Reflexões desobedientes de uma escrita-teatro
feminista: colisões, interrupções e arranjamentos
Martha de Mello Ribeiro
Para citar este artigo:
RIBEIRO, Martha de Mello. Reflexões desobedientes de uma
escrita-teatro feminista: colisões, interrupções e
arranjamentos.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0102
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Reflexões desobedientes de uma escrita-teatro feminista: colisões, interrupções e arranjamentos
Martha de Mello Ribeiro
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
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Reflexões desobedientes de uma escrita-teatro feminista: colisões, interrupções e arranjamentos1
Martha de Mello Ribeiro2
Resumo
Busca-se a reflexão do modo como corpos femininos e feminizados fazem circular um mapa
de afetos produtor de uma episteme epidérmica. Um conhecimento que quebra com os
pressupostos de um saber pretensamente universal que desconsidera em sua estruturação
o corpo vivido. A pesquisa vem mapeando certos dispositivos na cena contemporânea da
América Latina que tragam para si o problema. Em diálogo com os experimentos cênicos
das artistas trans Lia Garcia e Renata Carvalho, e da Companhia Brasileira de Teatro (“Voo
Livre/futuros”), investiga-se ATOS de ternura radical que afirmam a potência de uma escrita-
teatro feminista corporificada, tanto para a cena como para a teoria crítica.
Palavras-chave
: Corpos femininos. Escrita-teatro feminista. Episteme epidérmica. Ética da
dor.
Disobedient reflections of a feminist writing-theater: collisions, interruptions, and arrangements
Abstract
The aim is to reflect on how female and feminized bodies circulate a map of affects that
produces an episteme epidermic. A knowledge that breaks with the assumptions of a
supposedly universal knowledge that disregards in its structuring the lived body. The research
has been mapping certain devices in the contemporary scene of Latin America that take on
the problem. In dialogue with the scenic experiments of trans artists Lia Garcia and Renata
Carvalho, and the Brazilian Theater Company ("Free Flight/Futures"), radical acts of
tenderness that affirm the potency of a corporealized feminist writing-theater are
investigated for both the scene and critical theory.
Keywords
: Female bodies. Feminist writing-theater. Epidermic episteme. Ethics of pain.
Reflexiones desobedientes de una escritura-teatro feminista: colisiones, interrupciones y arreglos
Resumen
Se busca reflexionar sobre cómo los cuerpos femeninos y feminizados hacen circular un
mapa de afectos que produce una episteme epidérmica. Un conocimiento que rompe con
los supuestos de un saber pretendidamente universal que desconsidera en su estructuración
el cuerpo vivido. La investigación viene mapeando ciertos dispositivos en la escena
contemporánea de América Latina que asuman el problema. En diálogo con los experimentos
escénicos de las artistas trans Lia Garcia y Renata Carvalho, y de la Compañía Brasileña de
Teatro (Voo Livre/futuros”), se investigan ACTOS de ternura radical que afirman la potencia
de una escritura-teatro feminista corporizada tanto para la escena como para la teoría crítica.
Palabras clave
: Cuerpos femeninos. Escritura-teatro feminista. Episteme epidérmica. Ética
del dolor.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Janete Maria Gheller, graduada em Letras
Habilitação em Português e Literatura da Língua Portuguesa, sob o registro 194.467 do MEC.
2 Pós-Doutorado em Teatro pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP - FAPESP). Estágio de Pós-
Doutorado na Università di Bologna (CAPES). Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP, com
período sanduiche na Università di Torino. Prof. Associada no Departamento de Arte do Instituto de Arte e
Comunicação Social da Universidade Federal Fluminense. Docente no Programa de Pós-Graduação em
Estudos Contemporâneos das Artes (UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (UFRJ-ECO).
Pesquisadora do CNPQ nível 2. melloribeiro.uff@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1477601900273409 https://orcid.org/0000-0001-9272-1013
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Introdução
Ao tratar de uma Episteme Epidérmica, já apontamos algumas direções para
esse ensaio: em que estamos trabalhando sobre uma teoria do conhecimento e,
no caso específico, de um conhecimento que transborda da cena a partir de
corpos femininos e feminizados. Não esquecendo que as epistemologias
investigam o modo pelo qual algo é dado como verdadeiro ou falso, e que uma de
suas principais preocupações é averiguar quais relações de poder estão na base
do que as pessoas creem, isto é, do que lhes foi determinado como verdade. Por
esta visada, iremos questionar, de dentro da cena, a “epistemologia da diferença
sexual” (Preciado), sua dobragem sobre os corpos, constituindo linguagem,
representação e performatividade reificados. Por outro lado, observa-se a
resistência dos corpos a esses agenciamentos, na incessante materialização de
possibilidades intrínsecas às experiências vividas, que vêm se contrapor à
sedimentação sexo-gênero-sexualidade.
Passamos, assim, a compreender que crenças e verdades são construídas
historicamente e ao serem incorporadas, naturalizadas e mantidas nos corpos ao
longo do tempo, produzem epistemologias que apagaram seus rastros e sua
genealogia; tais epistemologias, como a da diferença sexual, corporificam-se
também na arte.
A proposta que trago ao engendrar uma epistemologia feminista
desobediente extraída da cena, impulsiona uma aposta no conhecimento que
advém da performatividade do corpo vivido, nomeado Episteme Epidérmica. Um
saber que emana da superfície profunda da pele, isto é, da experiência no território
do singular-coletivo, que desobedece em sua corporeidade os princípios do
conhecimento científico, racional, universal sobre os corpos. Se eu digo Episteme
Epidérmica eu coloco aqui uma questão primordial, que põe em dúvida a
estabilidade do conhecimento verdadeiro: É justo afirmar que a pele contém uma
verdade universal para todos? Ou não seria mais justo afirmar que Epistemes
Epidérmicas querem justamente pensar em dissonância ao plano universal, aos
pressupostos de estabilidade do conhecimento? Ao propor o conhecimento como
algo mutável, passível de mudança por sua própria presunção de verdade e
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fabricação política.
