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Teatro épico-dialético: uma poética de resistência
e de igualdade de gênero?
Vanessa Biffon Lopes
Para citar este artigo:
LOPES, Vanessa Biffon. Teatro épico-dialético: uma
poética de resistência e de igualdade de gênero?.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0209
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Florianópolis, v.2, n.51, p.1-17, jul. 2024
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Teatro épico-dialético1: uma poética de resistência e de igualdade de gênero?2
Vanessa Biffon Lopes3
Resumo
Ainda que com uma proposta inovadora na história do teatro como forma e conteúdo,
o teatro épico-dialético de Bertolt Brecht (1967; 1978) não considerou profundamente a
perspectiva de gênero em sua concepção, uma vez que a luta de classes é o debate
central dessa teoria. Contudo, pensadoras feministas como Elin Diamond (2011) e Della
Pollock (1989) possibilitam uma compreensão mais expandida da teoria colocando o
gênero como categoria aliada na busca por um teatro revolucionário. A primeira autora
faz uma leitura do “método” do teatro épico-dialético e a segunda traz algumas
considerações acerca das personagens femininas da dramaturgia de Brecht.
Palavras-chave
: Gênero. Teatro épico-dialético. Feminismo.
Epic-dialectical theater: a poetics of resistance and gender equality?
Abstract
Even with an innovative proposition in the history of theater as form and content, Bertolt
Brecht's epic-dialectical theater (1967; 1978) did not deeply consider the gender
perspective in its conception, since class struggle is the central debate of this theory.
However, feminist thinkers such as Elin Diamond (2011) and Della Pollock (1989) enable
a broader understanding of the theory by placing genre as an allied category in the
pursuit of revolutionary theater. The first author makes a reading of the “method” of
dialectic epic theater and the second brings some considerations about the female
characters of Brecht's dramaturgy.
Keywords
: Gender. Epic-dialectical theater. Feminism.
Teatro épico-dialéctico: ¿una poética de resistencia e igualdad de género?
Resumen
Aunque con una propuesta innovadora en la historia del teatro como forma y contenido,
el teatro épico-dialéctico de Bertolt Brecht (1967; 1978) no consideró profundamente la
perspectiva de género en su concepción, ya que la lucha de clases es el debate central
de esta teoría. Sin embargo, pensadoras feministas como Elin Diamond (2011) y Della
Pollock (1989) permiten una comprensión más amplia de la teoría al colocar el género
como una categoría aliada en la búsqueda de un teatro revolucionario. El primer autor
ofrece una lectura del “método” del teatro épico dialéctico y el segundo trae algunas
consideraciones sobre los personajes femeninos en la dramaturgia de Brecht.
Palabras clave:
Género. Teatro épico-dialéctico. Feminismo.
1 A revisão ortográfica e gramatical do artigo foi realizada por Marcia Selivon, doutora em Filologia e Língua
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP).
2 Este artigo resulta em 78% de partes de minha dissertação de Mestrado em Artes, defendida em 2018, na
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) denominada: Contradições entre gênero e
classe no teatro de grupo paulistano: a representação poética da mulher no espetáculo A Brava da Brava
Companhia. A pesquisa do mestrado foi financiada pela CAPES / Demanda Social, por meio de bolsa de
estudos
3 Doutora pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho" (UNESP).
Mestrado pela UNESP. Licenciatura em Artes Cênicas e Bacharelado em Interpretação Teatral pela
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Professora de Artes do Instituto Federal de São Paulo - campus
avançado Jundiaí. Atriz do Grupo Teatral MATA! vanessa.biffon@unesp.br
http://lattes.cnpq.br/3443146844784569 https://orcid.org/0009-0008-2840-8020
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Grupos e artistas que escolhem se aprofundar no teatro épico-dialético
brechtiano, em pleno século XXI, ainda estão interessados na maior parte das
vezes – em criar uma cena que suscite transformações na consciência da plateia
acerca de sua realidade social, por meio de uma encenação que revele o
funcionamento do mundo material. Paralelamente, quando as criações femininas
nas artes encontram uma forma mais organizada a partir da segunda metade do
século XX (Romano, 2017b, p.159), e os estudos feministas ganham maior
consistência como campo crítico, teórico e prático, o próprio modo de ver e fazer
teatro é questionado, com isso, propostas cênicas que denunciam a estrutura
sexista ainda vigente nas sociedades ocidentais passam a surgir de maneira mais
abrangente.
Nessas duas perspectivas, de viés marxista e de viés feminista, podemos
observar pontos de convergência e outros de divergência. Apontaremos aqui
alguns desses aspectos, evidenciando o trabalho da atriz (ator) no “método”
brechtiano e a construção das personagens femininas nas dramaturgias do
teatrólogo alemão, a fim de responder à pergunta que intitula este artigo.
