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Artes Performativas e Políticas da Percepção
Cassiano Sydow Quilici
Para citar este artigo:
QUILICI, Cassiano Sydow. Artes Performativas e Políticas
da Percepção.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0103
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Artes Performativas e Políticas da Percepção
Cassiano Sydow Quilici
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-15, jul. 2024
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Artes Performativas1 e Políticas da Percepção2
Cassiano Sydow Quilici3
Resumo
Neste artigo, problematizou-se as artes performativas diante de um cenário de crises
extremas, partindo-se do conceito de arte em campo expendido. Discutiu-se possíveis
posicionamentos estéticos diante desse novo contexto a partir de considerações críticas
sobre os modos de percepção predominantes, fortemente marcado pelos ambientes
virtuais e pela subjetividade neoliberal. Abordou-se o aprofundamento do diálogo de
artistas e pesquisadores com saberes tradicionais na construção de conhecimentos e
práticas transversais, pensando a experiência artística e estética como micropolíticas da
percepção.
Palavras-chave
: Arte em campo expandido. Políticas da percepção. Corpo e tecnologia.
Saberes tradicionais.
Performing Arts and Politics of Perception
Abstract
In this article, the performing arts were problematized in a scenario of extreme crisis,
starting from the concept of art in an expended field. Possible aesthetic positions in this
new context are discussed, based on critical considerations about the predominant
modes of perception, strongly marked by virtual environments and neo-liberal
subjectivity. It addressed the deepening of the dialogue between artists and researchers
with traditional knowledge, in the construction of transversal knowledge and practices,
thinking about artistic and aesthetic experience as micropolitics of perception.
Keywords:
Expanded field art. Politics of perception. Body and technology. Traditional
knowledge.
Artes Escénicas y Políticas de la Percepción
Resumen
En este artículo, se problematizan las artes escénicas en un contexto de crisis extremas,
desde el concepto del arte en un campo ampliado. Se discutieron posibles posiciones
estéticas en este nuevo contexto, desde consideraciones críticas sobre los modos de
percepción predominantes, fuertemente marcados por los entornos virtuales y la
subjetividad neoliberal. Se abordó la profundización del diálogo entre artistas e
investigadores con saberes tradicionales, en la construcción de conocimientos y
practicas transversales, pensando la experiencia artística y estética mientras
micropolítica de la percepción.
Palavras-chave
: Arte en campo ampliado. Políticas de percepción. Cuerpo y tecnología.
Conocimientos tradicionales.
1 A revisão ortográfica e gramatical do artigo foi realizada por Cristina Mantovani Bassi - Mestrado em Literatura
Brasileira pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
2 Este artigo é parte de pesquisa financiada pelo CNPq com bolsa Produtividade em Pesquisa Pq.
3 Pós-doutorado na Universidade de Lisboa (UL) Portugal. Doutorado em Comunicação e Semiótica na
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestrado em Filosofia e Ciências Humanas na
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Professor livre-docente do Instituto de Artes da Universidade
Estadual de Campinas da graduação e pós-graduação em Artes Cênicas (UNICAMP).
cassianosyd@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/4947462947102900 https://orcid.org/0000-0003-0042-5378
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Teoria expandida para uma arte expandida
O exercício de pensamento que faremos aqui não se refere apenas ao
fenômeno teatral
strictu sensu
. Abrange também o que podemos denominar de
campo expandido das artes performativas, que inclui artes cênicas, dança,
performance e formatos híbridos, compreendendo tanto a produção de
espetáculos, quanto outras formas de ação e de intervenção artística em espaços
públicos, inclusive aquelas que borram as fronteiras da arte e da não-arte.
Conceitos como “arte contextual” (Ardenne, 2002) e “arte relacional” (Bourriaud,
2019), entre outros, abarcam uma diversidade de dispositivos e estratégias de
atuação em situações distintas, extrapolando as discussões a partir de conceitos
como “teatro performativo” (Feral, 2015) e “teatro pós-dramático” (Lehmann,
2007), que se referem, em geral, a experimentações radicais, mas ainda no campo
do espetáculo.
