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Para uma teoria crítica do teatral: situando a cena
expandida da teoria na contemporaneidade
Stephan Arnulf Baumgärtel
Paulo Maciel
Para citar este artigo:
BAUMGÄRTEL, Stephan Arnulf; MACIEL, Paulo. Para
uma teoria crítica do teatral: situando a cena expandida da
teoria na contemporaneidade.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0113
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Stephan Arnulf Baumgärtel Paulo Maciel
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-25, jul. 2024
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Para uma teoria crítica do teatral: situando a cena expandida da teoria na
contemporaneidade
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Stephan Arnulf Baumgärtel2
Paulo Maciel3
Resumo
Neste texto, discute-se a tese da crise da teoria teatral na contemporaneidade ao passar
em revista os pressupostos principais de algumas das perspectivas críticas do Ocidente,
em contraponto às contribuições analíticas recentes de novos sujeitos teóricos que situam
social e temporalmente as abordagens tidas por “comuns”. Formulam horizontes cognitivos
que inscrevem no debate a alteridade de seus corpos e de suas vozes enquanto sujeitos
teóricos num território dialeticamente configurado pelas táticas reversas da colonialidade
oculta na teoria “tradicional”.
Palavras-chave:
Teoria teatral. Eurocentrismo. Teoria situada. Táticas reversas.
Toward s a cr i t ic a l th e o r y of th e atre : si t u ati n g th e exp a n d e d sc e n e of theo r y in
contemporary times
Abstract
This text discusses the hypothesis of a crisis in theatrical theory in contemporary times by
reviewing the main assumptions of some of the critical perspectives of the West, in contrast
to recent analytical contributions from new theoretical subjects who socially and temporally
situate approaches considered common. They formulate cognitive horizons that inscribe in
the debate the alterity of their bodies and their voices as theoretical subjects in a territory
dialectically configured by the reverse tactics of coloniality hidden in “traditionaltheory.
Keywords
: Theatrical theory. Eurocentrism. Situated thinking. Reversal tactics.
Para una teoría critica del teatral: citando la escena expandida de la teoría en la
contemporaneidad
Resumen
Este texto discute la tesis de la crisis de la teoría teatral en la época contemporánea
mediante la revisión de los principales presupuestos de algunas de las perspectivas críticas
de Occidente, frente a las recientes aportaciones analíticas de nuevos sujetos teóricos que
sitúan social y temporalmente los planteamientos considerados comunes. Formulan
horizontes cognitivos que cuestionan la universalidad de estas premisas y, al mismo tiempo,
inscriben en el debate la alteridad de sus cuerpos y voces como sujetos teóricos en un
territorio dialécticamente configurado por las tácticas inversas de colonialidad ocultas en la
teoría “tradicional.
Palabras clave
: Teoría teatral. Eurocentrismo. Teoría situada. Tácticas reversas.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Janete Maria Gheller, graduada em
Letras Habilitação em Português e Literatura da Língua Portuguesa, sob o registro 194.467 do MEC.
2 Pós-doutorado na Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutorado na Universidad Nacional de Colômbia
Bogotá. Doutorado em Literaturas da Língua Inglesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Mestrado na Ludwig-Maximilians-Universität, LUM, Alemanha. Professor doutor titular da graduação e
pós-graduação (mestrado e doutorado) em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC). stephao08@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/8439378198120294 https://orcid.org/0000-0002-7769-1108
3 Pós-doutorado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Doutorado em Artes
Cênicas pela UNIRIO. Mestrado em Artes Cênicos pela UNIRIO. Graduação em História pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor doutor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
paulo.maciel@ufop.edu.br
http://lattes.cnpq.br/9374193161036263 https://orcid.org/0000-0003-4770-1587
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Introdução
Tudo é teatral, logo o teatro não existe: essa fórmula compreende um gesto
crítico que assinala a existência fronteiriça e múltipla do teatral e, portanto, não
gira em torno do teatro, como se o dissenso a seu respeito fosse limitado a dizer
diferente o Mesmo. Nesse caso, o que deixa de existir é o teatro como essa
espécie de entidade específica. O mesmo preceito crítico vale para as
terminologias coetâneas ao teatro como, por exemplo, a de teatralidade e a de
performance.
A cautela nos vem do terreno escorregadio que distingue, desde sempre, no
campo teórico e histórico o teatral, como se fosse dada uma fronteira do que é
teatro e o que é rito, o que é a arte e o que é religião, dentre outras interseções
exploradas nas linguagens cênicas nos últimos tempos. Precisamos desconfiar de
nossos sistemas de pensamento sobre o teatral no mundo. O relativismo dos
sistemas de pensamento e dos poderes do discurso, conforme a discussão foi
levada a cabo por Lévi-Strauss (1989) e Michel Foucalt (1996), que nos ajuda a
refletir sobre o alcance de seu potencial cognitivo para raciocinar sobre as
fronteiras que até hoje separam na teoria do Ocidente o teatro e o rito, a arte e a
religião, em função dos critérios adotados para a discriminação e classificação
dos saberes desde o Ocidente4 moderno. Mas, as duas críticas ao etnocentrismo
confiam essa tarefa à retirada estratégica do sujeito no juízo. O descentramento
se produz à custa do esquecimento de outros modos de encarar a posição de
sujeito que não obedecem aos termos do Ocidente moderno, no sentido
ressaltado por Ella Shohat e Robert Stam (2006, p. 39): “Do ponto de vista da
teoria, presume-se que toda teoria seja ocidental, e que movimentos como o
4 Conforme comentário de Ella Shohat e Robert Stam (2006, p. 37): “O Ocidente, assim como sua
contrapartida oriental, é uma construção fictícia baseada em mitos e fantasias”, pois, de uma perspectiva
geográfica a descrição é pouco precisa, seria melhor considerar que se trata de “uma herança coletiva,
uma mistura voraz de culturas que não apenas bebeu das influências não-europeias, mas que é de fato
formado por elas” (2006, p. 38), sobretudo porque sua imagem sempre dependeu de um espelhamento
conceitual. Diríamos que o Ocidente é o fetiche de grande parte do globo, seguindo a antropologia
simétrica de Bruno Latour (2021). Ele faz agir a OTAN, o FMI, e nele são depositadas inúmeras crenças.
Deste modo, quando nos referirmos ao Ocidente moderno estamos pensando nos seus processos de
diferenciação dos não europeus.
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feminismo e a desconstrução onde quer que eles surjam, sejam ocidentais. Ou,
segundo alertou Julia Kristeva (2017, p. 103): Ao combater o obscurantismo, a
secularização se esqueceu de se interrogar sobre a necessidade de crer que
subentende
o desejo de saber
, bem como sobre os limites a serem colocados no
desejo de morte – para viver juntos.