Em
Teatro Dialético
(1967), Brecht explicita alguns elementos importantes da
sua concepção sobre o trabalho do ator (atriz). Em linhas gerais, o ator (atriz) tem
por função narrar e conduzir a história da peça; ele (ela) conhece todo o enredo e
coloca o(a) espectador(a) em uma função de observador(a) ativo(a). O público está
ciente de que uma peça teatral e que é parte integrante dessa experiência
estética. A personagem é o objeto de pesquisa da peça; ela é mostrada em suas
relações sociais, que podem mudar a qualquer momento na encenação. As
personagens são representadas e não interpretadas pelas(os) atrizes(atores) que
nunca deixam de ser atrizes(atores) no instante da peça, não “encarnam” a
personagem.
Assim, Brecht utiliza traços épicos na cena com a intenção de provocar um
efeito de distanciamento
no público, que significa fundamentalmente historicizar
a cena, ou como resume o teatrólogo, “representar os fatos e os personagens
como fatos e personagens históricos, isto é, efêmeros” (Brecht, 1967, p. 138),
portanto, passíveis de transformação. Esse efeito pode assumir inúmeros
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formatos e características, de acordo com o tema central da peça, mas seu
objetivo principal é mostrar cenicamente que não uma humanidade universal,
assim como os comportamentos não o são, nem as instituições.
Historicizar a cena é um dos pontos mais relevantes de contribuição do teatro
épico-dialético para a desnaturalização do gênero na representação, na leitura da
pesquisadora feminista estadunidense, Elin Diamond. Assim como a luta de
classes é propositalmente velada ou tida como não passível de transformação,
também o gênero aparece como categoria fixa nas relações sociais, em uma
intenção objetiva de oprimir e marginalizar aquelas(aqueles) que não se incluem
(e não querem se incluir) na norma dominante. Mesmo aqueles que se incluem na
regra uma mulher nunca será “a regra” em uma sociedade machista
dificilmente podem desempenhar plenamente suas potencialidades na vida, dada
a violência simbólica e a alienação da subjetividade a que estão submetidos.
Pode-se considerar que, ainda que apresentadas separadamente por muitas
teorias e análises, as categorias de classe, gênero (e raça, etnia, idade e demais
demarcadores) refletem estruturas desiguais e opressoras de poder. Cada qual
carrega especificidades, mas todas as categorias de demarcação e exclusão
caminham em interseccionalidade, como aponta Kimberlé Crenshaw (2002, p. 177):
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre
dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma
pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros
sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam
as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além
disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas
específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos,
constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.
No que concerne ao gênero, de maneira geral, trata-se de uma categoria
atuante em um conjunto de gestos, comportamentos, aparências, que englobam
uma identidade construída social e culturalmente. No campo das artes, quando
um espetáculo é encenado, as relações de gênero transitam em cena, expressas
no ponto de vista sobre o tema (violência doméstica, greve operária), na
construção da indumentária (saia, cabelos compridos, barba, gravata), na ação da
personagem (procurar um amor, lutar na guerra, pedir esmolas, comandar uma
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empresa), nas interações que estabelecem e opiniões que expressam (ou que são
emitidas sobre seus comportamentos), na movimentação do corpo (delicadeza,
força), no trato das emoções (raiva, ciúme, vergonha) e nas funções sociais e
profissões exercidas por ela(ele) (mãe, herói, empregada doméstica, presidente,
padre)4.
A escolha desses elementos pode indicar uma proposta das(os) artistas
envolvidas na criação, ou não, apenas significar o reflexo do gênero normatizado
socialmente, indicando uma despreocupação (ou falta de consciência de gênero)
das(os) autoras(es) ao montar o espetáculo.
Mesmo que Brecht não tenha focado nas relações de gênero em sua teoria e
obra, o efeito de distanciamento pode ser usado por artistas que se interessam
em não reproduzir signos que limitam as possibilidades de ação e imagens dos
gêneros no teatro, fundamental no caso da desconstrução de valores arraigados
sobre o gênero feminino. É necessário fazer tal crítica a fim de criar outras
representações.
