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O museu sem fim de 1976 (Sala 1: uma erótica da crítica)
Daniele Avila Small
Para citar este artigo:
SMALL, Daniele Avila.
O museu sem fim de 1976 (Sala 1:
uma erótica da crítica)
.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0601
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O museu sem fim de 1976 (Sala 1: uma erótica da crítica)
Daniele Avila Small 1
Resumo
O museu sem fim de 1976 funciona como uma visita guiada a um museu imaginário.
Neste museu, encontram-se obras de arte e reflexão crítica criadas por mulheres
em 1976, ano de nascimento da artista. Ao falar dessas obras, compartilhando
imagens e ideias, ela reflete sobre as mentalidades e os afetos que estavam em
pauta em meados dos anos 1970 para mulheres em diferentes contextos. O mapa
astral da artista as cartas para a curadoria deste museu, trazendo a astrologia
para a cena como uma lente criativa, que oferece um repertório imagético e narrativo
inusitado para a abordagem das artes, da história e das narrativas de si.
Palavras-chave
: Crítica de teatro. Narrativas de si. Feminismos. Historiografias de
artista. Palestra-performance.
The Never-Ending Museum of 1976 (Room 1: An erotica of criticism)
The Never-Ending Museum of 1976 works like a guided tour of an imaginary museum.
In this museum, there are works of art and critical reflection created by women in
1976, the year the artist was born. When talking about these works, sharing images
and ideas, she reflects on the mentalities and affections that were on the agenda in
the mid-1970s for women in different contexts. The artist's natal chart gives the
cards for the curatorship of this museum, bringing astrology to the scene as a
creative lens, which offers an unusual imagery and narrative repertoire for
approaching the arts, history and self-narratives.
Keywords
: Theater criticism. Narratives of the self. Feminisms. Artist's
historiographies. Lecture-performance.
El museo sin fin de 1976 (Sala 1: Una erótica de la crítica)
Resumen
El museo sin fin de 1976 funciona como una visita guiada a un museo imaginario. En
este museo se encontran obras de arte y reflexión crítica creadas por mujeres en
1976, año en que nació la artista. Al hablar de estas obras, compartiendo imágenes
e ideas, reflexiona sobre las mentalidades y afectos que estaban en agenda a
mediados de los años 1970 por las mujeres en diferentes contextos. El mapa astral
de la artista da las cartas para la curaduría de este museo, trayendo la astrología a
la escena como una lente creativa, que ofrece un repertorio imaginario y narrativo
inusual para acercarse a las artes, la historia y las autonarrativas.
Palabras Clave
: Crítica teatral. Narrativas del yo. Feminismos. Historiografías de
artistas. Conferencia-performance.
1 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em
História Social da Cultura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Graduação em
Estética e Teoria do Teatro pela UNIRIO. complexoduplo@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8830139796417170 https://orcid.org/0000-0002-4479-3052
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O projeto da peça O museu sem fim de 1976 (Sala 1: uma erótica da crítica) foi
contemplado pelo edital Firjan SESI de Cultura no Rio de Janeiro, com estreia
realizada no SESI Jacarepaguá em junho de 2023. A peça fez temporada no Espaço
Cultural Municipal Sérgio Porto, fez apresentações no Futuros – Arte e Tecnologia
(antigo Oi Futuro), sendo uma delas transmitida ao vivo pelo YouTube, e no Centro
Cultural AMAR São João, em São João de Meriti, na Baixada Fluminense. O
espetáculo também participou do 37º FESTIVALE, em São José dos Campos, da
Mostra Bosque da PUC-Rio, da mostra Movimentos de Solo no Teatro Domingos
Oliveira, da Mostra de Teatro da Porto Iracema, em Fortaleza, e da Mostra NAPE,
em São Luiz do Maranhão.
Trata-se de uma visita guiada a um museu imaginário. Neste museu, encontram-
se obras de arte e reflexão crítica criadas por mulheres em 1976, ano de
nascimento da artista. Ao falar dessas obras, compartilhando imagens e ideias, ela
reflete sobre as mentalidades e os afetos que estavam em pauta em meados dos
anos 1970 para mulheres em diferentes contextos. O mapa astral da artista dá as
cartas para a curadoria deste museu, trazendo a astrologia para a cena como uma
lente criativa, que oferece um repertório imagético e narrativo inusitado para a
abordagem das artes, da história e das narrativas de si.
Informações sobre o espetáculo podem ser encontradas em
https://trilhasdacena.com.br/o-museu-sem-fim-de-1976/
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No foyer, na coxia, ou em algum espaço de acesso à sala onde o
espetáculo vai ser apresentado. Enquanto o público espera o início do
espetáculo, toca Zodiacs de Roberta Kelly e Pela Internet de Gilberto Gil.
A música sai em fade quando ela se dirige ao público.
Boa noite. Sejam bem-vindas, bem-vindos, bem-vindes. Tudo isso aqui começa
com uma ideia péssima. Uma ideia ruim mesmo. Pensem comigo. O que faz uma
artista de teatro querer escrever crítica de teatro? O que faz uma pessoa querer
continuar escrevendo crítica de teatro durante mais de 15 anos, se isso não lhe
traz retorno financeiro adequado, suficiente, constante? Essas perguntas sempre
estiveram em pauta para mim, afinal, ser crítica de teatro não é uma coisa que
parece desejável. Não. Pelo contrário até. Por que alguém se colocaria, de
propósito, nesse lugar? É antipático. Parece chato. Evoca uma ideia de autoridade
velha. Mas, para além desse clichés, que como clichés não correspondem
exatamente à realidade, esse questionamento vem ganhando volume aqui dentro.
E isso acontece por causa do tempo. O tempo cronológico dedicado a essa
atividade. E uma sensação de desproporção. Uma dificuldade real, recorrente, de
enxergar a efetividade do trabalho feito, mesmo que eu também consiga, muitas
vezes, identificar sinais de retornos simbólicos significativos. O descompasso dos
resultados materiais provoca uma grande confusão.
Esse não é um problema individual, apesar de essa história estar sendo contada
de um ponto de vista pessoal.
E aqui eu preciso fazer uma ressalva. A pessoa que escreve crítica de teatro não é
necessariamente jornalista. Eu não sou jornalista. Esse é um outro campo de
trabalho, que também tem passado por inúmeras crises, mas eu me refiro aqui a
outro universo, mais ligado ao das práticas artísticas. A minha formação é no
teatro.
Em 2006, eu estava na graduação em teoria do teatro na UNIRIO. E existem cursos
de graduação em Teoria do Teatro em universidades públicas porque esse é um
campo de trabalho. Ali, eu comecei a escrever crítica e comecei a fazer isso
publicamente, porque eu abri um
blog
no
Blogspot
. Rede social no Brasil naquele
momento,
Orkut
. Naquela época, quando as pessoas queriam falar sobre o que se
escrevia na internet, elas usavam o termo blogosfera.
Logo depois, com alguns colegas da universidade, eu criei uma revista – não mais
um
blog
, mas agora uma revista eletrônica de críticas e estudos teatrais, a Questão
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de Crítica. Hoje, a expressão “revista eletrônica” chega a parecer analógica. Era
2008, o ano em que o
Twitter
começou a aparecer no Brasil, mas ainda em inglês.
A versão em português do
Twitter
é de 2009. A
internet
era muito diferente
naquela época.
O meu plano era juntar pessoas em torno dessa atividade, para modificar a cultura
de crítica de teatro da cidade e a cidade é o Rio de Janeiro. Então não é como
se eu quisesse simplesmente escrever crítica. Eu queria que, com esse
movimento, a crítica de teatro se tornasse no imaginário artístico da cidade
outra coisa.
E o teatro, também. Eu queria que o teatro se tornasse – no imaginário crítico da
cidade outra coisa. Parecia possível? Provavelmente não. Mas eu tinha muita
disposição pra esse enfrentamento. Era um impulso vital.