Uma arte expandida demanda uma teoria expandida, que não se concentra
em discussões focadas exclusivamente nas linguagens cênicas e suas
transformações. Ela exige um diálogo transversal mais intenso com outros campos
de saber - antropológicos, filosóficos, ecológicos, tradicionais para explorar as
dimensões performativas de fenômenos sociais e culturais, trabalhando com a
ideia de uma criatividade articulada em múltiplos dispositivos. Esse tipo de
interesse permite abordar um horizonte expandido de ações artísticas que não se
configuram apenas na forma-espetáculo, mas trabalham outros tipos de situação
e de relação com os ambientes sociais e naturais.
Muitas vezes, tais encontros extrapolam a discussão sobre as possibilidades
específicas da cena, pela necessidade de se repensar o próprio lugar e função das
artes performativas em contextos de crise, que desafiam artistas e pensadores
para o enfrentamento de um cenário muito grave. Tal parece ser o momento que
vivemos, nos mais variados sentidos. Emergem diferentes sintomas que podem
ser compreendidos como sinais de esgotamento das formas hegemônicas de vida
que se difundiram pelo planeta, a partir da expansão colonial europeia no século
XVI e prosseguiram ao longo de diferentes fases do capitalismo globalizado.
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A crise ecológica e as questões climáticas são apenas pontos extremos da
crise atual. Juntam-se a elas a ameaça à democracia e o crescente avanço da
extrema-direita e da militarização dos conflitos; o aumento da disparidade social
e da parcela da população marginalizada; a violência contra minorias étnicas,
raciais e de gênero; o fundamentalismo religioso e as guerras culturais e o
agravamento das condições psíquicas e existenciais, em especial, das populações
mais jovens, que cresceram no ambiente das redes sociais. Essa enumeração
genérica aponta para uma situação difícil de circunscrever, que se impõe como
uma “peste” de grandes proporções, para usar uma metáfora trágica, colocando
desafios inéditos aos processos artísticos e à singularidade de suas contribuições.
A ênfase recente de trabalhos cênicos e performativos de cunho ético-
político pode ser vista como uma forma de responder à urgência das questões
aqui indicadas. Bishop (apud Pais, 2017) problematizou essa tendência,
especialmente quando “a urgência dessa missão social” conduz a uma legitimação
automática de qualquer gesto artístico de resistência que se proponha a reparar
vínculos sociais. Mesmo reconhecendo a importância de tais propostas, a
pensadora considera também fundamental abordá-las sob um ponto de vista
especificamente estético, por ser esse o principal foco das ações artísticas. A
questão que se desdobra, a partir daí, diz respeito a própria noção de “estética”
que estamos utilizando.
Estética e modos de percepção
O campo expandido das ações performativas questiona tanto os conceitos
que têm embasado formas históricas do pensamento sobre a arte, quanto a
própria noção moderna de “estética”. Rancière (2009) retoma tal discussão,
historicizando esse conceito. Baumgarten (1714-1762), considerado um pensador
inaugural nesse campo, tenta circunscrever um domínio específico para o
conhecimento sensível, chamando-o de “estética”, a fim de diferenciá-lo do
conhecimento conceitual, baseado na clareza da lógica e do raciocínio analítico. A
experiência sensível seria, assim, mais “confusa” e “obscura”, gerando outras
formas de apreensão do mundo; uma espécie de “pensamento selvagem”, para
usar a expressão que Levi Strauss aplica às mitologias indígenas. Kant usa o termo
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“estética” como um adjetivo, para qualificar o juízo de gosto e erigir toda uma teoria
das formas de sensibilidade. Apenas a partir do romantismo e do idealismo pós-
kantiano, o termo passou a designar o pensamento produzido especificamente
pela arte, distinto do pensamento conceitual. Rancière reconhecerá, nesse
processo de legitimação do pensamento não conceitual, um fator fundamental
para a criação de um ambiente cultural singular e propício, inclusive, a
especulações sobre o tema do inconsciente.