Temos neste trabalho como objetivo principal discutir a ideia de crise
atribuída à teoria teatral praticada nos últimos tempos, partindo do princípio de
que a cena expandida não se constitui como uma ameaça ao teatro, muito pelo
contrário, ela serve para descentrar e multiplicar as formulações teóricas sobre o
teatral para além dos limites estabelecidos pelo continente Ocidental. Portanto,
partimos do pressuposto de que a teoria teatral está em crise junto do
continente que sempre reclamou a universalidade de seus juízos sobre o teatro.
Mas acreditamos que essa crise se alastra, à medida que as tentativas de salvar a
teoria teatral tradicional se valem de estratégias de expansão e refinamento que
fazem parte do problema e não da solução da crise, mesmo que revelem um
senso analítico e uma capacidade discursiva refinados e complexos.
Pretendemos mostrar que a solução para a crise dessa teoria tradicional pode ser
buscada em direção a uma teoria situada que se entende como
constitutivamente posicionada num ponto crítico: aquele ponto no qual práticas
cênicas, esforços teóricos e desdobramentos sócio-políticos revelam uma
relação dialética e impactam taticamente sobre a articulação retórica dessa
teoria.
Parte I. Mapeando o terreno escorregadio do teatral e de suas
contradições ocidentais
1
Uma das tarefas da teoria teatral tem sido a de dizer justamente o que é o
teatro, o que lhe é próprio ou comum, desde a ideia de “imitação até a de
“presençae a do “performativo, passando pela “representaçãoou pela “ficção,
diversas são e foram as formas ocidentais de conceber a sua diferença ou seu
modo de ser particular. Apesar dessa diversidade, o que lhes está comum é uma
tendência de entender a teoria teatral como a busca pela essência dessa prática.
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Na hora de dizer o que é o teatro, entretanto, o horizonte cognitivo
Ocidental5 permaneceu sendo historicamente circunscrito pela origem ou pelo
nascimento na Grécia Antiga. Logo, teatro como tal não poderia ser observado
existindo nem no continente africano, nem no americano, antes da chegada dos
europeus. Deste modo, o continente do teatro aparece como um sítio forjado por
um saber-fazer teórico, estético e poético, circunscrito assim a determinado
espaço-tempo geopolítico. Da
Poética
de Aristóteles até a teoria do
Teatro Pós-
Dramático
, o percurso de longa duração nos mostra como a teoria teatral
continuou sendo pensada como uma produção crítica situada na tradição
Ocidental, pois conforme observou Ashis Nandy (2015, p. 79): o único passado
legítimo na cultura global de senso comum é o passado helênico, e os demais
povos não europeus devem “lamentar que seus ancestrais não eram gregos, e
eles não podem revisitar seu passado sem se sentirem terrivelmente culpados e
embaraçados.
À medida que o contexto sociocultural dos fazeres artísticos no Brasil se
deslocou, por um lado, em direção a um emolduramento ostensivamente
conservador e, por outro, em direção a um enquadramento decolonial e
antipatriarcal, algo que se a partir do impeachment da presidenta Dilma e as
políticas culturais dos governos Temer e Bolsonaro que atribuíram a esses
movimentos uma urgência de enfrentamento inexistente anteriormente, a teoria
tradicional do fenômeno teatral, mesmo em suas formulações de um campo
expandido, percebeu que está perdendo seu objeto tradicional. Ela se deparou
com as reivindicações de artistas que representaram e representam grupos antes
invisíveis para essa teoria tradicional e que agora não queriam ser integrades ou
capturades por seu escopo reflexivo. Surge com esses artistas um outro modo
de fazer teoria diferente em relação à teoria “tradicional. Num primeiro momento
arriscamos dizer que na medida em que a teoria tradicional seguia um ideal
essencialista ou substancial, o que implica certa autonomização e
descontextualizão sócio-histórica tanto de si mesma quanto de seu objeto, esse
5 Estamos pensando nas noções de Ocidente e centro-ocidental não de um ponto de vista geográfico, pois
esse tipo de recorte é problemático, mas como uma construção sociocultural vinculada ao colonialismo.
Dentre outros fatores desse etnocentrismo destacaríamos a reserva do conceito de teatro para denominar
apenas um conjunto particular de práticas cênicas pelos europeus e seus descendentes, além de
considerar na sua formação discursiva apenas o legado grego.
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outro fazer teórico dessubstancializa não o teatro, mas também a própria
teoria. Sua fundamentação agora deixa de ser autocentrada e se situa na reflexão
sobre a relação entre teoria e seus diversos contextos. Isso implica que os
critérios que validam tanto um fazer cênico quanto um fazer teórico se deslocam
em direção a critérios mais situados e menos universais. Implica, também, uma
outra retórica da teoria cujo vocabulário agora apresenta marcas enfáticas da
experiência social do corpo que teoriza sobre a relação entre seu fazer cênico e o
fazer cênico tradicional.
