a criação de linguagens, os espaços de exibição e circulação de
obras, o uso de tecnologias e a apropriação de realidades periféricas em
trabalhos artísticos. Por outro lado, contabiliza-se aproximadamente uma
década o avanço do debate sobre representatividade, decolonialidade e
transdisciplinaridade, associado a questões políticas emergentes no cenário
nacional, como o questionamento da invisibilização de comunidades
marginalizadas e periféricas, a exclusão de pessoas transgêneras em produções
artísticas, a reiteração de práticas racistas na escolha de elencos, a rápida
apropriação neoliberal da arte produzida por indígenas, quilombolas e ribeirinhos,
entre outras. Na universidade, departamentos ligados às artes cênicas, diante da
demanda crescente de discentes, repensam suas grades curriculares e o escopo
bibliográfico de cursos pelo interesse cada vez maior pelo debate decolonial.
Assim, também, museus, galerias, teatros, centros de pesquisa e demais
instituições redimensionam suas programações, incorporando a seus quadros
curadores e artistas indígenas, quilombolas, negros e LGBTQIAP+. Soma-se,
ainda, o crescimento significativo de editais indo ao encontro do que Mignolo
nomeou como “desobediência epistêmica”, que tem “como ideal político reforçar
processos de liberalização de experiências, memórias e histórias daqueles que
foram silenciados pela colonialidade” (Paiva, 2022, p.3).
O histórico dos estudos sobre colonialidade reúne tradições distintas de
pensamento como a pós-colonialidade e os estudos subalternos. Em “Uma
breve história dos estudos decoloniais”, Quintero, Figueira e Elizalde (2019)
apontam o palestino-estadunidense Edward Said (1935-2003) como um dos
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primeiros intelectuais a articular conjunto diverso do pensamento crítico sobre a
temática, apesar de não ter se ligado especificamente a nenhuma tendência e/ou
grupo. No artigo, os autores destacam genealogias para os estudos subalternos, o
pós-colonialismo e a decolonialidade. Os primeiros surgem na Índia, nos anos
1970, pelas pesquisas de Ranajit Guha, sendo influenciado pelo marxismo de
Gramsci, e contribuido “para crítica do eurocentrismo e das dinâmicas gerais do
colonialismo” (Quintero; Figueira; Elizalde, 2019, p.4), por sua vez, os estudos pós-
coloniais surgem de centros de pesquisa e universidades da Europa e dos
Estados Unidos, “com uma forte influência do pós-modernismo e do pós-
estruturalismo, mais focados, portanto, na análise do discurso e da textualidade”
(Quintero; Figueira; Elizalde, 2019, p.4). Os estudos decoloniais partem da
categoria “colonialidade do poder”, elaborada por Quijano, criada com o intuito de
nomear a matriz moderna de poder que domina a reprodução de subjetividades
e a constituição do imaginário a partir do eurocentrismo e da exploração de
povos subjugados, hierarquizados e dominados desde a conquista da América. A
ideia de raça, que para Quijano não passa de uma invenção4, surge depois desse
momento, o que produziu identidades sociais historicamente novas, como os
índios, negros e mestiços, relacionadas à dominação pelo branco europeu, que
passou a classificar hierarquicamente a população colonizada como forma de
legitimar a exploração do trabalho e a expansão de territórios.
Desde então demonstrou ser o mais eficaz e durável instrumento de
dominação social universal, pois dele passou a depender outro
igualmente universal, no entanto mais antigo, o intersexual ou de
gênero: os povos conquistados e dominados foram postos numa
situação natural de inferioridade, e consequentemente também seus
traços fenotípicos, bem como suas descobertas mentais e culturais
(Quijano, 2005, p.118).
Após a colonização, surge portanto uma nova organização mundial,
geopolítica e epistêmica. Para a feminista Rita Segato (2022, p. 84), a “América
faz nascer a Europa, a modernidade, o capitalismo e a classificação racial das
4 A ideia de raça é, literalmente, uma invenção. Não tem nada a ver com a estrutura biológica da espécie
humana. Quanto aos traços fenotípicos, estes se encontram obviamente no código genético dos indivíduos
e grupos e nesse sentido específico são biológicos. Contudo, não têm nenhuma relação com nenhum dos
subsistemas e processos biológicos do organismo humanos, incluindo por certo aqueles implicados nos
subsistemas neurológicos e mentais e suas funções [...]. (Quijano, 2005, p.141).
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pessoas e da geopolítica”. Historicamente, a América Latina5 nasce de um
processo complexo no século XIX, e não do que era indicado apenas pelos
discursos de intelectuais à época em busca da identidade do continente, mas de
um novo campo de forças políticas, após a decadência de Espanha e Portugal, da
hegemonia de França e Inglaterra e da ascensão norte-americana em seu projeto
imperialista (Mignolo, 2020).
Em
Histórias locais, projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar
, Walter Mignolo, um dos principais pensadores decoloniais, e
figura proeminente do grupo
decolonialidade/modernidade
, discorre sobre a
importação e a exportação de teorias que são transculturadas e, por isso,
itinerantes, no sentido de que adaptadas e contingenciadas à realidade de
lugares onde, por sua vez, “[…] podem ser percebidas como nova forma de
colonização, e não como novos instrumentos”(Mignolo, 2020, p.234). O autor
destaca a apropriação de teorias que migram do norte para o sul global, e de
outras que não viajam ou circulam menos. Em um caso ou outro, torna-se
necessário refletir sobre “[…] quando e por que uma teoria produzida para
explicar um tipo de questão, problema e situação histórica, em um local
geopolítico e geoistórico específico, dentro de uma cultura local transforma-se
num projeto global…” (Mignolo, 2020, p.245).
