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Teorias sensíveis: notas sobre literacia afectiva
Ana Pais
Para citar este artigo:
PAIS, Ana. Teorias sensíveis: notas sobre literacia afectiva.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0109
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Florianópolis, v.2, n.51, p.1-13, jul. 2024
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Teorias sensíveis: notas sobre literacia afectiva
Ana Pais1
Resumo
Este artigo considera as artes cénicas, em particular o teatro, como práticas de sentir
que não se limitam à experiência afectiva provocada pelos efeitos cénicos/teatrais,
no tempo e no espaço da obra ao vivo, mas que têm uma função de potenciar a
descoberta de como e porque se sente o que se sente. Abordando dois espectáculos
recentes (“Quis saber quem sou”, do encenador português Pedro Penim e “Feijoada”,
do coreógrafo brasileiro Calixto Neto), esboça-se o conceito de literacia afectiva
como forma de reconhecer e entender que o que sentimos resulta de uma
configuração social e cultural de afectos historicamente situada. A literacia afectiva
visa o empoderamento ético das nossas escolhas e acções.
Palavras-chave
: Afectos. Performance. Potência. Discernimento.
Sensing theories: notes on affective literacy
Abstract
This article considers the performing arts, particularly theatre, as practices of feeling
that do not limit themselves to offering an affective experience produced by
scenic/theatrical effects but instead have the function of potentiating the insight of
how and why one feels what one feels. Approaching two recent productions (“Quis
saber quem sou”, by Portuguese director Pedro Penim and “Feijoada”, by Brazilian
choreographer Calixto Neto), the text sketches out the concept of affective literacy
as a way of recognizing and understanding that what one feels results from a social
and cultural configuration of affects, which is historically situated. Affective literacy
aims at an ethical empowerment of our choices and actions.
Keywords:
Affect. Performance. Potency. Discernment.
Teorías sensibles: notas sobre el alfabetismo afectivo
Resumen
Este artículo considera las artes escénicas, en particular el teatro, como prácticas
de sentir que no se limitan a la experiencia afectiva provocada por efectos escénicos
teatrales, en el tiempo y el espacio de la obra en vivo, sino que tienen la función de
potenciar el descubrimiento de cómo y por qué se siente lo que se siente. Abordando
dos espectáculos recientes (“Quería saber quién soy”), del director portugués Pedro
Penim e “Feijoada”, del coreógrafa brasilero Calixto Neto), esbozan el concepto de
alfabetización afectiva como forma de reconocer y entender que lo que sentimos
resulta de una configuración social y cultural de afectos históricamente situados. La
alfabetización afectiva pretende el empoderamiento ético de nuestras opciones y
acciones.
Palabras clave
: Afectos. Performance. Potencial. Discernimiento.
1 Investigadora Auxiliar CEEC no ICNOVA, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa. Doutorada em Estudos Artísticos
(de Teatro) na Universidade de Lisboa Portugal. Mestrado em Estudos de Teatro Universidade de Lisboa.
Licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas na Universidade de Lisboa.
anapais@fcsh.unl.pt https://orcid.org/0000-0002-8093-3913
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Decifrar códigos
Recordo-me do momento exacto em que comecei a ler, em que percebi o
código de juntar umas letras às outras e formar palavras, as mesmas que
conhecia e dizia, mas às quais não reconhecia correspondência na escrita. Algo do
foro teatral encena esse momento para mim, à distância. Na escola onde andava,
seguia-se o método de João de Deus que se baseia na Cartilha Maternal. Recordo
a sala de aula com pouco pormenor, mas o livro gigante (pelo menos assim me
parecia), suportado por um cavalete de madeira, era uma presença imperiosa. A
seu lado, a professora apontava com um ponteiro as sílabas que devíamos ler,
uma a uma, completando palavras. Quando chegava a nossa vez, levantávamo-
nos. Lembro-me de estar de pé, minúscula frente ao gigante quando, depois de
enfastiadas repetições do exercício de leitura, percebi como juntar as sílabas
resultava num significado imediato. Uma força cintilante integrava essa capacidade
em mim, atravessando-me da cabeça aos pés. VE-LHO, foi a primeira palavra que
li. A palavra estava no cimo da página e, num ápice, li-a toda de seguida, numa
corrida desenfreada como se quisesse ler naquele instante todos os livros do
mundo. Também me recordo do momento exacto em que aprendi a andar de
bicicleta ou a andar de baloiço (balanço) sozinha (e da fila enorme de crianças que
reclamavam que eu descesse, da minha mãe a chamar-me, e eu não saía não saía
não saía porque tinha acabado de descobrir a minha autonomia!). Impactantes
momentos da infância, palavra que etimologicamente remete para o período da
vida em que a criança não fala. Porém, nenhuma descoberta foi tão potente
quanto a descoberta da leitura. Atravessou-me como um raio, abrindo literalmente
para uma nova compreensão do mundo, que nunca mais foi o mesmo.