Se Episteme Epidérmica é um conhecimento que advém da pele, a
epistemologia do corpo vivido vem afirmar, em sua desobediência à ideia de uma
razão universal, que todo conhecimento humano parte de uma instância de poder
política, constituinte de nossa condição humana fabricada, histórica. Com essa
proposta, questiona-se todo pressuposto de neutralidade, impulsionando as
seguintes perguntas: quais corpos controlam o saber, o dizer e o fazer? Quais
corpos estão autorizados a elaborar conhecimento? Quais corpos estão
disponíveis e reconhecidos para reificar a cena do gênero? Como afirma Donna
Haraway todos os saberes são “situados”, e por tal feita é necessário seguir com
o problema, questionando as teorias de conhecimento, as epistemologias,
insistindo na parcialidade da visão e, especialmente, em sua “corporalidade”
(Haraway, 2009, p. 18).
A partir dessa proposta de investigação, da performatividade do corpo vivido
enquanto lugar de desobediência às estruturas do conhecimento, isto é, às
epistemologias do poder que marcam nossa condição humana de forma binária,
passamos a pensar a conformação de uma “escrita-teatro feminista” na cena e
nos escritos críticos. Um território entre confluências, colisões, deslocamentos e
arranjamentos que afirmam a existência do corpo vivido, sua eroticidade,
mobilidade, suas dores na construção do saber. Na concepção de corpo como um
corpo-teatro, um modo de representação, de encenação que informa um mundo,
uma situação histórica e, por isso mesmo, em permanente mudança3, entende-
se, junto à Butler, que estamos constantemente produzindo gênero em nossa
corporalização.
Mas essa produção nunca é de forma totalmente autônoma, visto que possui
uma história e na maioria das vezes coercitiva e punitiva, inibidora de novas
possibilidades. Uma escrita-teatro feminista se coloca justamente como um ato
tanto político como estético de interrupção da ideia de gênero como algo “natural”,
a-histórico. Uma escrita-teatro feminista vem desmascarar o gênero como uma
construção ficcional e, na mesma medida, interromper a crença em sua
3 Cf. Ribeiro, 2022.
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neutralidade, para o afirmar como uma estrutura feita de arranjamentos.
Trazemos como problema (para a arte e para a teoria crítica) a reiterada
distribuição desigual de vulnerabilidade e precariedade entre os corpos, na vida
cotidiana e na criação e formação artísticas e, junto a isso, insistimos na
importância da performatividade de histórias de vida tanto na escrita crítica-
teórica-acadêmica quanto na criação da cena, para pensarmos juntos a
convivência entre nós, o viver entre as espécies por um reconhecimento ético da
dor do outro; o que prevê, evidentemente, a fragilidade inerente à existência e à
violência autorizada aos que foram rebaixados da categoria de humano.
Construir uma Episteme Epidérmica é também fabricar uma “língua para a
conversação” (Larrosa); uma língua e uma linguagem que tragam alguém dentro,
isto é, o ser exposto.
Nessa cena de dupla exposição nos conectamos na experimentação da
diferença, na crítica radical da ideia de uma natureza humana, universal. Se digo
isso, passo a me comprometer nessa escrita-teatro. E passo a me interrogar:
Como estou ativamente implicada no lugar e no território em que me encontro?
Como mulher, artista da cena, latina, à margem do esquema burguês-patriarcal e
ainda assim em uma posição privilegiada de professora universitária em uma
instituição federal? (Embora ser uma mulher de meia idade em uma relação
homoafetiva, coloque-me diariamente em resistência aos ataques dissimulados
e não tão dissimulados assim dessa instituição majoritariamente composta por
homens cis-hetero-branco-neopatriarcais, confortavelmente sentados em seus
privilégios). E junto ao meu corpo vivido, desmonto, não sem assombro, a relação
de poder e imaginário social que pesa sobre corpos generificados:
No espetáculo mítico da dominação, alicerçado por uma diferença entre
órgãos sexuais, justifica-se a invenção de uma diferença social e política
entre os gêneros. Nessa percepção, a virilidade é o lugar metafórico do
falo que por uma fantasia pertence naturalmente” ao homem - uma
espécie de primado constitutivo e sintomático. Essa imposição simbólica
apareceu de forma flagrante numa cena na qual fui uma das
personagens. Ao se ver fragilizado em sua delirante prerrogativa de
virilidade exclusiva, um colega de trabalho, contrariado pela eficiência de
um trabalho executado por mim, uma mulher queer, diz, com um gesto,
apontando seu braço tensionado para o alto de sua cabeça: o problema
é o seu nome, que parece uma flecha!” Não é preciso dizer que sua
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contrariedade foi a fantasia de um falo (seu falo) roubado por uma
mulher, essa mulher, reduzida por ele a um nome-flecha-fálico
ameaçador de sua virilidade (Ribeiro, 2023, p. 55 e 56).
Entre assombros, colisões, interrupções e arranjamentos mobilizo minha
vulnerabilidade, estruturalmente codificada, para resistir e corromper os
contornos que traçaram antes de mim, que implantaram para o meu sexo uma
linguagem binária, normativa e que instituiu a inexorável falta num transtorno de
abandono do Pai - muda promessa de pertencimento a um mundo que nunca foi
para mim. Corpo abjeto, que em sua sexualidade desviante acumula vozes
disparadas e disfarçadas, feitas para ferir, segregar e julgar o grau de minha abjeção
e o grau de contaminação do meu desejo “disfórico”. Transformar a experiência do
meu corpo vivido (essa pele) em cena, em linguagem, em reflexão teórica, na
preparação de minhas aulas, nos escritos críticos, nas experimentações artísticas
- em aliança a outros corpos e existências humanas e não humanas, no crescente
desejo de inventar territórios e paisagens desobedientes ao humano universal -
tem sido a escolha, a tarefa ou único caminho possível.
Refletir uma teoria crítica epidérmica a partir da cena é também questionar
o teatro moderno, majoritariamente construído sobre uma epistemologia da
diferença sexual tanto na construção dos personagens, como na dramaturgia,
como na divisão hierárquica de funções e nos modos de organização
androcêntrico da linguagem. Se, como sabemos, as feministas da assim chamada
Segunda Onda denunciaram a ciência por sua completa exclusão e invisibilidade
das mulheres, falta à teoria teatral uma perspectiva feminista e cuir que denuncie
a representação distorcida das mulheres pela dramaturgia moderna ou mesmo
uma crítica teatral que questione o monopólio masculino no campo do fazer, do
saber e do conhecimento teatral. É necessário tocar nesse assunto.