Essa disposição, no entanto, foi sendo colocada à prova ao longo do tempo. Como
tantas propostas artísticas independentes, comprometidas com o pensamento
crítico, com alguma ideia de construção a longo prazo, como eu poderia imaginar,
em 2008, que além das dificuldades postas, o Brasil passaria por uma avalanche
de destruição? Quando a revista completou 10 anos de trabalho, estávamos no
Brasil de 2018. A internet tinha se transformado mesmo. O país estava mostrando
o que tinha de pior.
Em 2023, com os 15 anos da revista, mesmo com uma perspectiva de
reconstrução do país e de políticas públicas para a cultura e a educação, eu não
estava enxergando motivo para comemorar. Eu estava me sentindo convocada a
simplesmente parar.
Essa fase mais aguda de questionamentos me pegou no meio do processo criativo
dessa peça em que eu estava me endereçando à minha escolha profissional.
Uma palestra-performance sobre a minha inclinação para a reflexão teórica sobre
as artes. Sobre o porquê da atividade reflexiva me seduzir mais que a criação
artística.
Foi quando eu entendi que não dava mais para ficar me fazendo as mesmas
perguntas internamente e que as ferramentas da racionalidade não tinham mais
respostas pra me oferecer. Então eu decidi que ia consultar um oráculo. E que eu
iria fazer isso nessa peça.
Porque o teatro é também uma metodologia de pesquisa, um modo de conhecer.
Uma prática que envolve reflexão e ação e que pode, nos seus processos,
reposicionar algumas coisas. Aqui, eu convido vocês a fazerem esse percurso
comigo.
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Neste momento, ela pode dar instruções sobre a ocupação do espaço,
convidar o público a se servir das bebidas disponíveis em algum ponto
do espaço cênico: cachaça, chá de hibisco ou café.
Espera-se de um percurso que haja deslocamento. Pode não ser confortável, pode
não ter lugar pra se sentar, por exemplo. Mas pensar de pé ou com a possibilidade
de se movimentar, pode ser muito bom.
Ao som de uma ventania nos primeiros momentos, ela conduz o público
ao espaço cênico, onde se pode ver algumas mesas, duas delas com
projetores um projetor de slides Kodak Carrossel, um retroprojetor de
transparências e alguns suportes que funcionam como telas. A
iluminação, suave e amarelada, é feita com equipamentos de estúdio
fotográfico refletores em tripés, um softbox, sombrinhas. Durante toda
a peça, não movimentos de luz. Não há cadeiras para todo o público,
apenas alguns bancos para quem não puder ficar em pé.
Ela se dirige ao público, que está disperso no espaço, lendo a partir de
uma prancheta com pequenas luminárias acopladas. A trilha permanece
ao fundo por um tempo, saindo em fade após a menção ao filme A
história sem fim.
Os oráculos estão presentes na história da humanidade desde sempre, em
diferentes culturas. Mas uma das primeiras memórias que tenho, de ter escutado
uma narrativa sobre um oráculo, foi numa aula de história na escola. Um professor
contou uma parte de uma narrativa bíblica, sobre José, filho de Jacó e Raquel, que
é vendido pelos irmãos, é escravizado no Egito e a vida dele muda completamente
quando ele interpreta o sonho de um rei. O rei tinha sonhado com sete vacas
gordas e sete vacas magras. José explicou que haveria sete anos de abundância
e, na sequência, sete anos de carestia.
Assim, durante os sete anos de fartura, que de fato se seguiram, o rei se preparou
para a possibilidade de um futuro de “vacas magras”, o que também se
concretizou, e ele conseguiu salvar o seu povo da fome, apostando na
interpretação de um oráculo.
Mas a referência mais importante de um oráculo no meu imaginário veio de um
filme, que eu vi quando era criança. No filme, um menino solitário e introspectivo
um livro escondido. Na narrativa do livro, o mundo de fantasia está sendo
destruído por uma ameaça invisível, o nada. E a imperatriz criança, à beira da
morte, precisa ser salva para interromper essa ameaça de aniquilação. Para
descobrir a cura para a Imperatriz Criança, um jovem guerreiro é convocado para
consultar o oráculo do sul. A maior parte da narrativa do filme é a peregrinação
deste jovem até o oráculo. Quando ele finalmente chega lá, ele não entende o que
o oráculo diz e fica muito frustrado. Mas as crianças, que estão assistindo ao filme,
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entendem que tudo o que ele precisa fazer é o percurso e conseguem decifrar o
que para ele é incompreensível.
Pessoas que estudam história do teatro ocidental têm essa imagem no seu
repertório porque no teatro grego tem um oráculo muito presente, o Oráculo de
Delfos. Uma sacerdotisa desce ao subterrâneo do Templo de Apolo, respira
vapores sagrados que emanam do subsolo, e, numa espécie de transe, responde
às consultas. Tem uma personagem da mitologia grega, a Cassandra, que é, em si,
um oráculo. Ela prevê o futuro, ela enxerga o que vai acontecer, mas ela tem uma
maldição. ninguém acredita no que ela diz. Então ela está sempre vendo as
consequências das ações das pessoas e alertando, inutilmente, porque ninguém
consegue assimilar a fala profética dela.
Mas então, se a resposta é quase sempre um enigma, qual é o sentido de consultar
um oráculo?
E é aí que entra uma figura histórica, um filósofo grego do século V a.C.: Sócrates.
Um dia, um dos seus discípulos vai consultar o oráculo e pergunta que homem
grego é mais sábio que Sócrates. O oráculo responde: ninguém. Nenhum homem
grego é mais sábio do que Sócrates. Sócrates fica desconfiado e toma uma atitude
com relação ao oráculo que é completamente diferente do que era habitual. Ele
não tenta adivinhar o que está por trás da fala profética, nem fica à espera de que
a profecia se consolide. Ele vai pôr o oráculo à prova e vai fazer isso
publicamente, o que não é um detalhe.
Então ele empreende um percurso de verificação dos seus saberes e dos saberes
dos outros, assim ele se dedica à formação dos cidadãos. Mas essa formação não
é entregar um conteúdo, e sim encorajar seus interlocutores a fazerem melhores
perguntas.
Ele defende que cada um deve fazer o exercício constante do exame crítico, de
pôr à prova aquilo que pensa que sabe. O que ele conclui é que até os mais sábios
acreditam que conhecem o que eles, na verdade, não conhecem. Quanto a ele
mesmo, a única coisa que sabe é que não sabe de nada.
Mas por causa dessa prática, Sócrates é denunciado, julgado e condenado. Ele tem
duas opções. Ele pode permanecer vivo e ter sua língua cortada ou pode escolher
a morte por envenenamento. Ele escolhe a morte. Sócrates dispensa a vida sem
o debate crítico, sem a fala franca, sem o exame radical de todas as coisas.
Na hora da morte, ele insiste para que seus discípulos sacrifiquem um galo para
Esculápio. Esculápio, enquanto figura mitológica, é filho do deus Apolo, é o deus
da medicina, da cura. Em uma ocasião anterior, Sócrates e seus discípulos tinham
se curado de uma opinião falsa e eram gratos a Esculápio por isso. É a esse tipo
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de cura que Sócrates quer prestar a sua homenagem final, a cura que vem do
cuidado de si, de pôr à prova as opiniões, as profecias, as verdades.
Esculápio, enquanto figura histórica, foi um dos primeiros astrólogos da Grécia
Antiga. E aqui, mais uma péssima ideia: O meu oráculo é a astrologia.
Entra trilha original. Ela liga o retroprojetor que reflete na parede a
imagem impressa na transparência: o seu mapa astral, dividido com o
método Placidus.
