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O outro é um eu
Alexandre Dal Farra
Para citar este artigo:
DAL FARRA, Alexandre. O outro é um eu.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0116
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O outro é um eu
Alexandre Dal Farra
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-21, jul. 2024
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O outro é um eu1
Alexandre Dal Farra2
Resumo
Na tentativa de mapear um pouco da estrutura ideológica hegemônica na atualidade, este
artigo investiga algumas obras, dentre elas a peça
Sem Palavras
, com o intuito de
compreender as maneiras com que se posicionam em um mesmo jogo de forças. A
hipótese é a de que está em curso uma espécie de
re-branding
da estrutura (neo)colonial
do mercado mundial das artes, que tende a criar novas formas de enquadrar as vozes
daqueles que são posicionados nas periferias do sistema, os quais ficam em geral
encarregados de, ao contrário do que propõe Paul B. Preciado,
trazer notícias das margens
,
através de certo gesto de
preenchimento
, que identificamos ser conferido a tais vozes em
mais de um contexto.
Palavras-chave
: Neocolonialismo. Hal Foster. Paul B. Preciado. Sem Palavras. 35a Bienal de
São Paulo.
The other is an I
Abstract
In an attempt to map out a bit of the hegemonic ideological structure today, this article
investigates some works, including the play Without Words, in order to understand the ways
in which they are positioned in the same set of forces. The hypothesis is that a kind of re-
branding of the (neo)colonial structure of the world arts market is underway, which tends
to create new ways of framing the voices of those who are positioned on the peripheries of
the system, who are generally in charge of, contrary to what Paul B. Preciado proposes,
bringing news from the margins. Preciado proposes, to bring news from the margins -
through a certain gesture of fulfillment, which we have identified as being attributed to such
voices in more than one context.
Keywords
: Neo-colonialism. Hal Foster. Paul B. Preciado. Without Words. 35 Bienal of São
Paulo.
El otro es un yo
Resumen
En un intento de cartografiar un poco de la estructura ideológica hegemónica actual, este
artículo investiga algunas obras, entre ellas la obra Sin palabras, para entender las formas
en que se posicionan en un mismo juego de poder. La hipótesis es que se está produciendo
una especie de rebranding de la estructura (neo)colonial del mercado mundial de las artes,
que tiende a crear nuevas formas de encuadrar las voces de aquellos que se posicionan en
las periferias del sistema, que generalmente son los encargados de, al contrario de lo que
propone Paul B. Preciado, traer noticias desde los márgenes. Preciado propone, traer noticias
desde los márgenes - a través de un cierto gesto de compleción, que hemos identificado
como conferido a tales voces en más de un contexto.
Palabras clave
: Nocolonialismo. Hal Foster. Paul B. Preciado. Sin Palabras. 35a Bienal de São
Paulo.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada pelo autor devido sua formação em Letras.
2 Doutorado em Artes Cênica pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Letras pela USP.
adalfarra@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2675502035737415 https://orcid.org/0000-0003-0273-3008
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Introdução
Este texto procura investigar algumas estruturas de funcionamento
ideológico do atual mercado de circulação das artes (cada vez mais
imediatamente global) que, a nosso ver, parecem se configurar como maneiras
de recriar modos de justificação para posições aparentemente transgressoras
mas que na sua configuração interna por vezes repõem estruturas colonialistas
e objetificantes. Tais estruturas de funcionamento, embora não determinem o
trabalho de artistas, os influenciam. Analisaremos algumas obras, não tanto no
sentido de entendê-las em si mesmas, mas muito mais de compreender as
forças que nelas operam, ou a maneira como são utilizadas por um sistema que
não se reduz a elas. Assim, não é o foco deste texto a análise das obras em si,
muito menos das trajetórias das artistas que as realizaram, mas sim, o contexto
em que aparecem e os discursos que parecem mobilizar e/ou a que parecem
fazer frente.
Formas do "Real"
Em 1996, ano de publicação de seu livro
O Retorno do Real
, o crítico de arte
e teórico americano Hal Foster, ao conceituar a transição da ideia modernista de
uma avaliação das obras de arte a partir da sua
qualidade
para a ideia, conectada
às neovanguardas e depois ao Pós-Modernismo, de interesse, escreve:
Enquanto a qualidade é avaliada em referência aos padrões não só dos
grandes mestres, mas também dos grandes modernos, o interesse é
provocado pelo exame das categorias estéticas e pela transgressão das
formas estabelecidas. Em resumo, a qualidade é um critério da crítica
normativa, um louvor ao refinamento estético; o interesse é um
vocábulo vanguardista, geralmente medido em termos de ruptura
epistemológica (Foster, 2017, p. 58).
É, no entanto, no mesmo livro que Foster conceituará as bases de uma
tentativa de teorização de fenômenos da arte em alta naqueles anos que, a nosso
ver, ali flagravam estruturas que se desdobrariam para os anos posteriores e
que já naquele momento tendiam a derrubar também a ideia de
interesse
como
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conceito dominante na avaliação das obras de arte, numa tendência que depois
se reafirmou e que tende a esvaziar o pensamento vanguardista (ou
neovanguardista - neste caso não importa, trata-se de uma grande e única
tendência que se recria conforme retorna com novos desdobramentos) e
substituí-lo por algo que o próprio Foster não conceituou com a mesma
profundidade, nem naquele momento, e nem depois. As tendências artísticas
analisadas pelo autor em seu livro de 1996 já pressionavam e tendiam portanto a
desestruturar o sistema crítico que analisava as obras majoritariamente sob o
critério do
interesse
, e isso estava se tornando claro com o fortalecimento do
que ele denomina arte abjeta, assim como no surgimento do que ele conceitua
como arte etnográfica. Esboçava-se, naquele momento, um outro tipo de
adesão às obras, que depois veio a se tornar suficientemente nítido. Com
efeito, o mesmo autor escreve, agora em 2020:
A maneira prevalente de ver arte hoje em dia é afetiva. Se Kant retomou
a antiga pergunta 'A obra é bela?' e Duchamp formulou a indagação da
vanguarda 'A obra é arte?', nosso critério principal parece ser 'Essa
imagem ou objeto me comove?' (Foster, 2021, p.16).