Quando os espectadores “veem” o género eles estão a ver (e a reproduzir)
os sinais culturais de género e, por conseguinte, a ideologia de género de
uma cultura. O género, na verdade, fornece uma ilustração perfeita da
ideologia em acção, visto que o comportamento “feminino” ou
“masculino” normalmente parece a “natural, logo fixa e inalterável”
extensão do sexo biológico, [...] Isto é, ao alienar (e não apenas rejeitar) a
iconicidade, e ao enfatizar a expectativa de parecença, a ideologia de
género é exposta e devolvida ao espectador (Diamond, 2011, p. 37).5
Contra a universalização das personagens, pesa o fato de que as pessoas são
todas resultantes de um processo histórico, diria Brecht, e cultural,
complementaria Diamond. Brecht e Diamond almejam que a arte seja capaz de
produzir obras nas quais as(os) espectadoras possam tornar-se uma espécie de
historiadoras(es) críticas da vida, desnaturalizando a ideologia impregnada nas
relações sociais, na construção dos gêneros, na alienação das classes. Essa atitude
deve tanto referir-se “ao distanciamento das espectadoras, à sua posição ‘crítica’
como ao facto de estas escreverem a sua própria história ao assimilar as
4 Essas observações referem-se à construção da personagem. No entanto, outros elementos cênicos como
cenários, iluminação, trilha sonora também trazem marcas de gênero, veja mais em Romano (2017b, p. 81-
131).
5 A tradução do texto de Elin Diamond utilizada neste artigo é da Universidade do Minho (Braga, Portugal).
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mensagens vindas do palco” (Diamond, 2011, p. 41).
Todavia, nos escritos de Brecht, é possível perceber que ele separa a(o)
mulher(homem) histórica das funções estéticas da(o) atriz(ator). A historicização
na teoria brechtiana não considera que o corpo gendrado da atriz, que representa
a personagem, também é historicizado e passível de distanciamento crítico por
parte das espectadoras. A atriz-sujeito não desaparece quando representa a
personagem ou quando representa a si própria como personagem-atriz, pois “cada
uma permanece processual, histórica e incompleta” (Diamond, 2011, p. 43). A(o)
espectadora(o) pode perceber essas três temporalidades em uma personagem,
dado o estímulo que esse teatro possibilita, construído a partir de distanciamento
da cena.
Quero ser clara quanto a este ponto importante: o corpo, particularmente
o corpo feminino, por virtude de entrar no espaço do palco, entra na
representação não está só ali, uma presença direta, ao vivo, mas antes
(1) um elemento significante numa ficção dramática; (2) parte de um
sistema de signos teatrais cuja gesticulação, voz e personificação são
referentes tanto para o ator como para o público; e (3) um signo num
sistema governado por um mecanismo particular, normalmente
pertencente a homens e por eles dirigido para o prazer de um público
cuja maioria de assalariados são homens. No entanto, com todas estas
classificações, a teoria brechtiana imagina uma polivalência para a
representação do corpo, pois o corpo da performer também é
historizado, impregnado com a sua própria história e com a da
personagem, e estas histórias perturbam as frágeis margens da imagem,
da representação (Diamond, 2011, p. 45).
Quais elementos pesam no processo de significação é o diferencial da teoria
géstica feminista
, em relação à prática teatral e teorização de Brecht em seu
tempo. O fato de o corpo, carregado de demarcadores de identidade, ser elemento
significante, essencial para o estabelecimento dos referentes entre espetáculo e
plateia, não vai contra os interesses de um teatro que discuta a luta de classes,
mas estabelece o debate sobre as hierarquias sociais em uma plataforma mais
complexa e compreensiva. Uma atriz negra, por exemplo, vive e representa
especificidades sociais (de acordo com cada contexto) que precisam ser
consideradas, para que não se reproduzam os mesmos papéis restritivos no palco,
ou para que haja distanciamento crítico, fortalecendo a atriz como sujeito-
histórico na e para além da ficção. Isso não significa limitar as possibilidades de
representação cênica, nem fazer um teatro voltado apenas para dramaturgias
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pessoais, mas sugere uma ética e um comprometimento com as imagens e
discursos criados na cena que, aliás, eram muito caros a Brecht. Assim como foi
citado anteriormente, é fundamental modificar as formas de fazer teatro de
acordo com a realidade social, atualizando as estratégias de exposição das
contradições que estruturam a sociedade.
O gesto é um recurso potente na representação épica e crítica da cena. Ele é
capaz de expressar atitudes globais (Brecht, 1967, p. 77) que podem ser “lidas” por
pessoas de diferentes contextos. Segundo Walter Benjamin (1996), o gesto ou
Gestus
social foram sublinhados no “método” brechtiano porque eles revelam a
real intenção dos sujeitos, inclusive, em situações em que o discurso expressa
outra posição: “O gesto demonstra a significação e a aplicabilidade social da
dialética” (Benjamin, 1996, p. 88). Porém, nem todo gesto é um Gestus social.