Eu não sou astróloga, mas eu acho a dramaturgia da leitura de um mapa astral
uma coisa muito sofisticada. Não é uma ciência exata, mas também não é
bagunça. Tudo está em relação e tudo está em movimento. Só que eu não espero
da astrologia uma previsão do futuro. Esse é um oráculo que pode me ajudar a
olhar para trás. Não como algo que pode me dar acesso à verdade, mas como um
jogo simbólico, com o qual eu posso fazer uma triangulação. Eu coloco as coisas
da seguinte maneira.
Sai a trilha.
Se eu me propuser a ver as coisas por esse filtro, o que mais eu vejo? Eu consigo
ver melhor, ver diferente? Eu consigo ver outras coisas, que não estavam visíveis
pra mim se eu olhar pra minha vida com as lentes da astrologia? Se eu estudar o
meu mapa, eu consigo identificar razões para a minha escolha profissional? Será
que eu consigo forjar um rearranjo de rota? De onde vem essa coisa com a crítica?
De quem foi que eu herdei essa maldição?
Um mapa astral é como uma fotografia do céu na hora do seu nascimento.
Entra trilha original. Ela troca a transparência, mostrando um esquema
da divisão das casas 12 astrológicas com suas correspondências aos
signos do zodíaco.
O mapa é dividido por duas linhas principais: uma linha do horizonte e um
meridiano. Essas linhas separam o mapa em 4 partes, que depois vão se dividir
em 12 casas, que têm relação com os 12 signos do zodíaco. Cada casa reflete um
campo de experiências da vida. Dentro das casas, a gente vai ver a posição dos
planetas, de outros corpos celestes e as relações que se estabelecem entre eles.
Eu não vou falar de todas as 12 casas, vou dar alguns exemplos, e bem
resumidamente.
Ela troca a transparência, mostrando outro esquema de divisão de casas,
com as casas 1 e 4 marcadas e raízes desenhadas embaixo da casa 4.
A linha horizontal vai apontar para a constelação zodiacal que estava despontando
no oriente: essa constelação é o ascendente e o signo da casa 1. Isso é importante
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aqui. O ascendente é uma espécie de vetor, que parte de nós na direção do mundo,
e sempre está em algum signo. É a lente a partir da qual a gente o mundo e,
de algum modo, como somos vistos também. A nossa "aparição".
A primeira casa é a experiência da identidade. A pergunta dessa casa é “quem sou
eu?”, “como se esse processo de ser alguém?” O signo dessa casa, que também
é o ascendente, vai dar pistas sobre como é esse caminho. No caso do meu mapa,
o signo é escorpião. O meridiano vai apontar, na parte mais alta do mapa, para a
constelação que estava no meio do céu naquele momento. E, na parte mais baixa,
no outro extremo, o fundo do céu, a casa 4. A casa 4 também é importante aqui.
Ela é a casa da ascendência, da família que veio antes, da experiência do
pertencimento. Quando eu estava estudando o meu mapa, eu li que essa também
é a casa da casa, do lugar físico onde a gente mora, “onde a gente se recarrega”.
Então eu anotei no caderno da peça: “de que ascendência eu me recarrego?”
O signo que está nesta casa vai dizer do modo como a gente vivencia isso. A minha
casa 4 está em Aquário. Aquário é um signo que enxerga na frente e pra além do
que já está dado. Aquário vê melhor o âmbito social, coletivo. Então, eu comecei a
imaginar uma perspectiva aquariana, mais inventiva, pra essa casa. Eu pensei que
a ascendência que me alimenta não é só a família no sentido biológico. Para além
da família que eu tenho, eu posso inventar outras ramificações paralelas, em
outras frequências, de onde eu tiro outro tipo de força.
Sai a trilha.
Foi assim que eu pensei que eu me recarrego nas realizações de mulheres artistas
e pensadoras que vieram antes de mim.
Ela tira a transparência, deixando o projetor ligado, mas vazio.
Anos atrás, estudando obras de artistas mulheres, eu vi a reprodução de uma obra
que eu achei incrível, e me deu um estalo quando eu vi que ela tinha sido criada
em 1976, o ano em que eu nasci. A partir daí eu comecei a pesquisar obras de
artistas mulheres criadas especificamente nesse ano.
Eu não lembro mais exatamente como nem quando uma coisa se juntou com
a outra, mas, a partir disso, eu me fiz uma proposição. Levantar um museu
imaginário com uma exposição permanente de obras de arte e pensamento crítico
realizadas por mulheres no ano em que eu nasci. Um museu imaginário. Uma
exposição permanente. Obras de arte e pensamento crítico. Mulheres. 1976.
Não seria possível reunir todas, eu teria que fazer um recorte, um recorte radical,
uma curadoria. Foi quando apareceu pra mim a ideia de fazer a curadoria desse
museu a partir das coordenadas do meu mapa astral. Assim, o museu tem 12 salas,
que são equivalentes às 12 casas astrológicas. Os elementos de cada casa do mapa
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oferecem os critérios para a curadoria e para a expografia de cada sala do museu.
Esse projeto tinha ficado guardado, até que eu entendi que era dessa maneira que
eu precisava consultar o oráculo: juntando pessoas para compartilhar comigo esse
processo.
No projetor, ela volta a mostrar sua carta natal.
No caso da primeira sala do museu, que corresponde à primeira casa do meu
mapa natal, os critérios curatoriais são os seguintes: o ascendente em Escorpião,
as questões relativas à casa 1, sob o signo de Escorpião e o planeta Netuno, que
está na minha casa 1, mas no signo de Sagitário.
A relação entre planeta, signo e casa é uma relação entre o quê, como e onde.
Os planetas são o “o quê”. Netuno, um dos regentes do signo de Peixes, é o planeta
que embaça as coisas, dilui, tira a nitidez. Onde ele está, parece que tem um
nevoeiro. Netuno é muito lento. Ele leva 165 anos pra dar a volta no Zodíaco. Ele
lida com o invisível, o abstrato, com a imaginação. A sensibilidade artística é da
órbita de Netuno. A confusão mental também. Confusão mental é terreno fértil.
Netuno é um planeta em que chove diamante.
Os signos são o “como”. O modo sagitariano é expansivo, cosmopolita, estudioso,
idealista, tem fé. Tem curiosidade pelo conhecimento e uma tendência a estar
adiante, apontando os caminhos. Todas as pessoas que nasceram entre 1970 e
1984 têm Netuno em Sagitário. Esse trânsito, desse planeta por esse signo, vai
marcar toda uma geração e a experiência de uma época, em uma escala mundial.
Mas o modo de vivenciar Netuno em Sagitário pode ser muito diferente de pessoa
para pessoa, porque isso vai depender, entre outras coisas, da casa em que esse
planeta está.
As casas astrológicas são o “onde”. A primeira casa, além de ser A casa da
afirmação da individualidade, também é o nosso modus operandi padrão. Os
elementos dessa casa vão mostrar o modo como a gente faz as coisas, como
funciona essa engrenagem com a qual a gente se desloca pela vida.
Então, finalmente, depois de algum tempo de oscilação entre imaginar essa peça
e achar que ela é mais uma péssima ideia, aqui estamos, na inauguração de o
museu sem fim de 1976.
Entra música, a faixa Club Scene da trilha sonora de Michael Small para
o filme Klute O passado condena. Ela troca a transparência, colocando
na projeção a logomarca do museu. Em seguida, convida duas pessoas a
segurarem as extremidades de uma fita vermelha e pede para o público
comemorar junto quando ela cortar a fita.
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Começamos com uma visita guiada à Sala 1: Uma erótica da crítica.
Ela troca a transparência, projetando um esquema com a divisão de
casas e uma marca no espaço referente à casa 1, com a frase “Você está
aqui”. Em fusão, entra uma versão instrumental de The Thin Line, da
Blondie.
Essa é a única sala que a gente vai visitar hoje. As outras ainda não estão prontas.
