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O excesso não deixa a poesia pousar: o teatro
anfíbio e a dimensão política da arte
Duda Woyda
Djalma Thürler
Para citar este artigo:
WOYDA, Duda; THÜRLER, Djalma. O excesso não deixa a
poesia pousar: o teatro anfíbio e a dimensão política da arte.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0112
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O excesso não deixa a poesia pousar: o teatro anfíbio e a dimensão política da arte
Duda Woyda | Djalma Thürler
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-24, jul. 2024
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O excesso não deixa a poesia pousar: o teatro anfíbio e a dimensão política da arte1
Duda Woyda2
Djalma Thürler3
Resumo
O texto levanta questões sobre diferentes significados e variações que a expressão teatro
político pode gerar na cena teatral, a partir de duas noções operativas: teatro anfíbio e ações
estético-políticas, examinando a sua aplicação na Teoria das Artes Cênicas e as suas
implicações para a construção de uma história recente do teatro brasileiro. Através de uma
abordagem dialógica com o movimento
queer
e estudos decoloniais, o artigo combina
diferentes análises literária, teatral, sociológica, política para produzir um texto
interdisciplinar na encruzilhada do teatro com as ciências humanas. Por fim, o texto permite
fazer justiça à pluralidade de produção do teatro político contemporâneo.
Palavras-chave
: Teatro brasileiro. Teoria teatral. Teatro anfíbio. Estético-política.
Excess doesn't let poetry land: amphibious theater and the political dimension of art
Abstract
The text raises questions about the different meanings and variations that the expression
'political theater' can generate in the contemporary theater scene, based on two operative
notions: amphibious theater and aesthetic-political actions, examining their application in the
Theory of Performing Arts and their implications for the construction of a recent History of
Brazilian theater. Through a dialogical approach with the queer movement and decolonial
studies, the article combines different types of analysis - literary, theatrical, sociological,
political - to produce an interdisciplinary text at the crossroads of theater and the human
sciences. Finally, the text does justice to the plurality of modes of production in
contemporary political theater.
Keywords:
Brazilian theater. Theatrical theory. Amphibious theater. Aesthetic-politics.
El exceso no deja aterrizar a la poesía: el teatro anfibio y la dimensión política del arte
Resumen
El texto plantea cuestiones sobre los diferentes significados y variaciones que la expresión
"teatro político" puede generar en la escena teatral contemporánea, a partir de dos nociones
operativas: teatro anfibio y acciones estético-políticas, examinando su aplicación en la Teoría
de las Artes Escénicas y sus implicaciones para la construcción de una historia reciente del
teatro brasileño. A través de un enfoque dialógico con el movimiento queer y los estudios
decoloniales, el artículo combina diferentes tipos de análisis -literario, teatral, sociológico,
político- para producir un texto interdisciplinario en la encrucijada del teatro y las ciencias
humanas. Por último, el texto hace justicia a la pluralidad de modos de producción del teatro
político contemporáneo.
Palabras clave
: Teatro brasileño. Teoría teatral. Teatro anfibio. Estética-política.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Ronaldo Pelicioli. Graduação em Letras Clássicas e
Vernáculas (UFBA). Mestrado em Letras e Linguística (UFBA).
2 Pós-doutorando Júnior (CNPq Nº 32/2023 - PDJ 2023). Doutorado em Cultura e Sociedade pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Mestrado em Cultura e Sociedade pela UFBA. Integrante e Pesquisador da ATeliê
voadOR Teatro https://www.atelievoadorteatro.com.br dudawoyda@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3308522424246371 https://orcid.org/0000-0003-0561-2666
3 Doutorado em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestrado em Ciência da Arte pela UFF.
Professor Permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e Professor
Associado IV do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências (IHAC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Integrante e Pesquisador da ATeliê voadOR Teatro. djalmathurler@ufba.com.br
http://lattes.cnpq.br/5632978212911927 https://orcid.org/0000-0002-9161-0300
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Antes de iniciar, gostaríamos, à guisa de introdução, revelar o que
entendemos de teoria do teatro e qual poderia ser a nossa contribuição para o
debate: o que é que faz com que uma determinada afirmação ou argumento sobre
o teatro seja ‘teórico’?
Segundo a compreensão de Christopher B. Balme (2008), em termos da sua
etimologia, ‘teatro’ e ‘teoria’ estão intimamente relacionadas, ambas têm as suas
raízes na palavra grega theôría (θεωρια), que tem dois significados bastante
diferentes: pode significar observação, exame, ver ou contemplar e, mais
concretamente, ser um espectador num festival ou numa representação teatral.
Por outras palavras, o termo grego estabeleceu um campo semântico que ligava
tanto a reflexão teórica abstrata como a observação teatral direta. Carlson ratifica
o primeiro significado quando afirma que o termo ‘teoria do teatro’ pode ser
entendido como
a exposição dos princípios gerais relativos aos métodos, objetivos,
funções e características dessa forma de arte específica. Assim, por um
lado, ela se distancia da estética que lida com a arte em geral e, por
outro, da crítica que se dedica à análise de obras e produções
particulares . Obviamente, um certo grau de sobreposição nessas
categorias é inevitável. A teoria do teatro raramente ou nunca existe em
forma “pura”. As observações concernentes ao teatro devem enraizar-se
nas de outras artes (ou da arte em geral) ou, pelo menos, relacionar-se
com elas. Dessa forma, a teoria se aproxima da estética. Os princípios
gerais, o mais das vezes, serão deduzidos de exemplos concretos de
peças e produções, bem como ilustrados por eles de sorte que a teoria
se associe à crítica e à análise (Carlson, 1997, p. 9).
Longe de ser uma área puramente histórica, quando o estudo do teatro
passou a ser considerado como disciplina independente nas décadas de 1960 e
1970, sua teoria começou a redefinir-se também como uma disciplina preocupada
com a compreensão da prática artística contemporânea. O domínio do texto da
peça e do dramaturgo, particularmente nas teorizações do teatro, foi se
desvanecendo lentamente e o foco centrando-se na encenação, uma linguagem
exclusiva do teatro, complexa e
sui generis.