Um levantamento de artigos científicos na subárea Artes Cênicas sobre o
debate decolonial conta de um número ainda reduzido de publicações e
citações. A separação entre uma ordem epistêmica e outra estética parece não
ser suficiente, reforçando o eurocentrismo epistêmico por tradução. Ao tomar,
por exemplo, o pós-dramático como conceito instrumental a ser desconstruído,
alguns autores acabam por reforçar o teatro decolonial como uma espécie de
contraponto conceitual, relacionando-o a uma ideia equivocada de “pureza”; e
que a arte produzida por indígenas deveria ser analisada fora da esfera da pós-
modernidade e mesmo da modernidade, como se parte da produção artística
latinoamericana subsistisse para além de qualquer categorização e/ou moldura
teórica, o que não deixa de reafirmar uma visão eurocêntrica. Nesse sentido, é
5 Mignolo (2020, p.184) cita estudos sobre a gênese do nome “América Latina” (Ardao, 1980; 1993; Rojas Mix,
1992).
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relevante compreender que os estudos decoloniais são parte de um conjunto
heterogêneo “um espaço enunciativo não isento de contradições e conflitos, cujo
ponto de coincidência é a problematização da colonialidade em suas diferentes
formas, ligada a uma série de premissas epistêmicas compartilhadas”(Quintero,
Paz, Elizaide, 2019, p.4). Walter Mignolo, na elaboração do que ele nomeia como
pensamento liminar (gnose ou epistemologia liminar) pontua que a tentativa de
busca por um conceito único que capturaria uma espécie de significante
matricial é o equivalente a reforçar “uma visão moderna e universal do
conhecimento e da epistemologia, onde os conceitos não estão ligados às
histórias locais mas a projetos globais, e os projetos globais são sempre
controlados por certos tipos de histórias locais” (Mignolo, 2020, p.99).
Esta problemática é interessante se pensarmos que o teatro
contemporâneo não deve ser limitado por uma teoria “universalizante” que reduz
as diferentes manifestações artísticas e a historicidade de comunidades locais
em prol de um modelo único, cujas características, de ordem epistêmica,
estética e ética, possam ser adotadas a fim de classificar e analisar produções
artísticas. Por outro lado, interessa “ao outro pensamento” ou pensamento
liminar, “localizado na fronteira da colonialidade do poder no sistema mundial
moderno” (Mignolo, 2020, p.100), o questionamento da hegemonia europeia como
poder de subalternizar conhecimentos, constituindo um imaginário amparado
em concepções que não refletem a realidade política de países latinoamericanos.
Nesse sentido, ao associar o pensamento liminar como proposto por Mignolo
para analisar o teatro brasileiro hoje, não pretendo negar influências europeias ou
norte-americanas, bem como suas relevantes contribuições para a área, e nem
mesmo ignorar a formação crítica de parte significativa de teóricos e artistas
pesquisadores, a qual me incluo, mas sim ressaltar o protagonismo que, nesse
momento, o Brasil assume ao investigar processos artísticos, modos de
produção e de circulação de obras que refletem a arte negra, indígena, a
produção periférica, e as pautas LGBTQIAP+, em um percurso teórico-crítico que
dialoga efetivamente com a realidade política heterogênea e plural da cultura
brasileira.
Em
Teatro brasileiro e censura no governo Bolsonaro
(Lirio, 2023), investigo,
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na segunda década do milênio, o aumento de espetáculos autoficcionais e/ou
documentais, cujos temas versam sobre as relações entre memória e política, na
tentativa de enfrentamento e de denúncia à censura, à ausência de fomentos e à
política genocida do governo. Analiso ainda como o Brasil, sendo o único país da
América Latina a anistiar torturadores após o golpe militar, encontrava-se em
uma situação-limite, que posteriormente foi comprovada com a iminência de um
novo golpe militar, a derrota do ex-presidente nas eleições e a consequente
tentativa de ruptura institucional e destruição do patrimônio público, a que
assistimos incrédulos em 8 de janeiro de 2023. Contabilizamos mais de 200
obras censuradas no governo de extrema-direita que perseguiu intelectuais,
artistas, negros, indígenas, LGBTQIAP+, quilombolas, ribeirinhos, ativistas, em um
projeto político de epistemicídio, de eliminação da alteridade e de genocídio,
como o dos Yanomamis, sobretudo crianças, dizimados pela pandemia da Covid-
19, pela ausência absoluta de políticas públicas, incluindo a interrupção do
trabalho das equipes de vacinação na região amazônica, extermínio perpetrado
pelo Estado. A revisitação histórica de temáticas ligadas à ditadura militar, à
supressão de direitos e a questões de raça e gênero no pós-pandemia é mais do
que uma reação ao período; tornou-se urgente a revisão crítica da historiografia
brasileira, com a inclusão de narrativas invisibilizadas, a que assistimos nas artes.