Mais adiante, ele elabora tal pensamento:
Se antes falávamos da “qualidade” de uma obra a ser julgada em
comparação à grande arte do passado e, depois, sobre seu “interesse” e
sua “criticalidade”, ambos medidos pela relevância em relação à estética
contemporânea e/ou a debates políticos, atualmente buscamos o pathos,
que não pode ser testado objetivamente nem sequer ser muito discutido.
(Uma obra que me atinja pode passar longe de outro) (Foster, 2021, p. 16).
Aqui se esboça, ao que parece, uma dificuldade teórica de que o crítico
parece se queixar, com um diagnóstico que dificulta justamente a teoria no
território artístico. No entanto, gostaríamos de pensar que, no seu próprio
pensamento anterior é possível encontrar pistas de uma possível teorização que
permite criar parâmetros diante de um território majoritariamente pautado por tal
pathos
que ele indica. Diante do modo de relacionamento predominantemente
afetivo
com a obra de arte seria possível, assim, encontrar formas de guiar a teoria,
sem negar os afetos em favor de quaisquer conceitos (nem da "qualidade", e nem
do "interesse"), mas sim, no sentido de qualificar tais afetos, e de compreendê-los
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de modo crítico - em suma, de compreender se são afetos que reafirmam
consensos, ou que os fazem
tremer
.
Veremos que se trata de um território intrincado, pois, como apontou por
exemplo Slavoj Zizek, vivemos em um momento em que não nada mais
capitalista do que ser anticapitalista3. Para tentar conceituar tal teorização, mais
do que tratá-la de modo abstrato, procuraremos analisar algumas obras
contemporâneas que parecem nos impor os desafios descritos acima. Antes, no
entanto, será interessante retomar um pouco do raciocínio de Foster em relação
à "virada para o real" e à "virada para o referente" que parece nos fornecer um
ponto de partida interessante para pensar algo que estamos procurando identificar
no momento atual.
A partir de um regime convencionalista em que nada é real e o sujeito é
superficial, grande parte da arte contemporânea apresenta a realidade na
forma de trauma e o sujeito, na profundidade social de sua própria
identidade. Depois da apoteose do significante e do simbólico, portanto,
somos testemunhas de uma virada para o real, por um lado, e uma virada
para o referente, por outro (Foster, 2017, p.129).
Em linhas gerais, o que Foster aponta, ainda em 1996, é que, diante de um
contexto Pós-Modernista onde, por meio de um esvaziamento do sujeito, grassava
a arte denominada
convencionalista
, ou seja, aquela arte que tendia a diluir todos
os parâmetros em uma espécie de cinismo diante de uma afirmação genérica de
que
tudo é conve
nção (não apenas as convenções artísticas, mas também as
sociais, históricas etc.), a arte dos anos 1990 (e, poderíamos dizer, em grande parte
também dos anos 2000), se dividiu em duas formas de propor uma espécie de
retorno do sujeito - que ele denomina como o retorno do sujeito
traumático
(no
caso do que ele chama de arte abjeta, em que o sujeito retorna, porém na forma
do trauma, um sujeito que é um
outro
dentro de si mesmo); e o retorno de um
outro
como sujeito, no caso do que Foster denomina de o artista como
etnógrafo
.
O crítico vai procurar esmiuçar e entender as contradições dessas duas
3 Referimos aqui diversas falas públicas em que o filósofo expõe essa posição contrária às exposições de
arte anticapitalista comprada por bilionários etc. É óbvio também que, ele próprio sendo um fenômeno
pop, seria necessário apontar que também existe espaço no "mercado" mundial para aqueles que criticam
o anticapitalismo e que o denunciam como forma de conciliação etc. Nesse jogo de espelhos que parece
infinito, e no qual justamente o afeto (com Foster) parece ganhar espaço por conta dessa reflexividade que
poderia se desdobrar em cinismo, no entanto, insistimos, critérios, e possibilidade de pensar.
Tentemos.
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formas de
retorno
. Em relação ao
sujeito traumático
, vai questionar a medida em
que por vezes o trauma é transformado em uma espécie de combustível para a
reafirmação do próprio anteparo artístico que finge questionar. Juntamente com
um
retorno
do sujeito traumático, nesses casos, testemunharíamos o retorno da
arte e do artista ocupando um espaço de autoafirmação paradoxal, pois que
fundamentada na sua própria suposta
cisão traumática
:
Muitas imagens contemporâneas encenam o obsceno, tornam-no
temático ou cênico, e assim o controlam. Desse modo, colocam o
obsceno a serviço do anteparo, não contra ele, que é o que grande parte
da arte abjeta faz, contrariando seus próprios desejos. Mas, então, poder-
se-ia argumentar que o obsceno é a maior defesa apotropaica contra o
real, o último reforço do anteparo-imagem, não seu último diluente
(Foster, 2017, p. 272).
Esse risco do abjeto de "fixar-se" na abjeção será remetido por ele a certas
tendências visíveis no surrealismo, que foram retomadas e desdobradas por
artistas daquele momento. Tal fixação, como uma espécie de busca repetitiva por
um tipo de
verdade
abjeta, que poderia ser descoberta e exposta, acabaria por
servir a uma reafirmação do anteparo (da arte enquanto instituição), e não a uma
crítica a ela - na medida em que o
real
(no sentido lacaniano) deixa de ser nesse
caso um elemento de desequilíbrio para tornar-se justamente o fundamento do
que pode ser a retomada do equilíbrio - agora fundado em uma
outra
verdade. No
momento em que o elemento abjeto se fixa, perde portanto sua capacidade de
questionar e se transforma no fundamento de novas certezas (ainda que sejam
certezas incômodas, desagradáveis e à primeira vista chocantes).