A consideração de Josete Féral em seu texto “Que peut (ou veut) la théorie
du théâtre? La théorie comme traduction” (2001) de que a abordagem teórica, mais
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acentuadamente no campo do teatro, tem gerado receio, desconfiança e medo,
também, é importante para a leitura deste texto. Para a autora, muitas vezes, a
utilidade de elaborações teóricas sofisticadas e sistemas complexos que
destrincham e analisam o fenômeno teatral, em seu conjunto, estão bastante
distantes das abordagens e conceitos que estão na origem do trabalho criativo,
razão que revelaria a impotência da teoria para lidar com o trabalho artístico.
Concordando com a
loi de la finitude humaine
, de Féral (2001), nossa aventura
no domínio teórico neste texto quer examinar e levantar certas questões sobre
variações do político na cena teatral contemporânea, a partir de duas noções
operativas: o teatro anfíbio e as ações estético-políticas, não sem a humildade de
reconhecer que nunca o terá completamente coberto e que, inevitavelmente,
escapará toda uma rede de palavras, conceitos, estruturas e modos de pensar.
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O Brasil e outros países ibero-americanos dos anos 2000 assistiram,
influenciados por uma convivência cada vez mais próxima com o conhecimento
do Sul, com livros e artigos traduzidos, com o surgimento de práticas ativistas e,
em geral, com um interesse pela realidade em todas as suas manifestações, ao
surgimento de formas teatrais baseadas na renovação da escrita dramática e das
práticas cênicas, levando artistas, realizadores e pesquisadores a repensar, mais
uma vez, nas complexas ligações entre texto e palco, dentro de um vasto e
complexo território artístico em que existe uma tensão permanente entre
realidade e ficção, passado e presente, indivíduo e comunidade, íntimo e político,
textual e ritual.
Em torno de questões de identidade e comunidade, por exemplo, vozes estão
sendo levantadas para denunciar, notadamente, a discriminação de gênero e etnia.
Assim, o fenômeno
Black Lives Matter
deu origem, nos Estados Unidos, ao
movimento
We See You, White American Theater
(WSYWAT), que tenta propor
alternativas antirracistas à indústria teatral americana.
Em Paris, em 2018, ocorreu a controvérsia em torno do espetáculo
Kanata
, de
Robert Lepage, que deveria retratar a história do povo indígena sem um ator
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indígena no palco. Os movimentos
#MeToo
,
#NiUnaMenos
e os muitos
pañuelazos
,
intervenções urbanas e outras formas de protesto cívico na linha do coletivo
chileno LASTESIS4 (
Un violador en tu camino
) deram um novo impulso ao
cruzamento entre estética e política, suas conjunções e desvios, a partir dos quais
se pode pensar a cultura e as sociedades contemporâneas.
Para Paulo Garrido Castellano e Paulo Raposo (2019, p. 8), “ao longo das
últimas décadas consolidou-se um interesse particular por formas artísticas que
tentavam ir além da expressão ou representação de conteúdos e temas políticos
para pensar em intervir de forma concreta e directa na sociedade”. Rimas Tuminas,
diretor artístico do Teatro Vakhtangov, argumenta que o teatro político
“simplesmente não existe. Absolutamente não. Ele surge de algo que se chama
teatro político, social, intelectual, proletário, são todas as definições que nasceram
fora das entranhas do próprio teatro” (Shestakova, 2012). Essas declarações nos
levam ao entendimento que, ao falar como o político é incorporado nas práticas
artísticas e nos contextos circundantes, nas decisões de especialistas, nos gestos
curatoriais, nos textos críticos, não estamos a falar de um gênero unidimensional,
mas carregado de contradições:
O sentido dado à noção de “teatro político” nesta primeira linha de
pensamento pode, em última análise, ser abordado através das várias
expressões que a clarificam, matizam ou mesmo corrigem. Algumas
destas noções referem-se à função do teatro e ao seu modo de ação
(“teatro agitação-propaganda”, “teatro militante”, “teatro de intervenção”),
outras dirigem-se ao público (“teatro popular” no sentido de que é feito
por e para as classes trabalhadoras), outras ainda se centram sobretudo
nas formas estéticas implicadas pela nova função do teatro (“teatro
documental”)5 (Kim, 2007, p. 16-17).
Por trás da obviedade da fórmula ‘todo o teatro é político’, emerge uma
realidade complexa, ambivalente e conflituosa6: embora possa ajudar a consolidar
4 LASTESIS foi criado por Sibila Sotomayor, Dafne Valdés, ambas atrizes e professoras, Paula Cometa, diretora
de arte, e Lea Cáceres, estilista e figurinista no ano de 2018 em Valparaíso, Chile.
5 L’acception que prend dans cette première lignée la notion de “théâtre politique” peut en définitive être
approchée par le biais des différentes expressions qui viennent la préciser, la nuancer voire la corriger.
Certaines de ces notions renvoient à la fonction du théâtre et à son mode d’action (“théâtre d’agit-prop”,
“théâtre militant”, “théâtre d’intervention”), d’autres visent le public (“théâtre populaire” au sens il serait
fait par et pour les classes populaires), d’autres encore ciblent prioritairement les formes esthétiques
qu’implique la nouvelle fonction du théâtre (“théâtre documentaire”). (Tradução nossa)
6 O tulo do livro de Olivier Neveux, “Contre le théâtre politique”, o deixa de ser uma surpresa, sobretudo
para aqueles que leram suas obras anteriores, incluindo “Théâtre en luttes” e “Politiques du spectateur”,
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e legitimar o regime de poder em vigor (enquanto, inicialmente, era um
instrumento da democracia ateniense, na Idade Média tornou-se um instrumento
de regulação social, por exemplo), constitui, também, um espaço de liberdade e
protesto, tanto em situações autoritárias como democráticas.