Brecht exemplifica:
A atitude de espantar uma mosca não é um Gestus social, ainda que a
atitude de espantar um cachorro possa -lo, por exemplo, se
representar a batalha incessante de um homem maltrapilho contra cães
de guarda. [...] O gesto de trabalhar é decididamente um Gestus social,
porque toda atividade humana dirigida para o controle da Natureza é uma
tarefa social, uma tarefa do mundo dos homens. Por outro lado, um gesto
de dor, enquanto permanece abstrato e tão geral que não se ergue acima
da categoria puramente animal, ainda não é um Gestus social. Contudo,
é esta precisamente uma tendência comum na arte: remover o elemento
social de todos os gestos. [...] O Gestus social é o gesto relevante para a
sociedade, o gesto que permite conclusões sobre as circunstâncias
sociais (Brecht, 1967, p.78-79).
Nesse sentido, o
Gestus
social tem ampla possibilidade de expressão e é um
recurso mais complexo do que a execução de mera gesticulação. Pode ser uma
ação, uma palavra, uma música, uma cena que, individualmente ou no todo do
espetáculo, codificam atitudes sociais, tornando-as visíveis e acentuadas
propositadamente. Diamond propõe que seja feita uma leitura feminista desse
gesto social e sugere que tal mecanismo “representa um discernimento teórico
perante as complexidades sexo/género, não no que diz respeito à peça, mas
também no que diz respeito à cultura que a peça, no momento da recepção,
reflecte e modela dialogicamente” (Diamond, 2011, p. 46). Segundo a autora, a
atuação brechtiana e a ênfase histórica, tanto da interpretação quanto da cena,
são complementadas pela visão de gênero, operando a favor de uma
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desnaturalização (ou distanciamento) das coerções patriarcais. Em seus termos:
Uma crítica feminista géstica “alienaria” [distanciaria] ou destacaria esses
momentos num guião no qual as atitudes sociais sobre o género se
tornariam visíveis. Sublinharia as configurações sexo/género enquanto
esconderia ou perturbaria a ideologia coerciva ou patriarcal. Recusaria
apropriar e naturalizar dramaturgos ou dramaturgas, em vez disso
focando-se nos constrangimentos históricos e materiais da produção de
imagens. Tentaria relacionar-se dialecticamente com o guião, em vez de
o dominar. E ao gerar significados, recuperaria momentos
(especificamente gésticos) nos quais o actor histórico, a personagem, o
espectador, e o autor entram na representação, ainda que
provisoriamente (Diamond, 2011, p. 48).
Na crítica
géstica
, a análise se expande para além do que é mostrado pela
fábula ou pelo texto dramático na cena. A proposta inclui a revelação de aspectos
do modo de produção, da equipe de artistas envolvida, do contexto social e das
circunstâncias da criação. Dentro dessa concepção, também cabe sublinhar que
as(os) espectadoras(o) adquirem posição importante. Elas(eles) não estão ali, na
plateia, como um bloco de pessoas sem rosto. Elas(eles) têm gênero, o que
modifica a relação da(o) artista com o público.
A teoria feminista expande a teoria brechtiana, nesse contexto, evidenciando
a não neutralidade de gênero das(dos) espectadoras(o). Brecht também concorda
que o público não é neutro, mas percebe isso apenas do ponto de vista da classe
social.
A liberdade na relação entre o ator e o seu público também consiste em
que ele não o considera uma massa uniforme. Ele não une as pessoas
como se fossem um bloco sem forma com as mesmas emoções. Ele não
se dirige da mesma maneira a todos; ele mantém as divisões existentes
no público, ele chega a torná-las mais profundas. Eles têm amigos e
inimigos, ele é amigável com os primeiros e hostil com os segundos. Ele
toma um partido, nem sempre aquele personagem, e quando é o caso,
ele toma partido contra o seu personagem. (Esta pelo menos é a atitude
básica, mas esta também precisa mudar de acordo com as diferentes
expressões do personagem. Mas também podem existir partidos onde
tudo está expresso e onde o ator não expõe o seu julgamento; neste caso
ele precisa mostrar que não está julgando através da sua interpretação
(Brecht, 1967, p. 172).
A não neutralidade de gênero do público é importante e precisa ser levada
em consideração, uma vez que influenciará tanto a criação de cenas, movimentos
e gestos, no instante mesmo da representação. No caso do gênero feminino,
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especialmente, a percepção da artista acerca da não neutralidade da espectadora
também é uma oportunidade para que ambas se conectem em momentos da
cena e se reconheçam como pertencentes à mesma categoria de gênero
historicamente oprimida, com a certeza de que juntas podem mudar essa história.
Assim como fez Brecht, escrevendo e encenando situações que estimulem o
público a compreender que pertence a uma classe trabalhadora, a crítica feminista
aponta a importância de fazer o mesmo com o gênero, criando possibilidade para
a emancipação feminina, tendo em vista uma revolução feminista.