Apesar de tantos avanços nesse sentido, ainda se constata um forte
universalismo infiltrado nos processos criativos e nas vias de conhecimento e
discussões sobre o corpo e a cena. Não iremos aqui descrever as tantas e diversas
teorias do corpo na história do teatro e da cena e o modo como, em nenhuma
delas, os corpos trans, pretos ou travesti estiveram presentes como agentes
construtores de saber. É certo que ainda ocorrem posições dicotômicas no fazer
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artístico, ligadas a uma herança cartesiana e que se conectam com a exclusão dos
corpos femininos e feminizados nas investigações e reflexões sobre a cena
contemporânea; e principalmente falta uma sistematização crítica feminista e cuir
para a formação teatral e suas práticas.
É digno de nota que os mais consagrados pensadores, dramaturgos e
construtores das artes da cena são majoritariamente homens (brancos): Diderot,
Stanislavski, Grotowski, Brecht, Vassiliev, Tadeusz Kantor, Peter Brook, Eugenio
Barba, Antunes Filho, Amir Haddad (a lista é grande), e outros tantos dramaturgos
que construíram o que conhecemos como a história do teatro ocidental. Ainda
que grande parte dos mencionados aqui, senão todos, questionem em seu fazer
artístico e em seu pensamento, o cartesianismo, apontando muito mais para o
lado espinosista da história, não houve em nenhum deles um declarado
sentimento de indignação diante da colonização, invisibilidade e subalternização
sofridas pelos corpos femininos e feminizados, tanto na arte como na vida
cotidiana. Esses corpos esquecidos foram e são agentes ativos da história e do
fazer artístico, não servem apenas como corpos precarizados, inexoravelmente
fadados ao sofrimento e à dor. Esses corpos foram marcados pela dramaturgia
moderna como corpos des-esperançados, habitantes de um destino trágico e
marginal; o que vem corroborar com a des-humanização e subalternização desses
corpos.
Se há, nesses autores, diretores e dramaturgos, homens do teatro, uma
compreensão da diferença no sentido deleuziano, para além da oposição
cartesiana, ainda assim estamos longe de qualquer interrogação ou espanto em
suas obras e escritos sobre a inexistência de uma escrita-teatro feminista que
revolucionasse a paisagem política do campo artístico, fundamentalmente
construída por homens. Fica claro a urgência e a necessidade de se pensar a cena
enquanto território de interrupção desse modelo histórico. É necessário perceber
no processo de criação e de formação artística, a incontornável historicidade da
divisão sexual na arte, afirmando o comprometimento da posição e lugar do sujeito
na construção das relações sociais, políticas, artísticas e afetivas.
Uma Epistemologia Epidérmica traz como elemento fundante - o que vem
caracterizar uma escrita-teatro feminista - a preocupação ética de valorizar as
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emoções e experiências singulares tanto na criação artística como na teoria crítica
ou para dizer mais claramente, é um saber que se constrói sobre uma “ética da
dor” (conforme aponta Sara Ahmed). Na experiência do reconhecimento da dor do
outro, no reconhecimento ético da singularidade da dor do outro, tanto a cena
quanto a teoria crítica da corporeidade se recusam a obedecer as fronteiras que
foram estabelecidas na divisão excludente que contrapõe nós e eles.
Essa fronteira que agrupa corpos hegemônicos na subjetividade do “nós” e
corpos outros na subjetividade do “eles” vai exigir um modo de organização que
impede o diálogo, a discussão e a valorização de perspectivas dissonantes. E em
sua crescente violência vai exigir o silêncio diante do intolerável, do horror, da
injustiça. Agrupar indivíduos por semelhanças mínimas e arbitrárias, como gênero,
cor da pele, classe social, religião ou espécie para produzir essa divisão Nós aqui
e Eles lá, produz um mapa de afetos excludente: a quem ou a quê devemos sentir
empatia? A quem ou a quê não devemos compartilhar sentimentos positivos?
Devemos expressar nossa indignação e objeção à essa demarcação que permite a
desigualdade em nome de uma identificação arbitrária.
Como ainda podemos receber sem assombro o modo como a linguagem
artística e a formação histórico-cultural fabricada por corpos femininos e
feminizados foram apagadas ou encobertas ou desvalorizadas nos territórios
acadêmicos, no campo dos estudos teóricos e críticos da cena, na dramaturgia e
na criação cênica? Todo um trabalho de linguagem foi posto à margem da arte e,
principalmente, da formação e dos processos de aprendizado nas escolas e nas
universidades. Ainda não foi feita uma reparação critico-teórica deste apagamento,
da exclusão da contribuição dos corpos trans, travesti, pretos, periféricos para a
arte, para o ensino e para a cultura. Talvez, aqui, seja inevitável a pergunta: a
proposta de uma Episteme Epidérmica não estaria propondo um caminho para
uma perspectiva decolonial para a teoria crítica e para os processos de formação
pedagógica e de criação artística? Queremos entender que sim.
É a partir dessa visada que trazemos como proposta conceitual uma escrita-
teatro feminista à cena e para a teoria crítica ressaltando três pontos:
1 - que não se trata de buscar uma subjetividade exclusivamente “feminina”,
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ao contrário, buscamos pensar uma escrita-teatro feminista como crítica e
desconstrução da dicotomia entre objetividade (masculina) e subjetividade
(feminina); daí a importância fundamental da perspectiva cuir para a construção
de uma Episteme Epidérmica, pois sua visada tem como proposta a quebra e
modificação dessas categorias binárias.
2 - afirmar a importância crítica, política, estética e ética de uma linguagem
cênica que se posicione ao avesso de toda ideia de universal, onde cada corpo
investido possa falar a partir do território e do lugar de sua corporeidade e posição
política. E, por seu lado, uma teoria crítica da corporeidade que proponha a
insustentabilidade da epistemologia da divisão sexual, no comprometimento de
uma escrita que traga para si o problema da desigualdade de gênero, de classe e
dos processos de racialização na arte, apontando que essa estrutura excludente
faz definhar os horizontes da vida e da arte.
3 - desenvolver estudos críticos teóricos artísticos investigativos que afirmem
o saber dos corpos trans e cuir nas artes da cena, reavaliando nossas concepções
sobre arte e conhecimento, perspectivando reproduções eurocêntricas e
canonizadas da história do teatro. Não podemos esquecer que todo esse
apagamento e desvalorização da subjetividade e da linguagem proposta pelos
corpos femininos e feminizados encontrou terreno fértil nos marcadores de uma
epistemologia da divisão sexual, recalcando toda essa produção artística.