Gostamos de pensar a partir da ideia trazida por Pol Pelletier, no prefácio do
seu “La Robe blanche” (Pelletier, 2015) o seu trabalho que mais combina,
perfeitamente, arte e política que diz que cada artista está situada em relação
ao poder, quer o conheça ou não, na forma como apresenta o seu mundo7. É
devido ao campo altamente dinâmico e diferenciado, bem como à diversidade de
atores e atrizes que compõem o campo teatral e, também, à diversidade de suas
concepções de teatro, arte, cultura e política, que a qualidade política do teatro
deve ser historicizada e contextualizada a fim de ser compreendida.
A fim de pensar nas diferentes vozes/vias que são teorizadas e praticadas
atualmente, é importante evitar uma abordagem teleológica, baseada num único
ideal de ‘teatro político’ e escapar da armadilha de opor um teatro político a um
teatro que não é político ou a um teatro político de forma diferente, para eludir
que a investigação não duplique hierarquias de reconhecimento e legitimidade
institucional que atualmente classificam essas diferentes concepções no campo
do teatro.
Portanto, entre os diferentes significados que a expressão incerta ‘teatro
político’ pode gerar, em um primeiro movimento tático, vamos combinar
diferentes tipos de análise literária, teatral, sociológica, política para produzir
um texto interdisciplinar na encruzilhada do teatro com as ciências humanas, ao
nos debruçarmos sobre o conceito de teatro anfíbio8, termo emprestado da
literatura de Silviano Santiago que nos permite fazer justiça à pluralidade de
modos de produção do teatro político contemporâneo.
contudo, ironicamente, continua suas reflexões condenando não tanto o teatro político e os seus falsos
sinônimos, mas o uso repetido da expressão “todo teatro é político”, que a esvazia de toda a substância.
7 Tout art est politique. Tout artiste se situe par rapport au pouvoir, qu’il-elle le sache ou non, dans sa
façon de présenter son monde. (Tradução nossa).
8 A primeira vez que a ATeliê voadOR utilizou a expressão “teatro anfíbio” foi em 2014. De certo modo esse
texto é uma dívida de aprofundamento sobre essa categoria.
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Em dezembro de 2021, durante o Festival Niterói em Cena, ocorrido na cidade
de Niterói (RJ), fomos convidados a comentar criticamente 14 esquetes ou cenas
curtas. Esquetes, quase sempre, são cenas baseadas em textos que possam ser
encenados em vários espaços, com meios técnicos simples e que colocam os
atores no centro da peça, em estreita relação ou mesmo proximidade com o
público. Ao final de três noites de apresentações, constatamos que o discurso
dominante daquelas cenas era sustentado pelo mito contemporâneo da chamada
social turn
, um teatro esquematicamente ético de questionamento político e
intervenção social, porta-voz de certo número de reflexões e demandas que
vieram à tona nos últimos tempos e tão apreciado na atualidade pelas instituições.
Afinal,
[...] o que está fora de qualquer dúvida é o facto de hoje em dia o âmbito
da arte socialmente comprometida ter deixado de ser um espaço
marginal dentro do panorama das artes contemporâneas para ser
adoptado por museus e pela academia como parte de sua linguagem de
comunicação com a sociedade (Castellano; Raposo, 2019, p. 10).
Nesse sentido, “arte socialmente comprometida, arte colaborativa, arte
participativa, arte relacional, arte contextual ou novo gênero de arte pública”
(Castellano; Raposo, 2019, p. 9), ou ainda, teatro documental, épico, participativo,
ativismo artístico, artivismo: a ideia de que a arte e a cultura são os últimos
baluartes contra a barbárie foi a estética que dominou, inegavelmente, o palco do
festival em Niterói.
Em todos os casos, esse teatro é ordenado por consenso e, em suas
condições atuais, está empenhado em um
trop de réalité
, para utilizar a expressão
de Annie Le Brun (2018), um realismo febril, “muitos objetos, muitas imagens,
muitos sinais que se neutralizam uns aos outros em uma massa de insignificância
[...]”9 (Le Brun, 2018, p. 9). Ele se contenta em observar o que é e em adaptá-lo
numa forma mecânica de pensar a sociedade, reduzindo-o a uma função social
reparadora, de luta sobre a dominação e a colonização das nossas sociedades,
contra as hierarquias solidificadas do mundo social que satura a informação e
9 trop d’objets, trop d’images, trop de signes se neutralisant en une masse d’insignifiance. (Tradução nossa)
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abafa todas as possibilidades críticas. Um teatro que, em seus arranjos ‘estéticos-
políticos’, compreende a arte como um projeto para transformar o ‘cistema’
(Vergueiro, 2015) e propõe uma apreensão imediata e facilitada da realidade, que
estranhamente incita os espectadores a tornarem-se “participantes” nas
experiências que lhes são oferecidas, quase sempre tratadas em nível sociológico
e político e não em nível estético.
As formas dominantes prevalentes das cenas do referido festival
caminharam neste diapasão, o da dissolução do teatro em pedagogia limitando-
se, quase sempre, à concepção funcionalista da arte, à instrumentalização da
representação teatral ao seu valor de relato, sendo o teatro documental reduzido
a um teatro documentado, sob o risco de estereotipagem, de uma convulsão sócio
estética, um impasse sobre os meios específicos do palco, os meios expressivos
e procedimentais da encenação. Para Longoni (2010) trata-se de “producciones y
[las] acciones, muchas veces colectivas, que abrevan en recursos artísticos con la
voluntad de tomar posición y de incidir de alguna forma en el territorio de lo
político” (Longoni, 2010, p. 1).