Em “A virada testemunhal e decolonial do saber histórico”, Márcio
Seligmann-Silva nos chama a atenção para a importância do testemunho como
um modo de se assumir “a visão traumática da história e a necessidade de
inscrever a violência a contrapelo da lei do arquivamento que é também a lei
do esquecimento da violência”(Seligmann-Silva, 2022, p. 169). No Brasil, vemos a
repetição da lógica colonial e da violência do extermínio. “Negacionismo,
apagamento e genocídios andam sempre de mãos dadas” (Seligmann-Silva,
2022, p.18). Nesse sentido, narrar o inenarrável não se trata apenas de “revirar” o
passado colonial, mas de olhar detidamente para sua permanência, para o
presente traumático.
Macacos
e o testemunho-grito do racismo
Macacos,
monólogo escrito, dirigido e interpretado por Clayton Nascimento,
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é testemunho do racismo e do processo histórico de extermínio da população
negra no país. É denúncia contra o colonialismo e a violência a que negros estão
submetidos cotidianamente, nas ruas, nas relações de trabalho, nas instituições;
presentes no imaginário patriarcal, branco, elitista, homofóbico e racista da
sociedade brasileira. Em “Episódio 7: uma aula que você não teve”, Nascimento
apresenta a “História do Brasil através do olhar de um homem negro”(p.43). 388
anos de escravidão, o que em números atuais representa 74% de todo o período
histórico a partir da colonização. Da chegada dos colonizadores portugueses à
história do Dragão do Mar; da Lei Áurea à ocupação de São Paulo, onde a
escravidão se escondia na arquitetura do poder paulista (de um lado, a Praça da
onde eram torturados e do outro o Fórum onde acabavam presos); da
ocupação da Amazônia ao imaginário do indígena associado à preguiça; do
surgimento da Segurança Pública com o Poder da Polícia da Corte e do Estado
do Brasil à posse de Duque de Caxias; do início das Leis de Educação no Brasil,
em 1827, à exclusão do sistema de ensino de negros e indígenas todos são
temas da aula de Clayton Nascimento e traduzem a história do epistemicídio e
do genocídio da população negra, o que, infelizmente, continua a ocorrer no país.
A cada 23 minutos, uma pessoa negra será assassinada em nosso
país, a cada duas horas, cinco mulheres serão violentadas; durante
certo período da colonização, o Brasil teve cerca de três escravizados
por cada senhor de fazenda [...] nos últimos anos, cerca de duzentas
escolas quase foram fechadas e, no mesmo período, a intenção era
abrir mais de mil celas; nos últimos 90 anos, somente cinco
presidentes finalizaram seu mandato: um sofreu golpe, outro se
suicidou para evitar o golpe, os outros dois renunciaram diante do
golpe, e, por último, nossa primeira presidenta escolhida
democraticamente sofreu um impeachment numa manobra
completamente duvidosa, a qual os mesmos que pediram o
impeachment, anos depois, admitiram: se tratou de um golpe
(Nascimento, 2022, p.55).
Ao revisar a História brasileira, Nascimento toma corpo no mundo e abarca
na pele a dor de inúmeras vítimas: corpo mutilado, violado, furado, silenciado.
Nesse sentido, é “uma voz no próprio corpo” (Freire apud Nascimento, 2022,
pp.63-4), uma voz que grita, que denuncia, que se opõe. Para Leda Maria Martins,
o corpo negro é tradutor de uma geopolítica, é corpo-tela, corpo-imagem, corpo-
testemunha. Registro, inscrição, vestígios históricos compõem um inventário que
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aponta para outras possibilidades de existência. É um corpo que “argui, postula,
propõe, expressa. Um corpo-biografema, que enovela o vivido com o imaginário,
criando suas próprias autoficções e cuja elocução performa “uma voz,
personalizada” que, como diria Zumthor, “ressacraliza o itinerário profano da
existência” (Martins, 2021, p.163). Deformado por um imaginário que deseja “abolir
sua natureza humana, sua humanidade”(idem), o corpo negro é comumente
representado por meio de estereótipos que reforçam a exclusão, o não-
pertencimento, o desaparecimento. No espetáculo, Nascimento reinscreve no
corpo repetidas vezes a palavra “macaco”, utilizada com o objetivo de
desqualificar, ferir, exterminar, estigmatizar. Modificando itinerário e sintaxe, avisa
a todos: “antes de ser macaco, ele, pelo menos aqui nesta peça, o macaco vai
escolher quem ele quer ser” (Nascimento, 2021, p.20). “É isso. O macaco pode
escolher. Pode escolher e sonhar”(Nascimento, 2021, p.20). Ao operar uma
estratégia de fabulação, transforma macaco em corpo-disruptivo, em “uma
estrela” (Nascimento, 2021, p.20). É Elza Soares, é Bessie Smith, é Machado de
Assis. E é seu “ingovernável cu preto” (Nascimento, 2021, p.21)
Como representar o irrepresentável? Como revelar o sentimento da mãe ao
perder seu filho pela violência do Estado? Nascimento assume a difícil tarefa de
narrar a experiência indizível das mães brasileiras porque “o genocídio da
população negra é capaz de contar a história do país desde o início da nação até
os dias de hoje” (Nascimento, 2022, p. 42). Em “Episódio 4: uma notícia pra
qualquer um”, o ator conta a história de Terezinha Maria de Jesus, mãe de
Eduardo de Jesus, assassinado, em 2015, pela Polícia Militar do Estado do Rio de
Janeiro. Os policiais foram absolvidos no ano seguinte por legítima defesa.