Mas essa tendência a novas formas de criar certezas e de buscar
verdades
fixas aparece também de outro jeito - que será o foco deste texto. Entendamos,
então, um pouco do que Foster caracteriza, ainda em 1995, como sendo o
artista
como etnógrafo
. Em uma referência explícita ao célebre texto de Walter Benjamin
O Autor como Produtor, Foster propõe que na atualidade se gerou uma espécie
de desdobramento daquela ideia - substituindo-se a categoria original do
proletariado como sendo a camada da sociedade a que tais artistas (produtores)
deveriam se aliar, por novas categorias políticas, que não têm mais
necessariamente o lugar na cadeia produtiva capitalista como centro - daí a
alteração do artista como
produtor
para o artista como
etnógrafo
. No caso, tal
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conceito englobaria não apenas os artistas que se aliavam a estas pessoas, como
também casos de artistas que falavam em nome próprio. O foco de Foster, mais
uma vez, está nessa espécie de
retorno do real
que neste caso não ocorre por
meio de aspectos
abjetos
do próprio sujeito, mas pela busca por
outros sujeitos
que não faziam parte do discurso modernista, e passam a
falar
. Nessa fala (assim
como na fala abjeta) há o risco de um retorno da verdade fixa, e nos dois casos a
verdade passaria a
residir no sujeito traumático
- seja o trauma pensado como
algo interno ao sujeito, seja ele pensado como algo pertencente a um outro, que
está "na verdade, não na ideologia, porque ele é socialmente oprimido" (Foster,
2017, p. 172).
A verdade política é, assim, projetada em um fora - seja este
fora
o abjeto no
próprio eu (algo que foi em geral reprimido no passado, um trauma antigo etc.),
seja a exterioridade social ou antropológica (e o trauma nesse caso é social ou
político). É nesse sentido que há, segundo Foster, na arte
etnográfica
o risco de
uma espécie de fantasia em ação, que faz com que o outro nunca deixe de ser
outro, ou seja, apareça sempre como
contraponto do eu
(ainda que seja um
contraponto que pretende renegar o eu colonialista). Ou seja, o outro, nesse caso,
jamais deixa de ser outro (mesmo que fale em nome próprio), muito mais do que
"fazer do outro um eu [...] em que a diferença seja permitida, até mesmo apreciada
(talvez por meio de um reconhecimento de uma alteridade no eu)" (Foster, 2017,
p. 176).
Tentando não nos perder nas inversões, tratar-se-ia de, com Foster, buscar
fazer do outro um eu
, o que, com efeito, consistiria em que ele - o outro - fosse
também dotado, por sua vez, de alteridade. Dessa forma, questionar
verdadeiramente o sujeito moderno (e portanto colonial) passaria, não por dar voz
ao outro
enquanto outro
, ocupando o lugar de outro, mas sim, em uma inversão
mais radical, que transformasse o outro em um eu (de modo que ele próprio seja
permeado também pela diferença e pela alteridade que permeia o
eu
desde, pelo
menos, Freud).
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Posta essa discussão, seria interessante pensar que algumas questões
expostas foram superadas, outras - talvez - não. Algumas obras recentes fazem
pensar nos desdobramentos atuais do que Foster denominou a arte
etnográfica
.
A 35a. Bienal de São Paulo parece ser um exemplo interessante para pensar sobre
o que atualmente se elabora neste terreno. Muitos comentaram sobre a
curadoria de tal exposição, em diversas direções. Uma das observações, feita por
Bernardo Carvalho em artigo na
Folha de São Paulo
, aponta na direção de que as
obras, embora buscassem uma reparação histórica, careciam de dar espaço à
dúvida, que, para ele, "é disruptiva", a cultura, diz ele, ao contrário, "supõe coesão.
É a lógica da moral, dos costumes, mesmo na sua reciclagem" (Carvalho, 2023). O
autor aponta, no entanto, o que lhe parece uma exceção a essa tendência que crê
observar. O filme
Uma mulher pensando
dos artistas Aida Harika Yanomami,
Edmar Tokorino Yanomami e Roseane Yariana Yanomami, que, ao captar as
imagens da preparação e realização de um ritual xamânico que busca o contato
com os
xapiri
, ao mesmo tempo registra uma voz feminina que se pergunta, em
off, se o ritual vai dar certo, se o xamã vai conseguir de fato ver os
xapiri
, se ao
chá vai ficar forte o bastante. Nas palavras do escritor, a voz que duvida, que faz
perguntas, que não tem certezas, é uma exceção na Bienal: "ao se perguntar ela
desconstrói tudo o que é assumido como inquestionável, tudo o que é comum: as
identidades, o pertencimento, o compartilhamento dos sentidos. Ela
desreconhece" (Carvalho, 2023). Se pensarmos em Foster, poderíamos dizer,
talvez, que se trata de um exemplo de um outro que se fez eu, ou melhor, de um
eu que, embora seja visto como outro, se recusa a colocar-se enquanto outro, ou
seja, a cumprir as demandas que o "eu" colonial ou neocolonial exerce. Trata-se
então, talvez, de um eu que se permite ser permeado por alteridade (que se
permite duvidar portanto, como coloca Carvalho), e que se recusa (ou a quem não
ocorre) reafirmar-se
enquanto outro
- como portadora da verdade, seja na forma
da revolta, seja na forma da reafirmação de si. A forma como essa reafirmação
aparece, no entanto, talvez possa ser precisada, se pensarmos em algumas obras
presentes na Bienal e em alguns outros fenômenos que carregam uma
característica comum, que parece ser facilmente capturada no sistema ideológico
(neo)colonial: trata-se de certo gesto de
preenchimento
.
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Bienal, O Guarani
As telas do coletivo Mahku (coletivo de artistas Huni Kuin) estavam
penduradas lado a lado e frente a frente, umas no alto, outras na altura dos olhos,
no terceiro andar do pavilhão da Bienal. Suas cores chamavam a atenção de longe,
em geral fortes. As telas eram em parte figurativas, apresentavam representações
que se assemelhavam a animais e plantas, distribuídos de maneira mais ou menos
constante pela superfície das telas, e adornadas, ou recortadas, por faixas em geral
lineadas em preto, onde havia ainda figuras arredondadas que poderiam lembrar
olhos. Assim também nas laterais das telas em geral havia essas mesmas figuras,
assim como, por vezes, nos corpos dos animais, ou nas árvores. Sem interpretar
demais o que poderia significar essa profusão de "olhos", há uma observação que
parece possível fazer em relação a tais obras - a de que, quando as olhávamos,
sentíamos ali a imagem de algo que poderia ser chamado de "vivo". Há, portanto,
ali, certa vivacidade múltipla e generalizada. Desde as cores
vivas
, até as figuras
em si, passando pela profusão de "olhos", tudo parecia indicar um certo imaginário
vivo. Essa vida as invadia de maneira total, de modo que naquelas telas não havia
espaços vazios
. Aqui não precisamos pensar em um vazio literal, partes em que a
tela seria deixada crua, mas apenas em espaços sem importância e/ou dúbios,
vagos. Como ali não se via propriamente o protagonismo de nada (o que poderia
ser traduzido em uma espécie de "democracia" da composição de tais pinturas,
em que nenhuma parte seria mais importante que outra), não se via também
espaço para elementos sem importância, e menos ainda para espaços vazios, sem
preenchimento, pedaços que não emanassem a mesma potência - viva - dos
outros.