Assistimos, então, a uma
culture sparadrap
, conceito que, nas palavras de
Jeudy (2000), descreveria a tendência em apoiar operações culturais cujo objetivo
é curar a fratura social, marcadas por um realismo pobre, estritamente figurativo
e incapaz de rever criticamente os meios e lugares comuns que utilizam. Assim,
um conjunto complexo de questões e tensões como raça, gênero e sexualidade é
confrontado em suas múltiplas facetas sócio-históricas e políticas. De acordo com
esse ponto de vista, a dimensão subversiva da criação artística, quando submissa
aos fins sociais reparadores, perde a importância que lhe é atribuída, aliás, uma
vocação a serviço da política que os poderes públicos lhe atribuem cada vez mais
abertamente e que um exame das políticas culturais atuais não contradiria isso.
A intersecção entre arte e política no teatro anfíbio afasta-se da ideia mais
convencional de arte política. Ao contrário, sua proposta é pensar nos vínculos
entre arte e política como necessariamente conflituosos, complexos, com fortes
tensões e transbordamentos. O teatro anfíbio, para além de tomar nota ou partido
das batalhas do seu tempo e se posicionar à esquerda (Thürler et al, 2019) um
teatro que não tomar partido equivale a ficar do lado do mais forte, opressor da
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sociedade –, não subordina a experiência estética à expressão de um objetivo
social e político de integração, rejeita a mera concepção instrumental de tentar
refrear os dramas sociais a todo custo, quase sempre destacando o lado da
‘espetacularização’ das intervenções políticas, utilizando expressão de Chiara
Bottici (2014). Além disso, reduz os debates à sua expressão mais simples, “uma
linguagem quase exclusivamente ética e ideológica e claramente hipervalorizada”
(Castellano; Raposo, 2019, p. 10).
Esse teatro ou essas ‘ações estético-políticas’, em grande medida, numa
confusão entre ‘pedagogia’ e ‘política’, dizem sobre política apenas o que
sabemos sobre ela, observam a política da mesma forma que aqueles que
assistem a manifestações a partir dos palanques, uma espécie de profissional da
política. Aqui, face ao mundo, às suas crises e ao seu futuro, é inventado um teatro
que reage, denuncia, explica, ilustra, propõe: esse teatro é político. No entanto,
nem o teatro nem a política são levados suficientemente a sério.
A noção de uma ‘estética política’ ou de uma ‘ação estético-política’ foi
discutida em alguns textos e ocasiões. Victorio Filho, Guéron e Puga (2016), a partir
de uma “caixa de ferramentas teóricas”, aproximam a ação estético-política de
uma intervenção artística ou ainda falam em resistências estético-políticas. Eles
relacionam a constituição estética da política e o efeito inexoravelmente político
da arte ao analisarem o caso dos manifestantes que “entraram na Câmara dos
Vereadores [do Rio de Janeiro] e interviram numa pintura, desenhando chifres na
cabeça do Coronel Antonio Moreira César, retratado pelo pintor italiano Gustavo
Dell’Ara”10 (Victorio Filho, Guéron; Puga, 2016, p. 379-380).
Garrossini, Macêdo e Maranhão (2016) falam da intervenção realizada pelo
coletivo Transverso, de Brasília, a partir do paradoxo batismo da ponte-
monumento projetada por Oscar Niemeyer e inaugurada em 1973 que, ao invés de
ser chamada de Ponte Monumental de Brasília, como desejava o arquiteto, foi
batizada em homenagem ao marechal Arthur da Costa e Silva, que não ocupava
mais a presidência da República. A intervenção, que ficou conhecida como o
10 O Coronel Moreira César, que era conhecido como Coronel Corta-Gargantas, durante muitos anos foi nome
de rua na cidade de Niterói, no Rio de Janeiro. Em 13 de maio de 2021, foi aprovada pela Câmara Municipal
de Niterói a troca do nome da Rua Coronel Moreira César, em Icaraí, para Rua Ator Paulo Gustavo.
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“Rebatismo da Ponte Costa e Silva”, tratava de
[...] uma simples cartolina fixada em uma das placas de acesso à ponte
símbolo de Brasília modificava o “Costa” do marechal por “Bezerra”, em
referência ao sambista boêmio pernambucano “Bezerra da Silva”. Bezerra
ficou popularmente conhecido por representar o samba e a
malandragem dos morros cariocas. Dois extremos se invertiam na ação,
indo do símbolo da repressão ao símbolo da cultura popular e
transgressora (Garrossini; Macêdo; Maranhão, 2016, p. 229).
Nesse caminho de compreensão, Icaro Andrade, na matéria “A boiada da B3:
uma análise estético-política”, embora não desenvolva sua compreensão sobre a
expressão ‘estético-política’, faz eco com os exemplos anteriores ao falar da
intervenção realizada pelos grupos Juventude Fogo no Pavio e Movimento Raiz da
Liberdade junto à réplica
kitsch
do touro de Wall Street, no centro financeiro da
cidade de São Paulo. O protesto, muito divulgado na mídia televisiva e impressa,
estampava um cartaz com o dizer “FOME” no corpo do touro.
Para Jorge Vasconcellos e Mariana Pimentel, que formam o Coletivo 28 de
maio,
[...] uma ação estético-política é uma tomada de posição diante da arte
contemporânea, tal qual estamos fazendo hoje. É [...], antes de tudo
anticapitalista, ou seja, é uma ação contra o mercado de artes, uma
contra-arte. Então estamos nos inserindo em pleno debate com o
sistema de artes. Nós não estamos ignorando o sistema de artes. Não
estamos ignorando a história da arte, as teorias da arte, uma filosofia da
arte, ou uma estética, quaisquer que sejam elas. Nós estamos
provocando um debate a partir das questões hoje que se colocam na
urgência da nossa atualidade. Que urgência ou urgências seriam essas?
Não importa mais se somos ou não artistas, ou se isto é arte ou não? Mas
quais as redes construídas, as zonas de risco e os efeitos quaisquer que
são possíveis de causar e de nos afetar: nós, os outros e toda uma
comunidade por vir (Coletivo 28 De Maio, 2017, p. 193 grifo nosso).