Eduardo tinha seis anos de idade. As estórias de Eduardo, Amarildo, Claudia,
Agatha, Vinicius, que ganham voz em Macacos, se multiplicam na cena
contemporânea, nas obras de Grace Passô, Jota Mombaça, Allan da Rosa,
Bilac, Leda Maria Martins, Adalberto Neto, Aldri Anunciação, Dione Carlos, Ana
Maria Gonçalves, Coletivo Negro (SP), Bonobando (RJ), Teatro Negro e atitude
(MG), Bando de Teatro do Oludum (BA), Coletivo Nega (SC), Cia. Capulanas (SP),
Cia. Os Crespos (SP), Companhia Negra de Teatro (MG), Coletivo Békos (RJ),
Confraria do Impossível (RJ) e, pelas mãos de muitos outros dramaturgos, grupos
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de teatro formados nas universidades, nas periferias e comunidades brasileiras.
Em 2022, organizei, junto com os estudantes do Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena/UFRJ, Ricardo Cabral, Gabriel Machado, Flávia
Berton e Gabriel Morais, em parceria com o Museu de Arte do Rio, o seminário
internacional
Arte e Ecologia Políticas da Existência
6. Entre os convidados,
recebemos o quilombola Antonio Bispo dos Santos (1959-2023), com seu
pensamento contracolonial que institui a importância de “transformar as armas
do inimigo em defesa”(Santos, 2023, p.13), o que significa atentar para escolha e
nomeação das coisas, uma vez que, para ele, palavras são atos de transformação
do mundo. Isso compreende a oralidade das coisas manifestas, as narrativas dos
outros e as nossas, a palavra como estratégia: “seguimos nas práticas de
denominações dos modos e das falas, para contrariar o colonialismo. É o que
chamamos de guerra das denominações: o jogo de contrariar as palavras
coloniais como modo de enfraquecê-las”(Santos, 2023, p.13). Enfraquecer o
discurso que violenta as existências humanas e não-humanas por meio de uma
fala capaz de friccionar, de fazer rever, de refletir sobre os sentidos proferidos,
de questionar a ordem do dito, a ordem do pensamento usurpador, aquele que
engana, que fere e que mata.
Em “Uma ecologia decolonial. Pensar a partir do mundo caribenho”, Malcom
Ferdinand (2022) parte da metáfora do navio negreiro (um navio-mundo) não
apenas relacionando-o ao Caribe – sua terra natal, especificamente a Martinica –
mas a “todo mar de pensamento”, a todos os países colonizados - que
sobrevivem e resistem à escravização de corpos humanos e não-humanos, às
desigualdades, à barbárie, à destruição sistemática do meio ambiente e dos
modos de vida. Ele inicia com a pergunta “... o navio-mundo está no meio da
tempestade moderna. Como enfrentá-la? Que rota buscar? “(Ferdinand, 2022,
6 O
Seminário Internacional Arte e Ecologia: Políticas da Existência
ocorreu entre os dias 14 e 18 de março de
2022, de modo online e presencial, com o objetivo de fomentar o intercâmbio de pesquisas e processos
artísticos, visando a uma atuação propositiva no Antropoceno. Para isso, reuniu pesquisadores, artistas e
sujeitos atuantes na sociedade, de modo a refletir sobre estratégias de visibilização de questões urgentes
ligadas ao meio ambiente e, mais especificamente, aos povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas.
Integrando saberes de diversas áreas, como o cinema, as artes visuais, o teatro e a performance, em uma
perspectiva transcultural e transdisciplinar, contou com a presença de Ailton Krenak, Andréia Duarte,
Denilson Baniwa, Pedro Cesarino, Eliane Brum, Paul Ardenne, Ana Mumbuca, Luiz Bolognesi, Louise Botkay,
Eliane Potiguara, Nego Bispo, Juão Nÿn, Givânia Silva, Flávia Berton, Anna Dantes, Cinthia Mendonça, entre
outros artistas e pesquisadores. Disponível em: https://www.youtube.com/ArteeEcologia.
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p.21) Como tripulantes acompanhamos seu pensamento sobre a ecologia pelo
porão do navio e pela experiência da luta pós-colonial. Estamos diante do que
ele nomeia como “dupla fratura colonial e ambiental da modernidade”, na qual,
de um lado, encontram-se os movimentos ecologistas e ambientais; de outro, os
movimentos pós-coloniais e antirracistas. Ferdinand defende que é impossível
pensar a ecologia decolonial sem aproximar ambos os movimentos, sem romper
com uma “essencialização discriminatória” que impõe um imaginário branco que
prevalece sobre o não-branco. Para isso, é necessário que a violência conferida a
diversos povos colonizados seja nomeada, inclusive nos discursos, práticas e
politicas relacionadas ao meio ambiente. No lugar do termo Antropoceno,
Ferdinand cria o Negroceno, “a era em que a produção do Negro visando
expandir o habitat colonial desempenhou um papel fundamental nas mudanças
ecológicas e paisagísticas da Terra”(Ferdinand, 2022, p.79). Ao adotar a
concepção não racializante de Eric Williams, o autor investiga o racismo não
como causa, mas como resultado da exploração capitalista, diferenciando-a de
uma associação fenotípica, de uma origem étnica ou referência geográfica
localizada, e associando-a “a todos aqueles que estiveram e estão no porão do
mundo moderno: os fora do mundo”(Ferdinand, 2022, p.81).