Se a teoria, a crítica da arte, a dramaturgia e os processos de formação
continuarem pensando o corpo sem articulá-lo às questões de gênero, fatalmente
irão afirmar o racionalismo universal abstrato do discurso hegemônico. Falar do
corpo de uma forma genérica, ocultando ou tirando da paisagem crítica pessoas
trans que pagam um preço alto por suas existências, é colaborar com esse estado
atual de coisas, no qual falar em vida significa ter como horizonte uma divisão
estratégica entre vidas que supostamente merecem viver e vidas que nascem
destinadas a não vingar ou a perecer de forma extremamente violenta.
O assombro diante da necessidade de traçar essa transversal para falar da
existência; o assombro diante da constatação de que sabemos muito bem em
quais vidas se investe e em quais vidas precipita-se a lógica de extermínio e, ainda
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assim, continuar fazendo tão pouco, nas instituições, na educação, na arte, nas
políticas públicas, em nossas vidas cotidianas; o assombro diante da manutenção
de um complexo normativo hetero-cis-branco-patriarcal-capitalista que insiste
em invisibilizar ou hiper-representar na tragicidade, na criminalidade e na histeria
os corpos femininos, feminizados e pretos, usando a violência normatizada para
lucrar com esses corpos, espetacularizando-os, e continuar matando seja em
nome da Família, do Estado ou de Deus, embrulha-me o estômago.
Não tocar nesse assunto na teoria critica e na investigação artística significa
que algo tem que estar muito errado. E como vai dizer Sara Ahmed, é no grito da
estraga prazeres feminista que atravessa o caminho da “paz machista e racista”
de que se trata.
Desenvolvimento
Nenhum tabu é mais difundido do que o toque, desde as regras múltiplas
e complexas de certos códigos rituais (tocar os mortos, tocar objetos
sagrados, partes do corpo, vestuário, etc.) até as atuais regras do contato
(por exemplo, o simples contato acidental de mãos em uma multidão).
Em um sentido amplo, pode-se dizer ainda que tabu” significa "proibido
de tocar (Nancy, 2014).
“Não me toque” é o título em português do filme dirigido por Adina Pintilie,
ganhadora do Urso de Ouro, Berlim 2018, com os artistas Laura Benson, Tómas
Lemarquis, Christian Bayerlein. Um filme que aborda a intimidade e os tabus que
proíbem desejos inaceitáveis para uma determinada cultura. Neste ensaio não
iremos falar sobre o filme, mas abrimos aqui uma janela para dizer que a frase
também pode significar uma advertência contra o abuso de mãos não desejadas
que insistem em invadir a pele do outro sem autorização. Soma-se a essa
advertência, para os molestadores e assediadores, outras advertências não menos
diretas e firmes como, por exemplo, “meu corpo minhas regras”, “não é não”.
Sabemos o quanto um toque não desejado ou, antes, a insinuação do gesto a
certa distância da pele nos provoca repulsa, medo, constrangimento e raiva. Então,
a pele não começa ali onde se faz invólucro de nossa carne, ela se expande para
fora e para dentro, para os lados, criando dobras, ramificações nervosas, sensíveis,
imaginárias até, produzindo contatos com outros corpos e outras peles para além
dos limites do contorno.
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Há uma produção de conexões boas e más, radicais e cotidianas entre peles
desbordadas relacionando intimidade, subjetividade e reconhecimento que podem
passar despercebidas para quem está de fora dessas fugidias, precárias e
provisórias conexões; razão pela qual é tão duro e opaco falar sobre a violência
sofrida em nossa pele. Porque é nessa pele paradoxal que sentimos os rastros da
história, as marcas, os cortes, as violências invisíveis, mas também é aqui que
produzimos infinitas confluências.
Antes mesmo de um corpo tocar o outro (em contato), na simples insinuação
do gesto, o toque aconteceu; toda a pele se retraiu ou se expandiu, inflando,
tensionando ou se recolhendo toda para o mais longe possível daquele gesto mal-
intencionado. Ou, ao contrário, a pele se expande e toda ela abraça o toque ainda
pré-nascido num admirável gozo antecipado. E o teatro, pois é sobre esse
acontecimento que trata este ensaio, antes de toda classificação e enredamento
poético entre normativas, especificidades e batalhas teóricas classificatórias e
colonizadoras, sempre foi pele. Lembramos da pele leonina que cobre Dionísio,
pele que oculta, que simula, que protege, que cria passagens, que forma híbridos
entre humanos e outras espécies desafiando toda razão, criando estratagemas e
pulsões.
Talvez seja no dispositivo da pele que algo pode acontecer em toda sua
imprevisibilidade, e o teatro como acontecimento se dá primeiro na pele e com a
pele. É na pele do espectador que o teatro se corporifica: no arrepio, na contração,
no enrubescimento, no gozo, no tremor; e é com a pele expandida do ator que os
corpos se tocam sem se tocar, fazendo circular emoções conhecidas e
surpreendentes, revirando ao avesso o ordinário, esse modo de estar no mundo
onde nada acontece. É no encontro entre mim e o outro, sem aviso e entre peles,
que algo acontece e que faz meu corpo vibrar e se assombrar diante da
experiência do acontecente de um corpo-teatro4.
Como observa Georges Didi-Huberman no livro
Que emoção! Que emoção?
(2016), o espanto diante de uma experiência, de uma intensidade ou, como
buscamos aqui, diante do assombro da pele tocada e modificada pelo gesto -Ato
4 Para uma maior definição do conceito de Jean-Luc Nancy aplicado ao teatro , consultar o livro já citado:
Ribeiro, 2022.
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do outro em mim, prolonga-se na pergunta: qual emoção? A interrogação crítica
diante do assombro de sentir uma determinada emoção oblíqua (enviesada,
torcida) é importante para escavarmos o
como
isso, como essa ação violenta
aconteceu ou como isso ainda pode acontecer. O assombro radicaliza minha
relação com o passado, transforma minha percepção sobre as coisas, engendra
novas afecções (e um novo mapa de afetos5) e passo a me perguntar: o que não
pode mais ser ignorado? o que precisa ser desobedecido? o que precisa ser
interrompido ou o que precisa recomeçar diante dessa emoção que me salta à
pele? O que me perturba na profundidade de minha pele, que vem transformar o
que parecia ser óbvio, ordinário, “natural” até?