E concluem, afirmando em caixa alta que “TODA E QUALQUER PESSOA É
CAPAZ DE FAZER UMA AÇÃO ESTÉTICO-POLÍTICA” (Coletivo 28 De Maio, 2017, p.
193), ou seja, a ação estético-política, na compreensão dos autores, abre caminho
para criações não ortodoxas e autodidatas no campo artístico, “que adota[m] mais
a forma de um processo de troca de ideias e experiências em vez de propor-se
enquanto objeto ou obra” (Castellano; Raposo, 2019, p. 8). Isso se aproxima do que
Danner (2020) pensou quando alcunhou a expressão “ficções estético-políticas
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vivas”, que seriam quando as identidades fora das classificações binárias de
gênero, que gozam de menor representação cultural,
[...] por meio do corpo, do sexo, do gênero, da cor, dos trejeitos, das
formas de ser, estar, amar e de resistir, implodem a submissão da cultura,
da política, da linguagem e da história a uma caricatura de biologia e às
fantasmagorias essencialistas e naturalizadas em torno à etnicidade, à
racialidade, à sexualidade e ao gênero (Danner, 2020, p. 95).
A ação estético-política, ao renunciar ou se afastar dos “projetos de
linguagem propriamente artística ou estética” (Castellano; Raposo, 2019, p.10), se
asfixia do presente em uma cena de reação rápida ontem no jornal, hoje na cena
– e, em seu desejo de capturar a realidade, transforma a lógica de sua cena numa
rotunda, quando poderia ser uma encruzilhada.
4
Desse modo, o teatro anfíbio não é apenas um projeto político dentro da
arte, que a usa como ferramenta. Antes, ele é político de outra maneira, para além
do clima dos anos 60, quando tudo era político. Esse tipo de teatro demonstra
preocupações e exigências estéticas e se interessa em trabalhar no que o teatro
e a política podem produzir um para o outro, “ressituando-os”, redefinindo-os e,
para tanto, se abre para outras possibilidades de alianças. Ele não se interessa
pelo imperativo político da prática e produção teatral, frequentemente limitada a
exortações muito gerais e consensuais e a dispositivos simplistas de certas formas
documentais contemporâneas, mas é inseparável de certa responsabilidade
histórica.
O teatro anfíbio é um teatro que se define em oposição ao teatro burguês e,
por consequência, à sociedade burguesa. Motivado por exigências, pela busca de
uma ética
queer
11 a partir da preocupação com as formas, os dispositivos e os
efeitos solicitados são, em si, sua própria despolitização, um espaço que funciona
“como uma política de subjetivação dissidente” (Preciado, 2018, p. 16). Nisso, o
11 A ideia de uma ética
queer
foi melhor desenvolvida no texto “Masculinidade contemporânea: um desafio
para toda a sociedade” (Thürler, 2022b). De modo resumido, a ética
queer
é a promoção de novas
mentalidades em relação às dissidências de nero e alerta que é cada vez mais importante para a saúde
física e social e bem-estar das pessoas variantes do gênero que existam recursos culturais e pedagógicos
para que a sociedade compreenda e se envolva com essas pessoas nos seus próprios termos e de forma
não cruel, tornando visíveis as experiências subjetivas dos ‘esquecidos’, dos corpos abjetos, que são também
os ‘dominados’.
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sentido da beleza é inseparável de um certo sentido de humanidade ou, nas
palavras de Peter Brook (2002, p. 52), “o ponto de encontro entre as grandes
questões da humanidade a vida e a morte e a dimensão artesanal,
extremamente prática”. Por isso, confronta a questão política através da estética
que constrói, “é a própria estética que se torna política e contestadora”12 (Arrigoni,
2017, p. 42), ou seja, a questão não é tanto revelar ou desvendar o mundo real, mas
compor, criar um teatro que remodele a vida, não se limitando a representá-lo. Ao
contrário, suas obras são atravessadas pelo princípio da indecidibilidade de seus
efeitos sobre o espectador, ao qual se opõem à ideia do trabalho estético como
deslocação do quadro de percepções de dados comuns, abrindo “passagens
possíveis para novas formas de subjetivação política” (Rancière, 2012, p. 81).
Portanto, não é no seu conteúdo, mas, sim, na sua forma que o significado político
do teatro anfíbio é determinado. Brook, ao falar da
tournée
europeia de “Titus
Andonicus”, de 1955, afirma que o público acadêmico não era o único que
comparecia ao teatro e que,
[...] por mais abstrata, estilizada, romana e clássica que ela [a peça] possa
parecer, era evidente que, para todo o público, ela tratava das mais
modernas emoções: a violência, o ódio, a crueldade, a dor e isso numa
forma que, por não ser realista, transcendia a história e, para cada
auditório, tornava-se inteiramente abstrata e, por isso, totalmente real
(Brook, 1962, p. 7).
Assim, entre a sua dimensão política e artística, ou em sua somatória original
entre Arte e Política (Thürler, 2014), o teatro anfíbio “suspende em um relance de
epifania a opacidade da percepção cotidiana que relega o objeto à esfera do
utilizável, do meio para consumar um fim” (Bosi, 2021, p. 18). Além disso, concorda
com a definição da primeira pensada por Neveux, que política “é o que os
indivíduos produzem para se libertarem da tirania da realidade”13 (Neveux, 2013, p.
6) e propõe um teatro em que a política seja, de fato, política e não militante ou
intervencionista, em que “a ideologia prevalece sobre a estética” (Arrigoni, 2017, p.
42) ou que o político não colonize o estético, parafraseando Han (2020).