Historicamente, podemos localizar um primeiro momento de crise de uma
teoria teatral europeia (e do teatro europeu) no final do século XIX e início do
século XX, quando a nova concepção da encenação e do encenador, bem como
novas práticas cênicas que valorizavam o fazer cênico em detrimento da
representação ficcional, libertaram as ações cênicas do texto dramático. A
teatralidade deixou de ser sinônimo implícito de dramaticidade. Um segundo
momento se dá nos anos 60, com o fim das vanguardas históricas ou a retomada
da ideia de vanguarda sob bases não da radicalização da linguagem específica de
cada arte, mas da dissolução das características e limites das diferentes
linguagens artísticas.6 O teatro entra em sua fase expandida. Essa expansão,
entretanto se em direções diferentes, o que colocou um desafio profundo
para a teoria teatral que precisou criar um instrumentário analítico para pensar
seu campo nessa nova dimensão multiforme. O que separa essas vanguardas da
segunda metade do século XX, junto com a teoria teatral provocada por elas, dos
movimentos transgressores atuais é, por um lado, sua relativa cegueira para com
as questões de raça e gênero em junção com o paradigma de classe, mas
sobretudo a decorrente incapacidade de pensar a própria constituição como
específica; de constituir a si mesma como situada. No afã de cunhar um conceito
estrutural ou pós-estrutural hegemônico para diferentes práticas, relegou como
fator secundário os sentidos que os próprios procedimentos teóricos, bem como
os funcionamentos cênicos, podem representar “no seio da vida social.7
6 Ver, por exemplo, o ensaio de Theodor W. Adorno, A Arte e as Artes (2018).
7 Eis a expressão que Saussure usa para definir sua Semiologia: “Pode-se, então, conceber uma ciência que
estude a vida dos signos no seio da vida social; ela constituiria uma parte da Psicologia social e, por
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Por mais que essa prática teórica tenha nos legado uma potente reflexão
sobre os signos cênicos, como entram em ação, como se dá o funcionamento de
uma cena específica a partir de suas estruturas fundantes, ela não evidenciou
quais leis para além do funcionamento interno regem esses signos; o que motiva
esse funcionamento a se constelar naquele momento histórico e geográfico.8
O aparecimento de artistas e teóricos alinhados a um fazer cênico e um
pensar teórico decolonial e despatriarcalizante torna patente que a
interseccionalidade teórica que caracteriza esse novo pensamento implica um
vetor dessubstancializante daquilo que era o teatro e a teoria do teatro, trazendo
de volta os contextos sociais e políticos que ficaram expulsos das considerações
puramente estéticas das teorias predominantemente estruturalistas. Na última
seção veremos que essa dessubstancialização é acompanhada por um foco que
se traduz em uma “teatralização performativa” dos próprios conceitos, ou seja, da
retórica da linguagem teórica.
2
Antes de analisar o que essa outra e nova teoria teatral faz aqui no Brasil,
como ela se posiciona performativamente no campo teórico de nossa área,
queremos aprofundar o contorno da teoria que denominamos
tradicional
.
Chamamos essa teoria de
tradicional
, pois ela replica a tradição europeia de criar
uma teoria teatral universal a partir daquilo que toma como o teatro (de sua
época), assumindo implicitamente seu corpus de estudo e seu próprio esforço
teórico como base suficiente para a generalização.9
Guardadas as devidas divergências sobre como denominar aquilo que marca
predominantemente o fazer teatral contemporâneo, as abordagens
ocidentalizadas fazem parte de uma mesma vertente de pensamento presente
_____________________________
conseguinte, da Psicologia geral.” (Saussure, 1995, p. 33)
8 Saussure continua sua definição da Semiológica com a frase: “Ela nos ensinará em que consistem os
signos, que leis os regem.” (1995, p. 33). As leis que essa teoria identifica e com quais ela se contenta são
as leis estruturais internas do espetáculo.
9 Às vezes essa percepção se articula mais na recepção da teoria do que em sua concepção, como no caso
de Teatro Pós-Dramático de Lehmann que nunca era pensado como teoria do teatro contemporâneo
mundial.
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em quase todos os grandes pensadores europeus das práticas cênicas ocidentais
do século XX e XXI, tais como os franceses Bernard Dort (2010, 2013), Jean-Pierre
Ryngaert (1998), Jean-Pierre Sarrazac (2002; 2017) e Maryvonne Saison (1998); a
franco-canadense Josette Féral (2015) e os alemães Hans-Thies Lehmann (2007)
e Erika Fischer-Lichte (2019).
Se, por um lado, não se pode duvidar de que reconhecem as relações entre
teoria, prática e sociedade, ou seja, entre fazer teórico e um contexto
hermenêutico que é necessariamente sócio-histórico, também pode detectar-se
que em suas reflexões concretas, o foco cai predominantemente sobre questões
formais e estruturais, sem elucidar essas estruturas como simbolizações
mediadoras dessa tríade.
Josette Féral, por exemplo, inicia seu livro
Além dos limites
, coletânea de
ensaios escritos no final dos anos 90 do século XX e início do século XXI, com um
capítulo introdutório intitulado “Teatro e Sociedade: da simbiose a um novo
contrato social”. Logo de início ela declara seu desejo de “mostrar que a
evolução do teatro, em sua relação com o público e a sociedade, tem como par
uma evolução similar no domínio das pesquisas teóricas sobre o teatro” (Féral,
2015, p. 3). Na página seguinte, ela aponta a relação entre a prática teatral e a
sociedade civil, dizendo que “o teatro faz parte de um esquema muito elaborado
em que intervêm fatores históricos, políticos e econômicos cujas implicações
vão além das simples esferas estéticas ou institucionais” (Féral, 2015, p. 3).
Entretanto, o que chama atenção ao longo do livro é que Féral não traduz esse
reconhecimento em uma reflexão teórica situada10, problematizando a posição
sociocultural de sua teoria ou refletindo sobre as características desse teatro
como “ocidental” na compreensão não geográfica do termo. Ao crescente
“emaranhamento” ou “enodamento” das artes11, Féral responde com uma
reflexão estruturalista que desloca o centro de produção cênica da teatralidade
10 Um reconhecimento de que “as pesquisas sobre o teatro […] são um fenômeno recente na maior parte
dos países europeus, na América do Norte e, provavelmente, no Brasil do mesmo modo” (Féral, 2015, p. 13)
confunda mais que elucida sua posição, uma vez que ela não realiza uma reflexão profunda sobre a
relação entre esses contextos e a formação específica de uma teoria teatral.
11 Os termos são usados por Adorno (2018) em seu ensaio “A arte e as artes no qual ele articula uma
reflexão sobre os procedimentos artísticos e seus sentidos no contexto da sociedade contemporânea de
sua época.
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para a performatividade; com reflexões metodológicas que se justificam em
razão da dissolução daquilo que era uma obra. Sem dúvida, a transição de uma
concepção do fazer teatral como obra para outra que recupera sua função de
rito ou encontro coletivo, é uma contribuição bastante relevante. Entretanto, ao
não interpretar a dimensão social e histórica dessas mudanças, ela não
dimensiona essas transformações processuais no “seio da vida social”. Mais do
que isso, ao não elucidar em que sentido esse
como falar
enquanto práxis
situada configura
o quê
da fala artística, ou seja, em que sentido estabelece uma
relação significativa entre
como
e o
quê
, também, não pode tirar as
consequências para a metodologia e a retórica da própria teoria: fazer com que
toda reflexão sobre a práxis cênica é, ao mesmo tempo, uma autorreflexão sobre
o próprio fazer e sua posição social.