Macacos
, em seu testemunho-grito do racismo, propõe ao final para o
espectador um juramento coletivo, para todos aqueles que, de dentro do porão
moderno clamam por liberdade, igualdade e justiça social. Como Bispo, não nos
conformaremos com as palavras: no lugar de escravos, utilizaremos escravizados
porque “ninguém nasce escravo”, não acreditaremos “no livro de história, que
afirma que índios e negros são preguiçosos, não nos desviaremos de calçadas ao
vermos um homem negro a caminho, nem deixaremos de nos sentar ao lado de
ninguém pela cor da pele. É preciso escavar vestígios na história para reescrevê-
la por meio de outras vozes. “Como lembra o poeta Serge Restog, “Neg-là Pa ka
kanmenm” (o negro não morre apesar de tudo). Os Negros de ontem e de
hoje encontraram meios de resistir e deixar vestígios no mundo”(Ferdinand, 2022,
p.82).
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Makunaimã e a revisão do modernismo brasileiro
[...] duma vez por todas: eu copiei o Brasil, ao menos naquela parte que
me interessava satirizar o Brasil por meio dele mesmo (Andrade apud
Moraes).7
Levaram as histórias. Não devolveram o livro. Roubaram as imagens.
Não devolveram as fotos (Taurepang, 2019).
A arte indígena ganha espaço e repercussão pouco mais de uma década
no Brasil nas artes visuais e nas artes cênicas. Em 2023, foi lançada uma
primeira compilação de onze dramaturgias indígenas, organizada por Trudruá
Dorrico e Luna Rosa Recaldes, em co-autoria com parceiros indígenas e não
indígenas, provenientes do Brasil, da Argentina e do Chile.
Dramaturgias
Indígenas
8 foi publicada pela Editora N-1 Edições e Outra Margem, esta última
dirigida por Andreia Duarte em parceria com Ailton Krenak. Juntos eles criaram a
plataforma TePI
Teatro e povos indígenas
que reúne artistas indígenas das
artes da cena e um conjunto de trabalhos artísticos nos campos do teatro e da
performance, cuja importância histórica, pela reunião e divulgação de obras, é de
grande relevância na área. Neste ano de 2024, Ailton Krenak foi eleito para a
Academia Brasileira de Letras, sendo o primeiro indígena a ocupar uma cadeira.
Assim também Zahy Tentehar, é a primeira atriz indígena a ganhar o Prêmio Shell
de Teatro por sua atuação em
Azira’I
, com direção de Denise Stutz e Duda Rios.
dez anos, tanto a eleição como a premiação seriam impensáveis no país, o
que aponta para o que chamo de virada decolonial, em uma perspectiva que
ganhou força sobretudo após a pandemia de Covid-19 e do governo de extrema-
direita de Jair Bolsonaro.
Makunaimã o mito através do tempo
9, peça de teatro, é escrita em
comemoração aos 90 anos do romance de Mário de Andrade. Para diversas
7 Carta a Raimundo Moraes, publicada pela primeira vez na coluna dominical de crônicas no
Diário Nacional
,
de 1929 a 1932.
8
O silêncio do mundo
, de Ailton Krenak e Andréia Duarte;
Amazonias ver a Mata que te
, de Márcia
Kambeba, Rita Carelli e Murilo de Paula;
Contra Xawara
, de Juan Nin;
Nossa luta é ancestral
, de Teatro
Maiuhi;
Margarida, para você lembrar de mim
, de Luz Barbara; Ixofij Mongen.
Todas as vidas sem exceção
,
de Paula e Evelyn González Seguel;
Siaburu
, de Xipu Puri e Dani Mara; entre outros.
9 A obra ganhou o Prêmio de Incentivo à Publicação Literária, 100 anos da Semana de Arte Moderna de 1922.
A virada decolonial nas artes da cena
Gabriela Lírio Gurgel Monteiro
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-21, jul. 2024
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etnias, Makunaimã é a divindade do tempo imemorial indígena, que habita a
região Norte, mais precisamente o Monte Roraima. Na apresentação da
dramaturgia, Cristino Wapichana afirma que a ideia surge da vontade de “[...]
reclamar dentro da própria casa de Mário de Andrade o Macunaíma
estereotipado, que mistura histórias e culturas indígenas diferentes para
compreender a formação do povo brasileiro a partir do nosso sagrado”.