Enquanto anfíbio, portanto, híbrido entre teatro e política, apropriando-nos
12 c’est l’esthétique elle-même qui devient politique et contestataire. (Tradução nossa)
13 elle est ce que produisent les individus pour s’affranchir de la tyrannie de la réali. (Tradução nossa)
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13
da expressão de Silviano Santiago, esse teatro reconhece que não há contradição
entre exigência artística e contribuição para o bem comum, uma vez que a
“atividade artística do escritor não se descola de sua influência política” (Santiago,
2004, p. 15), porque
[...] anfíbio define simultaneamente a condição de pertencimento a uma
determinada ordem discursiva (como a de ficcionista, por exemplo) o
viver dentro anfíbio e também a condição de estar fora, de ser outro,
de transitar por outros territórios habitar o entrelugar de sua própria
constituição de sujeito polivalente, estabelecendo mesclas, hibridismos,
contaminações. Anfíbio, como desdobramento do entrelugar, é a marca
daquele constituído pelas trocas, pela multiplicidade, pela diversidade de
registros, valores, temporalidades e espacialidades (Hoisel, sem data,
s./p.).
O teatro anfíbio, em sua simultaneidade de pertencimento, reivindica essa
dupla referencialidade, implica essa dupla operação constante, uma vez que
pretende inscrever-se na política e na estética teatral. Na esteira de Ariane
Mnouchkine (1939), cujas práticas do teatro estão ligadas não a uma forte
estética, mas ainda mais a um profundo compromisso social (Féral, 1998),
ambiciona, sem qualquer filiação partidária, participar na reconciliação social,
encontrar formas livres de consciencialização a partir de dúvidas e perguntas
sobre normas e verdades, sobre a realidade social, econômica e política que não
conhecemos ou fingimos não conhecer, se comprometendo com a produção de
outros pontos de vista, outros imaginários que não os historicamente dominantes.
Entendendo que seja imperativo tomar parte na sua própria história, afinal,
segundo Mnouchkine, citada por Féral, “se somos vítimas do nosso tempo, não
devemos aceitá-lo, não na sua forma medíocre, cínica ou individualista”14
(Mnouchkine
apud
Féral, 1998, p. 2), o teatro anfíbio quer produzir um efeito político
no público, propor experiências perturbadoras, contraditórias ou antagônicas à
lógica da ordem, da razão do mundo e da dominação da empresa colonial e
imperialista.
Junto a Rancière (2012), o teatro anfíbio apresenta a realidade que o público
não sabe ver, mas também a realidade que o público não quer ver, objetivando
14 Je subis mon époque. Je ne suis pas censée m’y plier, pas dans ce qu’elle a de médiocre, ou de cynique
ou d’individualiste. (Tradução nossa)
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14
“sempre mostrar ao espectador o que ele não sabe ver e envergonhá-lo porque
ele não quer ver” (Rancière, 2012, p. 32), mas sempre atestando a liberdade total
de expressão artística que, longe de distanciar o espectador, deve ir em direção e
de encontro a ele, ao público seu destino e sua razão –. Desse modo, sem o
didatismo do utilitarismo estético-político ou lições assertivas, o teatro anfíbio
aposta que os desvios da dramaturgia contemporânea (Sanches, 2016), o jogo com
códigos ou a elaboração de dispositivos cênicos aparecem como as condições de
uma verdadeira emancipação do espectador, cuja inteligência, sensibilidade e
imaginação são, então, solicitadas. De modo anfíbio, “o espectador também age,
tal como o aluno ou o intelectual. Ele observa, seleciona, compara, interpreta.
Relaciona o que vê com muitas outras coisas que viu em outras cenas, em outros
tipos de lugares. Compõe seu próprio poema com os elementos do poema que
tem diante de si” (Rancière, 2012, p. 17).
Enquanto a arte social ou a ação estético-política, à margem da prática teatral
profissional, está voltada a uma arte cidadã em suas funções cívica e terapêutica,
empenhada em criar ações artivistas e culturais essencialmente preocupadas com
a pacificação social que coloniza o estético, cujo fim e destino é resolver os
sucessivos danos das políticas neoliberais dos últimos anos e acaba por “funcionar
como um puxadinho assistencialista a serviço de um estado falho que não garante
a todos os cidadãos os seus direitos básicos” (Carvalho, 2023a, s./p.), o teatro
anfíbio se coloca contra as facilidades univocais de um teatro que sublinha o
espaço fatal do significante que, em aliança com a vocação social, impregna
poderosamente a relação que os artistas têm com a ficção e a dimensão política
do teatro contemporâneo, o que nos leva a repensar a própria definição da
presença cênica nesse tipo de cena.
Enquanto, no primeiro, a vítima se transforma num atuante, substituindo a
miserabilidade da assistência por um discurso de responsabilidade e autonomia;
no segundo, pela compreensão de Erika Fischer-Lichte, o corpo do ator é visto
como um signo duplo (o signo de um signo), que “pode muito bem ser substituído
por outro corpo ou objeto, assim como qualquer objeto material pode ser
substituído por qualquer outro objeto ou corpo humano” (Fischer-Lichte, 2004
apud
Osminkin, 2020). Assim, vislumbra-se a dimensão política do trabalho do/da
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15
ator/atriz que invoca a experiência de um novo corpo, um “corpo perdido pela
separação radical entre o sujeito e a natureza” (Limongi, 2009, p. 124), corpo de
fundo infinito, sem órgãos, liberado de seus automatismos, de uma
physis
que
aspira ‘dançar às avessas’, como pensou Artaud e que transforma o palco em um
[...] espaço privilegiadíssimo porque garante a cada um de nós aquilo que
alimenta a essência do que somos a despeito de qualquer diferença que
haja entre nós: a construção conjunta e comunitária de imaginários, de
imagens metafóricas, de corpos impossíveis, não realistas, sonhos e
loucuras intransponíveis aos contornos da vida ordinária. É essa a mais
importante e necessária função social e política da arte em seu aspecto
mais solidário, agregador e público (Carvalho, 2023b, s./p.).
É dessa forma que, para o teatro anfíbio, existem muitas outras formas de
trazer arte e política ao diálogo, de as associar ou de as tornar controversas. Por
isso, rejeita-se sua versão mais comum e generalizada, a que existe arte política
militante, essa forma contemporânea e hegemônica percebida no Festival Niterói
em Cena, que reivindica a mensagem direta, cujo significado político é explicitado
pela sua ligação ideológica a um público convicto, normalmente reduzido aos seus
adeptos.