O caso de Erika Fischer-Lichte com sua
Estética do Performativo
apresenta
um caminho contrário. Na apresentação de seu projeto, a autora afirma que as
práticas cênicas performativas a partir dos anos 60, recusam qualquer camada
semântica como intrínseca a seu fazer e com isso busca expulsar a dimensão
hermenêutica tanto da práxis quanto teoria teatral. Na argumentação de Fischer-
Lichte, essa ausência se estende inclusive à característica antropológica dessa
performatividade que reside no ritual, um ritual compreendido unicamente a
partir da construção de uma relação igual e retroalimentar entre seus
participantes. Dessa maneira, Fischer-Lichte projeta retroativamente os critérios
da performatividade ocidental, tal como identificados por ela, a toda uma história
unificadora que junta “a ritualidade” e “a performatividade” num parentesco
genérico. Mais do que isso, é preciso perceber a incapacidade da autora em se
manter no interior do quadro analítico autorreferencial forjado por seu conceito
de estética do performativo, uma vez que precisou recorrer à noção de tabu para
dar conta das reações anímicas dos espectadores diante de algumas
performances. Ora, tais reações anímicas ou fisiológicas não são construções
socioculturais de um determinado agrupamento humano? Para outras tradições,
as mesmas experiências com o corpo podem não ser tabus, conforme ela
mesma informa no trabalho, ou seja, a hermenêutica expulsa da performance ou
do espetáculo retorna de fora para dentro por meio da atividade teórica. À
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medida que as ações performativas despertariam esse antes e depois do evento,
elas carregam e efetuam transformações semânticas, que Fischer-Lichte
tematiza constantemente apenas na figura de interrogações abertas ou
afirmações vagas. Um processo que se repete quando concebe o “corpo” da
performance em sua dimensão empírica como pura fenomenalidade que se
apresenta destituído de todo e qualquer marcador referencial.
Com sua estética não-hermenêutica, proposta como uma superação dos
dilemas da teoria teatral ante as práticas cênicas ocidentais contemporâneas,
Fischer-Lichte busca renovar um gesto tipicamente ocidental que é a
leitura
imanente
das obras a partir de seus procedimentos estruturantes, expandindo
conceitualmente a validade de práticas cênicas ocidentais para territórios não-
ocidentais ritual, tabu - e obliterando as diferenças históricas e filosóficas
presentes nessas práticas que apenas na forma e na funcionalidade interna
apresentam uma semelhança enganosa.
Ou seja, sem tomar consciência, Fischer-Lichte contribui para uma
ressignificação ocidental de vários objetos, gestos e ações tidos pela bibliografia
por não artísticos, dentro e fora das fronteiras da cena Ocidental nos últimos
tempos. Porém, essa diferenciação continua operando no limite do teatral visto a
partir do continente Ocidental, especialmente quando a teoria acredita descrever
“nosso olhar e esquece de que seu investimento estético é representativo de
um modo particular de encarar determinados artefatos, saberes e fazeres que,
nem sempre, são recortados do campo da vida da mesma maneira. Uma visão
que desde o século XVIII converteu os objetos e gestos pragmáticos de outros
povos em artísticos no Ocidente moderno.12
O que falta nas teorias desses estudiosos é uma reflexão
interpretativa
da
relação entre os procedimentos cênicos e os procedimentos sociais-empíricos
de produzir um mundo compartilhado, entre as ideias do teatral e os
pressupostos teóricos e conceituais que acompanham a própria constituição de
12 Como observou Valentim Mudimbe (2019, p. 32): “Aquilo que se chama arte selvagem ou primitiva engloba
um conjunto amplo de objetos introduzidos pelo contato entre africanos e europeus durante o tráfico de
escravizados intensificado no esquema classificatório do século XVIII. Esses objetos, que talvez não sejam
artísticos de forma alguma em seu ‘contexto nativo’, tornam-se arte ao receberem simultaneamente um
caráter estético e uma potencialidade para produzir e reproduzir outras formas artísticas”.
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seu objeto; uma autorreflexão que, possivelmente, ressaltaria o gesto
apropriador e tematizaria suas condições ou frearia esse gesto revelando que os
limites traçados da relação entre o teatral e ritual não são absolutos, pois
instituídos em razão do mesmo caminho analítico. E o que falta na retórica
desses autores é uma performatividade que se configura como expressão
consciente das consequências de sua própria prática teórica. Pois da mesma
maneira como obras (ou processos artísticos) oferecem ao olhar interpretativo
seu “conteúdo de verdade”13 na relação entre “o quê” e “como”, entre assunto e
estilo, inscrita nelas, também o faz a teoria. Deste ponto de vista, os traços
estilísticos que informam as teorias da teatralidade e do performativo precisam
ser evidenciados a fim de que, assim, possamos reconhecer os contextos
históricos e sociais que recobrem suas formas de enunciação da questão.
Do ponto de vista da teoria teatral, diríamos então que Josette Feral e Erika
Fischer-Lichte, conforme suas abordagens da teatralidade, estão comprometidas
com a história do Mesmo e de suas contradições, e a dissolução que seus
discursos do espetacular prometem do ordenamento dramático do teatro (o
textocentrismo e ou o logocentrismo) permanece nas fronteiras do sistema de
poder-saber ocidental. Mesmo que a formulação teórica recente do “pós-
dramático” ou do “performativo” possa ser encarada como um gesto crítico no
interior da “desconstrução” da tradição ocidental, sua visão crítica da crise
permaneceu circunscrita ao mesmo horizonte cognitivo de seu objeto e sem um
questionamento mais radical de seus aportes histórico, social e cultural.
Isso teve consequências para o contexto nacional, pois à proporção que a
teoria teatral brasileira acompanhou a teoria tradicional europeia em sua
pressuposição da autorreferencialidade da linguagem teatral e da autonomia do
gesto teórico, ela alienou sua relação de tensão com o país, pois possibilitou à
teoria de se fechar em seu próprio campo. Entendemos o impacto desse
afastamento quando olhamos para a experiência local desde os anos 1990, que
13 “O conteúdo de verdade das obras de arte é a resolução objetiva do enigma de cada uma delas. Ao exigir
a solução, o enigma remete para o conteúdo de verdade, que pode obter-se através da reflexão
filosófica. Isso, e nada mais, é que justifica a estética,” diz Adorno em sua Estética Negativa (1982, p. 149) e
também: “O conteúdo de verdade das obras de arte, de que depende finalmente a sua qualidade, é
histórico até ao mais profundo de si mesmo. [...] A história é imanente às obras, não é nenhum destino
exterior, nenhuma avaliação flutuante.” (1982, p. 217)
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nos revela um sono infundado de poder tornar-se contemporâneo14 e uma
dificuldade de entender o paralelismo entre a entrada dessas estéticas do
performativo ou pós-dramáticas, mesmo antes de usar esses nomes e a chegada
das políticas econômicas neoliberais a partir do governo Collor. Pois da mesma
maneira como o neoliberalismo descontextualiza suas práticas econômicas de
um contexto público social, as práticas cênicas performativas tendem a
desenraizar a linguagem teatral de seu seio social, e a teoria teatral acompanha
as práticas em isolar seu objeto e a si mesma de seu contexto histórico.