Letramento ou literacia (em português de Portugal) é saber ler e escrever.
Sensivelmente a partir da virada do século, fala-se cada vez mais em literacia
enquanto capacidade de interpretar e compreender o que se lê, isto é, descodificar
a escrita parece não ser suficiente e pode transformar-nos em analfabetos
funcionais, quando vivemos num mundo mediado pela tecnologia, a uma
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velocidade esmagadora. Por isso, tem-se vindo a falar também de literacia digital,
literacia científica ou literacia visual para enfatizar a importância não de
aprender as ferramentas e os códigos dessas outras formas de saber e comunicar,
mas também perceber o que está a ser “lido” numa tela, saber raciocinar sobre os
factos e as imagens com que nos deparamos no nosso quotidiano. literacia
emocional é um termo que surge no âmbito da psicologia, frequentemente
associado a inteligência emocional, isto é, notando que compreender o que
sentimos e como nos relacionamos com o outro é uma capacidade de interacção
social que pode gerar uma maior empatia e tolerância, na vida pessoal e
profissional.
Um aspecto fundamental para qualquer tipo de literacia é a atenção. Sem a
capacidade de concentração e foco não será possível compreender e interpretar
nenhum texto, aplicação de smartphone, facto científico ou imagem/vídeo
promocional. Na sociedade contemporânea, que se caracteriza pela estimulação
excessiva do indivíduo, dia e noite, presencial e digitalmente, as escolhas que
fazemos a um ritmo acelerado nem sempre são inteiramente conscientes. Por
isso, o conceito de “economia da atenção” propõe pensar a atenção enquanto
recurso valioso da circulação de bens e serviços, tornando-a um bem
comercializável e disputado, gerador de um outro bem neoliberal: a informação.
Cunhado por G. Franck (1993), o conceito tem vindo a ser trabalhado em várias
áreas das ciências sociais, economia e estética, como é o caso, por exemplo, das
obras de Jonathan Crary (1992, 1999). Quanto dessa atenção é afectiva, isto é,
quanto dessa economia resulta de um investimento afectivo na forma de chegar
ao consumidor-alvo e de uma formatação cultural que modela a receptividade a
esses afectos (objectos-afectos tornados seus como uma segunda natureza) e
que, por conseguinte, de que modo os afectos em circulação influenciam as
opções do consumidor, sem que ele seja normalmente consciente disso, é algo
que continua à margem desta reflexão. A questão da atenção não se resume a
uma capacidade, mas está profundamente enleada em vínculos afectivos,
conscientes ou inconscientes, àquilo que me faz dar atenção a um objecto e não
a outro, a confiar em informação de uma fonte e não de outra, em suma, a fazer
escolhas por razões desconhecidas para a mente racional.
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Por isso, instituições reguladoras e organismos internacionais, como a ONU
(Organização das Nações Unidas), têm vindo a alertar para as implicações éticas
da economia da atenção. Dentre um conjunto de dez princípios da ONU para a
sustentabilidade do desenvolvimento da economia da atenção, um deles identifica
a literacia da atenção, reforçando a necessidade de estarmos cientes do impacto
e dos propósitos das interações que vivenciamos para tomarmos decisões
informadas e de forma empoderada2. É neste sentido que me parece essencial
pensar também uma literacia afectiva, não do ponto de vista psicológico (da
compreensão do que sentimos e de como podemos melhorar as interações com
o outro), mas do ponto de vista cultural e social, isto é, perguntar-nos como
podemos tornar-nos mais conscientes do que sentimos, mais capazes de
interpretar e entender a influência de forças sociais e culturais activadas em
discursos e práticas sobre as nossas opções, quer enquanto indivíduos quer
enquanto cidadãos. A noção de literacia afectiva, que gostaria de aqui propor,
passa por formas de identificar o que sentimos, mas sobretudo de entender que
isso não é algo nosso, privado e interno, mas resulta de uma configuração social e
cultural de afectos que, a cada situação e contexto específicos, exige um
discernimento adequado. A literacia afectiva visa o empoderamento ético das
nossas escolhas e acções.
