Juntos somos mais fortes: o tratado “Sobre o coro”, de Sófocles
Marcus Mota
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-27, jul. 2024
uma Cultura Performativa (
Mousiké
) na qual a dramaturgia ateniense se insere10.
Assim, mais que incorporar “gêneros pré-trágicos”, a realização de obras
dramático-musicais para o Teatro de Dioniso pode ser vista como uma
reelaboração da diversidade performativa das tradições corais pré-existente, como
bem demonstram as seções métricas corais das tragédias restantes11. Para nós
hoje, tais seções corais são fósseis dessa cultura.
Logo, a familiaridade de Sófocles com peãs e elegias indicada no verbete do
Suda não é ocasional nem sua versatilidade é fortuita: os “gêneros líricos” eram
atividades formadores da identidade coletiva e se manifestavam como eventos
multissensoriais. A própria dramaturgia ateniense seria um espaço de
experimentação com essas práticas corais.
Continuando o texto do Suda, vemos que, além de compor obras para
manifestações culturais coletivizadas, Sófocles desdobra-se em autor de um
“tratado em prosa a respeito do coro12.” Esta notícia parece estranha, pois, na
recepção da Antiguidade, radicalizou-se uma separação entre quem realiza arte e
quem a comenta, ecoando diagnóstico platônico (
Rep
,607b) do “antigo diferendo
entre a filosofia e a poesia (Platão, 2017, p. 473).”
Mas o dramaturgo Sófocles não é um caso isolado: chegaram para nós
informações de diversos artistas contemporâneos que haviam escrito sobre suas
práticas criativas, como comediógrafo Crates, o pintor e cenógrafo Agatarco de
Samos, o escultor Policreto, o tragediógrafo Pratinas e o polígrafo Íon de Quios, os
quais foram precedidos por ‘artistas tratadistas’ do século VI a.C. como o rapsodo
Laso de Hermíone13.
Ou seja, embora não tenhamos os textos dessas obras, podemos identificar
10 V. ensaios em Murray& Wilson, 2004.
11 V. Herington, 1985, p. 75.
12 No original “em linguagem de conversação, em prosa”, para se opor à organização métrica das obras
performativas. V. Platão, Leis, 7.81b “Quanto às aulas sobre escritos de poetas/autores que não são
acompanhados de instrumento de corda [Lira], algumas das quais metrificadas, outras sem divisões rítmicas,
escritos que seguem apenas a fala e são desprovidas de ritmo e padrões melódicos.”
13 Conf. De Martino, 2003, p. 441-442 e Naerebout, 1987. Paralelamente, segundo Rossetti, 2006, p.118-119,
temos o incremento nas décadas centrais do século V a. C. de publicação de tratados de “ciência natural”,
[ Sobre a Natureza, Περὶ φὐσεως], o que demonstra a formação de uma audiência interessada em participar
de e compartilhar saberes e experiências a partir de diversos campos de conhecimento.