3
Nos últimos tempos emergiram universos e agentes teóricos no interior
desse espaço ocidental que foram excluídos social e historicamente e, conforme
seu giro político, estético e poético, são críticos da representação, do sujeito, da
história ou da narrativa nas artes cênicas por motivos diferentes daqueles que, a
partir dos anos de 1990, motivaram os juízos pós-dramáticos e pós-modernos
sobre os espetáculos no Brasil. Pois as teorias teatrais do pós-dramático e ou do
performativo, conforme foram formuladas na Europa e nos Estados Unidos,
desenraizavam a nossa experiência marginal do mundo global e afirmavam sua
hegemonia crítica no Brasil no mesmo momento em que as mulheres, as
comunidades LGBTQIAPN+, negros e indígenas reclamavam seu direito a se tornar
sujeito fabulador, criador de histórias e teorias e autor de representações.
Neste sentido, uma nova ordem epistemológica pode ser pensada a partir da
entrada em cena dessas populações na arena contemporânea dos saberes.
Populações que desde a década de 1960 vêm destruindo o quadro clássico da
antropologia, da história e da arte e, assim, libertando seu conhecimento do
etnocentrismo em consonância com os distintos processos de descolonização
que marcaram a segunda metade do século XX.
Sendo assim, estamos diante de um quadro crítico constituído pelas lutas
sobre os significados ou os limites do teatro; logo, o que ele nos mostra são os
embates históricos-sociais travados em torno da verdade da teoria teatral. Neste
sentido, a tese da crise da teoria teatral na atualidade nos parece potente, pois é
14 Ver, por exemplo, o estudo de Alexandre Dal Farra (2022).
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capaz de evidenciar os parâmetros que orientaram os estudos teatrais ao longo
de sua história bem como os limites cognitivos de seu ponto de vista sobre o
problema. É possível constituir uma teoria teatral além e aquém de sua fronteira
ocidental? É possível constituir uma teoria teatral liberta de uma história única do
teatro? É possível desenvolver uma teoria crítica da crise da teoria sem situá-la
junto aos processos sociais e as escolhas ideológicas? E mais do que isso, sem
encontrar uma performatividade teórica que marca no interior da teoria a
presença desses processos sociais e escolhas ideológicas?
Parte II: As teatralidades, as performatividades e as alteridades em
relação
4
A concepção da estética do performativo de Erika Fischer-Lichte pode ser
vista como um caso paradigmático, uma vez que defende um olhar performático
sobre o teatral enquanto “evento” capaz de desfazer as fronteiras que separam
os domínios da arte, do espaço vital social e político, pois seriam inseparáveis.
Entretanto, o espaço vital e político termina sendo convertido num lugar
qualquer gerido por seu circuito retroativo, sendo assim, o “espetacular” se
emancipa do mundo para preencher o vazio deixado pelo fechamento. O
“espetáculo” se converte em natureza do “nosso olhar” e do teatral.
A crítica de Valentim Mudimbe ao estruturalismo de Lévi-Strauss
(especialmente ao seu dualismo entre a ciência do concreto e a ciência do
abstrato) e ao pós-estruturalismo de Foucault nos importa em relação a nossa
questão sobre a possibilidade de uma teoria nova e situada. Lévi-Strauss e
Michel Foucault, ao insistirem na relatividade dos sistemas de pensamento,
descentram suas bases hegemônicas, mas fazem isso deixando de lado o
“sujeito” do discurso. Afinal, acreditam que não haja “uma teoria capaz de
resolver a tensão dialética entre discursos criativos e o campo epistemológico
que os torna possíveis” (Mudimbe, 2019, p. 77). Logo, não saída dessa “prisão”
epistêmica. Entretanto, conforme comentou o pensador africano: “há uma saída
óbvia desse problema através do sujeito que, direta ou indiretamente, consciente
ou inconscientemente, participa da modificação ou da constituição de uma
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ordem epistemológica” (Mudimbe, 2019, p. 69). Em outras palavras, a criação de
conceitos recebe nessa saída a marca da presença de um sujeito histórico como
equivalente teórico dessa presença em práticas de fabulação.
Do ponto de vista das teorias comentadas, a emergência do Outro como
sujeito questionador das representações15 e das narrativas criadas a seu respeito
por uma sociedade branca, patriarcal e heteronormativa, pode lhes parecer um
recuo histórico-estético esse recurso à fabulação. Entretanto, a retomada do
sujeito nesse contexto analítico vem acompanhada, como veremos, de
mecanismos de inversão dos limites etnocêntricos e gentrificados que, ao longo
do tempo, teriam orientado a “natureza” do teatral.
As questões hoje colocadas ao campo do teatral se voltam contra a história
do Mesmo e de suas contradições na cena teórica contemporânea, pois elas
agora se perguntam sobre a dimensão da raça, da etnia, do gênero e da
sexualidade dos enunciados teóricos que delimitam as fronteiras conceituais do
espetacular: quem define o que é teatro? De onde se determina seu nascimento
e ou os seus limites hoje? A partir de que lugar ou contexto se articulam as
práticas e as teorias do teatral? Como os sujeitos críticos se posicionam perante
o campo hegemônico do Ocidente moderno e ou do chamado pós-moderno?
Quem tem o direito de designar a teatralidade e de traçar seus limites
epistemológicos?
As perguntas representam uma novidade no cenário teórico que, por meio
dos questionamentos informados, não buscam descolonizar suas
epistemologias, mas também insistir em sua particularidade e, a partir dela, em
sua relacionalidade para com outras epistemologias. Podemos perceber de que
modo a teoria de Leda Maria Martins (1995, 2003) das performances negras e de
suas temporalidades em espiral (2021) toma posição nesse debate, à medida que
sua crítica ao textocentrismo e ou ao logocentrismo, à imitação e à
representação, compreende não apenas a libertação do teatral do domínio da
escrita, mas refunda seu entendimento a partir da tradição das culturas
15 Mesmo discutindo a questão da representação do ponto de vista do cinema enquanto modo de
produção, criação e circulação das imagens eurocêntricas, a reflexão de Ella Shohat e Robert Stam nos
ajuda a entender o retorno à representação como salto crítico que visa reparar a estereotipia
colonializadora do Outro (2006, pp. 261-312).
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africanas que foram marginalizadas.
