Reflexões desobedientes de uma escrita-teatro feminista: colisões, interrupções e arranjamentos
Martha de Mello Ribeiro
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
que eu toco quando toco minha cadela?” (2022, p.06). E continua Haraway: “No
toque e no olhar, os parceiros, querendo ou não, estão na lama miscigenada que
infunde nosso corpo com tudo o que trouxe esse contato à existência. O toque e
o olhar têm consequências” (2022, p.06).
Antes de analisar os modos de resistência que a cena contemporânea vem
utilizando para a desobediência política e estética na reivindicação de uma
confluência ética entre corpos6, gostaria de mais uma vez afirmar que epistemes
epidérmicas tratam do conhecimento que advém da pele, do corpo vivido e
corporificado no acontecimento da cena, abrindo assim uma condição igualitária
para cada vida falar por si, de seu lugar, de sua experiência e posição política. E
não seria a pele, por sua própria constituição paradoxal, a superfície profunda onde
todas as forças e potências se misturam, se amalgamam? Superfície onde todos
os elementos (corpo humano, corpo cidade, corpo planeta, corpo teatro, corpo
espécie, corpo planta, etc. ) entram num estado de confluência sem, no entanto,
se fundirem, se neutralizarem? A pele fabrica em sua superfície profunda um
campo do contraditório, feito de multiplicidades e tensionamentos de forças “onde
me faço presente, não com um corpo individual, mas num entre-corpos,
entrelugares, entre-tempos” (Ribeiro, 2022, p.175).
Nada pode ser mais complexo do que a pele! Pois, se minhas emoções
modelam as superfícies dos corpos, à medida que me aproximo ou me afasto,
talvez eu me torne algo justamente nessa zona de contato com o outro, nesse
“fazer-mundo”, onde somos convocados a responder a uma dor que não é nossa
ou, como diz Sara Ahmed, “aprender a escutar o que é impossível de viver” (2015,
p. 71). Reconhecer a vulnerabilidade do ser exposto, ter como critério investigativo
o corpo vivido, quebrar com o mito da neutralidade são tarefas de uma teoria
crítica da corporeidade, fundamentada na ideia de uma episteme epidérmica que
germina de uma escrita-teatro feminista: cena germinante, ao avesso de toda
racionalidade técnica, globalizante e útil que trabalha para nos dividir,
individualizar, colonizar e exigir obediência ao inaceitável.
Uma escrita-teatro feminista possui como compromisso ético se importar
6 Tornar-me com, “confluindo”, “confluenciando”, até nos tornar “compartilhantes" (como nos ensina Antônio
Bispo dos Santos. 2023).