(Wapichana apud Taurepang, 2019, p.9). Dividida em duas partes “Visitante” e
“Mito”- tem como personagens o próprio escritor que recebe a visita de 11
indígenas e não indígenas em sua casa-museu, entre artistas, professores,
antropólogos, curadora, filósofo-poeta, para um diálogo sobre sua obra e a virada
decolonial, associada à concepção de transmodernidade (Dussel, 2023), em que
“a arte pode ser o local por excelência do dialogo fronteiriço e transversal,
realizado entre culturas diversas, centrais e periféricas, europeias, asiáticas,
africanas, latino-americanas, etc.”(Paiva, 2022, p.61). Questões ligadas à
subalternização das culturas tradicionais, indígenas e afrodiaspóricas, bem como
o processo de representatividade de artistas, antes inimaginado, com a inserção
e escolha de seus nomes em curadorias, mostras e exposições estão ligados à
ideia de revisão histórica e de reparação, constituindo uma crítica que atua no
sentido de reverter “a subalternização dos saberes e a colonialidade do
poder”(Mignolo, 2020, p.444)
A dramaturgia de
Makunaimã
intercala dois tempos: o tempo dos mortos,
ou melhor “um estado de transição entre morte e vida” (Taurepang, 2019, p.17),
onde Mário de Andrade se situa; e o tempo dos vivos, onde se encontram as
personagens em uma palestra comemorativa dos 90 anos da obra. Mário de
Andrade é apresentado inicialmente como alguém que precisa ser reorientado
em outro tempo, o qual, histórica e culturalmente, desconhece. Há, no entanto,
uma visão ingênua apresentada inicialmente de que Mário sequer saberia a
distinção entre Norte e Nordeste, o que contradiz a experiência etnográfica e a
própria estrutura de
O Turista aprendiz
. De todo modo, ser ‘aprendiz’ de seu
tempo não inocentou o escritor do questionamento de sua obra, que data da
ocasião de sua publicação. No livreto
História de um livro
(1989), Silviano Santiago
analisa a repercussão de
Macunaíma um herói sem nenhum caráter
,
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destacando que, à época de seu lançamento, causa polêmica por não caber em
nenhum gênero, como na crítica realizada por João Ribeiro: “Se o Macunaíma
fosse um livro de estreia, o autor nos causaria pena, como a de um próximo
hóspede do manicômio (Ribeiro apud Santiago, 1989, p.6). É apenas em 1937 que
Macunaíma
recebe sua classificação como rapsódia. Um segundo aspecto
polêmico, destacado por Santiago, e que permanece na crítica contemporânea,
na dramaturgia de Makunaimã, é o plágio. em nota do
Diário Nacional
, datada
de 1928, a afirmativa de que “[...] Mário “se aproveita” da obra monumental de
Koch-Grünberg (completamente desconhecida à época pela elite intelectual
pátria), como ainda “de outras lendas brasileiras, fazendo-as passar com o
mesmo herói” (
Diário Nacional
, 1928). Por outro lado, Santiago destaca que o
debate sobre o plágio associa-se ao
Manifesto Antropofágico
, editado apenas
três meses antes. Tristão de Athayde, entusiasta do livro, faz distinção entre
Macunaíma e o Manifesto, classificando o primeiro como “a primeira realização
da nova escola indianista” que o “[...] sr. Oswald de Andrade [...] passeia
atualmente o seu indianismo pela beira do Sena, entre os supra-realistas,
soprando sarabatanas no Montagnet, bebendo Kachiri no Fouquet’s e dando
entrevistas às Nouvelles Littéraires” (Athayde apud Santiago, 1989, p.7). Apenas
em 1956, de acordo com Santiago, surge uma crítica de Cavalcanti Proença,
Roteiro de Macunaíma
, que investiga a composição estilística e de gênero, além
de apontar, por meio da análise dos capítulos, os “inúmeros empréstimos
tomados por Mário”(Santiago, 1989, p.11). Mas é no final da década de 1960, com o
lançamento do filme homônimo com direção e roteiro de Joaquim Pedro de
Andrade (1969), que a obra se populariza no Brasil. Para Santiago, “o feliz acaso
de alguns encontros a partir da década de 60 consagraram definitivamente
Macunaíma
como a melhor prosa de ficção modernista, encontrando paralelo
no
Grande Sertão: Veredas,
de Guimarães Rosa”. (Santiago, 1989, p.11)
Por um lado, se a polêmica sobre gênero literário parece hoje ultrapassada,
inclusive por uma visão expandida da literatura brasileira e de outras artes que
tendem à inespecificidade (Garramuño, 2014) e à indefinição de fronteiras
artísticas, o mesmo não se pode dizer sobre o debate acerca da cópia. Em
Makunaimã. O mito através do tempo
, o que fica patente na crítica indígena é
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que, por meio do que chamam de ‘plágio’ e da notável capacidade de fabulação
do escritor, a desconfiguração da história brasileira e sua, consequente,
“folclorização”, ao adotar uma errônea perspectiva sobre a realidade indígena. Na
dramaturgia, o personagem Laerte, o que adota o tom mais combativo, escritor
Wapixana de renome, com inúmeros prêmios em seu currículo, afirma a Mário:
“Vim para resgatar as histórias que roubaram do meu povo. E também para
pagar as que contaram de forma torta sobre o meu povo. Esse tempo acabou.
Agora estamos aqui, nós, os artistas indígenas, para contarmos nossas próprias
histórias” (Taurepang, 2019, p.37). A crítica decolonial da releitura dramatúrgica
aponta para o “[...] questionamento dos cânones da historiografia artística
eurocêntrica, refletidos também na historiografia brasileira”(Paiva, 2022, p.36).