Quando passamos a considerar as ações artísticas contemporâneas que
extrapolam a forma-espetáculo e colocam em questão as próprias fronteiras entre
arte e não-arte, surgem novos problemas. Torna-se necessário pensar o “estético”
para além dos fenômenos identificados como “artísticos”. Para tanto, é preciso
recuperar o sentido mais amplo da palavra
“aesthesis”
, como experiência sensível
que não se reduz nem ao domínio da arte, nem à reflexão sobre o belo. O campo
estendido da ação artística lida com padrões de sensibilidade e modos de
percepção difusos na experiência social, podendo tensioná-los e transformá-los
de diversas maneiras.
A arte é uma experiência estética específica entre outras e move-se em um
horizonte de sensibilidades configurado historicamente. Nessa direção, Guattari
(2006) propõe um “novo paradigma estético”, trabalhando a ideia de uma
criatividade existencial e ontológica que inclui e extrapola o campo artístico,
criando territórios existenciais e processos de subjetivação a partir de um
deslocamento do universo hegemônico de valores e hábitos adaptativos.
Nesse aspecto, entender os modos de percepção predominantes em
circunstâncias históricas determinadas é fundamental, para refletir sobre as
estratégias e proposições artísticas. Como afirmou Benjamin, “No interior dos
grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se
transforma ao mesmo tempo que seus modos de existência” (Benjamin, 1985,
p.169). A percepção humana não se restringe a um processo determinado
biologicamente, antes, é configurada por condicionamentos histórico-culturais
complexos e opera a partir da plasticidade do organismo humano.
Se uma das singularidades das ações artísticas consiste justamente em
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incidir e tensionar os modos de percepção, torna-se fundamental, para sua
efetividade, investigar as formas de experiência sensível predominantes no tempo-
espaço em que atuam. Nesse sentido, a proliferação dos sintomas da crise e do
esgotamento cultural e social aqui mencionados precisa ser compreendida
também sob o ponto de vista dos padrões perceptivos predominantes. A partir
daí, pode-se considerar que o trabalho ético-político da arte vincula-se a uma ação
estética que desvela e questiona os processos cognitivos ligados às experiências
sensoriais e perceptivas.
Defendo que as artes performativas podem constituir um campo de pesquisa
e atuação particularmente rico para a elaboração de um saber complexo sobre
tais questões. Para isso, é necessário nutrir-se de referências provindas dos
conhecimentos práticos e teóricos produzidos no próprio fazer artístico, mantendo
um intenso diálogo com a filosofia, a antropologia, a psicanálise, entre outras áreas
de conhecimento, bem como interessar-se pelo intercâmbio com saberes
tradicionais de diversas culturas. Nesse particular, as ressonâncias entre as
sabedorias tradicionais, que se condensam em ritos e práticas cotidianas, e as
pesquisas realizadas por diversos artistas apontam para possibilidade de
aprofundar a articulação entre prática artística e transformação das formas de
vida.
Tecnocolonização
Detenho-me, aqui, em alguns aspectos críticos sobre os modos de percepção
que se consolidaram nas últimas décadas, especialmente a partir do
desenvolvimento tecnológico, da expansão das redes sociais e da internet, bem
como seu papel na formatação das subjetividades, sensibilidades e vínculos
sociais. Esse pano de fundo permite explorar algumas possibilidades de
investigação e atuação das artes performativas enquanto políticas da percepção.
Uma das cenas cotidianas mais comuns nos ambientes urbanos
contemporâneos é a presença de pessoas compartilhando o mesmo espaço físico,
cada uma absorvida em seu
smartphone,
mais ou menos alheias ao que se passa
ao redor. Não é difícil constatar a radical reconfiguração das formas de
sociabilidade e os modos de perceber o mundo nas três últimas décadas, a partir
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da expansão das redes digitais e da internet. A onipresença de tais meios e o grau
de dependência que desenvolvemos em relação a eles é um fenômeno de enorme
importância, uma esfinge que nos devora, talvez por ainda não termos nos dado
conta de seus efeitos profundos e de suas relações com formas inéditas de poder,
de controle e de resistência.