E em aliança às análises de Sara Ahmed em o
Assombro Feminista
(2019),
acrescentamos que falar da pele é pensar criticamente o assombro para refletir
de maneira ampla o significado da expressão “estar na pele de alguém”; expressão
que popularmente significa “se colocar no lugar do outro”. Esse sentir a dor do
outro não se trata de uma visão romantizada do mundo, numa pretendida divisão
entre pessoas boas ou más, mas de perceber de modo crítico que a dor do outro
é parte de uma história de que também faço parte e que sou responsável. Toda
dor possui uma historicidade de dominação e submissão, mas lado a lado com a
dor corre o esperançar e a ternura. E é justamente nessa consciência histórica que
sabemos que tudo pode ser modificado, que novas realidades e mundos podem
ser construídos. Não é sem razão que para Sara o assombro, a raiva e a esperança
(e aqui eu prefiro denominar esperançar) são emoções-chave do feminismo.
O assombro que sentiu Sara Ahmed e que a autorizou a se autodenominar
feminista perpassa pela dor, indignação e pelo sentimento da raiva produzido na
pele, no arrepio, na palidez, no rubor, nas lágrimas e muda a corporalidade de sua
pele. A pele que se aprofunda, atingindo carne, músculos, ossos se desborda em
conexão com outras peles e interrompe o estado de obediência e inércia diante
do inaceitável ordinário: o que está errado precisa ser interrompido. O assombro
desorienta, torna as coisas do mundo oblíquas e faz nascer um desejo de
desdobrar as realidades, de dissolver a percepção subjetiva que contrapõe nós-
5 O termo mapa de afetos foi engendrado pela autora e pode ser consultado com mais delates no artigo:
Ribeiro, 2022.
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eles, despertando uma consciência ética que se cola à empatia e ao esperançar.
Gosto de pensar a empatia como uma cola invisível que se produz entre peles,
que aciona histórias, saberes, desejos e que nos conecta, num tornar-se com
surpreendente que quebra com a compreensão ordinária e replicada do mundo.
Ao ser tocada pelo assombro posso transformar a obediência voluntária ou
cega em desobediência política. Se não posso vestir a pele do outro, viver a
experiência da dor do outro, posso me assombrar diante do que está errado e
permitir que a emoção do outro afete minha pele, para enfim performar essa
emoção indignada: Performar a pele é um Ato para esperançar. E como propõe
Sara Ahmed (2015, p.61): […], embora a experiência da dor possa ser solitária,
nunca é privada”; e segue com as perguntas: Como o sofrimento de outra pessoa
me afeta quando me deparo com a dor dela? O fato de não habitarmos o corpo
dela significa que o seu sofrimento não tem nada a ver conosco?”.
Uma ética da dor começa no exato momento em que ocorre o
reconhecimento da dor do outro, no momento em que o outro me convoca. A
conversa, o diálogo, abre a possibilidade de resposta ao outro, essa abertura
impele uma demanda de ação. Nesse momento eu vou agir em relação ao que eu
não posso conhecer, “eu sou comovida por aquilo que não me pertence” (Ahmed,
2015, p.61). Dessa sociabilidade da dor, conforme indica Sara, emerge a empatia: o
vínculo contingente de estar em contato com o outro, um afeto no qual sentimos
algo diferente do que o outro sente (não podemos vestir sua pele), mas que ao
mesmo tempo imaginamos
na
pele (em nossa pele) que somos capazes de sentir
o que o outro sente. Ser tocado pela dor do outro é produzir ternura radical e
demanda o compromisso ético de tocar no assunto.
Corroborando com Sara, trazemos ao diálogo Jean-Luc Nancy para quem o
afeto da empatia se relaciona à presença. Para o filósofo, a empatia acontece
quando instalo uma relação com alguma coisa, com alguém. É necessário
proximidade, contato. Para alguma coisa ou alguém me tocar é fundamental o face
a face. Também a estudiosa feminista Donna Haraway, ao pensar a noção de zona
de contato ou arranjos - arranjamentos nos diz sobre a constituição mútua entre
pessoas e coisas. E buscando mais uma vez o toque, compartilho a pergunta feita
pela filósofa em seu livro Quando as espécies se encontram” (2022): Quem e o
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que eu toco quando toco minha cadela?” (2022, p.06). E continua Haraway: “No
toque e no olhar, os parceiros, querendo ou não, estão na lama miscigenada que
infunde nosso corpo com tudo o que trouxe esse contato à existência. O toque e
o olhar têm consequências” (2022, p.06).
Antes de analisar os modos de resistência que a cena contemporânea vem
utilizando para a desobediência política e estética na reivindicação de uma
confluência ética entre corpos6, gostaria de mais uma vez afirmar que epistemes
epidérmicas tratam do conhecimento que advém da pele, do corpo vivido e
corporificado no acontecimento da cena, abrindo assim uma condição igualitária
para cada vida falar por si, de seu lugar, de sua experiência e posição política. E
não seria a pele, por sua própria constituição paradoxal, a superfície profunda onde
todas as forças e potências se misturam, se amalgamam? Superfície onde todos
os elementos (corpo humano, corpo cidade, corpo planeta, corpo teatro, corpo
espécie, corpo planta, etc. ) entram num estado de confluência sem, no entanto,
se fundirem, se neutralizarem? A pele fabrica em sua superfície profunda um
campo do contraditório, feito de multiplicidades e tensionamentos de forças “onde
me faço presente, não com um corpo individual, mas num entre-corpos,
entrelugares, entre-tempos” (Ribeiro, 2022, p.175).
Nada pode ser mais complexo do que a pele! Pois, se minhas emoções
modelam as superfícies dos corpos, à medida que me aproximo ou me afasto,
talvez eu me torne algo justamente nessa zona de contato com o outro, nesse
“fazer-mundo”, onde somos convocados a responder a uma dor que não é nossa
ou, como diz Sara Ahmed, “aprender a escutar o que é impossível de viver” (2015,
p. 71). Reconhecer a vulnerabilidade do ser exposto, ter como critério investigativo
o corpo vivido, quebrar com o mito da neutralidade são tarefas de uma teoria
crítica da corporeidade, fundamentada na ideia de uma episteme epidérmica que
germina de uma escrita-teatro feminista: cena germinante, ao avesso de toda
racionalidade técnica, globalizante e útil que trabalha para nos dividir,
individualizar, colonizar e exigir obediência ao inaceitável.
Uma escrita-teatro feminista possui como compromisso ético se importar
6 Tornar-me com, confluindo”, confluenciando”, até nos tornar compartilhantes" (como nos ensina Antônio
Bispo dos Santos. 2023).