Se a curadoria da primeira sala é pautada por uma reflexão sobre a casa da
identidade, as lentes a partir das quais a gente o mundo e a nossa aparição,
acho coerente começar com uma exposição de autorretratos. O primeiro nome
que eu escrevi no caderno da peça é o dela: Francesca Woodman.
Ela coloca uma transparência com o nome da artista Francesa Woodman.
Em seguida, vai até o projetor de slides, liga o aparelho e projeta o
primeiro slide com uma fotografia de Francesca Woodman. Ao longo da
próxima cena, ela vai trocando de slides, comentando as obras da artista
ou deixando uma ou outra ser apreciada em silêncio. Após as primeiras
frases, a música sai em fade.
A maior parte das obras expostas nesta sala é de 1976, ano em que a Francesca
Woodman estava na escola de fotografia, com 18 anos. Muito da obra dela me faz
ver melhor o que é ter o ascendente em Escorpião e Netuno em Sagitário na casa
1. Não que ela tenha essas características no mapa dela. É como eu vejo. Quando
a gente uma obra de arte, a gente não necessariamente as intenções da
artista ou um reflexo da artista, a gente principalmente o que a gente projeta,
a partir das ferramentas que a gente tem.
Pode ser difícil identificar ou reconhecer a imagem dela. Essa é uma das coisas
mais evidentes nesses autorretratos. Ela se fotografa produzindo um borrão, um
mascaramento do rosto e do corpo. Às vezes a cabeça dela está fora do quadro.
Naquela época, as mulheres estavam pesquisando linguagens em que elas usavam
o próprio corpo como suporte. Isso é bem evidente na arte da performance, que
a gente também pode enxergar no horizonte de criação da Francesca, mas o meio
de expressão dela era mesmo a fotografia. A performance acontece na fotografia.
A foto é o tempo e o espaço da performance. Ela era muito consciente de que o
nu feminino era um tema da história da arte, um objeto de investigação poética e
de experimentação técnica. Isso é bem Netuno em Sagitário. A erudição nas artes.
A ideia de que arte é pesquisa e pensamento, diálogo com as tradições, ruptura
formal, investigação. As fotos são construções. São como cenas. Ela encena o
enfrentamento com o repertório que ela tem e as propostas artísticas que ela faz.
E a cenografia das fotos dela, pra mim, têm um quê de ascendente em escorpião.
Dizem das pessoas que têm esse posicionamento no seu mapa natal que elas
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veem o mundo como um ambiente hostil, um lugar perigoso. Ainda assim, ela não
se coloca separada desse mundo, ela entra. Escorpião é um signo de água. Mas,
esse elemento, nesse signo, não é como um oceano, um lago, é aquela água que
se infiltra, que encontra uma passagem e um jeito de chegar aonde precisa
chegar.
Para essa outra fotografia, ela dá o título
My house
. Minha casa. Em casa, ela está
indiscernível, num estado de fusão com o espaço de trabalho dela. Seria a história
da arte um ambiente hostil para uma jovem fotógrafa nos anos 1970? Ela teria que
se conformar com um canto? Ela gostava dos cantos. Tem algumas fotografias e
obras de videoarte também, em que ela se dedica aos cantos dos espaços internos
em que ela trabalha.
Ela vai se mesclando com o espaço e com isso ela também embaça o tempo. Ela
usa uma técnica da fotografia, que é a longa exposição, uma espécie de click
demorado, quando você deixa o sensor da câmera receber luz por mais tempo. É
como um gesto da fotógrafa contra uma das ideias básicas de qualidade da
fotografia no senso comum. A fotografia contra o foco. A longa exposição pode dar
esse efeito netuniano, trêmulo, fantasmagórico, que faz a gente ver uma cena,
com uma duração. É como se ali tivesse um portal que desorganiza o tempo
cronológico, como se ela abrisse um vão no tempo e se deixasse desaparecer
nesse vão. Na volta, ela perde o contorno.
Uma autobiografia, um autorretrato, qualquer coisa que se refira à ideia de “quem
aquela pessoa realmente é”, pode ser uma armadilha. Uma falsa captura. Um
autoengano. Ela tem uma série, de 1978, que tem esse título,
Autoengano
. Acho
tão Netuno na casa 1.
Usar o próprio corpo como suporte em uma obra de arte não dá acesso direto à
pessoa da artista. Nem o corpo nu. É sempre construção, elaboração, é sempre
uma poética. quem diga que nos autorretratos da Francesca Woodman, ela é
uma espécie de personagem. Essa ideia não dá conta. Persona é um termo mais
apurado. É e não é ela mesma. E às vezes não é ela, mesmo, porque ela também
usava as amigas como modelo.
Ela resiste ao enquadramento, mesmo que ela tenha tentado entrar por conta
própria. Porque ela entra com uma perspectiva crítica, pressionando os limites. Ela
entra produzindo escorpianidades.
Esse foi o primeiro autorretrato dela, em 1971. Ela tinha 13 anos. pra ver o fio do
controle remoto da máquina fotográfica, mas não pra ver o rosto dela. Pra mim
ela está pegando a história da arte na unha, com uma estocada, uma ferroada.
Esse fio parece um cordão umbilical elétrico, intencionado, produzido
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artificiosamente.
essa fotografia, que é ainda anterior às de 76, me leva para outra artista, que
também estava atuante nessa época, a Ana Mendieta.
Entra música, o início de Entre dos aguas, de Paco de Lucia. Ela vai ao
retroprojetor e troca a lâmina para projetar o nome Ana Mendieta. Na
volta, ela desloca o projetor de slides, direcionando a imagem para outro
suporte, que está em outra direção e um pouco mais distante. A dinâmica
é a mesma da cena anterior: ela alterna a fala com a projeção de registros
de obras da artista em questão. Ela espera o público se reposicionar,
observa a imagem projetada, bebe água. Após as primeiras frases, a trilha
sai em fade.
Nos anos 60 e 70, artistas estavam experimentando criar obras sem produzir um
objeto de arte. Muitas obras eram conceitos, acontecimentos, que se esvaziavam
em termos de materialidade. O desaparecimento como estratégia pode ser uma
característica de escorpião. E pode sinalizar uma radicalidade de questionamento
sobre a identidade dos trabalhos. Porque, se a materialidade da obra se dissolve,
como se identifica a categoria das artes em que aquela obra se encaixa?
Os aparentes desencaixes me interessam. Ou ainda os encaixes múltiplos, quando
uma obra pode ser isso e aquilo. É fotografia e é performance. É teatro e é palestra,
ao mesmo tempo. Por que precisaria ser uma coisa só? A indistinção entre as
categorias nas artes não é uma ameaça de morte. E a morte, para Escorpião, é
transformação e renascimento, é fonte de energia vital, não é aniquilação. Eu vejo
isso nos trabalhos que a Ana Mendieta faz com a natureza, especialmente na série
que ela criou entre 1973 e 1980 e que ela chamou de Silhuetas, com obras que
transitam entre a performance, a videoarte, a fotografia, a escultura. Elas não
precisam de uma identidade artística fixa. O fato mesmo de que se trata de uma
série é uma evidência de movimento: a série é uma repetição com diferença,
uma continuidade descontínua.
Mas aqui a gente pode experimentar, a título de exercício, olhar para essas
silhuetas como autorretratos. Muitos deles são autorretratos de uma desaparição.
Praticamente anti-retratos. O que se são os vestígios de uma presença. A
silhueta é uma sombra, um contorno de escuridão. Só que, em vez de sombra, as
silhuetas dela são preenchidas de elementos da natureza: terra, água, fogo e ar.
Nisso aparece uma fusão da artista com o meio. Ela e os elementos estão
entrelaçados, compartilhando propriedades.