Tudo se passa como se naquelas telas operasse uma espécie de tendência
ao preenchimento, que poderia se espalhar inclusive para fora delas se fosse o
caso - o que de fato ocorria em uma das colunas da Bienal, onde foi pintada uma
figura que poderia ter "saído" de um daqueles quadros. Tal imaginário
vivo
, que é
capaz de preencher vazios, aparece nas telas então, não como se cada uma delas
fosse uma unidade, mas como se os seus limites fossem arbitrários e exteriores
às pinturas que como que
continuam para fora de si mesmas
. Esta tendência a
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continuar para fora das pinturas era presente também na maneira como foram
projetadas as criações do artista Denilson Baniwa, na ópera
O Guarani
, idealizada
por Ailton Krenak e dirigida por Cibele Forjaz no Theatro Municipal, em 2023. Em
ambos os casos, tal tendência à expansão do gesto da obra para fora dela, e de
que as imagens como que preencham espaços para fora das obras em si parece
falar de um mesmo
desejo
, que não pertence apenas aos artistas, mas também à
maneira como eles são posicionados na exposição, no teatro etc.
Nossa hipótese, desde já, é que o outro fantasioso, que a subjetividade
colonial a certa altura passa a imaginar como detentor da verdade, tivesse neste
momento uma nova
demanda
a cumprir: a de preencher espaços vazios. Talvez,
no presente novo ciclo colonialista, mais uma vez às voltas com o seu próprio
vazio, o "eu" extrativista tenha saído em busca de fantasias de preenchimento do
vazio que ele próprio mais uma vez flagrou em si mesmo, no seu mundo e na sua
lógica, e cabe - mais uma vez - ao outro imaginado preenchê-lo. A propósito,
poderíamos citar parte do prefácio com que Marcio Abreu finaliza sua obra mais
recente junto à Cia Brasileira,
Sem Palavras
(2022):
Estar sem palavras diante do horror humano, diante da miséria que te
esmaga como um trator e você não esquece, estar sem palavras é para
aqueles que sempre estiveram sentados em cima delas como num trono
ou para aqueles que sempre tiveram acesso aos púlpitos, às assembleias,
aos palcos, às telas, às ondas sonoras, aos microfones. A quem sempre
foi impedida a fala e recusada a escuta, dessas pessoas borbulham
palavras em profusão (Abreu, 2023, p.70).
Uma leitura desse trecho da obra, que em muito parece colocar-se como seu
motor (o próprio diretor e autor o cita em diversas ocasiões), à luz tanto do que
fomos buscar nos textos de Foster de 1996, mas também na Bienal de 2023 e no
Guarani encenado no mesmo ano em São Paulo, faz pensar numa nova virada da
subjetividade "ocidental" (ou colonial, se quisermos), que, diante do vazio que flagra
em si mesma, passa a buscar as palavras em outros - e Abreu parece formular tal
movimento com precisão, com a imagem de que nos "outros", ou no "sujeito
traumático" (com Foster)
borbulham palavras em profusão
. As palavras que se
projeta neste outro não existem em profusão, como também borbulham. Não
se trata de palavras dóceis, mornas mas sim quentes, borbulhantes, e líquidas,
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como que escorrendo de maneira abundante.
Como apontado acima, cabe relembrar, também as imagens de Denilson
Banawa como que pulavam para fora do palco, excedendo-o para o teatro como
um todo e passeando pelos seus espaços vazios, de modo que não as suas
presenças preenchiam o palco, mas tal preenchimento escapava para fora dele
(também para fora das telas, na Bienal),
preenchiam o mundo
.
Como este artigo é uma tentativa de captar algo que parece estar
acontecendo em diversos territórios e que parece se diluir em discursos
aparentemente distantes entre si, penso que cabe a narrativa de uma anedota
com pouco valor científico, mas que pode talvez explicitar um pouco mais do
mecanismo ideológico que parece estar de alguma forma em jogo em todos estes
casos. Em um festival de teatro internacional, no ano de 2023, uma diretora
europeia me narrava suas obras. Eram três obras realizadas na América Latina.
Uma delas na Amazônia brasileira. Depois de me explicar em detalhes o
funcionamento dos conflitos na Amazônia brasileira, me contou que sua obra
tratava de tudo aquilo, e que portanto era uma obra muito pesada, muito dura. A
essa altura, disse-me que apesar disso, de toda essa dureza, havia um final que
de algum modo salvava a apresentação. Durante as pesquisas na Amazônia essa
diretora tinha entrado em contato com lideranças indígenas, mulheres, que,
segundo ela, eram muito fortes. Ela então convidou uma dessas lideranças a
participar da peça em questão. Disse-me então que, ao final da obra, a mulher
indígena tomava a cena e, ao expor a sua luta,
mostrava a verdade
sobre aquilo
tudo. "No final ela dizia o que a gente precisava ouvir", foi essa a expressão da
diretora, a citamos de memória, sem o risco de calúnia pois não disse seu nome,
mas com o risco inevitável da imprecisão. De todo modo, era esse o sentido da
sua fala. Decidimos manter aqui este relato da esfera da anedota porque por vezes
nesse tipo de conversa informal surgem, de maneira distraída, vetores ideológicos
que em contextos formais tenderiam a serem disfarçados ou escamoteados.