Práticas de sentir
Imagino que você que me está lendo, esteja a perguntar-se: mas que diabo
tem isso a ver com teatro ou com teoria do teatro? Tudo. Em primeiro lugar, foram
o teatro e a teoria que me conduziram a esta reflexão. Além disso, regimes de
atenção e a experiência das emoções constituem dois pilares centrais do teatro
ocidental, especificamente, do teatro Europeu erudito desenhado a partir do
modelo do palco à italiana. Criar uma cena é, em alguma medida, construir um
ambiente sensorial e afectivo em que se dão a ver determinadas personagens que
desempenham acções dentro de um enredo narrativo. As escolhas dramatúrgicas
2 https://www.un.org/sites/un2.un.org/files/attention_economy_feb.pdf
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destes elementos e a sua composição estética na cena são feitas em função dos
efeitos que podem provocar no espectador, num determinado tipo de experiência
que se quer propor. Quanto mais e melhor a cena dirigir a atenção do espectador,
maior e mais eficaz será o seu efeito, pelo menos na teoria. Para tal, o controlo da
atenção do público durante a experiência estética (utilizando recursos tão diversos
como a palavra, a luz, o som, etc.) é chave; ela também é um recurso precioso no
teatro, muito embora os seus dividendos sejam, em princípio, em benefício do
próprio, não de uma corporação. O sucesso do espectáculo depende dos efeitos
teatrais, independentemente de se tratar de um teatro clássico (com drama e
conflito e representações de emoções afins), de um teatro de intervenção
brechtiano (o distanciamento crítico e a desidentificação emocional também são
produção de efeitos) ou de um teatro performativo (que não representa, mas se
apresenta num contexto delimitado com menor grau de ficção
,
mas não de
atenção). Mas, e os afectos?
De certo modo, efeitos e afectos são dois lados da mesma moeda no teatro:
o efeito afecta e o afecto tem efeitos. Por um lado, e dependendo do momento
histórico e cultural a que nos estivermos a referir, teatro é lugar de invocação,
representação ou expressão de emoções, o que predica o trabalho do actor, as
suas ferramentas e poéticas. O objectivo é o de provocar um efeito, uma reacção
emocional e/ou crítica no espectador. O teatro é uma prática de sentir onde se
exercitam experiências de lermos e nos posicionarmos face a um outro. Por outras
palavras, o teatro permite aceder ao conhecimento experiencial das emoções e
dos afectos através de uma proposta artística que descobre, no sentido
etimológico mesmo, que revela e desvela uma certa realidade. Assim, por maior
tédio que nos pode obrigar a suportar, vamos ao teatro com a esperança na sua
promessa, a promessa da descoberta de algo, sobre nós e sobre os outros.
Por outro lado, os afectos têm efeitos (no indivíduo e no colectivo). Eles
transformam o espectador, porque criam e condicionam a sua experiência
estética, e são responsáveis pela formação de uma particular atmosfera colectiva
no momento da representação do espectáculo, configurando a singularidade
sensível de cada encontro entre quem está em cena e quem está no auditório.
Aqui as fronteiras da acção esbatem-se: quem está em cena é quem age, mas
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quem também sente e essa sua experiência vai afectar todo o público e,
inclusive, em alguma medida, quem está em cena. Os efeitos que afectam o
público agem através dele sob a forma de afectos intensificados, colocados em
circulação na sala. Sentido e percepcionado individualmente, este fenómeno
colectivo, porém, é como um pano de fundo para a experiência afectiva e cognitiva
de cada um que propicia o caminho da descoberta, muito embora ela seja sempre
solitária. Tal como com a leitura e a escrita, aprendemos a conhecer e a
reconhecer os afectos através da repetição de representações culturais, no caso
de emoções e afectos, através da sua experiência sensível num contexto
culturalmente codificado, e que, em última análise, nos permite nomeá-los e
conhecê-los: como nos habitam, atravessam e configuram as relações sociais e
éticas específicas de um momento histórico e cultural.