Isso tem relação com uma forma de ver o mundo que me ajuda a pensar a
astrologia. E que me ajuda a pensar o teatro. Ou simplesmente me ajuda a pensar,
ponto. Esse entrelaçamento entre o corpo e os elementos evidencia a participação
dos materiais na criação. Não é ela quem vai dar a forma final. Há uma negociação
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entre o desenho que ela propõe e o modo como a natureza vai responder. As
silhuetas são uma criação compartilhada entre ela, os elementos e o tempo.
A gente pode chamar isso de epistemologia participativa. Um modo de conhecer
em que não separação radical entre pessoa e natureza, entre os seres humanos
e o cosmos. Uma consciência de que somos feitos dos mesmos materiais.
Na chamada “razão moderna” ocidental, o homem (o homem branco, cis, hetero,
europeu) é o ser que pensa, enquanto tudo o mais que existe no universo é matéria
sem sentido, que serve como objeto passivo do conhecimento humano. Ele pode
usar e esgotar tudo o que tem à sua volta. De algum modo, a noção de arte
predominante na arte moderna reflete essa visão de mundo em que o homem é
o grande criador, que deixa a sua assinatura, a sua marca. Isso vai ser
problematizado pelas obras de algumas mulheres nos anos 70. Pra mim, essas
Silhuetas fazem isso. A Ana Mendieta se coloca como artista, mas, pelo que eu
vejo nessa série, parece que ela recua desse lugar de autoridade. Não que ela seja
contra as ideias de criação e autoria, mas eu acho que tem um recuo crítico nessa
desaparição. Uma desconfiança. Eu vejo aqui uma relação tensa entre ela e essa
instituição, a Arte com A maiúsculo.
Ela participa, ela se esforça pra entrar, mas a presença dela é uma soma que
diferença, uma adição que perturba. Acho isso bem de Escorpião. Uma aparição
disposta a causar incômodo. com a presença e com o desaparecimento.
Tem outra coisa que eu ainda queria colocar sobre o problema da identidade,
sobre os embaçamentos de netuno nessa área de experiência da vida e que tem
a ver com os trabalhos que ela faz com a terra.
Ela viveu a experiência do exílio. Ela nasceu e cresceu em Cuba, numa família rica,
de direita, e de repente foi mandada às pressas pros EUA, aos 13 anos de idade,
no contexto da Operação Peter Pan. No início dos anos 60, os EUA e a Igreja
Católica em Cuba armaram um esquema gigantesco de
fake news
, espalhando
que os comunistas iam sequestrar as crianças e adolescentes de Cuba, mandar
todos pra União Soviética para que essas crianças se tornassem soldados
comunistas ou pasmem carne enlatada. Desesperadas, as famílias de classe
média alta mandaram mais de 14.000 crianças pros EUA, entre elas, a Ana
Mendieta. Logo em seguida, com o embargo, os cubanos foram proibidos de entrar
nos EUA. Os pais não puderam ir visitar ou buscar seus filhos de volta durante
vários anos. Uma grande parte dessas crianças foi parar em reformatórios ou em
orfanatos em que elas eram tratadas como delinquentes em potencial. Outras
foram adotadas por famílias que exploravam as crianças como serviçais.
A Ana Mendieta até que teve sorte nesse contexto, porque ela foi adotada por uma
família que realmente cuidou dela. Mas, com a experiência do exílio na juventude,
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ela tem uma ligação à distância com a terra e a cultura. A noção de nacionalidade,
como um marcador da identidade, fica num lugar instável, numa espécie de
umbral entre uma nacionalidade e outra. Uma experiência fraturada de
pertencimento. E eu acho que é nesse lugar mesmo da fratura que a criação
artística dela se movimenta. Nessa fratura que rompe a rigidez das definições
identitárias.
Pesquisando isso, eu encontrei uma ideia que me chamou a atenção, que é o
desempoderamento: uma operação que tira o poder do enquadramento, do
achatamento, da definição fechada, e que dissolve o essencialismo dos contornos.
Se Netuno pode tirar o poder de fixidez de uma ideia essencialista da minha noção
de identidade, eu já acho que ter esse planeta nessa casa é um trunfo. Netuno na
casa 1 pode ser meu aliado. E o rigor de escorpião pode me ajudar a queimar o
que precisa virar cinza.
Tem mais uma coisa que me faz ver um Netuno nesses trabalhos, que é a ênfase
na fruição. As obras que escapam da forma fixa de um objeto final chamam
atenção para o quanto a arte acontece na imaginação e no pensamento de quem
assiste. Como se a dissipação das formas fosse um processo de transferência de
criatividade: da proposição da artista, para a materialidade elusiva da obra, que se
evapora e, nessa dissipação, ganha forma na experiência e na imaginação de quem
assiste. E essa forma, na memória, é ela mesma meio esfumaçada.
Netuno, pra mim, é o planeta da fruição das artes, mais que da criação artística.
Então eu penso que a experiência de ser leitora (ou espectadora) pode ser
significativa no meu processo de entender ou desentender quem eu sou. E se eu
juntar a fruição estética netuniana com a curiosidade pelo conhecimento,
característica de Sagitário, eu enxergo uma tendência reflexiva na minha relação
com as artes.
Entra uma versão instrumental de Treat Me Like a Woman, gravada por
Linda Carter. Ela desliga o projetor de slides e vai até o retroprojetor. Tira
a transparência com o nome da Ana Mendieta, observa o deslocamento
do público e retoma a leitura endereçada aos espectadores.
Escrever crítica, pra mim, tem sido uma tentativa de compartilhar uma experiência
de fruição que é, ao mesmo tempo, uma experiência do pensamento. Pensar
criticamente sobre teatro é uma experiência sensorial. Não é uma coisa que eu
faço com a cabeça, como se a cabeça fosse separada do corpo. Será que isso me
define de algum modo? Será que o oráculo está apontando respostas à minha
consulta?
As obras e autoras que eu quero apresentar agora, nessa segunda parte da Sala 1,
têm na escrita a sua forma de expressão. Seus textos propõem uma abordagem
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questionadora das imagens na relação com a cultura – na fotografia e no cinema.
Ela coloca a lâmina com o nome Susan Sontag.
A Susan Sontag, ensaísta e romancista, crítica de arte e cineasta, atuante nos
Estados Unidos e na Europa, não está aqui só porque os critérios curatoriais desta
sala combinam com o que eu vejo nos ensaios dela no entorno de 1976, mas
também porque ela teve um lugar na minha biografia. Um lugar um tanto
complexo. Eu estava estudando a Susan Sontag quando eu comecei a querer
escrever sobre teatro, lá nos anos 2000 e pouco.
Ela vai até a mesa que estava vazia e, de um caixote que estava no chão,
ela tira livros de autoria de Susan Sontag e fotografias impressas diversas,
espalhando esse material sobre a mesa e convidando o público a se
aproximar e interagir com esses materiais. Entre as fotos, estão as
imagens anteriormente projetadas das obras de Francesca Woodman e
Ana Mendieta, retratos destas artistas, de Sontag e de Beatriz
Nascimento, além de fotos do Templo de Apolo, de estátuas de Sócrates
e Esculápio, um desenho da Pitonisa e frames do filme A história sem fim
em que Atreuy se encontra com os oráculos. Durante esse processo, a
música muda em fusão para uma versão instrumental de I’ll Be Your
Mirror, gravada por The Velvet Underground & Nico. Sem pressa, ela deixa
a área da mesa e segue a leitura, caminhando pelo espaço, às vezes se
endereçando àqueles que não se aproximaram da mesa.
Os textos dela me davam vontade de escrever, mas também me davam vontade
de ver, de enxergar as coisas a ponto de alcançar o lençol freático por baixo delas.
O olhar, a ação de ver, o desejo de ver bem é um tema que sempre esteve em
pauta nos seus ensaios e criações artísticas.
Sobre fotografia
é o título do livro que contém ensaios escritos entre 1973 e 1977.