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com a vida e com as condições de vida do outro e, por extensão, de todas as
espécies. Sua linguagem e argumento crítico devem mais do que refletir esse
compromisso, mas incorporá-lo em todas as suas camadas significantes, em sua
estética, na sua produção imagética e conceitual, na sua rede de afetos. A ideia é
confrontar esse “Nós” que se estabeleceu contra o “Eles”. É necessário estranhar
essa separação, essa divisão arbitrária, desestabilizar esses marcadores, enfrentar
essa poderosa demarcação e criar outras possibilidades , associações, alianças e
confluências onde somente exista o nós. Produzir alianças temporárias, como vai
dizer Butler (2018, p.101), para “responder eticamente ao sofrimento distante”. E
essa resposta ética é quase sempre resultado de uma desobediência.
Acrescento, aqui, a análise de Frédéric Gros no livro “Desobedecer” (2018), no
qual demonstra uma ruptura histórica, um giro epistemológico em torno da
obediência. Se num primeiro momento, desobedecer era da ordem da
bestialidade, os assim denominados incorrigíveis pela psiquiatria, inumanos, anti-
sociais, seres incapazes de se adaptar às normas coletivas, às leis, inaptos na
superação de seus instintos. Num segundo momento, percebe-se uma virada em
torno da obediência cega ou voluntária até então necessárias para um modo
civilizado de existência. Se havia antes uma evidência consensual entre obedecer
e humanizar-se, da docilidade, meticulosidade e lealdade como virtudes
indispensáveis para a humanização, após os regimes totalitários do século XX , dos
grandes genocídios, a ideia se rompe e origem a uma nova ideia de
monstruosidade: os “monstros de obediência”, cumpridores de ordens7. A
oposição obedecer e desobedecer nessa segunda modernidade, como ele
denomina, não se trata mais de uma oposição entre o humano e o animal, mas
entre o humano e a máquina. E a desobediência será o que humaniza ou, como
prefiro pensar, a desobediência como celebração ética da existência.
Cabe observar que as análises de Gros não evoluem para uma discussão
acerca das lutas sociais, das minorias ou sobre as políticas de gênero (como ele
mesmo adverte). Então, observo que o giro epistemológico entre obediência e
desobediência, com a inversão das monstruosidades, não chegou a romper o
7 O autor cita como exemplo Adolf Eichmann , executor da máquina de morte que destruiu seis milhões de
judeus; e Duch diretor do centro s-21torturando milhares de cambojanos.
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modelo consagrado do feminino e nem mesmo buscou por isso; a docilidade, a
disciplina no cuidado, lealdade e submissão continuam sendo virtudes esperadas
e exigidas da mulher, tanto na esfera pública quanto na privada. Ainda não se tolera
em nós, corpos femininos ou feminizados, a desobediência, a raiva, a indignação e
muito menos o tornar-se com feminista. Continuam pedindo que suportemos
muito. Ao pensar a desobediência na perspectiva de uma ética do político, Gros
deixa de problematizar que a discussão sobre o humano descartou a mulher em
ambas as modernidades. Essa figura ou personagem histórico permanece excluída
em prol de uma universalização do humano; ainda que o estatuto de humano
tenha se modificado no pêndulo obedecer x desobedecer.
A busca por uma ética do político, para ser de fato uma discussão ampliada,
precisa inserir no debate a mescla entre gênero, raça, classe social, sexualidade.
Se a política é a arte de permanecer no poder (como ele afirma), universalizar a
discussão, ainda que sob a perspectiva do sujeito político, é fazer vista grossa para
os marcadores interseccionais e manter o sistema de dominação sobre o corpo
das mulheres, em sua diversidade. Tal perspectiva continua excluindo a mulher do
debate, visto que tanto na história, nos mitos, na dramaturgia e no cotidiano mais
ordinário, a mulher desobediente ainda é descrita como bruxa, mal amada,
histérica, monstruosa, estraga prazeres. Se obedecer é a nova monstruosidade na
perspectiva de uma ética do político, do sujeito político, para a mulher
desobedecer continua sendo prova de sua monstruosidade, pois seu corpo e
performatividade ainda se mantêm policiados, sempre em suspeita.
Essas observações não tiram o mérito do autor em pensar uma ética do
político, entre obediências e desobediências, ainda que ele não se aprofunde nas
estratégias de sujeição fartamente reutilizadas nas práticas cotidianas e
institucionais. Destacamos do livro a seguinte interrogação: “a partir de que relação
consigo mesmo se respeita ou se transgride a lei pública?” (Gros, 2018, p.35). E ele
coloca, como horizonte ético dessa escolha entre obedecer ou desobedecer à lei,
a forma de nossa liberdade que ganha um estilo ético variado sobre uma mesma
escolha de comportamento. O que está em jogo é nossa capacidade de resposta
a uma solicitação ética, a responsabilidade sobre nossas ações, na escolha entre
colocar em suspeita ou consentir algum princípio de legitimidade.
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E aqui interrompo Gros para ouvir a voz de Sara Ahmed quando ela afirma
em “Notas sobre la supervivencia feminista”: “No meu trabalho, tenho explorado,
reivindicado e afirmado a figura da estraga-prazeres feminista, aquela que
atravessa o caminho da felicidade ou que, simplesmente, atravessa o caminho. […]
Nós nos tornamos tagarelas quando não gostam do que sai das nossas bocas”
(Ahmed, 2019, p.113).
Seria anedótico dizer as tantas vezes que colegas, professores universitários,
reprovaram meus argumentos dissonantes, críticos às suas posições políticas e
escolhas pedagógicas, interrompendo minha fala em reuniões colegiadas com
frases como “você fala muito” ou “prefiro não tratar com ela”? Ou mesmo quando
desconsideram sistematicamente todo e qualquer argumento ou mesmo
contribuição intelectual e acadêmica trazidas e produzidas? Estar no grupo do
“eles” tem sido demasiadamente solitário, mas não estar no grupo do “nós” tem
sido minha mais importante forma de resistência e de problematização da
violência sistemática às mulheres não heteronormativas em instituições
universitárias brasileiras.