Enquanto Diamond analisa a teoria brechtiana e conclui que o teatro épico-
dialético pode ser usado como aliado importante de desnaturalização do gênero,
se somado a um olhar feminista para a cena, Della Pollock traz uma contribuição
relevante para pensar a representação das personagens mulheres em Brecht,
destacando os traços expressionistas existentes na obra do teatrólogo.
Em seu artigo
Um Novo Homem para uma Nova Mulher: Mulheres em Brecht
e Expressionismo
6, Pollock (1989) percebe que uma “nova mulher” surge nas
dramaturgias brechtianas, a partir da influência do expressionismo alemão. Essa
vanguarda artística europeia, cujo surgimento ocorre na Alemanha durante a
Primeira Guerra Mundial, da qual ela sai perdedora – contexto do início da carreira
artística de Brecht –, expressa a subjetividade sombria e o pessimismo da época.
No teatro, as peças expressionistas opunham-se à reprodução autêntica da
realidade (característica do teatro naturalista) e buscavam “explorar os mistérios
da vida interior” (Carlson, 1997, p. 336). Um dos principais dramaturgos alemães
desse período foi Georg Kaiser, cuja obra teatral,
Os burgueses de Calais
,
influenciada pela dialética, tinha em Brecht um grande admirador (Pollock, 1989,
p. 87). Por volta de 1916, “a principal preocupação do expressionismo era a
denúncia da guerra e a conclamação a uma nova ordem social baseada na
fraternidade e numa crença na bondade fundamental do homem” (Carlson, 1997,
p. 338). De maneira geral, esse pensamento sugeria a necessidade de construção
de um “novo homem”, homem no sentido de humanidade, e consequentemente,
de uma “nova mulher”, que seriam o futuro de uma geração concebida em um
6 New Man to New Woman: Women In Brecht and Expressionism. (Tradução nossa)
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contexto posterior à guerra.
A mulher nas peças expressionistas considerando suas fases era
representada similarmente à
Madonna
ou à prostituta; ora tinha a função
dramatúrgica de ser um meio para que esse “novo homem” aprendesse a amar os
outros, ora se configurava como a mãe da espécie desse “novo homem” (Webb
apud Pollock, 1989, p. 87). O papel dessas mulheres estava vinculado a uma
passividade, submissão e a uma identidade baseada na sua relação com o homem
(Pollock, 1989, p. 89).
Características semelhantes aparecem nas primeiras peças brechtianas7
como
Baal
e
Tambores da Noite
peças sobre as quais Brecht, posteriormente,
terá grandes ressalvas. Em Baal elas “são retratadas como objetos sexuais que são
dominadas por seus próprios desejos sexuais e por dependência burguesa como
são os novos homens” (Pollock, 1898, p. 96)8. Em Tambores da Noite, através da
personagem Ana, Brecht critica o expressionismo, parodiando as dimensões
potencialmente reacionárias da gravidez (Pollock, 1989, p. 98). Entretanto, em
ambas as peças as personagens femininas adquirem um tom crítico, ao receberem
uma “roupagem” dialética, o que faz com que Brecht afaste-se do idealismo
expressionista e, desta maneira, relativize as representações das suas personagens
femininas.
As personagens criadas por Brecht, tanto mulheres quanto homens, nascem
da leitura do teatrólogo acerca da realidade. Mesmo localizadas em momentos
históricos distintos, todas refletem o conflito entre as classes sociais e como essas
relações revelam o poder de uns sobre os outros. Assim, muitas mulheres
representadas por Brecht, principalmente aquelas cujas histórias conduzem às
ações principais, iniciam de maneira alienada, idealista, reproduzindo o senso
comum da ideologia dominante. Ao se defrontarem com a realidade cruel, elas se
7 Segundo Anatol Rosenfeld (2009), as peças brechtianas podem ser compreendidas em três fases:
expressionista (
Baal
;
Tambores na Noite
;
Na selva das cidades
;
Um homem é um homem
), didáticas (
A
medida
;
A exceção e a regra
;
Aquele que diz sim e aquele que diz não
) com peças intermediárias (
Ópera dos
três vinténs
;
Ascensão e queda da cidade de Mahagonny
;
Santa Joana dos Matadouros
) e maduras (
A vida
de Galileu
;
A alma boa de Setsuan
;
Mãe coragem e seus filhos
;
O círculo de giz caucasiano
;
O Sr. Puntila e
seu criado Matti
).
8 They are depicted as sexual objects who are at least as dominated by their own sexual desires and bourgeois
dependency as by would-be New Men. (Tradução nossa).