Em nome de uma política no teatro, ou mesmo de uma política do teatro, o
teatro anfíbio, consciente, transformador, de impacto social e esteticamente
relevante tem assistido a uma proliferação de espetáculos que, movidos pela
preocupação prática de contribuir, à sua maneira, para o movimento contra
cultural, denunciam as tensões e disputas em torno dos significados da arte e da
relação dessa com a sexualidade e a liberdade de expressão, concentrando o seu
gesto político, sua postura política em todo o projeto de encenação e não apenas
no tema da peça, o que nos distancia dos mitos que podem moldar a nossa
compreensão da função política e social do teatro.
A encenação anfíbia é uma posição que implica um posicionamento, que
envolve o gesto, a presença, desde o seu âmbito estético às suas implicações
materiais, passando, claro, pela sua relação com o público que, parafraseando
Brook (2002), anda aborrecido e acaba por esvaziar os teatros, “cuja prática é
(ou era) a de representar papéis ao invés de fazer do palco um cercadinho
identitário para vazar frustrações e recalques íntimos” (Carvalho, 2023c, s./p.), aliás,
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[...] repararam o quão sensacional é aquele ator que não interpreta
patavinas daquilo que abre a boca para dizer? repararam a maravilha
que é o exercício de se contar uma boa história ao invés de vivê-la?
perceberam a desgraça de tempo esse nosso em que a regra é
justamente apregoar aos ventos: vejam como eu vivo! Vejam como eu
sinto! Vejam quem sou eu!...??? (Carvalho, 2023d, s./p.).
Sua razão está contida na ‘essência do teatro’ tal como formulada por Gianni
Ratto, na vocação de se
[...] comunicar com os outros, numa linguagem e numa forma que
constituam o anel de conjunção, o denominador comum entre o autor e
o público. E a necessidade, talvez ingênua, de criar um mistério no
mesmo momento em que nos revelamos, com o pudor, com o igual
receio ruborizado que acompanharia uma declaração ligada a um
sentimento profundo e por tanto tempo acariciado e não revelado (Ratto,
1959, s./p.).
Embora não seja a intenção elaborar qualquer prescrição geral sobre o teatro
anfíbio, é importante destacar certos princípios estéticos, entre eles, a ideia de que
esse tipo de teatro encena uma dramaturgia monstruosa, que é “a antítese do
‘belo animal aristotélico’” (Thürler, 2022c). Ele se debruçaria sobre a aparição de
outros corpos no palco, seus modos de ver, sentir e perceber que estiveram
encobertos por uma longa tradição estético-filosófica colonial que formava, geria
e controlava as subjetividades.
O teatro anfíbio mostra aquele “contrário ao que é habitual” (Falconer, 1923,
apud
Zanon, 2018, p. 39) a uma ordem estabelecida, ou seja, à medida em que faz
refletir sobre o papel da estética na matriz colonial do poder, também o faz sobre
as normas, normalidade e normalização, produzindo obras capazes de “minar,
escavar, perturbar e subverter os termos que afirma e sobre os quais o próprio
discurso se afirma” (Louro, 2001, p. 548).
Se tivermos em mente o argumento de Mignolo “de que não pode haver
política sem adjetivo” (Mignolo, 2017, s./p.)15, porque essa política é uma das
poderosas ficções universais da modernidade ocidental, da filosofia do
conhecimento e do saber, a política do teatro anfíbio é
queer
porque, como
protocolo estético, se recusa a ser “um lugar estável, confortável, seguro”
15 there is no “politics” by itself, politics without adjective.
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17
(Baroque; Eanelli, 2020, p. 17), a aceitar a realidade objetiva e as suas hierarquias
envolventes, ao contrário, sua tarefa é questionar o aparentemente normal estado
de coisas, problematizar uma situação em que as deficiências do sistema são
abafadas, “é uma forma de linguagem insubordinada, totalmente contrária às
formas canônicas de controle, regulação e vigilância [...], fiel às forças do
movimento, cruzo, rasura, invenção” (Thürler, 2022a, s./p.), aberta a uma variedade
de contribuições criativas e acadêmicas que desafiam representações
hegemônicas.
Em si, não é teatro necessariamente realizado por identidades dissidentes e
reconhece que a importância das experiências de vida, as “subjetividades
individuais construídas e situadas a partir das relações sociais estabelecidas por
classe, raça, gênero, idade etc. [...] não [são] suficientes para qualificar a relevância
do que escrevemos e muito menos é condição suficiente para produzir
conhecimento crítico” (Lopes, 2023, s./p.), mas que, por seu tema, construção ou
abordagem, desafia a norma e encoraja a estranhar o olhar, rompe com os
sistemas binários e heteronormativos que ainda orientam a interpretação das
obras e vai além do aparentemente óbvio.
No teatro anfíbio, a natureza dos documentos utilizados na encenação,
documentos históricos oficiais, científicos, políticos de caráter público ou mesmo
os subjetivos e ficcionais e a presença desse material no palco desafiam a
imaginação política estagnada e colocam sua abordagem ‘estÉtica’ não ao lado de
um teatro de denúncia da realidade, mas ao lado de um teatro que anuncia a
realidade para além do presente, do aqui e agora prisional, parafraseando Muñoz
(2009). Em outras palavras, é um modo de fazer
queerness
, “um modo
estruturante e educado de desejar que nos permite ver e sentir para além do
atoleiro do presente”16 (Muñoz, 2009, p. 1), orientado para a imaginação de um
futuro mais vasto, mais sensual e mais brilhante, próximo do que pensa Sergio
Blanco, em “As flores do mal ou a celebração da violência”:
Muitas vezes eles apresentam meu trabalho como uma denúncia da
violência do mundo contemporâneo. A ideia me incomoda. A fórmula não
combina comigo nem um pouco. Toda vez que leio ou ouço um
16 a structuring and educated mode of desiring that allows us to see and feel beyond the quagmire of the
present. (Tradução nossa)
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18
comentário desse tipo, tenho a impressão de que eles não entenderam
nada. Ou algo pior: tenho a impressão de que eles estão reduzindo meu
trabalho para algo que não é. Eu não acho que a literatura é para
denunciar, mas para anunciar (Blanco, 2018, p. 5 grifo nosso).