São seis ensaios, que abordam a fotografia por diferentes perspectivas. Embora
ela escreva com frases firmes, categóricas, ela não dá o debate por resolvido. Ela
vai dar continuidade ao processo de verificação das suas próprias opiniões até o
fim da vida, sempre retornando ao tema. O livro desperta desconfiança com
relação à fotografia. Não como obra de arte, mas também a fotografia
jornalística, documental, amadora, familiar, como objeto de consumo. Ela mostra
como a fotografia pode não ser apenas um artefato inofensivo. Ela questiona o
papel dessas imagens no modo como as pessoas lidam com a realidade e, com
isso, encoraja seus interlocutores a se fazerem perguntas sobre o tema. Ela pensa
sobre o que a fotografia faz, no mundo. E, principalmente, na ética por trás das
fotos. A máquina fotográfica é comparada a uma arma de fogo. O fotógrafo com
um assaltante, um predador, colonizador, alguém que se apropria de algo.
Sai a trilha.
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Ela se coloca com muita franqueza. E nisso fica evidente o amor e a raiva que ela
tem da fotografia, como afetos que convivem, que não se anulam mutuamente.
Às vezes parece que ela detesta a fotografia, mas ela está falando de uma coisa
que ela ama. E eu acho que isso diz de um modo de amar as coisas que é tentando
enxergar elas por inteiro. Tentando conhecer de todos os ângulos, com todas as
contradições. Eu vejo nisso um espelhamento com a minha relação com o teatro.
Eu não poderia escrever crítica (nem criar peças) se houvesse o amor, a
admiração, o encantamento. eu tenho raiva também. Tenho raiva e desconfiança
quando vejo, por exemplo, que uma peça tem um discurso fascista ou quando o
teatro subestima a inteligência e a sensibilidade dos seus interlocutores.
Esse livro,
Sobre fotografia
, tem uma característica comum com as outras obras
dela: a evidência de que ela tem um repertório imenso e isso também me faz
pensar em netuno em sagitário como uma enchente de referências. Além disso,
ela escrevia sobre literatura, cinema, teatro, ópera, dança, pintura, política... Ela
teve muito acesso, a tudo que ela precisava. Esse volume me fazia pensar que eu
precisaria correr muito atrás de ter repertório e me dava a sensação de que eu
estaria sempre defasada, porque eu estava começando tarde, não tinha tido
acesso a uma formação crítica desde cedo.
Nas obras da Francesca Woodman e da Ana Mendieta, eu vejo uma criticidade
inerente à criação uma criação que não está separada do pensamento. O que
eu vejo na escrita da Susan Sontag é uma criatividade inerente à escrita reflexiva.
Mas eu não me refiro aqui a uma mistura entre escrita ficcional e crítica, nem a
uma inventividade nas formas de escrever. O que ela estava tentando criar era um
território de sensibilidades no qual ela mesma pudesse transitar, tanto como
espectadora quanto como artista. Ela estava pavimentando o caminho que ela
mesma gostaria de trilhar com as criações dela.
Ao escrever, publicamente, sobre o que acontecia nas artes no momento histórico
que ela estava vivendo, ela estava verificando suas próprias ideias sobre as artes.
Isso foi se tornando evidente pra mim não na obra dela, mas de modo geral,
em artistas que se dedicam à produção de pensamento num sentido mais literal.
Mas é lamentável que ela não tenha escrito sobre artistas como a Francesca
Woodman ou Ana Mendieta. Ela não escreveu muita coisa sobre as obras de outras
mulheres. A Susan Sontag foi contemporânea de todas as artistas que eu venho
estudando para fazer a curadoria das 12 salas deste museu, mas ela não escreveu
sobre nenhuma elas. Com aquele protagonismo todo, ela não pensou em abrir
caminho?
O repertório dela é quase completamente masculino, e é evidente que esse foi um
dos fatores que fez com que ela conquistasse o espaço que ela conquistou.
atrás, quase 20 anos, eu sequer tinha repertório para questionar as escolhas
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dela. Nem tinha dimensão da distância. Os modelos disponíveis na minha
formação tinham condições de acesso que eu nunca ia ter, mesmo que as minhas
condições não fossem ruins.
Ela se dirige ao retroprojetor e tira a transparência com o nome da Susan
Sontag.
Além disso, a formação predominantemente estrangeira também produz
desencaixes, vácuos e fraturas no desconhecimento da história cultural do mundo
onde a gente realmente vive. Quando eu estava fazendo a pesquisa das obras de
mulheres no ano em que eu nasci, uma das primeiras verificações que eu pude
fazer foi a predominância de referências de língua inglesa no meu repertório,
especialmente dos EUA. Isso não foi uma surpresa, porque a dominação cultural
estadunidense nunca foi disfarçada. Por um lado, não dava pra descartar o que
me formou, nem seria esse o caso. Mas por outro, eu também precisava encontrar
outras referências, outras ramificações com as quais eu pudesse me conectar.
Então eu fui procurar especificamente por pensadoras brasileiras atuantes em
1976 e que me ajudassem a pensar sobre a minha inclinação para a crítica. Esse é
um movimento recente.
Eu comecei pesquisando a produção intelectual de uma historiadora que estava
me interessando, mas que eu conhecia pouco. O nome dela é Beatriz Nascimento.
Ela coloca a transparência com o nome Beatriz Nascimento. Entra uma
gravação em áudio, um trecho de uma entrevista de Beatriz Nascimento
concedida a Januário Garcia nos anos 1980, disponível no canal do
YouTube da CULTNE, na qual ela diz:
E, também, voltando a insistir, com essa compreensão da guerra de
movimento de Palmares, sabe? Da concepção do que é o quilombo,
que a gente pode dizer tudo sobre o quilombo. É uma democracia,
é uma organização social, é isso, é aquilo, é uma brecha no sistema.
Pra mim, desde o momento em que eu, com 17 anos, comecei a
pesquisar Palmares, Zumbi principalmente, o que foi me chamada
a atenção foi a fuga, a fuga no sentido quase musical da palavra. O
momento em que você se sente com total controle, que
necessariamente você não precisa fugir pra um outro espaço. Foge
dentro daquele espaço, pra entrar talvez, vamos dizer, num alegro
adiante, ou num adágio adiante. Eu acho que vocês entendem muito
bem isso porque vocês são artistas...
Ao final da gravação, começa a entrar a trilha que acompanha as
próximas falas, a batida de Podes crer, amizade, de Toni Tornado. Ela se
dirige a outra parte do espaço cênico, em que uma estante de
partitura, sobre a qual ela apoia o texto.
A Beatriz Nascimento foi historiadora e poeta, pesquisadora e ativista, uma das
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pioneiras das pesquisas sobre os quilombos e se preocupava especialmente com
a questão da mulher negra na sociedade brasileira. Em 1976, ela ocupava um lugar
de destaque no debate público sobre questões raciais no país. Nesse ano, que
marca os trezentos anos da revelação de zumbi, ela publicou um artigo no Jornal
do Brasil e uma entrevista na Revista Manchete. Com o Brasil em plena ditadura
militar, o movimento negro estava muito atuante, debatendo seu lugar na
sociedade, enquanto também celebrava a cultura negra de maneira afirmativa,
como no movimento Black Rio, que articulava música, política, cultura e
intelectualidade.
Sai a trilha.
Mas, nesse ano, estreia um filme brasileiro, uma grande produção, tendo como
protagonista, uma personagem escravizada: Xica da Silva. Ainda em 76, Beatriz
Nascimento publica, no Jornal Opinião, uma crítica ao filme Xica da Silva, com o
título “A senzala vista da casa grande”. Ela não era crítica de cinema, mas tinha
muito entendimento sobre o cinema e sobre a cultura de massa. E ela era
pesquisadora dos temas que o filme abordava. Alguém que SE importava muito
com aquela narrativa que, para o filme, era um mero assunto, que poderia ser
retratado ao sabor da imaginação do autor, desde que resultasse em um bom
filme.