É partindo desse horizonte cognitivo que Leda Martins (2003, p. 66), em
Performances da oralitura
, salienta sua diferença da concepção de corpo
agenciada por Erika Fischer-Lichte, pois em seu caso, o corpo e a voz são
encarados “como portais de inscrição de saberes de vária ordem”, ou melhor,
conforme salientou: “minha hipótese é a de o corpo em performance é, não
apenas, a expressão ou representação de uma ação, que nos remete
simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de inscrição de
conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na
coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que
performativamente o recobrem.” (Martins, 2003, p. 66). Inscrição que, no caso da
cultura negra nas Américas se define pela dupla voz “que expressa, nos seus
modos constitutivos fundacionais, a disjunção entre o que o sistema social
pressupunha que os sujeitos deviam dizer e fazer e o que, por inúmeras práticas,
realmente diziam e faziam” (Martins, 1995, p. 69). Dessa forma, a tensão entre o
significante e o significado, nesse caso, descreve uma espécie de desvio que
caracteriza a estratégia da resistência e da luta negra perante à colonização do
seus dizeres e fazeres nas Américas. Por outro lado, as teorias insurgentes
precisam enfrentar o suposto fato de que o teatro é uma realidade estranha aos
povos originários e africanos; desde sempre, o que eles praticavam com seus
cantos, danças e cenas, antes da chegada dos europeus, pertence ao campo do
ritual. Isto é, não levaram adiante a passagem do rito ao teatro, como no
Ocidente antigo. Por esse motivo, estão e sempre estiveram em vantagem com
relação às teorias da desconstrução do drama pela estética do performativo e
pelo pós-dramático.
Nessa teoria do fazer cênico, traços formais são evidenciados como sendo
simultaneamente posicionamentos sociais ativos por sujeitos que manipulam a
relação entre “o quê” e “como”. E a reflexão teórica e estética pode e deve
interpretar essa relação como o “conteúdo de verdade” histórica tanto para o
corpus analisado quanto para o próprio fazer teórico. O que pode aparentar ser
um uso vago de conceitos quando visto a partir de uma exigência de limites
rigorosos se mostra - se visto do lado de uma crítica situada e performativa
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um uso flexível da linguagem na criação de conceitos cuja função principal deixa
de ser a de cartografar uma prática artística fechada sobre si mesma, pois
assume como função dominante a de marcar no interior da prática teórica a
transição entre vida e arte, ou seja, des-limitar ambos em sua dimensão situada,
para organizar o campo das práticas artísticas a partir dessa função. Neste
sentido, Leda enfatiza que a teatralidade dessas práticas cênicas emerge
dos cruzamentos das diferentes culturas e sistemas simbólicos,
africanos, europeus, indígenas e, mais recentemente, orientais. Desses
processos de cruzamentos transnacionais, multiétnicos e
multilinguísticos, variadas formações vernaculares emergem, algumas
vestindo novas faces, outras mimetizando, com sutis diferenças, antigos
estilos (Martins, 2003, p. 69).
Nesse território expandido das trocas disseminadas pelo globo, a noção de
encruzilhada surge como um operador conceitual para a interpretação “do
trânsito sistêmico e epistêmico que emergem dos processos inter e
transculturais” (Martins, 2003, p. 69). As investigações de Leda das performances
rituais se baseiam num cruzamento teórico entre a semiótica, a teoria da
performance e o movimento de negritude, tendo em vista que, por meio dessa
combinação analítica, designou as características de sua poética e de sua teoria
da negrura enquanto instância performativa: 1) o contínuo exercício da memória
dialógica; 2) a utilização de estratégias que situam reflexivamente a dupla fala
como mecanismo estilístico, criativo, crítico e político; 3) a atualização de formas
de expressão rituais negras, religiosas e seculares, como intertextos constitutivos
do discurso teatral; 4) a reposição histórica da figuração do negro, deslocando-o
da posição de objeto para a de sujeito; 5) a construção de imagens que
desfiguram os emblemas da brancura, realçando os traços da diferença negra; 6)
a elaboração de uma linguagem cênico-dramática que atraia e estimule a plateia,
recuperando, para o teatro, sua concepção de evento comunitário (ver Martins,
1995). Neste sentido, a autora situa sua teoria da performance na encruzilhada
vivenciada pelos negros nas Américas deslocando-os, por sua vez, de sua
posição de objeto para a de sujeito criador e crítico, sobretudo ao atualizarem as
formas de expressão rituais negras como intertextos constitutivos do discurso
teatral, transformando-o em evento comunitário, ou seja, a emergência do
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teatral no contexto da negrura é de mão dupla, evidenciando a relação do teatro
com o passado africano.
Nesse contexto, a (in)distinção do teatral se faz notar a partir das
passagens reversíveis entre as práticas rituais e as chamadas práticas artísticas
que, dessa maneira, distanciam-se dos mesmos significados que ao longo do
tempo designaram a diferença entre os dois universos da teatralidade e ou da
performance: rito e teatro. Rito e teatro são vistos como fenômenos
intercambiáveis em suas relações sobretudo por que ambos emergem de um
mesmo corpo coletivo, cuja forma e reminiscência não são mais referidas à
assembleia do passado helênico do teatro, mas ao universo em movimento da
negritude pelo mundo que, ao se deslocar, refundaria as bases não do campo
teatral, mas também do campo da teoria. Pois os procedimentos da poética da
negrura se aplicam não só à criação artística do povo preto, como também a sua
criação de referenciais teóricos. Recriando criticamente os limites
epistemológicos dessas práticas, seja aquele entre teatro e vida ou entre teoria e
vida, faz-nos tanto perceber os vários marcadores etnocêntricos erigidos pela
colonização para se nomear o teatral quanto evoca sua ultrapassagem.
Desde a década de 1990 que Leda Maria Martins tem buscado nos mostrar
que o teatro negro nos revela a forma heterogênea do saber-fazer teatral no
mundo, pois devido à sua formação na diáspora, ele carrega consigo as tensões
histórico-sociais das diferentes matrizes civilizacionais e culturais que o
constituíram nas Américas. Portanto, o “negro” não apenas adjetiva o “teatro”,
mas o refunda em bases menos etnocêntricas não apenas por relativizar o
problema, mas por revelar um fazer saber teatro clivado por relações de força
que, inclusive, estão presentes em sua poética da negrura.
Trata-se de uma diferença crítica inscrita nos parâmetros cognitivos que
têm sido tensionados pelos corpos e pelas vozes dos sujeitos insurgentes que
constituem o campo teórico recente e que, a partir de suas especificidades
epistêmicas, passaram a questionar a universalidade dos juízos emitidos sobre
a natureza do teatral na história e no mundo, seja do ponto de vista da
interseção da cultura negra nas Américas, seja do ponto de vista da interseção
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da cultura originária nas Américas, como também com relação ao gênero e à
sexualidade. Este último marcador teórico é o ponto de partida do ângulo critico
de Dodi Tavares Borges Leal (2021), em “Fabulações travestis sobre o fim”, artigo
no qual contesta o caráter capitalista dos investimentos nas teses Ocidentais
contemporâneas do fim, especialmente, do fim da narrativa, pois conforme
argumentou a autora, “fabular é não aceitar o fim da narrativa como o fio da
narrativa” observando seu alcance analítico do problema; logo, “trataremos da
fabulação travesti enquanto exercício narrativo que expande a curadoria do fim
para além da especulação do valor comercial apocalíptico, o qual insiste em
favorecer a elite cisgênera colonial” (Leal, 2021, pp. 2, 3). Valor surgido do pacto
cisgênero com a branquitude e, deste modo, perspectivado segundo os “ganhos
econômicos da ideia do ‘fim da cena teatral’” (Leal, 2021, p. 4), pois se não
motivos para a existência de coletivos e edificações teatrais, então, as demais
experiências não-brancas e não-cisgêneras são obliteradas, uma vez que lhes
são negadas as vidas vividas no teatro. Do ponto de vista de sua fabulação
travesti, a ideia do “fim do teatro” estaria sendo enunciada para camuflar a crise
dos limites Ocidentais do teatral e, assim, servindo para nos convencer da
universalidade crítica de sua perspectiva colonial, branca e cisgênera.