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transformam: aliam-se a uma luta maior contra os reais opressores ou perdem a
ingenuidade e acabam destruídas pela desumanidade da sociedade. Nas peças,
segundo Pollock, as personagens femininas centrais sempre têm uma personagem
de contraponto9 que serve de oposto dramatúrgico, para que haja a transformação
(Pollock, 1989, p. 95).
O que diferencia personagens homens e personagens mulheres no conjunto
dramatúrgico brechtiano é a função social que elas e eles exercem. Se Brecht
colocou no palco personagens inspiradas na realidade, mesmo que com trajetórias
distintas, não se preocupou em romper o que era dado socialmente na
representação dos gêneros. Para citar algumas funções centrais, pode-se dizer que
às mulheres brechtianas cabem ser mães (
A mãe, Os Fuzis da Senhora Carrar, Mãe
coragem e seus filhos
), criadas (
O círculo de giz caucasiano
), comerciantes (
Mãe
coragem e seus filhos
), missionárias religiosas (
Santa Joana dos Matadouros
) e
prostitutas (
A alma boa de Set-Tsuan
). Aos homens, pertencem as funções de
cientistas (
A vida de Galileu
), patrões (
O senhor Puntilla e seu criado Matti
),
gangsters (
A resistível ascensão de Arturo Ui
), comerciantes ricos (
A exceção e a
regra
), artistas bêbados (
Baal
), estivadores (
Um homem é um homem
) e
criminosos (
A ópera dos três vinténs
). Isso, entretanto, não significa que mulheres
sejam menos importantes na obra de Brecht. Contudo, Pollock acredita que o
idealismo expressionista resiste em Brecht quando o teatrólogo alemão coloca
como base da regeneração social a família (Pollock, 1989, p. 95) e,
consequentemente, a representação do gênero feminino, associa-se à função
social da mãe.
Vale observar alguns exemplos citados pela autora. Na peça A Mãe, inspirada
no romance homônimo de Máximo Gorki, Pelagea, viúva de um operário e mãe de
um jovem operário e militante político, passa de uma passiva dona de casa, cuja
função maior era a maternidade (embora quisesse ter um trabalho, até para ajudar
no orçamento da casa) para uma ativista social comprometida com a causa dos
trabalhadores. Sua transformação na peça efetiva-se quando o filho é preso e
precisa de sua ajuda. Ela vai até a delegacia e representa para os soldados o perfil
9 Nos exemplos de Pollock, uma personagem contraponto pode ser: um filho, como Pelagea e Pavel; uma
outra mulher, como Grusha e esposa do governador, e Anna Fierling e Kattrin; e a si própria, como Shen-Te
e o primo.
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de uma mãe alienada, assim como fora instantes anteriores na peça. Mas, agora
se utiliza desse artifício em prol da militância. Pollock destaca essa manipulação
consciente do papel social da mulher:
Ela [Pelagea] aprende a desempenhar o seu "lado velho" para cumprir
objetivos especificamente históricos. Quando ela visita Pavel na prisão,
ela faz uma grande demonstração de choro e lamento pelo destino de
seu filho; e em voz baixa, ela pede os endereços de camponeses
simpatizantes do movimento dos trabalhadores (Pollock, 1989, p. 100)10.
Depois que seu filho morre, Pelagea continua sua função política, servindo de
memória viva da militância do filho, que agora também é a dela. A sua
transformação, entretanto, é impulsionada pelo amor e devoção que nutre pelo
filho. Pode-se objetar que, mais uma vez, a ação da personagem está subordinada
à de um homem. Por isso, para Pollock, a ação desta personagem ganha contornos
idealistas nas mãos de Brecht.
Em
Mãe Coragem e seus filhos
, a mãe também ganha protagonismo na
encenação de Brecht, que revela por meio desta mulher as contradições e horrores
da guerra. A peça se passa durante a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). A
personagem da mãe, Anna Fierling, utiliza-se da guerra para seu sustento – vende
salsichas, sapatos, vinhos para soldados e acaba perdendo todos seus filhos
para ela. Não qualquer “romantização” em relação à personagem, nem
idealismo. Outra personagem feminina da peça é Kattrin, filha muda da Mãe
Coragem. “Kattrin complementa a astúcia da Mãe Coragem com inocência”
(Pollock, 1989, p. 102)11, lembra Pollock, quando a filha tenta salvar uma cidade
inteira dos ataques inimigos, tocando um tambor em cima de um telhado. Kattrin
é morta pelos soldados católicos em reação a essa atitude de bravura, que se
distingue das características obedientes que até então a caracterizaram.
Entretanto, é em
Círculo de giz caucasiano
, segundo Pollock, que Brecht
constrói uma personagem feminina cuja maternidade rompe, de maneira mais
contundente, o ideário expressionista.