Não se trata porém de destruição do passado, mas das “[...] imagens
estigmatizadas a respeito de grupos minorizados, como o exotismo vinculado
aos povos indígenas [...]” (Paiva, 2022, p.38).
Laerte
[...] quando você pega as nossas histórias e mistura com outras, é como
um xingamento para nós. Quando você mistura Ceuci, do povo Tembé,
que padeceu antes do século XX, com o barro do povo Carajá, com
Makunáima, como se fosse tudo igual, você nos desvaloriza. Você
produz estereótipos. (Taurepang, p.41)
[...]
Mário
Você é índio, mas não apenas. É também nordestino. Suas histórias
estavam “misturadas” quando eu as conheci. Assim como eu, que sou
preto (...) Mas, olhe para mim. Eu pareço preto? Quão preto? como
medir o quanto de preto em mim? Não seria o meu espelhamento
disso que incomoda? Não seria meu livro um espelho? (Taurepang,
p.42-43).
O espelho de Mário é heterogêneo e confronta “[...] manifestações culturais
ligadas à tradição, ao território, às relações com a ecologia, aos fazeres e saberes
do cotidiano, em oposição a uma outra muitas vezes desenraizada, pois
relacionada a valores exógenos […]” (Torelly apud Andrade, 2015, p.15). A análise
empreendida por Souza (1979) destaca a visão europeizante do autor, sobretudo
a herdada de Portugal, compondo um núcleo central que, apesar de abordar
manifestações indígenas e africanas, “permanece firmemente europeu”(Souza,
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1979, p.74). Isso se dá, segundo ela, pela aproximação de
Macunaíma
com o
romance arturiano, de narrativa ocidental, em que se tem a busca pelo Graal, o
objeto milagroso. Na versão andradina, o Graal é o muiraquitã que, ao contrário
de transformar Macunaíma, transformando sua vida, opera um retorno do herói
às origens, de forma ainda mais precarizada. A relação entre referências da
cultura popular e da herança europeia estabelece na estrutura rapsódica “a
adesão a termos inteiramente heterogêneos” (Schwarz apud Souza, 1979, p.75). É
assim que, no início do livro, Macunaíma se transforma, ao se banhar na fonte,
em “um príncipe lindo”, em uma alusão aos contos de fada ocidentais e, ao
chegar ao final da sua trajetória, com o muiraquitã conquistado, é enganado por
Véi e se encanta com uma portuguesa. Ao contrário dos romances de cavalaria,
Mário de Andrade constrói, por meio da carnavalização e da paródia, seu herói
sem nenhum caráter. Macunaíma tem medo, engana os outros, é mentiroso e
usa de subterfúgios para conseguir o que quer.
[… o herói brasileiro representa uma personagem bem mais ambígua e
contraditória: é um vencido-vencedor, que faz da fraqueza sua força, do
medo sua arma, da astúcia seu escudo; que, vivendo num mundo hostil,
perseguido, escorraçado; às voltas com a adversidade, acaba sempre
driblando o infortúnio. Neste sentido, seria mais acertado inscrevê-lo na
longa linhagem dos perseguidos vitoriosos da ficção de todos os
tempos literária ou cinematográfica … (Souza, 1979, p.89).
Para Jaider Esbell, artista visual e personagem da versão dramatúrgica,
Macunaíma é uma história em que “[…] quanto mais se mergulha, mais se
descobre ou se perde nessa fantasia real enigmática” (Esbell, 2019). O artista
Makuxi, “sou neto de Makunaimã”10 (Esbell, 2019), recupera a tradição oral ao
descrever a origem do mito: os indígenas viviam no do monte Roraima
quando os brancos chegaram em navios dando-lhes o nome de “índio”, até a
chegada do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg que, ao escutar o mito de
Makunaimã contado por Akuli o pajé Pemón, resolve anotar tudo e voltar para
a Alemanha. É dos escritos de Koch-Grünberg que Mário de Andrade extrai a
história da rapsódia. Na dramaturgia, o debate sobre a relevância do registro de
10 Ver o belo texto de Jaider Esbell O meu avô em mim (2018). Disponível:
http://www.jaideresbell.com.br/site/2018/08/26/makunaima-o-meu-avo%CC%82-em-mim/
Acesso em: 13 nov. 2023. O artista, que recentemente “se encantou”/faleceu, também colaborou com a
exposição Netos de Makunaimi: encontros de arte indígena contemporânea, no Museu de Arte da
Universidade Federal do Paraná.
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narrativas indígenas aparece na voz do personagem Avelino, neto de Akuli, que
afirma ter conhecido “o livro do alemão”, em 1980, pelo primo venezuelano, que
o encontrou em Caracas. Depois, levaram o livro para a aldeia, já em uma versão
em português. Para Avelino, sua publicação “é uma coisa que não tem
importância”(p.48); inclusive a versão andradina nunca chegou à aldeia, segundo
a personagem “Curadora”, que explica ao personagem Mário de Andrade as
diferentes visões de povos indígenas sobre a questão:
São tentativas de acomodar a diversidade, Mário. É o que vemos aqui.
Avelino não relevância nos livros. Laerte tomou isso como missão
de vida. E até indígenas que são contrários à transposição da
tradição oral para a escrita (Taurepang, 2019, p.53).