A partir desse momento, entram trechos gravados da crítica em questão,
lidos por Laís Machado. Eventualmente, ela dá ênfase a alguns pontos da
sua leitura. O nome do diretor do filme foi substituído no texto por “o
diretor”.
Alguém disse que a arte não precisa estar na frente porque a arte
é vanguarda. Como qualquer axioma, este deve ser pensado,
porque em vários momentos a arte pode refletir compreensões
conservadoras. É isso que se pode apreender da arte
cinematográfica em que consiste o filme Xica da Silva. Não
poderíamos aceitá-lo enquanto aparência estética na medida em
que, em arte, forma é conteúdo. Quanto à sua penetração enquanto
discurso e comunicação, o condenaríamos ao "índex" das obras
proibidas. Proibida em função do desrespeito que impõe a um
episódio da história de um povo, desrespeito quanto à história de
todo um povo, desrespeito na medida em que vilipendia esse povo,
desrespeito por manter todos os estereótipos em relação a um
povo que, no momento, procura, em função da sua autonomia
cultural, se livrar justamente desses estereótipos.
Em toda reflexão sobre crítica de arte, é importante expor de que noção de arte
estamos falando. Se considerarmos que uma obra é simplesmente um produto
criado por uma empresa e que precisa vender bem, uma crítica negativa é um
empecilho, que pode impactar as vendas, atrapalhando os negócios. Se
considerarmos que uma obra é o resultado de uma pesquisa, o compartilhamento
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de um processo de trabalho que parte de uma pergunta, de um questionamento,
de uma inquietação, então uma crítica é uma resposta que vem participar desse
questionamento, que oferece outras perspectivas de continuidade para aquela
investigação. Nesse caso, uma crítica negativa é uma interlocução criativa, um
debate de ideias, um investimento intelectual em um campo de conhecimento.
Quando se pensa em artefatos e eventos para o consumo e a satisfação de
clientes, aparece um critério que geralmente se toma por universal, o critério de
qualidade. Quando se pensa em criação artística, esse critério, a qualidade, se
torna bastante problemático, porque os projetos artísticos não partem de uma
única conjuntura, não têm a intenção de chegar ao mesmo lugar, nem de alcançar
os mesmos espectadores. Nesse âmbito, a ideia de qualidade pode ser um falso
critério, um valor distorcido. De qualquer modo, seja uma obra um produto
cultural para o mercado das artes ou uma criação que faz parte de um campo de
pesquisa, a partir do momento em que ela passa a fazer parte do mundo, ela
precisa ser pensada em relação a seu contexto. Porque as obras fazem coisas.
A ideia da arte como um campo à parte, autônomo, que não tem motivações e
consequências mundanas é questionável. Se isso fosse verdade, os movimentos
de extrema direita não teriam tanto ódio de artistas. Isso acontece porque as
criações artísticas são significativas na formação dos afetos, das mentalidades.
Mas nem por isso se deve idealizar a prática artística. Artistas são seres humanos
como todos os outros. Seres humanos e seres históricos. Por isso, as obras de arte
devem ser pensadas e debatidas como qualquer objeto da cultura. Falar
publicamente sobre criações artísticas é uma forma de cuidado. Um investimento
não intelectual, mas também afetivo, nessa prática e no mundo do qual as
obras fazem parte.
O diretor foge propositadamente à fidelidade histórica em relação
ao episódio. Talvez seja uma justificativa afirmar que a obra artística
para se concretizar não pressupõe rigor científico. A fantasia é a
matéria prima para uma boa obra em cinema. Podemos concordar
com isso. Não podemos concordar, entretanto, que o conhecimento
de um povo que, juntamente com o branco, formou a nação
brasileira, esteja ausente em todos os momentos do filme. E que
este se contente com o humor barato e grosseiro em cima dos
estereótipos mais vulgares a respeito desse povo.
A crítica de Beatriz Nascimento ao filme
Xica da Silva
foi um gesto de cuidado que
também foi um gesto de combate. Combate à irresponsabilidade artística e à
ignorância histórica, ao racismo e à misoginia. No texto, ela denuncia: uma série
de preconceitos, estereótipos e reduções, a conservação do mito de que a
colonização portuguesa foi amena e até divertida, o mau uso do humor, o
tratamento equivocado que o filme ao líder quilombola, as características
pejorativas conferidas à protagonista. Ela chama atenção para o desconhecimento
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do intelectual branco brasileiro sobre a história do negro. Esse desconhecimento
é, na verdade, uma escolha deliberada, porque o filme abre mão do rigor histórico
quando convém à imagem redutora que o diretor quer imprimir, mas faz uso desse
mesmo rigor quando a imaginação poderia fazer o filme se descolar da sua visão
preconceituosa.
Ela faz um contraponto a uma fala do diretor, que afirma seu amor pelo povo
brasileiro. Ela defende que o amor pressupõe conhecimento. E que criação requer
crítica. Em determinado ponto, ela faz uma pergunta: qual é o impasse cultural
em que está mergulhada a classe intelectual brasileira?
O método de Sócrates, de pôr as verdades à prova, tinha como pressuposto a fala
franca, a coragem da verdade. Quem se dispõe a expor publicamente o que pensa,
corre o seu risco. No caso da Beatriz Nascimento, era uma mulher negra
escrevendo em um jornal de maneira contundente em plena ditadura militar, sob
o regime do AI-5. Expondo sua postura ativista, ela corria risco de vida.
A coragem e até mesmo a vontade de correr riscos, pode ser vista como uma
característica de Sagitário, que é um signo que compartilha com Escorpião a
disposição para ir fundo, de maneira obsessiva. Essa obstinação, dos dois signos
que estão em pauta na minha casa 1, pode chegar a ser autodestrutiva. Mas a
franqueza da fala é uma parte do pacto. A outra parte, imprescindível à
verificação, é a coragem da escuta.
Se [o diretor] descesse um pouco de sua onipotência e fizesse uma
reflexão sobre si mesmo e a implicação da história do seu povo em
si próprio antes de confeccionar o filme, entenderia que devido às
relações sociais e culturais, ele, como um homem branco brasileiro,
possui introjetado de forma específica o negro brasileiro, sua
oposição em termos de homem e raça.
A crítica de
Xica da Silva
provocou uma grande reação em defesa do filme. Essa
evidência de negação da escuta sinaliza um problema maior, a negação do
protagonismo do movimento negro no processo de reconstrução da democracia.
E a gente também pode perceber nisso tudo um acúmulo dessa recusa com a
recusa à escuta da crítica e com a recusa da mulher e da mulher negra como
intelectual ativa na esfera pública. e uma negação, por parte dos artistas
envolvidos, no aprofundamento do debate sobre o cinema como coisa política.
Por um lado, o filme é um filme. Um produto de sucesso. De qualidade. Por
outro lado, o filme é “um banho de água fria”, um passo atrás na construção da
mentalidade de um país que precisa pensar sobre si com consciência histórica,
falar de si com responsabilidade ética, fazer um trabalho sobre si olhando para o
seu passado com todas as lentes possíveis: lupas, telescópios, binóculos,
microscópios, fotografias, filmes, livros, peças de teatro, artigos, ensaios, críticas.
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A crítica publicada por Beatriz Nascimento em 1976 foi um alerta. Com toda a sua
franqueza, o texto mostra a crítica como uma forma de cuidado. Ali, a autora
estava cuidando das imagens e das narrativas que dizem respeito à sua própria
vida e à vida dos seus, do rigor com a história do Brasil, da responsabilidade e da
relevância do cinema nacional, da democracia que estava POR VIR e que não
poderia ser construída sem a escuta aos setores da sociedade que pagam mais
caro pelo legado do passado colonial. Por esse movimento, ela foi acusada, pelo
diretor do filme, de fazer “patrulha ideológica”.
E foi assim que essa expressão passou a fazer parte do nosso vocabulário cultural.