Como nos mostra Berardi (2019), aquilo que se anunciava, na década de 90,
como uma espécie de nova utopia, um “neo-futurismo virtual”, capaz de oferecer
acesso ilimitado à informação e de burlar censuras e controles, criando a
possibilidade de uma sociedade virtual libertária, transformou-se em um espaço
controlado por grandes corporações, sintonizadas com o fortalecimento da lógica
neoliberal e suas novas formas de subjetividade. As pesquisas sobre a internet
financiadas por grandes fortunas capturaram essas energias utópicas iniciais, que
enxergavam um potencial revolucionário nos novos meios. Crary (2023) fala em
um processo de tecnocolonização, no qual os novos dispositivos tecnológicos,
mais do que instrumentos, tornaram-se ambientes nos quais é preciso estar
inserido, sem muita possibilidade de escolha. O discurso sobre a inevitabilidade
dessa adesão faria parte da sua imposição ideológica. Os inadaptados sofreriam
uma espécie de exílio radical do próprio funcionamento social, hoje dependente
de tais meios.
de se notar que a expansão de tais tecnologias ocorre concomitantemente
ao fortalecimento do neoliberalismo. Os novos parâmetros da conectividade dos
indivíduos nas redes virtuais são estabelecidos paralelamente a uma crescente
precarização das relações sociais e à financeirização do capital. O trabalho
precarizado, sem vínculos jurídicos e empregatícios, estimula um tipo de
subjetividade que substitui o “sujeito da obediência”, típico das “sociedades
disciplinares”, pelo “sujeito do desempenho”, que explora a si mesmo, mas
interioriza a crença de ser um novo empreendedor liberal, independente do apoio
do Estado.
A ideia de “precarização” pode ser entendida, ainda, em uma perspectiva mais
ampla, ao tipo de vínculo social produzido pelas redes digitais. Berardi entenderá
a precarização como elemento complementar da conectividade digital, que
produziria o empobrecimento dos vínculos sociais. No contexto virtual haveria uma
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“descorporificação” dos encontros, com a exclusão de dimensões sensoriais
fundamentais para as trocas afetivas e cognitivas. A conexão digital implicaria
também o isolamento presencial dos indivíduos que não “respiram o mesmo ar”
e, portanto, não são capazes de “conspirar”. A conectividade virtual implicaria a
diminuição dos fluxos de empatia, sendo condizente com a mobilização do
individualismo, das bolhas de identificação e da competitividade requeridos no
jogo neoliberal. Autores como Arthur Kroker (1994), citado por Berardi, chegam a
dizer que a ciberinteratividade é o oposto da relação social. A virtualização dos
contatos provocaria uma contração da corporeidade, que tenderia a explodir,
reativamente, em um tipo de agressividade fascista.
Outro aspecto ligado à importância das redes sociais na produção da
subjetividade diz respeito à vivência do tempo. A ênfase na profusão e na contínua
substituição de informações e imagens tenderia a intensificar a relação com o
presente imediato, sem a perspectiva de construção de uma trajetória no tempo,
em diversos âmbitos da vida. O tempo de elaboração da experiência e de
construção das memórias, necessário para a invenção de perspectivas futuras é
erodido pela velocidade alucinante da circulação de dados que excede a
capacidade orgânica de assimilação do cérebro. A própria experiência do ritmo e
da alternância entre atividade e descanso restaurador é substituído por “padrões
ininterruptos e permanentemente ativados” (Crary, 2023, p.10), funcionando 24
horas por dia, no esforço para capturar o máximo de tempo de atenção do usuário.
Como mostra Crary, o campo da “economia da atenção” pode ser rastreado
historicamente. Ele começa com o problema da produtividade nas linhas de
montagem e da eficiência dos gestos do trabalhador e desloca-se para a
propaganda, cujas estratégias publicitárias alcançam novos patamares, que
incluem pesquisas sobre os movimentos do globo ocular na tela, para conhecer
os padrões que atraem e que repelem o olhar, de modo a criar atrações visuais
que enredem, cada vez mais, a atenção. “Nossa preocupação deveria se ater ao
fato de que todos nós habitamos e interagimos cada vez mais com mundos on-
line fabricados para produzir respostas visuais padronizadas e rotinizadas” (Crary,
2023, p.144). Tais hábitos perceptivos construídos no nosso cotidiano condicionam
nossa capacidade de concentração, gerando efeitos cognitivos e afetivos. Tornar-
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se adicto dos estímulos e apelos emitidos pelas telas é um sintoma cada vez mais
frequente nas novas formas de sociabilidade e de sensibilidade.