Indo ao encontro da reflexão elaborada por Leda Maria Martins (2003) a
respeito dos reinados, a autora ressaltou a importância da fabulação também
para os negros como um meio estratégico de cura capaz de fazer frente à
escravização e à humilhação sofridas, uma vez que ela possibilita deslocar seu
lugar de objeto para o de sujeito crítico da repressão vivenciada a partir do
procedimento de reversão simbólica da situação vivenciada. Neste sentido,
sugere uma forma teórica e criativa de agir no ideário da cisgeneridade e da
branquitude, deslocando raças e gêneros “do fetiche para os feitiços” (Leal, 2021,
p. 13). O deslocamento do fetiche para o feitiço compreende aqui uma mudança
na relação entre o sujeito e o objeto do olhar teatral problematizando,
justamente, os lugares reservados aos subalternos na cena etnocêntrica.
A passagem da teoria teatral do campo do fetiche para o do feitiço vale
como gesto crítico-curativo pela reversão simbólica do lugar atribuído pelo
Ocidente às práticas artísticas dos povos e culturas africanos a afrodiasporicos,
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assim como das corpas destituídas do poder-saber a cena. O combate ao
fetichismo no teatro incide criticamente no retorno crítico ao feitiço, um uso das
formas que não simplesmente dessacraliza conceitos tidos como sagrados (por
deslocá-los de sua posição descontextualizada), mas que inscreve essa
dimensão sagrada num contra-uso intervencionista do termo (por manter
perceptível a origem cultural em sua “contrafeitição” situada). Entendemos esse
procedimento de fazer uso da “cooptabilidade das reinvenções paradigmáticas
das artes cênicas” (Leal, 2021, p. 16) como maneira de luta praticada pelos corpos
negros e “transgêneros”. Leal sugere em sua formulação da ideia de
teatra
em
contraponto ao “teatro que se desgastou ao longo dos séculos”, cujos “formatos
e seus alinhamentos coloniais” não se sustentariam mais, de que a
teatra
com
fimturo do teatro [funciona] não apenas como assunção de que uma ruptura
necessária das artes da cena com os padrões e os patrões, […] mas também
[que há] um potencial cooptativo das ideias e projetos que contestam esta
ordem hegemônica” (Leal, 2021, p. 16). O feitiço deve devorar o fetiche.
O fim futuro do teatro é um adiamento movido por aqueles que, ao longo
do tempo, foram mais objetos que sujeitos da representação e da narrativa
forjada pelo Ocidente moderno e pós-moderno; nessa direção histórico-social, as
três instâncias do aquém teatral, do teatral e do além de teatral deixam de ser
dispostas apenas segundo um arranjo diacrônico que impossibilita tratar de sua
coexistência no agora da tensão que se dobra para frente e para trás em espiral.
Movimento intercambiável que também caracteriza a relação entre sujeito e
objeto no âmbito do feitiço. Vejamos, por exemplo, o comentário de Bruno
Latour (2021, p.22-23):
Para designar a aberração dos negros da Costa da Guiné e para
dissimular
o mal-entendido, os portugueses (muito católicos,
exploradores, conquistadores e mercadores de escravos) teriam
utilizado o substantivo feitiço, derivado de feito, particípio do verbo fazer,
forma, figura, configuração, mas também artificial, fabricado, factício e,
por fim, fascinado, encantado. Desde o princípio a etimologia (assim
como os negros) recusa-se a escolher entre o que toma forma por meio
do trabalho e o artificio fabricado no decorrer desse mesmo trabalho;
essa recusa, essa hesitação acarretam fascinação, induzem sortilégios.
Deste modo, temos com o feitiço a ideia de um saber que transforma ou
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transfigura o objeto criado em sujeito da criação; não posições fixas e, sendo
assim, move-se dialeticamente entre os dois eixos de toda e qualquer relação de
conhecimento, tal qual nos parece assinalar as duas autoras. Tanto o feitiço da
teatra
de Dodi Leal (2021), quanto as
performances rituais
, de Leda Maria Martins
(1997, 2003), parecem nos indicar um caminho teórico reverso ao daquele que,
no século XVIII, transformara os feitiços em arte na sua chegada ao continente
europeu, privando-os de sua dimensão pragmática a de permitir transições
energéticas entre o espiritual e o material, entre o ritual e o cotidiano que
empoderam seu agente e reduzindo-os a elaborações formais e simbólicas de
um gosto que transforma espiritualidade apenas em estética. Vale lembrar que
essa colonização do feitiço e sua transformação em fetiche coincidiu com a
constituição da estética enquanto o campo mundano de um culto ilustrado
centrado na arte.16 Deste modo, o percurso de volta do fetiche ao feitiço não tem
mais como ponto horizonte a revitalização da cena etnocêntrica, mas, pelo
contrário, aponta para outro fundamento histórico-social para as artes cênicas e
ou o teatro, no qual o aqui e agora da teoria é o encruzamento entre arte, teoria
e vida.
Tanto Dodi Leal quanto Leda Martins sugerem como fazer teórico um gesto
que elabora uma reversão crítica das práticas cênicas e performativas do fetiche
na direção do feitiço para ser possível elaborar uma nova forma de
intertextualidade entre o ritual e o teatral e, assim, constituir modos de fabular
que pretendem reparar as vidas daqueles que foram transformados em fetiches
no teatro pela colonialidade. Nesse processo de reversão, almeja-se refundar as
bases da vida, da teatralidade e ou do teatral em matrizes étnicas, sexuais e
temporais diferentes daquelas que teriam orientado a sua história no Ocidente
moderno e ou contemporâneo. Neste sentido, saber-fazer teoria teatral negra e
travesti consiste num gesto de descoberta de outra teatralidade existente no
mundo, questionando os vereditos teóricos recentes sobre o fim ou a crise do
16 O fetiche como um campo do saber sobre o feitiço surge na Europa do século XVIII, segundo comentou
Roger Sansi (2008, p.24): O termo fetichismo foi inventado no século XVIII pelo Presidente Charles De
Brosses, para definir a forma mais primitiva (elementar) de religião”. Ele mostraria que os africanos
tinham a forma de religião e, portanto, de sociedade, mais simples e selvagem. Eles eram
contemporâneos e, no entanto, moravam no passado dos europeus, que tinham chegado “às formas mais
elevadas de religião (o teísmo)” (2008, p. 125). O feitiço passaria a ser classificado de um ponto de vista
estético como arte selvagem e ou primitiva.