A subjetividade colonial parece ter-se deslocado, de sentir-se detentora da
verdade (momento em que o
outro
era via de regra visto como exótico, ingênuo,
animalesco), e passou a se sentir como que esvaziada da sua confiança antes
aparentemente cega em si mesma. Desde então, passou a esperar daquele
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mesmo outro (antes exótico, agora sábio) o preenchimento do que ela percebe
faltante em si mesma. A mulher indígena, depois de uma vida de luta e resistência
na floresta brasileira, é agora levada para diversos festivais europeus para uma
nova tarefa: salvá-los do seu próprio suposto vazio. Aqueles que se encontram
supostamente
sem palavras
diante das diversas crises globais sobrepostas
buscam palavras em profusão que borbulhem de outros, e que salvem a todos
diante da catástrofe real que ocorre diante dos olhos de todos. Parece ser assim
que, em linhas gerais, se move a grande ideologia oficial da cultura internacional
que se alinha à oposição contra a extrema direita (esta, com uma lógica
completamente diversa desta, e talvez oposta a ela).
Mas procuremos entender um pouco dessas contradições em ato na obra de
Marcio Abreu, trabalho que, longe de esquematizar tais forças, as tangencia e
coloca em tensão.
Sem Palavras4
O palco é vazio, preto, apenas um banco ao fundo, e um músico do lado
esquerdo, com uma guitarra, um microfone, uma pedaleira. No palco vazio se
darão as cenas. Não serão utilizados objetos, salvo um microfone e um plástico
branco. Além disso, figurinos. Não pretendo analisar a peça de maneira
pormenorizada, em todas as suas camadas e na totalidade de seus momentos.
Em linhas gerais, a obra se estrutura em torno de
relatos
(creio que seria um bom
jeito de chamá-los) de diversas figuras que, em sua maioria, narram um
acontecimento particular nas suas vidas ou expõem um pouco da sua vida
cotidiana, seus pensamentos, o modo como vivem. Tais relatos são performados
pelos atores que, o contrário de procurar narrá-los com algum distanciamento, ou
muito menos ainda de tentar interpretá-los, os corporificam e os fazem
tremer
nos seus corpos. A formulação não é apenas um fraseado kitsch. De fato, existe
na obra, no todo da obra, um impulso que a perpassa e que parece estar em todos
os relatos, que é esse impulso de fazer tremer, ou de fazer vir à tona um certo
tremor que se refere, a nosso ver, a uma busca por performar certa
vivacidade
.
4 Como apontado no início do texto, não faremos uma análise de todos os aspectos deste espetáculo,
nem é a pretensão deste artigo, mas apenas tentaremos retomar alguns vetores centrais no sentido de
compreender a maneira como a obra tangencia as questões aqui apresentadas.
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Aqui são claros os ecos do pensamento de Paul B. Preciado, referência explícita
do trabalho, nessa busca por uma espécie de vivacidade sem nome, pulsante, que
não se reduz à binariedade, e que, de alguma forma, treme ou faz tremer. Essa
pulsão, a nosso ver, perpassa todos ou quase todos os relatos performados.
Nessa espécie de panorama que a obra vai criando por meio da justaposição
dos pontos de vistas de figuras diversas de uma mesma sociedade (o Brasil atual)
vão se desenhando jogos de força que estão para além dos indivíduos em si, e que
os perpassam perpendicularmente. Por vezes isso aparece literalmente em frases
transportadas de um para outro - "como um boi indo para o abate" (Abreu, 2023,
p.35), no relato do policial, e "você não come carne porque detesta a obediência
do gado em direção ao abate" (Abreu, 2023, p.26), no relato do profissional de
saúde - e outras. Por vezes, isso aparece apenas de maneira sugerida, silenciosa.
Há, então, para além do que chamamos desse
tremor
que se espalha por
praticamente todas as figuras, também uma certa tendência talvez oposta a ele,
que diz respeito à ordem, à ordenação, à repressão, que no geral aparece com
sombra em muitos dos relatos, e que se instaura como força opositora justamente
ao tremor. É como se todos os indivíduos de alguma forma existissem nessa
mesma sociedade, com pontos de vista diversos sobre ela, e sobre a vida, e a obra
os posicionasse, em seus relatos, na sua proximidade e distância em relação a
essas duas grandes forças - ao tremor, e à repressão. Nisso, ao que parece uma
relação profunda com Preciado - mais do que buscar encenar algo do que ali,
trata-se de olhar o mundo com aqueles olhos. Diante de certa vitalidade
multifacetada uma força repressiva que de ameaça sempre limitar os fluxos
(que, na peça, não chega a se personalizar ou absolutizar, mas tende a ser
identificada com figuras mais próximas à lei e à norma - o policial, a socialite),
dividindo-os em categorias binárias, "o universo inteiro cortado em dois e somente
em dois" (Preciado, 2020, p. 18).
Por outro lado, a nosso ver (e aqui nos aproximamos do nosso ponto), é
também na pista de Preciado que, no que parecem ser os seus momentos mais
fortes, a peça se recusa a retroalimentar a divisão (binária) entre
nós e eles
, que
algum tempo vem estruturando quase todo o debate público brasileiro, e nisso
se recusa a fornecer combustível ao sistema ideológico colonialista ou
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neocolonialista: "não trago nenhuma notícia das margens" (Preciado, 2020, p.20).
Nos seus momentos menos complexos, do nosso ponto de vista, a obra recai em
um discurso que reproduz essa mesma divisão.
Nos relatos performados por Vitória Jovem Xtravaganza e Viní Ventania
Xtravaganza por exemplo a recusa a fornecer combustível para formações
ideológicas consensuais é evidente. Ali, ao que parece, estamos de fato em Urano.
Assim também, quando Kênia Dias sua aula de corpo, ou quando Key Sawao
descreve a sua vida-coreografia, assim como quando Fábio Osório performa o
relato comovente, vivo e complexo de quem tem "a vida e a morte nas mãos", a
peça faz esse mesmo movimento de recusa, a peça diz: "não trago nenhuma
notícia das margens". Ao contrário, fala de existências que não se fecham e não se
restringem às suas funções em determinados esquemas binários de pensamento.