Poderá uma noção de literacia afectiva, pensada a partir das práticas cénicas
contemporâneas, contribuir para entender os entrelaçamentos e o impacto dos
afectos nos efeitos da economia da atenção num mundo global e desigual? Poderá
ela mostrar por que não é possível pensar atenção sem afectos e vice-versa,
demonstrando, assim, a necessidade vital de práticas de sentir como a do teatro
para o discernimento individual e colectivo das co-dependências que nos definem
enquanto seres sociais e das redes que nos sustentam?
Éticas e poéticas da vida em comunidade
Este ano em Portugal se fala nos 50 anos da Revolução dos Cravos, a
revolução sem sangue que trouxe a liberdade e encerrou um regime fascista que
durou 48 anos, no dia 25 de Abril, o “dia inicial inteiro e limpo”3. Abril é sinónimo
de Liberdade para os portugueses, cuja maioria se começa a inquietar com uma
grande minoria que votou, pela primeira vez de forma expressiva, num partido de
extrema direita. Cinquenta anos depois, cinquenta deputados de extrema direita
têm assento no parlamento, legitimamente eleitos por mais de um milhão de
portugueses. Disto resulta que, “estatisticamente falando, dois em cada dez
portugueses serão fascistas”. Num teatro de 600 lugares, como o Teatro São Luiz
3 “Esta é a madrugada que eu esperava / O dia inicial inteiro e limpo / Onde emergimos da noite e do silencio
/ E livres habitamos a substância do tempo”, poema de Sophia de Mello Breyner Andersen.
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em Lisboa, “estatisticamente, 120 espectadores serão fascistas”. Com estas
palavras, o coro de 13 jovens actores e actrizes do espectáculo “Quis saber quem
sou”, de Pedro Penim actor e director artístico do Teatro Nacional D Maria II,
conhecido no panorama nacional como co-fundador do colectivo Praga provoca
o público pois, segundo um raciocínio dedutivo linear, todos os eleitores do partido
de extrema direita são fascistas e a estatística não se aplica a contextos
específicos; é uma abstração. Numa actualização da figura da voz colectiva da
cidade (ou de alguns dos seus cidadãos) na tragédia antiga, que comenta as acções
das personagens, este coro surge como a voz da geração Z portuguesa, nascida
em plena democracia, que fala quase sempre ao mesmo tempo (ou não) ou em
nome de todos; um coro inclusivo, que se distingue por integrar a diferença
(actores e actrizes racializadas ou com deficiência) que ocupam um lugar de
invisibilidade na cena portuguesa. Quando falam individualmente, como no caso
da actuação vibrante de Vasco Seromenho, que também é surdo, ao início do
espectáculo, falam em nome do coro a partir da sua diferença.
O coro é igualmente um coro musical, embora o género da peça não seja de
teatro musical
,
mas se identifique como um concerto teatral. Os 13 jovens cantam
uma espécie de cancioneiro da revolução, cujo alinhamento desenha a
dramaturgia do espectáculo. Eles cantam num cenário que lembra o desenho do
anfiteatro, mais especificamente da orquestra, com uns pequenos muretes
cinzentos, onde se confundem os figurinos também cinzentos. O anfiteatro está
rodeado por um semi-círculo de superfícies espelhadas que de alguma forma
actuam como um espelho para o público (incluindo também os espectadores
nesta imagem especular) ao mesmo tempo que cria a ilusão de multiplicar os
actores em cena (como se toda a geração Z ocupasse o palco efectivamente).
Se para cantar em coro o espírito de equipa e a capacidade de sintonia são
fundamentais, o que dirá para falar em coro
:
13 jovens dizendo as mesmas
palavras ao mesmo tempo. Porventura dos mais difíceis desafios que se podem
colocar a um actor, falar em coro exige uma capacidade de escuta e um rigor
exemplares. Viver em sociedade também. E aqui eram jovens actores a
desafiarem-se, visivelmente a dar tudo em cena. A dificuldade evidente de
sustentar a afinação inexcedível do canto no ritmo na fala compele o público a
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um exercício extremo de atenção e concentração pois facilmente as múltiplas
vozes se transformavam numa cacofonia. Assim, o desafio da escuta do coro
estende-se ao público, que precisa de sintonizar, de praticar uma escuta profunda,
altamente compenetrada, para conseguir entender o texto no meio dos micro-
segundos de ruído. Claro, não é necessariamente forçado a fazê-lo. Poderá seguir
apenas a sequência das canções de intervenção, o concerto. Mas o que me parece
relevante sublinhar aqui é o gesto da extensão do desafio da escuta que
transborda a fronteira do palco, do coro, para incluir o espectador, também ele
uma colectividade anónima de cidadãos. Abrir uma cena que focaliza na escuta e
exige uma atenção plena e profunda diz algo importante sobre o investimento
afectivo da atenção na vida em comunidade. Para conectarmos com o outro, para
o escutarmos no meio do ruído do quotidiano, é necessário um gesto voluntário
de “a-tentar”, de inclinar os sentidos na direcção do outro. É isso que fazem os 13
elementos do coro em palco e é isso que faz o público de 600 espectadores, das
sessões sempre esgotadas do espectáculo.