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teatro ou da sua teoria.
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Denominamos os dois exemplos teóricos comentados de táticas17 reversas,18
pois são manobras engenhosas que visam explorar um território considerado até
muito recentemente sem rastro e sem sujeito. As táticas analíticas reversas da
cena e da teoria teatrais recuam e se desviam das fronteiras epistemológicas
traçadas estrategicamente pelo Ocidente antigo, moderno e contemporâneo para
problematizarem o campo válido dos diversos saberes dentro e fora do teatro.
Fronteiras que, a princípio, dividem-se entre os reinos da arte, da ciência e o do
ritual ou da magia, para avançar manifestando a opacidade dessa diferenciação a
partir de um terreno teórico delimitado pela colonialidade das formas de
expressão cênica não ocidentais, brancas e cisgêneras. Indo nessa direção
teórica não se trata apenas de relativizar os regimes de verdade praticados pelo
Ocidente moderno e contemporâneo sobre os Outros ou as Outras “sem teatro”,
uma vez que a passagem do rito ao teatro não teria sido comum a todos os
povos, culturas e pessoas, mas ainda de mostrar como a vivência crítica de
negros e transgêneros, nesse contexto hegemônico, toma um desvio perante à
institucionalidade acadêmica, criativa e teórica da crise sendo, até mesmo,
festejada e premiada em concursos de artes cênicas pelo mundo, além de ser
adotada como critério em curadorias e garantida pelo mercado teatral que torna
lucrativo o partido da crise como saída para a renovação do Mesmo.
Considerações finais
Buscamos evidenciar de que modo a tese da crise atual da teoria teatral
negligencia uma abordagem crítica de seus próprios pressupostos e, sendo
17 Estamos aproveitando a distinção de Michel de Certeau (2012) entre tática, como uma forma de
territorizalição do cotidiano constituidora de um espaço inda não dominado, e estratégia, como uma forma
de territorialização do cotidiano partindo de um espaço controlado e que, por isso, pode ser calculado e
planejado.
18 De acordo com o dicionário Oxford online, reverso pode significar, a princípio duas coisas. 1. Aquilo que
está ou parece estar em posição oposta à normal; 2. O que retornou ao ponto de partida. Vamos
considerar ambos os significados dados à palavra para perceber que, no primeiro caso, o reverso surge
uma forma de disposição de algo ou alguém com relação ao que seria a sua posição normal, ele parece
estar em posição oposta à normal”, enquanto, no segundo caso, ela descreve uma espiral cujo movimento
retorna ao ponto de partida.
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assim, oculta um conjunto de experiências e práticas cênicas que,
historicamente, foram marginalizadas por conta de um conceito restrito de
teatro. Um teatro que vem sendo pensado a partir de um mesmo continente e
de suas contradições em torno de um dissenso sobre os valores específicos
relativos à sua natureza como, por exemplo, imitação, representação e, mais
recentemente, presença. A impressão ao final do percurso é a de que a
experiência expandida do teatral, aquém e além do drama, é uma criação e uma
descoberta contemporânea Ocidental.
Desmistificar essa visão é uma das tarefas da teoria teatral crítica,
atualmente, que vem sendo constituída por agentes comprometidos com o
processo de descolonização do teatral, de aplicar-lhe marcas de seu contexto
vivencial e estrutural para assim situar sua prática e sua teoria, inclusive
pontuando como as performances negras e as fabulações travestis desviam seus
passos desse enquadramento analítico mais recente que, conforme
argumentam, continua comprometido com uma ideia normativa do teatral como
se ela fosse “normal”.
É preciso observar que ambas as teorias teatrais estão em vantagem se
comparadas à teoria tradicional contemporânea, pois como seus respectivos
continentes de pertencimento desconheceriam o teatro e, especialmente, o
drama, dispõem de liberdade para fabular outras saídas distintas das estratégias
ocidentais. Esse desconhecimento seria revisto com a chegada dos europeus nas
Américas, trazendo consigo o teatro e obrigando a constituição de uma teoria
crítica de dupla face. Uma de suas faces voltada à teoria tradicional e outra
voltada para sua reversão crítica a fim de enfrentar a hegemonia discursiva
etnocêntrica e, ao mesmo tempo, reescrever outro território teatral que não
tenha como ponto de partida o passado helênico e de chegada a cena europeia e
ou norte-americana. Deste modo, Leda Maria Martins e Dodi Leal situam a teoria
teatral de Féral que acredita ser capaz de nomear “nosso olhar” enquanto atores
e espectadores do teatro de uma forma geral.
A fabulação como prática teórica, que vem sendo realizada por estudiosos
do teatro negro (Patrocínio, 2021) e da
teatra
(Leal, 2021), surgiu da necessidade
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de inscrição crítica no teatro dos corpos e das vozes objetos da colonialidade,
sobretudo, com relação à alegada universalidade das ideias, das técnicas e as
formas do teatral no mundo. Ela permite um acesso ao debate contemporâneo
sobre a teatralidade e ou a performance que passa ao largo da crise e ou do fim
de suas fronteiras heurísticas e artísticas e, ao mesmo tempo, contribui para
descolonizar as suas práticas cênicas convertidas em fetiches. À medida que ela
consegue inscrever seus contextos vividos, históricos e estruturais, em sua
retórica, nos procedimentos de sua performatividade linguística, ela articula uma
intersubjetividade, ou seja, uma lógica relacional e não substancial, que a afasta
tanto do perigo de um narcisismo performativo quanto de uma objetividade
enrijecida estéril. Nisso, a fabulação como prática teórica guarda retoricamente
um equivalente ao enigma das obras de arte cuja interpretação revela como as
obras podem ser, ao mesmo tempo, independentes e relacionadas ao seu
contexto histórico. Ao expor-se nessa performatividade dessubstancializada,
consegue configurar a teoria como espaço no qual se articulam trânsitos entre
arte e vida, espiritualidade e materialidade, história e futuro como intervenções
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Para uma teoria crítica do teatral: situando a cena expandida da teoria na contemporaneidade
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Recebido em: 02/05/2024
Aprovado em: 16/06/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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