10 She learns to play her "old" self in order to fulfill larger, more specifically historical aims. When she visits
Pavel in prison, she makes a great show of weeping and keening her son’s fate; under her breath, she asks
for the addresses of peasants sympathetic to the workers' movement. (Tradução nossa).
11 Kattrin complements Mother Courage's cunning with innocence. (Tradução nossa).
Teatro épico-dialético: uma poética de resistência e de igualdade de gênero?
Vanessa Biffon Lopes
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-17, jul. 2024
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Grusha é uma criada que trabalha na casa do governador da cidade. Ele tem
uma esposa e um filho pequeno. A guerra é anunciada e o governador, destituído
do poder. A família apressa-se em deixar a cidade e acaba se esquecendo do
próprio filho. Grusha, mesmo sem querer a princípio, acaba resgatando a criança
e a adota. Assim que a guerra acaba, a mãe biológica retorna à cidade e reivindica
a guarda do filho e, com ele, as propriedades do marido. O caso é levado ao juiz
que, para determinar qual mãe seria a verdadeira, coloca a criança no centro de
um círculo de giz marcado no chão e pede que, no momento determinado, ambas
puxem a criança para fora, defendendo seus direitos. Grusha desiste de cumprir a
determinação do juiz, para que a criança não seja machucada. O juiz, então,
decide-se em favor da mulher que evitou que a criança fosse “rasgada” ao meio,
mostrando que “[...] a verdadeira maternidade substitui a biologia” (Pollock, 1989,
p. 103)12. Frente a o que a fábula apresenta, Pollock conclui que: “A maternidade
para Azdak [o juiz], é um instinto social amplamente definido que, devido à sua
abrangência, desafia uma abordagem restrita ao sistema patrilinear e o direito de
propriedade atrelado a ele” (Pollock, 1989, p. 103-104)13.
Se, por um lado, Brecht amplia a visão expressionista acerca da maternidade,
imprimindo uma versão não burguesa de família, quando coloca a relação familiar
como um instinto social e não biológico, por outro, ele evoca a transformação
pessoal contínua da Grusha e a transformação subsequente da sociedade
dominante, em um final feliz distante da criticidade brechtiana. Nas palavras de
Pollock (1989, p.104):
Em Grusha, Brecht corrige e resolve o modelo utópico dos
expressionistas. Ele suplanta o Novo Homem com uma Nova Mulher
plenamente capaz de trazer a visão sonhadora expressionista de uma
vida social mais humanista e mais produtiva. O prólogo de
O círculo de
giz caucasiano
nos lembra, no entanto, que essa visão onírica deve ser
compreendida no contexto das condições sociais14.
12 [...] that true motherliness supersedes biology. (Tradução nossa)
13 Motherliness, for Azdak, is a broadly defined social instinct that, for its very breadth, challenges a more
narrowly defined patrilineal system and its attendant system of property rights. (Tradução nossa).
14 In Grusha, Brecht corrects and resolves the expressionists' Utopian model. He supplants the New Man with
a New Woman fully capable of bringing the expressionist dream-vision of more humane and more productive
social relations to fruition. The prologue to The Caucasian Chalk Circle reminds us, however, that this dream-
vision must be understood in the context of existing social conditions. (Tradução nossa).
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Pollock finaliza sua análise compreendendo que Brecht destacou o papel
importante da mulher na sociedade da sua época representando-a como mãe,
pois nela estava inscrita a possibilidade de uma nova vida social e biológica –,
em meio à destruição provocada pela guerra. Faz isso dialeticamente, mesmo que,
em alguns momentos, possa ter pendido a um idealismo menos crítico. Brecht
“relaxou a oposição do idealismo e do materialismo que dominava o
expressionismo tardio e libertou tanto a mãe da passividade quanto a mulher
ativista da necessidade de rejeitar a ‘maternidade’” (Pollock, 1989, p. 105)15.
ainda outras duas personagens mulheres de destaque em Brecht, que,
mesmo com pouca relação com a maternidade, merecem ser abordadas neste
estudo: Shen-Te, de
A alma boa de Setsuan
, e Joana, de
Santa Joana dos
Matadouros
.
Em
A alma boa de Setsuan
, a prostituta chinesa Shen-Te recebe uma
recompensa financeira, após ajudar deuses que testavam a bondade humana. Ela
deixa a prostituição e abre uma tabacaria. As pessoas do vilarejo, diante da
mudança social da moça, vão até ela pedindo abrigo, comida e favores. Shen-Te
acaba cedendo e, com isso, se entrega ao infortúnio. Engravida de Yang Sun,
esconde sua gravidez e quase perde seus negócios, por ser bondosa demais.