Na recusa, por parte de artistas brancos a escutar os alertas de uma intelectual
negra. E foi ela mesma quem deu continuidade ao seu processo de verificação,
escrevendo de novo sobre o filme EM 1981. Ela comenta a repercussão da crítica
e aprofunda ainda mais os seus argumentos:
Entretanto, houve a incompreensão do próprio diretor, pois toda vez
que um crítico, e não a censura, coloca uma obra no índex, os
interesses dos autores vêm à tona de uma forma tão mais
autoritária quanto a censura num país politicamente fechado, ou
seja, o Brasil sobre o regime do AI-5 em 1976.
Essa expressão, patrulha ideológica, é usada até hoje. Ela é em si um gesto de
censura, uma tentativa de interrupção, de desqualificação do debate político no
âmbito da criação artística.
Entra outro recorte da mesma entrevista citada anteriormente:
Eu acho que a tática pra você criticar essa sociedade que está é
você agir da forma que a sociedade quer impedir de agir porque
é mais sábio. Quer impedir de agir porque pensa que lhe destrói,
pensa que vai conseguir te derrotar. Quer impedir de agir
justamente para que você de repente não surja. Ou então que você
passe na frente, como eu digo, e seja como eles organizaram que
deve ser. Eu não tenho nada contra quem faz isso. Eu acho que
tudo que está se fazendo no movimento no momento é válido em
todos os sentidos. que eu procuro, às vezes, até catequizar
algumas pessoas que estão no meu lado. Isso quando eu tenho
condições de falar, de falar. Olha, eu não estou aí... outras razões,
muitas razões, mas a primeira coisa que eu senti frente ao
movimento negro foi isso: eu não quero, antes que todos passem,
eu não quero passar.
Ao final da gravação, ela vai tirar a transparência e se dirige ao público.
Durante o processo de pesquisa para essa palestra-performance, eu assisti a um
debate sobre as características de Escorpião em que um dos participantes conta
uma narrativa exemplar. Muitos anos antes, ele estava determinado a provar que
a astrologia era uma falácia. Para fazer isso, ele começou a estudar astrologia. E
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foi avançando, estudando, examinando tudo minuciosamente. acabou se tornando
astrólogo. Ele atribui essa obstinação de investigação às qualidades de Escorpião.
É nesse sentido que eu relaciono o meu ascendente com a noção de crítica que
me anima. Conferir a qualidade de um produto nunca foi do meu interesse.
O que eu queria com a crítica era conseguir perceber o que as obras são, o que
elas fazem, que lugar elas têm no mundo, cada uma, caso a caso, como elas se
relacionam com o contexto em que elas existem e com o campo de
conhecimento, pesquisa e trabalho que é o teatro. Mas porque o teatro é tão
importante? Essa pergunta é outra história e vai precisar ser contada em outra
ocasião.
Ela coloca o mapa natal no retroprojetor mais uma vez.
Esse museu imaginário é sem fim, mas a visita à Sala 1 está quase terminando,
apesar de tanta coisa ter ficado de fora. Nós sequer falamos sobre os aspectos,
as relações que os corpos celestes estabelecem entre si. Uma das explicações
para o “sem fim” do título está na relação com a astrologia. Um mapa natal é uma
rede de remissões. Cada ponto remete a outro ponto do mapa, e assim
sucessivamente, o que forma uma grande teia.
Cada signo é regido por um ou dois planetas. Escorpião é regido por Marte e Plutão.
Plutão é um planeta geracional (assim como Netuno), então, para uma leitura mais
individual, é preciso estudar a posição de Marte como dispositor do ascendente.
No meu mapa, Marte está em Virgem, na casa 11 – fazendo inimigos desde 1976. O
planeta do enfrentamento, num signo com discernimento crítico afiado, na casa
dos grandes grupos, dos pares, das amizades, das militâncias. Para mim, a casa do
teatro. Na seara simbólica de Virgem, a crítica é algo criador, e não destruidor. A
percepção fina e realista desse signo, atenta aos detalhes, conduz ao
aprimoramento do que está dado, como um processo constante, não como uma
finalização perfeita.
A pergunta feita ao oráculo, aqui na Sala 1, está começando a ser respondida.
Eu vou precisar fazer o percurso todo e chegar até a sala 11 para conseguir fazer
melhores perguntas pro regente do meu ascendente. eu vou encontrar, entre
outras, aquela obra que eu vi anos atrás e que foi o começo de tudo.
Se eu conseguir criar uma sala por ano, o que é pouco provável, eu completo o
percurso com 58 anos. Posso comemorar os 60 fazendo uma maratona pelas 12
salas. Ou começando tudo outra vez.
Ela coloca uma transparência com o título O museu sem fim de 1976. Na
trilha sonora, volta o som de vento do início da peça.
O museu sem fim de 1976 (Sala 1: uma erótica da crítica))
Daniele Avila Small
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-25, jul. 2024
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Mas o título da peça também é uma espécie de homenagem àquele filme que eu
vi quando era criança e que me deu o primeiro impacto de uma referência visual
de um oráculo. Inspirado em um livro publicado em 1979 por um escritor alemão,
A história sem fim
oferece uma imagem possível para a sombra de netuno: o nada,
o mais assustador dos antagonistas das histórias da minha infância. Bem pior que
areia movediça, (que logo descobrimos que não vamos nos deparar com esse tipo
de problema na vida adulta) O nada em algum momento se apresenta. No filme,
na medida em que ele vai se aproximando, os seres vão perdendo o ânimo, as
paisagens vão perdendo a cor. Ele parece imbatível.
A resposta enigmática que o Oráculo do Sul ao jovem guerreiro é que a cura
para a Imperatriz Criança que pode vencer o Nada é um novo nome, que
pode ser dado por uma criança que viva fora das fronteiras de Fantasia. A criança
introspectiva e desajeitada, que estava lendo o livro. Acho que é por causa desse
filme que eu nunca aceitei a ideia de que o espectador é “passivo”. No meu
imaginário, o leitor é o herói da história.
Na minha luta contra o nada, às vezes eu preciso acessar aquela criança que eu
fui, no início dos anos 80, numa sala de cinema lotada. E eu preciso fazer o que o
personagem do filme faz para dar continuidade à vida daquela história. Dar nome
às coisas. O exercício crítico e a prática teórica nas artes demandam a coragem
de dar nome às coisas e de dizer esses nomes em voz alta.
Espero que a gente possa se reencontrar na Sala 2: A imaginação como recurso.
Em breve, quem sabe, com a ajuda de Júpiter. Muito obrigada pela escuta.
Toca a música-tema do referido filme, The Neverending Story, enquanto
ela vai até o retroprojetor e troca a transparência, projetando a ficha
técnica do espetáculo. Em seguida, agradece a seus apoiadores e se
despede do público.
Ficha técnica
Idealização, dramaturgia e atuação
: Daniele Avila Small
Direção
: Felipe Vidal e Tainah Longras
Direção de movimento
: Rômulo Galvão
Cenografia e iluminação
: Daniele Avila Small, Felipe Vidal e Tainah Longras
Figurino
: Flávio Souza
Trilha sonora
: Felipe Vidal
O museu sem fim de 1976 (Sala 1: uma erótica da crítica))
Daniele Avila Small
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-25, jul. 2024
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Fotos de cena e tratamento de imagens para projeção
: Guto Muniz
Interlocução conceitual e pesquisa histórica
: Andrezza Alves
Interlocução dramatúrgica
: Juliana França, Maria Lucas e Laís Machado
Consultoria em astrologia
: Any Luz Corrêa Orozco e Duda Karini
Identidade visual
: Analice Croccia
Direção de produção
: Luísa Barros
Realização:
Firjan SESI, Complexo Duplo e Questão de Crítica
Recebido em: 01/05/2024
Aprovado em: 20/06/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br