A exceção a esse gesto parece ser, a nosso ver, os momentos em que a obra se
aproxima mais (e aqui é inevitável pensar nas dinâmicas de
inversão
que
caracterizam as formações ideológicas na atualidade, que livros como
O mundo
do avesso
, de Letícia Cesarino, falam com imensa força) voltemos, a obra se
aproxima do pensamento mais binário justamente em momentos em que se
propõe a performar os relatos daqueles que são o seu "outro". Dentro de um
universo ideológico clivado, que se retroalimenta justamente a partir dos ataques
mútuos entre os lados separados e desidentificados radicalmente, cria-se figuras
que são inimigos. E que portanto são objetificados de lado a lado. Quando a obra
performa relatos de "eus" que são, diante da norma geral, objetificados como
"outros", e quando o faz recusando-se a fornecer "notícias das margens" aos olhos
vorazes do eu colonialista, ela reafirma sua potência de desdobrar vitalidades e de
fazer mover estereótipos e consensos. No entanto, é um equívoco, a nosso ver,
imaginar que essa operação deveria ser seguida de uma espécie de vingança, onde
o "eu" habitual é reenquadrado como "outro" objetificado. Essa operação não
funciona simplesmente porque é da própria dinâmica do funcionamento atual da
ideologia dominante que ela se alimente e se fortaleça exatamente
da divisão em
si mesma
. Não basta, portanto, fortalecer o "nosso" lado, e supostamente
enfraquecer o outro lado atacando-o, se isso não for capaz de
desarticular a
própria dinâmica de separação em si
. Ao abrir espaço para relatos complexos, que
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não se restringem à sua própria reafirmação, à defesa de si mesmos, às certezas,
a obra multiplica os vetores e por isso enfraquece a tendência geral à duplicidade
e à redução de tudo à divisão entre nós e eles. Mas, ao imaginar-se enfraquecendo
o "outro" lado, quando o reduz ao que achamos que ele é, a obra inadvertidamente
põe mais água no moinho do sistema da divisão (binária) do mundo, e por isso
alimenta a máquina ideológica dominante no contexto atual (brasileiro e mundial)5.
Por exemplo, quando se propõe a performar o relato de um policial, o relato
escolhido (seja ele documental ou não, isso não importa), se encaixa de maneira
quase que sem nenhum ruído, sem nenhum
tremor
no que a subjetividade
"progressista" projeta nessa figura - e ao reafirmar esse esteriótipo, a obra não
move as categorias em jogo. Mesmo que busque o tremor, mesmo que trema, ela
treme em uma direção que não multiplica mas apenas repisa o consenso. Não se
trata de uma defesa da "humanização" do policial (aliás, a peça faz isso), mas sim
de buscar relatos que, em todos os seus lugares sociais, sejam capazes de fazer
tremer as nossas categorias mentais fixas e mortas. Neste relato, flagra-se
momentos em que o texto sabe mais do que o seu narrador, como quando ele
diz, "parado no mesmo lugar, sempre parado" (Abreu, 2023, p. 35), ou "Você
pergunta com o sangue de quem foram fabricados meus olhos" (Abreu, 2023, p.
36), algo que nos bons momentos da peça não ocorre - e tal extrapolação dá sinal
de uma voz que não está realmente olhando o mundo através daqueles olhos
(como a segunda pessoa do plural parece indicar), mas sim, julgando o
relato
de
fora. De certa forma, nesses momentos, o texto desautoriza a própria relação que
ele propõe: "você pergunta", uma sugestão para que o público se imagine fazendo
tal pergunta, no lugar daquele personagem que se imagina, mas, a pergunta em si,
"com o sangue de quem foram fabricados meus olhos", é em verdade retórica,
trata-se de uma afirmação, e não é uma afirmação do
relato
, mas nossa, sobre
ele: o olhar dessa personagem é feito de sangue (algo que, sendo ele um policial,
todos nós já pensamos sobre ele) A pergunta a ser feita, nesse caso, penso, seria:
5 Um dos nomes para a forma como tais dinâmicas de divisão operam é a chamada
cismogênese
, conceito
elaborado pelo antropólogo Gregory Bateson, que o livro de Letícia Cesarino procura compreender,
juntamente com larga bibliografia, na busca de desvendar algo da lógica operante não nas redes sociais,
mas também - e sobretudo - na vide ideológica atual em geral (não se trata apenas de algo advindo das
redes portanto, mas sim de tendências externas a elas, que elas tendem a fortalecer, pelas próprias
características estruturais da cibernética como um todo - Bateson é um dos criadores da cibernética).
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existem maneiras de performar o relato de um policial que não recaiam em mera
reafirmação de certezas e tentativas de vingança simbólica diante de violências
reais? É possível fazer tremer os consensos em torno também do nosso "outro"?
Talvez o momento onde essa falta da vitalidade que a obra busca fique mais
evidente seja no relato da herdeira - "Uma mulher olha para fora e não nada"
(Abreu, 2023, p. 37). A cena se inicia com a atriz adentrando o palco carregando o
plástico branco (que foi usado em algumas das outras cenas também) de tal modo
que parece um saco de plástico com pernas. Dali de trás, ouve-se ela dizer, "Você
está em casa e não tem nada pra fazer" (Abreu, 2023, p. 37). nessa primeira
frase, pela imagem algo patética e sobretudo pelo tom de voz, se entende o tom
e o enfoque da cena. Poucas frases depois se compreendeu perfeitamente a
cena que se seguirá. Trata-se de uma mulher rica, uma herdeira, na sua casa, se
embebedando de vinho e remédios e tentando preencher o seu tédio com
dinheiro. A cena se apresenta rapidamente e em registro paródico, de comédia.
Neste contexto, desde a primeira frase, fica evidente que o "você" que o texto
evoca, e que, no jogo com a plateia nas outras cenas (por exemplo no relato do
trabalhador da saúde, que é comovente porque aberto, plural, e passa pelos
respiradores de maneira a um tempo concreta e poética) têm uma função
crucial de sugerir a imaginação, de se colocar no lugar do outro, no caso desta
cena, esse "você" não funciona, pelo próprio tom de voz paródico, irônico e mordaz,
o "você" se distancia do ator e do público, o "você" aqui é um "ela" disfarçado, ou
melhor até, um "eles". A partir desse enquadramento nítido desde o início, a cena
se desenrolará como uma grande sequência de escárnios em relação a "ela", ou a
"eles", ridicularizando das maneiras mais reconhecíveis possíveis a figura da
herdeira,
solialite
, burguesa etc. Depois, uma espécie de delírio vingativo e/ou
imaginação supostamente paranoica em que a rica se diante da perda repentina
de seu dinheiro, o que a leva, dentro da fantasia de vingança, se ver na rua, mijando
nas próprias pernas, sentindo fome etc. Em linhas gerais, trata-se de uma cena
que desenha um esteriótipo e o ironiza, o faz de maneira consciente, com a
justificativa implícita de que se trata do "inimigo" e portanto ele não merece
complexidade. A nosso ver, embora pareça revide, tal estratégia discursiva (de
reafirmação pura e simples de certezas) não nos fortalece, mas nos torna
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previsíveis e restringe nosso próprio olhar ao que ele de antemão, ao que
está dado no dia a dia na nossa parcela da ideologia hegemônica (que, como
apontado acima, se fundamenta na divisão e se alimenta dela). Perto de seu final,
a personagem se estranhamente próxima e quase que começa a se transformar
em um rato - bicho de que diz ter fobia. Esboça-se a ideia de que há também ali
uma espécie de "tremor", de multiplicidade, da aproximação com o animal, algo
que a personagem recusa mas ao mesmo tempo realiza.
