Poética pajé
André Gardel
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-24, jul. 2024
benéfico entre humanos e não-humanos”. Atravessa “para o outro lado do
espelho” e depois vem relatar à comunidade o que viveu. Experimenta
perspectivas múltiplas acoplando em si
outridades
, “não manda delegados ou
representantes sob a forma de vítimas, mas é a própria vítima: um morto
antecipado” (Castro, 2015a, p. 173). Diferentemente da função vertical mediada do
sacerdote – de ter um oficiante que sacrifica seres para acessar a divindade; ou
de se comunicar com deus, por meio da fé cega na palavra sagrada; ou, ainda, de
ter uma Instituição-Estado que centralize e legitime o verbo divino a um rebanho
de fiéis – o xamã amazônico transversal14não produz uma “religião proto-
sacerdotal” (Castro, 2015a, p. 181), pois, por meio de relações de contiguidades
agentivas acoplantes, descentra-se, faz-se multipolar e comutável, trazendo as
visões-conhecimentos de longe para revitalizar e deslocar a vigília da
comunidade, que, assim, incorpora a mudança e a alteridade.
A vivência do pajé advém de uma ação direta, não-representacional, de ver-
saber como tatear, que emerge das situações de
copresença
e comutação de
perspectivas com os espíritos. Em muitas línguas da Amazônia, “as palavras que
traduzimos por xamã não designam algo que se é, mas algo que se tem”, não
“um atributo substantivo”, mas “uma qualidade ou capacidade adjetiva e
relacional.” Ou seja, um estado energético dinâmico em mutação interativa. O
xamã é respeitado e considerado muito poderoso quanto mais longe no espaço-
tempo mítico for e, nesse percurso, pactuar inúmeras alianças, justapondo em
seu corpo-imagem uma micropopulação de múltiplas alteridades e agências. Por
essa razão, mais do que “super-indivíduos”, os xamãs “são seres super-divididos”
(Castro, 2006, p.322). A potência dos agentes espectrais aliados, com pontos de
14 Eduardo Viveiros de Castro no capítulo
Xamanismo transversal
do livro
Metafísicas canibais
, a partir da
tipologia concebida por Stephen Hugh-Jones, aponta que o “que se designa em geral como xamanismo, na
Amazônia indígena, recobre a diferença importante entre um ‘xamanismo horizontal’ e um ‘xamanismo
vertical’”. Os xamãs horizontais “são especialistas cujos poderes derivam da inspiração e do carisma, e cuja
atuação, voltada para o exterior do
socius
, não está isenta de agressividade e de ambiguidade moral”, são
próprios das “sociedades amazônicas de estilo mais igualitário e belicoso”. Já “a categoria dos xamãs
verticais, por sua vez, compreende os mestres cantores e os especialistas cerimoniais, os guardiães
pacíficos de um conhecimento esotérico indispensável para a condução a bom termo dos processos de
reprodução das relações internas ao grupo: nascimento, iniciação, nominação, funerais”; categoria
presente “apenas nas sociedades mais hierarquizadas e pacíficas, aproximar-se-ia da figura do sacerdote.”
Para, ao final, concluir que “não há sociedade amazônica onde existam apenas xamãs verticais; ali onde só
há um tipo reconhecido de xamã, este tende a acumular as funções dos dois xamãs dos Bororo ou
Tukano, com um nítido predomínio, porém, dos atributos e responsabilidades do xamanismo horizontal”.
Mais adiante, desenvolvendo mais a fundo essa tipologia, define que “o xamanismo horizontal não é,
portanto, horizontal mas transversal.” (Castro, 2015a, p. 174-175, 180)