O fato de essa realidade relativamente recente ainda não ter sido
suficientemente compreendida em todas as suas nuances gera leituras mais ou
menos alarmantes da situação. Suas relações com sociopatias típicas do mundo
contemporâneo, como o crescimento dos distúrbios da atenção, das depressões,
das ansiedades e do número de suicídios precisam ser aprofundadas. A hipótese
é que, no mundo hipervirtualizado, ocorre uma perda de contato vital com a
realidade, um esvaziamento dos espaços públicos de encontro, uma apatia
narcísica, que se expressa nos afetos da indiferença e na ausência de vínculos de
solidariedade. O estudo da dimensão microscópica- sensorial, perceptiva e afetiva
dessas novas realidades seria indispensável para uma compreensão aprofundada
de questões macropolíticas e culturais.
Se, no entanto, não estivermos atentos a como os imperativos neoliberais
estão danificando o tecido íntimo que sustenta o inter-humano,
acabaremos cada vez menos capazes de manter ou mesmo de dar início
às lutas de maior escala contra a guerra imperial, o terror econômico, o
racismo, a violência sexual e o desastre ambiental. Com uma capacidade
enfraquecida de responder aos outros, não há possibilidade de adesão a
um senso de responsabilidade mútua nem existe motivação para
abandonar as escassas compensações proporcionadas pela insularidade
digital (Crary, 2023, p.175).
A campo da arte e a ressignificação da técnica
A partir desta perspectiva, podemos repensar as artes performativas como
lugar em que se processa a ressignificação da nossa relação com a técnica, a partir
de investigações dos padrões perceptivos, afetivos e de configurações
hegemônicas das subjetividades, propondo dispositivos de interrupção e de
abertura para outras qualidades de experiência. A relevância política e cultural
desses experimentos aumenta consideravelmente, quando ocorrem em
programas em longo prazo, que preveem a avaliação e a continuidade das
propostas e constituem grupos e relações comunitárias.
Para tanto, será útil recuperar algumas referências sobre a origem comum
dos termos “arte” e “técnica”. Sabemos que a palavra grega
techné
, traduzida para
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o latim como
ars
, designava genericamente o trabalho humano de transformação
da matéria, em contraposição ao brotar espontâneo da natureza, ou
physis
. O
artista alemão Joseph Beuys (2011) resgata tal relação, ao propor a expressão
“sentido antropológico da arte”, para designar uma ampla gama de intervenções
criativas possíveis da arte, que se confundem com o próprio agir humano. Nesse
sentido, “arte” designaria simplesmente a qualidade e a maestria do fazer, um
“fazer bem-feito”. Ao recuperar esse sentido arcaico da palavra, Beuys busca
expandir o campo de atuação do artista contemporâneo para além do circuito
restrito das obras de arte e, ao mesmo tempo, questionar as relações do homem
atual com a técnica e o trabalho.
A diferença radical entre a antiga noção de “técnica” e a moderna, inaugurada
pela ciência experimental e seus métodos de exploração da natureza, foram
assinaladas por diversos autores. Boa parte da obra tardia de Heidegger pensa a
questão da técnica e o caráter singular da técnica moderna, que se colocaria como
uma provocação e um desafio à natureza, para que se possa dispor de fontes de
energia a serem exploradas e armazenadas infinitamente (Werle, 2023). Tal postura
representaria uma mudança radical em relação ao significado originário de
techné
,
que significaria trazer à luz o que se encontra latente e oculto na natureza. Nesse
caso, não se trataria, simplesmente, de submeter a natureza aos desejos humanos,
mas de colaborar e desdobrar seus processos. Sibilia (2002) expõe outro modo de
assinalar tal diferença em seu trabalho sobre corpo, subjetividade e tecnologias
digitais. Citando o sociólogo português Herminio Martins, a autora identifica uma
“certa tradição fáustica do pensamento ocidental sobre tecnociência” (Sibilia,
2002, p. 13). Diferentemente da “tradição prometeica”, que pensa a técnica como
extensão e potencialização da natureza, a postura fáustica pretende substituir a
natureza, criando outra realidade, um homem “pós-biológico”, liberado de suas
limitações orgânicas. A gradativa substituição das relações presenciais pela
conectividade virtual das redes sociais reflete, em parte, esse tipo de pensamento
e essa utopia de “descorporificação” das relações.