Decide, então, inventar como fachada um primo, veste-se como um homem e tem
atitudes opostas às que ela teria.
Brecht, na fábula, rompe com a visão sobre a prostituição feminina,
colocando Shen-Te como a alma mais nobre entre os humanos, que é
deturpada quando se traveste como o primo inventado, tornando-se uma pessoa
mercenária, fria e preocupada com os negócios. Contraditoriamente, somente
desta maneira Shen-Te consegue que sua tabacaria não vá à falência.
em
Santa Joana dos Matadouros
, obra não analisada por Pollock, a
religiosidade no capitalismo é o tema central. Joana é moradora de Chicago (EUA)
e pertence aos Boinas Negras, espécie de Exército da Salvação, que prega a palavra
de Deus entre os trabalhadores da cidade. Ao se deparar com a fome e a miséria
15 [...] relaxed the opposition of idealism and materialism that dominated late expressionism, and liberated
both the mother from passivity and the female activist from the need to reject "motherliness. (Tradução
nossa).
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geradas pela crise econômica, as convicções teológicas perdem completamente
o sentido. A moça vai ao encontro de Pierpont Mauler, rico empresário e dono dos
matadouros e fábricas de carne enlatada, e de Paulus Snyder, líder religioso, e
toma consciência das injustiças cometidas pelos dois, algo que evitava acreditar.
Essa situação espelha aquela protagonizada por Joana d’Arc, na Guerra dos Cem
Anos, que serviu de inspiração a Brecht para criar
Santa Joana dos Matadouros
16.
Inicialmente cooptadas pelas palavras divinas, ambas as figuras se transformam
ao perceber a perversidade da instituição religiosa, vinculada ao poder e ao capital.
Não à toa, Brecht coloca uma mulher como personagem central, pois ela é o
elemento mais oprimido nas religiões monoteístas. Nessas religiões, a diferença
biológica dos sexos tornou-se o principal argumento de desigualdade entre
homens e mulheres, como se a hierarquia do masculino sobre o feminino fosse
de uma ordem natural, criada por um deus (Perrot, 2015, p. 83).
É fundamental entender o contexto político-social em que Brecht criou suas
peças e representou suas personagens, em um período marcado pela destruição
das duas grandes guerras mundiais. Também, cumpre recordar os anseios e
preocupações do teatrólogo em relação ao seu fazer teatral. Brecht demonstra ter
consciência da situação da mulher de seu tempo, quando diz que:
O teatro conseguiu, por um momento, fazer progredir algumas aspirações
sociais: emancipação da mulher, exercício do direito, higiene, e mesmo,
emancipação do proletariado. É necessário reconhecer, entretanto, que
faltava profundidade às imagens da máquina social fornecidas pelo teatro
(Brecht, 1967, p. 126).
Brecht percebia que sem as mulheres não haveria uma revolução social.
Contudo, a emancipação feminina não foi objeto de sua pesquisa no teatro, apesar
do esforço do teatrólogo em colocar as mulheres no centro de algumas cenas e
em representá-las dialeticamente. Escapa da percepção brechtiana, portanto, a
relação entre a complexidade das contradições históricas e a criação de signos,
que foi e continua sendo denunciada pelas feministas.
Deste modo, podemos considerar que o teatro épico-dialético brechtiano
favorece a desnaturalização das hierarquias de gênero e traz “a possibilidade de
16 Brecht também escreveu outra peça inspirada diretamente em Joana d’Arc,
O julgamento de Joana d’Arc,
1431
, de 1952.
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exposição do fator de construção das convenções sociais de gênero, abrindo
caminho à transformação de padrões e valores dominantes” (Romano, 2017a, p.
07). A partir da leitura e proposições artísticas feministas acerca do “método”
brechtiano, nota-se que o corpo e, mais precisamente, a corporeidade assume um
aspecto crucial na compreensão do fazer artístico. Tal percepção condições
ainda de se pensar em outras possibilidades de
performar
o gênero, questionando
a concepção binária e hierarquizada dos papéis sexuais, algo que merece ser
tratado com maior profundidade em outro artigo.
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técnica, arte e política
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São Paulo: Contexto, 2015.
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ROMANO, Lúcia R. V. As contradições sobre a posição das mulheres em
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Teatro épico-dialético: uma poética de resistência e de igualdade de gênero?
Vanessa Biffon Lopes
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-17, jul. 2024
17
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. De quem é esse corpo?
A performatividade do gênero
feminino no teatro contemporâneo - cruzamentos entre processos criativos das
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ROSENFELD, Anatol.
Aulas de Anatol Rosenfeld (1968)
: a Arte do Teatro. São Paulo:
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Recebido em: 01/05/2024
Aprovado em: 20/06/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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