O título do espectáculo - “Quis saber quem sou” - toma o primeiro verso da
canção “E depois do adeus”, de Paulo de Carvalho, canção essa que constituiu a
primeira senha da Revolução ao passar na Rádio Clube Português na madrugada
do 25 de Abril de 1974. Ampliando o questionamento contido no verso de uma
canção de amor, para o momento actual, cultural e político, não interroga os
feitos da revolução e o que está por fazer reforçando a importância da atenção e
do investimento afectivo na escuta do outro para fazer com o outro.
A potência de discernimento sensível
No espectáculo
Feijoada
, do coreógrafo Calixto Neto (apresentado no âmbito
da edição de 2022 do Festival Alkantara), a proximidade do público com os
músicos, os performers e a chefe de cozinha, que confeccionava a feijoada no
tempo de duração do espectáculo, é enorme. Partilhamos o mesmo espaço, quase
sem barreiras. Uma roda de samba configura o espaço cénico. Todos vestem de
branco, invocando a cor usada pelo povo de santo nos rituais de religiões afro-
brasileiras, nomeadamente o candomblé. O público está sentado em círculos
concêntricos em torno dos músicos, separados apenas por um estreito corredor
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por onde caminham, dançam, falam, cantam e contam histórias sobre a origem
da feijoada e as suas vidas, entrecruzadas pelas históricas colectivas e históricas
de um passado colonial.
O ambiente é incrivelmente acolhedor. Tudo parece querer fazer-nos sentir
bem: o tom amigável e divertido, o samba rolando, a festa querendo estoirar até
que estoira mesmo e todo mundo se levanta para dançar no espaço cénico, em
festa retumbante. Vibração afectiva em cima, brasileiros e portugueses vibrando
alegria juntos no palco do Teatro São Luiz, em Lisboa. faltou a cervejinha. E
uma comidinha, que o espectáculo começava às 19h00, anunciava durar duas
horas e meia, mas com jantar incluído. Ah, tudo bem. Mas a fome crescia miudinha
e acentuava-se à medida que os aromas da panela de Taís Vieira invadiam a sala,
perfumando-a. Meu Deus, que fome... Que cheirinho delicioso. Espectadores
totalmente incluídos na festa multissensorial que ali se configurava.
Pouco depois, tudo começa a mudar. O público senta-se, os performers
retomam os seus lugares circulando pelo corredor da roda e a festa começa a dar
lugar ao desconforto, ao constrangimento. Da festiva proximidade e inclusão, a
cena começa a criar um afastamento do público, a demarcar uma posição
reivindicativa da reparação histórica colonial, ainda que filtrada pelo
enquadramento artístico, de aberta, porém pacífica provocação. Precisamente
quando tinha passado muito tempo de espectáculo e o povo tinha mesmo
muita fome, e a feijoada nunca mais ficava pronta, os performers adensavam um
ambiente de constrangimento, que parecia ainda mais forte por tão contrastante
com a euforia até ali incentivada. Quando finalmente a feijoada vai sendo servida
nos pratos, suspiros. Mas o público ainda vai ter de esperar. Não havia mais feijoada
naquela panela e todos os pratos foram distribuídos aos performers e músicos,
que saem um a um da roda para se deitarem no círculo interno, numa amalgama
gentil de cabeças, braços e pernas morenos e negros. Aparentemente indiferentes
ao público à sua volta, comem em silêncio, num ambiente fechado de
camaradagem e ternura. Esta cena final é como uma bomba silenciosa. O
espectáculo acabava de proporcionar ao público predominantemente europeu,
português, branco, uma experiência de segregação e desigualdade: ter fome,
cheirar a comida e não ser convidado a comer (ainda), apenas vislumbrando a
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violência do racismo e do sistema colonial escravocrata, não na pele mas pelo
estômago.