A consciência de uma distribuição desigual de vulnerabilidade e precariedade
entre os corpos, a importância da performatividade (histórias de vida e
experiências corporais) dos corpos femininos e feminizados na arte e, junto a isso,
a necessidade de pensar a convivência entre nós, o viver entre as espécies por um
reconhecimento ético da dor do outro, e como estou denominando aqui, no entre
peles, verifico em diversos artistas da cena contemporânea. A busca por uma
linguagem com dispositivos que reconfigurem a cena e para além dela, na
afirmação de sujeitos políticos desobedientes ao
Nós x Eles
, enfrentando o quadro
de referência que julga e que exclui do conceito de “humanidade” tudo aquilo que
escapa às normas de uma micropolítica excludente ou de uma visualidade ideal,
segundo padrões abstratos, vem cada vez mais tensionando a cena
contemporânea que se rebela contra uma cena colonizada, segundo padrões
estéticos europeus.
uma profusão de narrativas híbridas, entre o ficcional, o documental e
relatos de si que assumem o teatro como um território para a experimentação de
pequenas histórias e vivências íntimas. O que tem estimulado cada vez mais o
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fazer teatral contemporâneo não são as dramaturgias canônicas, as obras
clássicas de uma tradição teatral. Essas obras que perduraram ao longo do tempo
têm sido muito mais trabalhadas como literatura, sendo muitas vezes
questionadas como reflexo de um modelo epistêmico em ruína. No melhor dos
casos, servem como material para adaptação, preservando poucas palavras,
fragmentos de cena, apagando o contexto das relações sociais dessas obras,
torcendo suas questões morais. Temos observado e trabalhado em experimentos
artísticos e laboratoriais8, a insurgência de pequenas histórias, de poéticas
liminares entre dores, sofrimentos íntimos e ficção em grande parte das criações
cênicas. Histórias que entram em confronto com as pretensões macropolíticas e
micropolíticas de um humano universal para esperançar-se em relações mais
plurais onde as dores importam.
São experimentos diversos, com características muito diferentes entre si,
mas que conseguimos identificar três importantes movimentos: (1) interrupção das
normativas dos corpos binários; (2) convocação para uma territorialização das
subjetividades e identidades LGBTQIA+; (3) produção de uma linguagem de cena
não obediente às políticas de poder ou a uma estética eurocentrada, com a
reconsideração do que aprendemos por teatro. Movimentos que vêm florescendo
na cena contemporânea e que dão corporeidade às experiências e vivências
plurais, afirmando a existência do corpo vivido como conhecimento, seguindo um
plano de não-violência ou ternura-radical. Uma aposta que verifico de forma muito
potente nos experimentos artísticos e pedagógicos da artista trans mexicana Lia
Garcia (la novia sirena). Esses três movimentos concentrados estruturam uma
escrita-teatro feminista.
Um pouco antes de afirmar a importância de Lia para o conceito de uma
escrita-teatro feminista e para uma pedagogia do afeto, em sua reivindicação de
espaços marcadamente hostis9 para o performar de sua pele trans, gostaríamos
ainda de retornar a uma citação feita logo no início desse ensaio ( “a dor do outro
é parte de uma história que também faço parte” ) para problematizar um pouco
8 Citamos o apoio que ganhamos da FAPERJ ( APQ1) para desenvolvermos a pesquisa "Escrita-teatro
feminista”, com criação de dramaturgia e produção cênica (2024-2025).
9 La Novia Sirena vem ocupando com suas performances espaços majoritariamente controlados por homens
e marcadamente violentos para corpos trans, como instituições de polícia e batalhões de bombeiros.
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mais sobre a ética da dor e sobre como ainda naturalizamos a brutalidade
colonizadora, maquiando-a de “boas intenções”. Então, simulo aqui um possível
questionamento crítico do leitor sobre esse ensaio: o teatro clássico não trabalha
também sobre o sofrimento?
Sim. Mas majoritariamente sua aposta foi conciliar um universal para o
humano. Ou tensionando dialeticamente o conhecido, através de um bode
expiatório que pode vir ou não quebrar com o sentido moral universalizante. Mas
seu ponto de partida ou seu ponto final sempre buscou por um universal, seja para
afirmar o conhecido comportamento moral de uma época ou para apontar um
novo
éthos
, um conjunto de valores, crenças e normas compartilhadas por um
coletivo que se interpõe às características morais e culturais anteriores para
formalizar um novo sentido de humano universal10.
É fato que o teatro sempre se ocupou em colocar em cena o sofrimento
humano (ou de
um
humano determinado), seja referenciando um tempo presente
como um tempo alhures. Ora intensificando sua relação de proximidade cultural,
moral e de linguagem com seu tempo, ora denunciando dialeticamente a história
precedente e propondo novas abordagens e perspectivas críticas para um mundo
que se tornou sem sentido. O teatro sempre buscou como utopia imaginar que
todos nós, qualquer um, tem a capacidade de se colocar na pele do outro, isto é,
de responder ao sofrimento do que não lhe é familiar, daqueles que estão
distantes, de sentir na própria pele a dor do outro. Tal visada, paradoxalmente,
autorizou o teatro (uma parte dele) a representar a história de qualquer um, sem
levar em conta a própria perspectiva desse um. Uma das consequências foi o
apagamento e a seleção de memórias e narrativas, silenciando vivências e
excluindo vidas e subjetividades do palco. Viram-se dramaturgos reescrevendo a
história de mulheres e definindo para nós um perfil neurótico, histérico, cruel,
lascivo ou passivo e dócil; coloriu-se também a pele branca dos atores em
blackfaces
e ainda se autorizou a prática de transformar corpos cis em
personagens
transfakes
para contar enredos trágicos, enlaçando corpos trans e
10 Podemos citar diversas obras, como Édipo ou Antígona; ou mesmo as tragédias de Shakespeare, como
Hamlet, Macbeth; ou os dramas de Strindberg, como Senhorita Julia, e amesmo Pirandello, com “Assim
é se lhe parece”; e também Brecht ou Nelson Rodrigues. Para ficarmos nos mais conhecidos e referenciados.
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travestis em vidas marginais e promíscuas.
Procurando responder à dor, universalizou-se o sofrimento, seja na forma de
uma luta de classes ou numa perspectiva de luta feminista ou mesmo num
niilismo universalizante de um teatro de tese ou com conteúdo abstrato. E como
nos ensina a história recente, com seus genocídios e também a neurociência, tal
perspectiva de uma ética global não excludente, de uma capacidade inata ao ser
humano de se colocar na pele do outro, somente se sustenta como crença e ação
colonizadora dos corpos. Mas é vital observar, junto à Gane e Haraway, que “nem
tudo é sofrimento. algo na vida das mulheres que merece ser celebrado,
nomeado e vivido” (2010, p.03).