Logo em seguida, no entanto, num dueto incrivelmente complexo e
multifacetado, a "animalização" aparece de forma exatamente inversa, apontando
um trânsito fluido entre pessoa e animal. Duas performers gêmeas e trans
passeiam entre serem cadelas, vadias, irmãs, transitam por um humor que não é
óbvio, pela aproximação (sem mergulhar nele) com o grotesco - por exemplo
quando repetem inúmeras vezes, apontando quase que cada um dos
espectadores presentes "você caga", antes de concluir a frase: "e quer logo
enterrar" (dito em tom de uma ironia nada óbvia). É o exemplo evidente, afirmativo,
do que seria uma forma de viver e de pensar que não se reduz aos binarismos
todos - forma esta que, a nosso ver, falta na abordagem da própria peça em
relação àqueles que são os "outros" dela (da peça) - ou, os seus inimigos.
Também o relato do trabalhador da saúde parece ser um exemplo dessa
pulsão de vida, desse tremor que transpõe binarismos e que se mostra de forma
tão intensa, poética e ao mesmo tempo verdadeira, que faz efetivamente o
horizonte aumentar. Assim também o relato da coreografia do cotidiano de Key
Sawao, seu pequeno mundo que se expande em direções imprevistas e também
sutis, a aula de Kenia Dias que nos faz olhar para o próprio músculo que faz a vida
pulsar, em movimento espiralar como ela ensina, o relato que resume o embate
de fundo da peça, são muitos - arrisco a dizer, quase todos - os momentos em
que a peça cumpre o que parece ser o seu programa filosófico: ampliar as direções
em que pulsa o vetor da vitalidade, desdobrar esse vetor para além das tentativas
de reduzi-lo a uma única coisa, a um único "lado", oposto a outro, de maneira
binária. Em quase tudo a obra cumpre portanto o seu
programa
.
Com efeito, segundo Helena Vieira, "esta obra é um manifesto, disso tenho
certeza" (Abreu, 2023, p. 8). No que ela realiza, em quase todos seus relatos, a obra
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talvez não seja tanto um manifesto (no sentido de ser algo que propõe
determinada ação). Nesse sentido, ela parece
agir
um manifesto, a nosso ver, mais
do que o defender ou propor. No entanto, no momento em que esse manifesto
aparece de fato formulado, ao que parece ele é menos interessante do que o que
a própria obra realiza. É mais um momento em que a obra como que cede à
demanda que a ideologia hegemônica lhe faz. As palavras que "borbulham em
profusão" parecem se encaixar muito mais num imaginário - ele sim, binário e
estático - de que "outros" que nunca foram ouvidos, e que esses outros serão
capazes de suprir os vazios que a subjetividade colonialista, patriarcal etc. não é
capaz de preencher. No entanto, os "eus" que a obra faz surgir não borbulham o
tempo inteiro, sua vitalidade parece mais complexa do que essa imagem sugere,
não se trata de uma efervecência constante. Exemplo central disso, ao que parece,
é o relato performado por Vitória Jovem Xtravaganza que, escutando uma música
no seu celular, amarra o cadarço na sua bota e, embora passeie em seu discurso
por questões de vida e de morte, de repressão e de violência, também fala sobre
amor, sobre escutar uma música no
repeat
, sobre uma vida que se recusa a
colocar-se constantemente como uma efervecência constante, como uma
ebulição de palavras em profusão. Ao lema de Preciado poder-se-ia talvez
acrescentar, pensando no gesto deste relato, "não venho trazer o tempo inteiro
grandes intensidades". Com efeito, este é um dos gestos (quase explícitos) da cena
em questão. Vou apenas colocar uma bota, escutar uma música no
repeat
, e dizer
algumas coisas, que não serão apenas experiências impactantes ou bizarras, "não
vim aqui explicar nada de mórbido" (Preciado, 2020, p. 20). Nos momentos altos,
portanto (e este a nosso ver é provavelmente o mais alto deles)
Sem Palavras
parece ir além da sua própria formulação enquanto "manifesto" - recusa-se
inclusive a fornecer o tempo inteiro "palavras em profusão" e permite que aqueles
"a quem sempre foi impedida a fala e recusada a escuta" também tenham o direito
de estar
sem palavras
, quando este for o caso.
Temos a impressão de que a obra logra realizar essa ampliação de fronteiras,
e abre de fato horizontes onde em geral espaços binariamente fechados,
sobretudo quando olha para as vozes dissidentes, as escuta, as diz, as performa.
No entanto, quando ela olha para aqueles que "sempre estiveram sentados" em
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cima das palavras, parece haver certa tendência a reafirmar as estruturas como
elas já se apresentam de antemão.