Eu tinha acabado de regressar de Salvador da Bahia. Parecia que estava de
novo lá, nem tinha dado tempo de regressar ainda. Sentia-me intensamente
conectada com o ambiente, tal como me sinto em casa na Bahia, mesmo ciente
dos séculos de exclusões, abusos e formas de poder brutais que unem a história
dos dois países e dos dois povos e influenciam comportamentos e visões do outro,
ainda hoje. Talvez por isso, o murro no estômago ainda tenha sido mais forte: a
experiência sensorial dos afectos de exclusão – o encolhimento tenso do corpo, a
expansão glutona da fome, a sensação de estar de fora, marginal intensificou-
se através de uma dramaturgia meticulosa que se constrói pelo contraste. Sob
aparência de uma situação simples, a festa viva e multi-sensorial que recebe e
inclui o espectador transforma-se num movimento de exclusão, igualmente
explosivo pelo contraste. Pelo facto de se apresentar num contexto estético,
protegida pelo pacto ficcional de que “estamos no teatro”, esta experiência tem o
poder real de exercitar o discernimento sensível e a consciência ética sobre o
outro, contribuindo para a literacia afectiva das relações de poder coloniais.
Pequenas epifanias
Ao reflectir criticamente sobre a função potenciadora das artes cénicas para
a literacia afectiva do que sentimos (e porque sentimos o que sentimos), uma das
questões que se impõe é a seguinte: será a militância estético-política, que se
pode reconhecer em ambos os espectáculos referidos, uma condição para que
seja potenciado o discernimento dos afectos e a descoberta das configurações
culturais e do emaranhado das relações de poder por que são atravessadas? Por
outras palavras, não serão sempre as artes cénicas potenciadoras desse
discernimento, dessa descoberta, dessas pequenas epifanias através da
experiência estética que constroem para o espectador?
Difícil responder de uma forma peremptória pois são vários os factores e as
variáveis envolvidos na experiência estética. Até num espectáculo comercial, de
puro entretenimento, o espectador poderá ter acesso a este tipo de discernimento,
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se as suas condições subjectivas forem favoráveis no momento, ainda que o
espectáculo não tenha esse objectivo e se alicerce inteiramente em efeitos teatrais
embriagadores dos sentidos. A potência existe como possibilidade inerente à
experiência estética do encontro teatral, no aqui agora que envolve as
circunstâncias históricas e culturais do momento, embora possamos admitir que
propostas artísticas que reforçam e propiciam não uma experiência sensível,
mas uma consciência e compreensão dessa experiência, nas suas circunstâncias
e contextos singulares.
Recordando a tese que defende que o objectivo principal da catarse, na
tragédia grega, é a clarificação das emoções do terror e da piedade, ou seja, uma
aprendizagem e conhecimento empírico destas através da identificação do
espectador com o destino fatal das figuras trágicas4, talvez possamos pensar, vinte
e seis séculos depois e não apenas na Grécia e não apenas a propósito do género
trágico, que esse potencial de clarificação se tornou imprescindível nas sociedades
contemporâneas. Os desafios que o mundo actual nos coloca exigem um teatro
que potencie as pequenas epifanias de literacia afectiva, descobertas marcantes
que além de clarificar (ou des-cobrir) possam trazer um entendimento profundo
das condições culturais que moldam o nosso sentir. No entanto, é possível
potenciar essa descoberta e compreensão nas artes cénicas na presença de um
ingrediente, que se pode associar ou não à militância estético-política, isto é, que
não a define à partida, mas que a distingue de uma militância panfletária: o
imaginário. É através da imaginação cénica que o espectador é livre de encontrar
a sua própria experiência, potenciando o reconhecimento e a compreensão do que
sente. Sem imaginação, as pequenas potenciais epifanias têm menos corpo, e, por
isso, são menos vibráteis.
Referências
CRARY, Jonathan.
Techniques of the Observer. On Vision and Modernity in the
Nineteenth Century
. Massachusetts: The MIT Press, 1992.
4 Serra, 2006, p.182.
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CRARY, Jonathan.
Suspensions of Perception
, Cambridge: MIT Press, 1999.
FRANCK, Georg.
«Ökonomie der Aufmerksamkeit», Merkur 534/535
(Setembro/Outubro), p. 748–761, 1993.
SERRA, José Pedro.
Pensar o Trágico. Categorias da Tragédia Grega
, Lisboa: FCG-
FCT, 2006.
Recebido em: 06/05/2024
Aprovado em: 10/06/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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