Anunciar o futuro é saber que em cena o ator quase nunca interpreta o real,
como pensou Copeau (1960). Anunciar é fazer saber a partir do vazio do espaço
teatral, porque o teatro anfíbio valoriza o pequeno e o vazio, como formulado por
Peter Brook ao longo de sua produção prática e teórica.
O vazio metafórico que está na base do pensamento teatral de Brook atesta
a latente teatralidade do teatro anfíbio, porque somente voltando a “ser teatral,
voltará a viver” (Brook, 2002, p. 25), afinal, “se tivermos um cenário realista, com
uma janela para o ladrão entrar, um cofre para ser arrombado, uma porta para a
dama rica abrir... então o cinema pode fazer isso muito melhor (Brook, 2002, p. 25).
O “palco puro” (Thomas, 2015, p. 14) torna-se, então, incentivo à criação, sendo o
teatro feito com falta e representando o mundo a partir da sua ausência,
invocando as imagens que estão em nós, “bastaria uma palavra para trazer o
Vaticano ao palco” (Thomas, 2015, p. 23), o que se aproxima, d’alguma forma, do
teatro essencial stokliano,
[...] aquele teatro que tenha o mínimo possível de gestos, movimentos,
palavras, figurinos, cenários, adereços e efeitos, o mínimo. E que
contenha a máxima teatralidade em si próprio. Que na figura do humano
no palco se realize a alquimia única em que a realidade da representação
(da reapresentação) é mais vibrante que o próprio tempo cronológico.
Que critique esse tempo, que revele esse tempo. Que nesse fim de século
o teatro possa reafirmar o sentido essencial como bem mais evidente
que a matéria descartável. Quero trocar a fantasia da composição teatral
pela presença viva do ator. Acredito na relação de nova realidade que se
faz na força da presença do ator engajado na história com suas
idiossincrasias, sem recursos do fabricado, limpidamente como água na
fonte (Stoklos, 1987, s./p.).
Desse modo, o teatro anfíbio não está escravizado ou submisso à realidade,
seu desafio não é revelar ou desvendar o mundo, mas compor outro, aceitando
que “uma garrafa se torne a Torre de Pisa ou um foguete a caminho da lua”
(Stoklos, 1987, s./p.).
Podemos então compreender que a aliança entre teatro e política será tanto
mais frutuosa quanto não se trata de uma questão de consenso, mas de uma
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fricção mantida entre esses dois polos que produz formas que conseguem expor
os lugares comuns que ameaçam a esclerose da cena contemporânea ativista, ao
mesmo tempo que rompem com as expectativas condicionadas pela natureza
endogâmica e conservadora da militância.
A política no teatro anfíbio surge como a capacidade de uma obra anunciar
[...] um momento supremo da criação, que nada tem a ver com a questão
da acusação. A noção de denúncia me irrita. Me incomoda. Como
qualquer forma de delação. Eu nunca acreditei na arte da denúncia.
Quem sou eu para denunciar qualquer coisa. E muito menos violência.
Essa maneira de conceber a arte é pretensiosa para mim. Arrogante.
Irresponsável. A literatura não tem lugar para comissários ou aiatolás
agitados para delatar. Eu não denuncio nenhuma violência. Apenas a
anuncio. Nada mais (Blanco, 2018, p. 5).
5
O teatro anfíbio, como temos dito, acontece quando artistas criativos se
reúnem em aliança e anunciam, em linguagem teatral, problemas mundiais agudos
e urgentes, incluindo sociais, ambientais, políticos. Antes de tudo é teatro, que está
em primeiro plano e, em maior ou menor grau, qualquer obra encenada em seu
repertório deve necessariamente estar em sintonia com o tempo. Não à toa, toda
a dramaturgia mundial construída no choque entre indivíduo e o estado se torna
matéria prima anfíbia. Alguns fios, visíveis ou invisíveis, devem ligar a ação que se
desenrola no palco com o estado da sociedade que está fora do teatro, ou seja, o
teatro anfíbio torna-se dependente das exigências da época em que existe e
procura responder aos desafios políticos dessa época na medida em que se torna
parte das nossas vidas, em detrimento do teatro que tenta reduzir seu escopo
político a uma conversa que toca apenas em conflitos políticos individuais.
O teatro anfíbio, em sua interdisciplinaridade e no afã de anunciar, em aguda
reflexão, o estado da sociedade atento e crítico às questões do passado colonial
traumático não confia inteiramente no racionalismo como uma panaceia para
compreender os significados artísticos. Por vezes, pelas circunstâncias, pode até
se tornar chato, mas em todos os outros casos será apenas teatro interessado
pelas utopias possíveis em nossa “demogracinha”17, teatro à procura do esplendor
17 Segundo vina di carvalho (2023) “demogracinha” é um sistema de governo sustentado pela Constituição de
1988, mas que permanece não garantindo direitos equânimes a todos os corpos que vivem no imenso
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do artifício e não das crônicas de um momento, dos retratos sociais de uma época,
das intervenções no último debate público, das indignações diárias frente ao
último desmando destinadas a serem esquecidas como notas da coluna social.
Em última instância, parafraseando o diretor russo Yuri Butusov, será teatro
vocacionado em pensar questões essenciais para o outro, em despertar nas
pessoas a sensação de liberdade, de tornar as pessoas independentes, emancipá-
las e libertá-las, fazê-las reconsiderar suas ações, suas escolhas, pensar em como
viver melhor através de novas políticas de subjetivação.
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cada quatro anos.
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Recebido em: 02/05/2024
Aprovado em: 16/06/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br