O Outro é um Eu
Como se apontou uma tendência que talvez seja mais geral do que uma ou
duas obras, gostaríamos de indicar que não queremos com isso sugerir que se
trata de qualquer força totalizante, mas sim de uma estrutura ideológica
hegemônica, que tem contradições e que carrega consigo outros aspectos que são
o seu contrário. Poderíamos citar nesse sentido a - apontada por Bernardo
Carvalho - obra
Uma mulher pensando
. Dentre os muitos e muitos exemplos que
vão nessa direção, é interessante citar o filme
Marte Um
, de Gabriel Martins,
produzido pela
Filmes de Plástico
. O escolhido pelo Brasil para ser representante
do país no Oscar de 2023, sendo um filme capaz de sustentar-se em um mercado
relativamente grande, parece ser um exemplo eloquente de uma obra em que o
"outro" projetado pelo "eu" do sistema
neocolonial
6 (no caso, uma família negra
residente nos arredores de Belo Horizonte), longe de tomar para si a função de
preencher lacunas
, e nem colocando-se como contraponto do eu7, aparece sendo,
ele próprio,
um eu
(ou melhor, vários). Personagens que às vezes não sabem o que
fazer, às vezes recaem em seus vícios, às vezes conseguem superá-los, têm
sonhos (talvez) impossíveis, vivem vidas contraditórias e incertas, em suma, que
vivem como
eus
e não como
outros
. E, como eus, são incompletos e
permeados
por alteridades
. Se Lacan afirmou em
As Psicoses
que o
eu é um outro
, caberia
inverter a afirmação, no que, no entanto, ela precisaria ser dedobrada: o outro é
um eu (
e portanto é um outro para si mesmo
).
Se o momento que vivemos cria - nas suas reviravoltas neocoloniais - novas
demandas a serem cumpridas por outros imaginários, fantasiados (ou seja:
aprisionados em posições fixas) por um "eu" que busca novas formas de recriar o
mesmo esquema ideológico colonial, é também crucial frisar que este mesmo
momento também abre de fato espaço (abertura que foi conquistada na base da
6 Seguimos aqui o conceito de Horácio Araóz, por exemplo.
7 É evidente como, na anedota narrada em relação à diretora europeia, a função delegada ali ao "outro" (a
indígena militante da Amazônia) é explicitamente a de ser o contraponto do "eu".
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luta) para que o dito "outro" se coloque como o que sempre foi: um "eu"8 - e assim,
mais uma vez, resista às tendências múltiplas de re-enquadrá-lo nas demandas
que querem torná-lo mero anteparo de uma racionalidade extrativista que procura
se reafirmar.
Por fim, cabe dizer que focamos as análises deste artigo em situações
relacionadas ao campo da arte que Foster denominara
etnográfica
e seus
desdobramentos, mas o mesmo risco poderia ser analisado no campo do que ele
denomina como
arte abjeta
. No dois casos, que, nos seus desdobramentos,
parecem seguir sendo os dois campos mais frutíferos e dominantes nas artes,
parece ser necessário questionar as obras em relação à tendência de que elas
imaginem um lugar fixo para a verdade, em geral buscada em alguma espécie de
fora
(fora da consciência patriarcal; fora da subjetividade colonial). Neste caso,
talvez, ao contrário de procurar não jogar fora o bebê junto com a água do banho,
parafraseando o chiste de Slavoj Zizek, seria o caso de
garantir que o bebê fosse
jogado fora, para ficar apenas com a água suja
. Cabe
proteger
o sujeito anticolonial,
anticapitalista, antimachista, em suma divergente, justamente de
ter que ser
perfeito
; cabe garantir que ele tenha o direito a ser falho, incompleto, dubitativo,
incerto, que ele não seja um eu puro, mas permeado por outros - este, o legado
que vale a pena reter da racionalidade chamada ocidental: sua falibilidade. Estar
sem palavras tem sido, sim, um privilégio daqueles que as detém, mas esta
afirmação precisaria ser feita sem ironia: nossa tarefa é tornar este privilégio um
direito universal9.
8 Cremos que a essa altura já está nítido que o que questionamos neste artigo é muito menos a posição do
artista, e menos ainda a posição dos sujeitos em si, posto que é evidente que aqueles que foram
aprisionados como "outros" pela razão colonial nunca o foram de fato, sempre tratou-se subjetividades
que nunca deixaram de produzir visões de mundo complexas e singulares, arte, literatura, filosofia etc.
Como coloca Achille Mbembe, "Apesar do terror e da reclusão simbólica do escravo, ele ou ela desenvolve
pontos de vista diferentes sobre o tempo, o trabalho e sobre si mesmo. [...] Tratado como se não existisse,
exceto como mera ferramenta e instrumento de produção, o escravo, apesar disso, é capaz de extrair de
quase qualquer objeto, instrumento, linguagem ou gesto uma representação, e estili-la" (Mbembe, 2018,
p. 30). Desde a situação extrema da objetificação do outro, tratado como coisa, na escravidão,
evidentemente que isso não redunda numa coisificação de fato, ou seja, o "outro" nunca deixou de ser um
"eu". O que se quer ressaltar neste texto é justamente a forma como o sistema neocolonial de circulação
das artes encontra formas de, mesmo sob um discurso aparentemente anticolonialista e anticapitalista,
recriar-se no sentido de conservar o lugar privilegiado de um "eu" colonialista - ainda que embebido das
mais belas e humanistas intenções.
9 Como esboçado acima, creio que Sem Palavras, nos seus melhores momentos, fez exatamente isso:
alargou o espaço da dúvida, da palavra incerta, por vezes opaca, por vezes silenciosa, para vozes que não
costumam ter direito a elas. A obra, nesse sentido, não busca apenas as palavras em profusão, mas
também os silêncios, a falta de palavras, daqueles aos quais sempre foi impedida a fala.
O outro é um eu
Alexandre Dal Farra
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-21, jul. 2024
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Referências
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Sem Palavras
. São Paulo: Cobogó, 2023.
ARAÓZ, H.
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. São Paulo: Ed. Elefante, 2020.
BATESON, G., Naven, São Paulo, EDUSP, 2018.
CARVALHO, B. Obras na Bienal que buscam reparação histórica recusam
contradições. São Paulo.
Folha de São Paulo
, 06 out. 2023, disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2023/10/obras-da-
bienal-que-buscam-reparacao-historica-recusam-contradicoes.shtml
CESARINO, L.
O mundo do avesso
. São Paulo: Ed. Ubu, 2022.
FOSTER, H.
O que vem depois da farsa?
. São Paulo: Ed. Ubu: Edição Kindle 2021.
FOSTER, H.
O retorno do real
. São Paulo: Ed. Ubu: Edição Kindle, 2017.
LACAN, J. (1955-1956).
As psicoses
. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
MBEMBE, A.
Necropolítica
. São Paulo: N-1 edições, 2018.
PRECIADO, P. B.
Um apartamento em Urano
. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
Recebido em: 02/05/2024
Aprovado em: 17/06/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Programa de Pós-Graduação em Teatro
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