As artes presenciais e performativas como campo de ressignificação da
técnica podem investigar a genealogia das novas tecnologias em tempos de crise
ecológica aguda. Resgatar e repensar o sentido da
techné
da antiguidade grega é,
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de certa forma, buscar alguma sintonia com culturas ancestrais vivas, que
sustentam outra relação com a natureza. Significa também um modo de repensar
processos, relações de trabalho e termos como “criação”, já que o/a artista estará
mais poroso às circunstâncias e às situações, em uma atitude menos egóica e
centralizadora. Isso não significa nem uma negação romântica das tecnologias
atuais, nem uma espécie de saudosismo do artesanal, mas a transformação de
uma atitude em relação aos meios e ao ambiente social e natural, bem como o
cultivo de outros tipos de vínculo, que representem um contraponto ao
individualismo exacerbado e ao
páthos
da conquista.
Micropolíticas da percepção e ampliação das referências:
saberes tradicionais
É difícil pensar em experiências artísticas e estéticas que pretendam
“perfurar” ou abrir espaço em automatismos perceptivos, afetivos e subjetivos
característicos do que alguns autores chamam de “sociedade do controle”, X sem
o recurso a saberes que incidem mais profundamente nos processos
microscópicos da percepção, gerando outra qualidade de relação e contato.
uma série de referências artísticas que poderiam ser evocadas aqui como subsídio
a esse tipo de investigação. Destacarei duas, que foram também objeto de reflexão
político-filosófica, potencializando, assim, uma articulação transversal do
conhecimento.
Uma delas diz respeito à investigação de uma modalidade específica de
consciência, muito presente nas escolas de educação somática e na dança
contemporânea. Refiro-me ao que o filósofo moçambicano José Gil chamou de
“consciência do corpo”, ou
awareness
, conforme a nomenclatura adotada por
pesquisadores anglo-saxões (Gil, 2004). Tal experiência diferencia-se, em primeiro
lugar, da consciência reflexiva, ancorada em pensamentos e conceitos. A
“consciência do corpo” pressupõe certo grau de suspensão da atividade discursiva,
para que a energia mental opere como um estado acurado de atenção ao corpo
na sua relação com o ambiente, criando uma receptividade às microssensações e
às pequenas percepções. É certo que, em alguma medida, a atividade dos
pensamentos ainda está presente, mas de modo mais atenuado. Tal processo
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conduz o praticante a uma “zona”, ainda não semiotizada, de instabilidade e
estranhamento, demandando a criação de uma linguagem que, de alguma forma,
produza sentido e canalize a experiência desencadeada. A consciência do corpo
transformaria, desse modo, a consciência reflexiva de si em um espaço de
pequenas percepções, dissolvendo, em parte, as imagens cristalizadas de um “eu”
autônomo e separado do ambiente.
Em seus trabalhos mais recentes, Gil (2018) aprofunda tais insights,
recorrendo, para isso, tanto aos estudos da psicanalista Françoise Dolto, criadora
do conceito de “inconsciente do corpo”, como aos saberes tradicionais, ligados ao
universo dos mitos, ritos, xamanismo indígena, ioga e técnicas ancestrais de
respiração. Essa ampliação de referências pretende, segundo o autor, alcançar
um pensamento que supere as contribuições da filosofia (Husserl, Merleau-Ponty,
Foucault, Deleuze) e abarque múltiplos fenômenos corporais, “da dança à
psiquiatria, da engenharia genética às doutrinas orientais” (Gil, 2018, p.13).
Um movimento semelhante, no sentido de uma maior aproximação dos
saberes tradicionais, pode ser observado na pensadora brasileira, Sueli Rolnik.