É sobre essa celebração desobediente dos corpos vividos na arte, do grito da
estraga prazeres feminista de Ahmed que atravessa o caminho da “paz machista
e racista” que evita tocar nesses assuntos e, também, sobre pensar a ética como
exposição e receptividade ao outro (Butler)11, que nomeio como ATOS: gestos
políticos e estéticos de responsabilidade ética ao ser exposto. ATOS de ternura
radical que vem florescendo na cena contemporânea, um não energético à
violência.
Nas performances de Lia, sua vulnerabilidade emerge como ferramenta
política e estética para transformar dor em combustível de resistência e
celebração da vida. Lia se expõe ao outro em performances táteis: tudo se passa
com a pele, na pele, entre peles. Uma dança entre peles para a criação de outros
mundos, outras ideias que não sejam as do dominador. Suas performances são
um elogio ao toque, uma pedagogia da ternura radical que questiona a
hiperssexualização dos corpos trans. Na fala da artista: […] eu sei que esses
espaços estão impregnados pela minha pele. Isso eu deixo nas minhas
performances, deixo a pele para que você acolha, para que acalente, e para que
as pessoas pensem que existem outros mundos possíveis”12.
ATOS de ternura radical são gestos políticos e estéticos que vêm desafiar a
11 Para Butler (2018, p.118 “[…] talvez todas as reivindicações éticas pressuponham uma vida corporal, entendida
como passível de agressão […] o que significa nos comprometermos com a preservação da vida do outro”.
12 Trecho retirado do encontro com Lia Garcia no “Conversas de Laboratório com a América Latina: cenários
do sul” (2023). Projeto transdisciplinar internacional do campo das artes. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=5FlymS7p-5s. Acesso em: 31 out. 2023.
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lógica da violência na radical convocação ética do ser exposto. O ser exposto ao
outro, em sua vulnerabilidade consciente se move entre o repúdio e a resistência
às epistemologias de poder, celebrando, ao mesmo tempo, as confluências
amorosas e o vínculo ético da pele.
ATOS de ternura radical são também um convite para pensarmos nossa
condição humana como uma construção histórica, política, ética e estética entre
confluências, quebras e colisões. Não apenas uma criação de mundo em curso.
E se pensarmos nesse mundo aqui, ainda com tantas violências, o teatro que
queremos corporificar é aquele onde podemos ser mais do que apenas uma vítima
do sistema. E com Haraway “É melhor assumir que a dominação não é a única
coisa que está acontecendo aqui. É melhor assumir que esta é uma zona em que
é melhor ser os que se movem e se sacodem, ou seremos apenas vítimas”
(Haraway, 2009, p.05).
A cena da ternura radical como lugar de criação de mundos, um território -
lugar de “mundificação” (
worlding
) para tecermos realidades sedutoras - como
defendido no livro “Realismo sedutor: o corpo-teatro e a invenção de realidades”
(2022). No teatro, uma das possibilidades de mundificação vem com uma escrita-
teatro feminista, pois a consequência imediata é nos fazer acreditar que o mundo
está vivo, que está em movimento, sendo cocriado pelas relações entre espécies.
E tudo isso nós podemos mudar, juntos.
Se, como propomos, uma escrita-teatro feminista pode ser entendida como
lugar para mundificações, caberia perguntar, adentrando no campo da
antropologia teatral, se cada cultura, no ato de fazer teatro, não estaria
construindo linguagem através de suas cosmovisões, crenças e práticas? Se
respondermos positivamente à pergunta, a cena, ela própria, também produz uma
versão de mundo. Por esse aspecto se verifica a profundidade do problema trazido
com os
blackfaces
e
transfakes
. Além de toda exclusão desses corpos, há ainda a
impossibilidade da criação de outras cenas imaginárias, teatrais e ficcionais e
afetivas, que possam construir um território de diálogo com essas identidades.
Todas as vidas precisam se experimentar ativamente em práticas culturais,
artísticas e de linguagem. São diversas criações de mundo que estão em curso e
esses mundos reivindicam seu lugar.
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Como analisa Paul Preciado, em “Eu sou o monstro que vos fala”: “sendo
supostamente homem” e branco” em um mundo patriarco-colonial, poderia
acessar pela primeira vez o privilégio da universalidade”:
Eu conhecia a alteridade, não a universalidade. Se renunciasse a me
afirmar publicamente como trans” e aceitasse ser reconhecido como
homem, poderia abandonar de uma vez por todas o peso da identidade
[…] mas aceitar a norma teria exigido algo ainda mais desastroso e
doloroso: a destruição da minha potência vital […] Parar de supor […] que
sei o que é um homem e uma mulher, ou um homossexual e um
heterossexual. Libertar meu pensamento desses grilhões e experimentar,
tentar perceber, sentir, nomear, para além da diferença sexual (Preciado,
2020, pg. 21 a 23).
As críticas de Preciado às categorias de identidade e universalidade se
verificam no espetáculo
Manifesto Transpofágico
de Renata Carvalho, tanto na
construção e materialidade de seu corpo de mulher travesti como em sua
reivindicação política contra o mecanismo de dominação do corpo travesti num
ideal de passabilidade. A passabilidade é mais um dispositivo de
instrumentalização dos corpos, para se manter a obediência ao regime da divisão
sexual e seu arcabouço normativo limitante e universalizante. Quem tem medo de
um corpo travesti? As instituições, o Estado, a família, organismos de poder que
temem o despertar de uma nova genealogia. E novamente Preciado: “Em todos os
lugares, o corpo trans é odiado, fantasiado, desejado e consumido ao mesmo
tempo” (2020, p. 26). A peça de Renata Carvalho (que alude ao Manifesto
Antropofágico de Oswald de Andrade, de 1928) disseca esse devoramento de
forma pedagógica, provocando com perguntas que sacodem nossas crenças
cisnormativas - afinal trata-se de um manifesto e todo manifesto de alguma forma
questiona o mundo - invertendo os polos do devorado e do devorador.
A metáfora antropofágico ganha um novo sentido para o devoramento
transpofágico.
Aqui quem devora é o corpo trans, devoramento de uma
epistemologia da diferença sexual, devoramento como chave para reinvenção dos
corpos contra discursos, convenções, práticas artísticas, acordos culturais,
instituições, etc. Como no manifesto de Oswald, o corpo trans e travesti, em seu
manifesto, não devora o