Na performance Pajé Onça, na 30a Bienal de Arte de São Paulo, em 2018, o
artista Denilson Baniwa, cuja obra é marcada pela adesão à luta dos povos
indígenas em sua interação entre a aldeia e o espaço urbano, questiona a
ausência da produção artística indígena nos livros de arte ocidental11. O Pajé-
Onça caminha pela Bienal, compra um livro de História da Arte e, à frente a um
grande painel com o retrato de dois indígenas Selk’nama, questiona:
Isso é arte?
Breve história da arte. Tão breve, mas tão breve, que não vejo a arte
indígena. [...] Mas eu vejo índios nas referências, vejo índios e suas
culturas roubadas. Breve história da arte. Roubo. Roubo. Roubo. Isso é o
índio? Aquilo é o índio? É assim que querem os índios? Presos no
passado, sem direito ao futuro? Nos roubam a imagem, nos roubam o
tempo e nos roubam a arte. Breve história da arte. Roubo, roubo, roubo,
roubo, roubo, roubo, roubo. Arte branca. Roubo, roubo. Os índios não
pertencem ao passado. Eles não têm que estar presos a imagens que
brancos construíram para os índios. Estamos livres, livres, livres. Apesar
do roubo, da violência e da história da arte. Chega de ter branco
pegando arte indígena e transformando em simulacros! (Baniwa, 2018a).
A performance de Baniwa coloca em xeque o modo como as instituições,
no caso específico o museu, tratam os indígenas e sua arte,
descontextualizando-a, reduzindo-a ao olhar branco, colonizador, ocidental. Na
Bienal, não havia o convite aos próprios indígenas, por isso Baniwa invade o
11 A valorização da arte indígena é muito recente na história da arte brasileira. Há apenas onze anos, em 2013,
Jaider Esbell reúne em sua casa ateliê artistas indígenas que, juntos, expõem suas obras. Foi a primeira
exposição em galeria no Brasil.
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território sem ser convidado e aponta a violência epistêmica recorrente, fruto do
apagamento e da invisibilização dos povos originários. Em um texto intitulado
Sobre a retomada da antropofagia como resistência da arte indígena
, lido na
Casa do Povo
, ainda em 2018, Baniwa diz:
Quem eu sou?
Eu sou o medo dos brancos
Eu sou aquele que senta na mesa dos doutorados
Que desestabiliza e causa constrangimento a todos
Que ri do vocabulário prolixo e do currículo lattes dessa gente branca
Eu sou o novo cabano
Eu sou a resistência através da antropofagia
Eu sou aquele que degola Tarsila do Amaral
Eu sou aquele que empala Mario de Andrade
Eu sou aquele que come o coração de Oswald de Andrade
Eu sou a arte Indígena
Eu sou o Indígena contemporâneo
Muito prazer (Baniwa, 2018b).
O texto-manifesto de Baniwa é revelador deste momento de virada
decolonial. Ao realizar a antropofagia da antropofagia, o artista, na tentativa de
reescrever a própria história, defende um outro lugar para a arte indígena. Se os
homens brancos « levaram as histórias, não devolveram o livro. Roubaram as
imagens, não devolveram as fotos » (Taurepang, 2019, p.64), hoje, os indígenas
brasileiros « rasgam » o livro da « arte oficial » em um movimento de reescritura
da História brasileira que se inicia com a constatação de que « o Brasil não
abarca o Brasil - é um naufrágio anunciado » (Taurepang, 2019, p.67), e de que
“[...] o erro fatal do Modernismo, nesse sentido, foi avançar na busca de uma
identidade brasileira, ao invés de desmascará-la de vez” (idem). Desmascarar
carrega o princípio do reconhecimento. Reconhecimento de que o genocídio dos
povos nativos permanece, como testemunhado na pandemia com a crise
humanitária dos Yanomamis, mortos pela Covid, pela malária, pela pneumonia e
pela desnutrição, que dizimou mais de 50% de suas crianças. « O Brasil é o maior
campo de extermínio da America Latina » (Taurepang, 2019, p.67).
O reconhecimento de
Macunaíma
para a história e a memória latino-
americana, assim como a contribuição intelectual de Mário de Andrade,
presentes no diálogo final da dramaturgia
Makunaimã
.
O mito através dos
tempos
, é reflexo da compreensão de que o que denominamos atualmente
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como virada decolonial somente é possível pela revisão modernista
empreendida, por meio do debate sobre identidade e cultura brasileiras.
Recuperar quase um século depois, em uma antropafagia da antropafagia,
virando ou girando sobre temas, desta vez pela voz narrativa dos indígenas, é
mirar não apenas o futuro ancestral, mas o tempo presente.
Artistas indígenas e negros passam a ocupar, pouco mais de uma
década, espaços institucionais e curatoriais, contribuindo para que a arte
brasileira de fato possa questionar não apenas nossas origens e História, mas
nossa alteridade, nos seus modos de criação, produção e circulação de obras
artísticas, de modo mais inclusivo, democrático e igualitário. Na virada decolonial
torna-se necessária a partilha de epistemologias antes excluídas de práticas
político-pedagógicas e a ocupação de espaços configurando novos modos de
transmissão do saber e de existência.
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Recebido em: 09/05/2024
Aprovado em: 17/06/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro PPGT
Centro de Arte CEART
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Revista de Estudos em Artes Cênicas
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