Seus estudos sobre experiências realizadas pela artista brasileira Lygia Clark,
especialmente no período final de seu trabalho, chamado de “estruturação do
self”, trazem importantes reflexões para a construção de micropolíticas da
percepção. Rolnik (2018) desenvolveu toda uma compreensão sobre o papel das
macropercepções no mapeamento do mundo, em contraste com a função dos
estados de mal-estar e desassossego, que jogam o sujeito em um campo instável
de experiências sutis e desestabilizadoras, que pedem passagem. Todo um
trabalho artístico e clínico pode ser realizado a partir do acolhimento de tais
estados e do suporte para que possam engendrar o movimento do desejo e a
construção de novos territórios existenciais. A dimensão ética e micropolítica
desses processos foi bem explicitada pela filósofa e psicanalista, que tem
produzido leituras instigantes do “inconsciente colonial brasileiro”.
Mais recentemente, nas suas leituras sobre a ascensão da extrema-direita e
as novas formas de resistência, Rolnik afirma seu desejo de estreitar relações com
o ativismo indígena e afro-brasileiro, não na esfera macropolítica, voltada à
conquista de direitos e à luta contra a violência, mas sobretudo na dimensão
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micropolítica, a partir da própria exposição a outros modos de ser e de perceber,
que permitam o que ela chama de reflorestamento do campo subjetivo e social.
A autora tem procurado incorporar palavras/ideias da língua guarani, para construir
novas abordagens do trabalho de desconstrução das subjetividades coloniais
dominantes e abrir espaço para a revitalização e a reinvenção da existência. Trata-
se de um passo na direção de uma cultura rica e complexa, que demanda um
longo período de envolvimento, para que tal encontro possa ser aprofundado.
Fica a pergunta sobre esse crescente interesse de pesquisadores e artistas
por saberes tradicionais e sua relação com o desenvolvimento de micropolíticas
que envolvam entendimento ampliado da arte e transformação das formas de
vida. Mais do que uma fonte de técnicas e exercícios que poderiam ser
incorporados nos processos criativos, tais culturas colocam em jogo, de modo
radical, outras formas de vida e modos de sentir, perceber e compreender a
realidade, incluindo aí as “práticas religiosas, os usos políticos, as condutas de fala
(
langagières)
, a géstica, as técnicas do corpo, as maneiras de ser, modos de comer,
vestir-se, jogar, as formas de sociabilidade [...]” (Gil, 2018 , p. 44). Nos seus
contextos originários, não muito “lugar para a separação de uma esfera estética,
distinta de outras esferas: econômica, social, religiosa, política...” (Guattari, 2006,
p.127). “Estética”, nesse caso, deve ser concebida como regimes de sensibilidade
sustentados por modos de vida.
Daí a confluência entre as questões levantadas por uma arte em campo
expandido, que pretende atuar para além dos circuitos convencionais da arte,
intervindo mais diretamente no cotidiano, e as experiências de culturas não
ocidentais, em que “arte” é um saber fazer que se desdobra em vários âmbitos da
vida coletiva. Vai se tornando evidente que esse “saber fazer tradicional” encontra-
se enraizado em percepções sutis do mundo, em “cosmopercepções” ancoradas
em subjetividades e formas de vida distintas das nossas. Elas nos trazem a
problematização estética fundamental de mostrar como as múltiplas crises que
vivemos hoje e ameaçam a própria possibilidade da vida no planeta enraízam-se
em profundos condicionamentos perceptivos, sensoriais e afetivos. Sem um
trabalho que opere nesse nível e que implique em experiências com novas formas
de convívio, dificilmente se constroem formas eficazes de resistência.
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Por fim, saberes tradicionais foram gerados por sociedades que Levi Strauss
chamou de “frias”. Elas não concebem o tempo como “progresso”, nem investem
em tecnologias de dominação e extração das riquezas naturais. Tal atitude repousa
na percepção subjetiva de pertencimento à natureza. São as “sociedades quentes”,
o Ocidente moderno e seu projeto de conquista e colonização do mundo que hoje
ameaça queimar o planeta. A reversão dessa situação, se isso ainda for possível,
passa certamente por profundas transformações de sensibilidade, que a arte
pode, talvez, ajudar a desencadear.
Referências
ARDENNE, Paul.
Un Arte Contextual.
Murcia: Cendeac, 2002.
BENJAMIN, Walter.
Magia e Técnica, Arte e Política
. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BERARDI, Franco.
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Recebido em: 09/05/2024
Aprovado em: 13/05/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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