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Entre a música e a dança:
Dalcroze e a Plasticidade Viva
José Rafael Madureira
Para citar este artigo:
MADUREIRA, José Rafael. Entre a música e a
dança: Dalcroze e a Plasticidade Viva.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0701
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Entre a música e a dança: Dalcroze e a Plasticidade Viva
José Rafael Madureira
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-25, set. 2024
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Entre a música e a dança: Dalcroze e a Plasticidade Viva
José Rafael Madureira1
Resumo
Tradução do texto
La Rythmique, la Plastique Animée et la Danse
de autoria de Émile
Jaques-Dalcroze e publicado originalmente em 1916. A tradução é precedida por uma
contextualização histórica do texto e dos principais temas por ele abordados, a
saber: os pressupostos conceituais do método Jaques-Dalcroze conhecido como
Rítmica e alicerçado sobre exercícios corporais e vocais ritmados; os fundamentos
da Plasticidade Viva e seus desdobramentos no campo da encenação teatral; os
problemas estéticos e pedagógicos da dança e o devir de uma nova dança.
Palavras-chave
: Jaques-Dalcroze (1865-1950). Rítmica. Corpo. Plasticidade Viva.
Dança.
Between music and dance: Dalcroze and the Moving Plastic
Abstract
Translation of the text
La Rythmique, la Plastique Animée et la Danse
written by
Émile Jaques-Dalcroze and originally published in 1916. The translation is preceded
by a historical contextualization of the text and the main themes it addresses,
namely: the conceptual assumptions of Jaques-Dalcroze method (known as
Eurhythmics and based on rhythmic body and vocal exercises); the foundations of
Moving Plastic and its developments in the field of theatrical staging; the aesthetic
and pedagogical problems of dance and the becoming of a new dance.
Keywords
: Jaques-Dalcroze (1865-1950). Eurhythmics. Body. Moving Plastic. Dance.
Entre la música y la danza: Dalcroze y la Plasticidad Viva
Resumen
Traducción del texto
La Rythmique, la Plastique Animée et la Danse
escrito por Émile
Jaques-Dalcroze y publicado originalmente en 1916. La traducción va precedida de
una contextualización histórica del texto y de los principales temas que aborda, a
saber: los supuestos conceptuales del Método Jaques-Dalcroze (conocido como
Rítmica y basado en ejercicios rítmicos corporales y vocales); los fundamentos de la
Plasticidad Viva y sus desarrollos en el campo de la escena teatral; los problemas
estéticos y pedagógicos de la danza y el devenir de una nueva danza.
Palabras clave
: Jaques-Dalcroze (1865-1950). Rítmica. Cuerpo. Plasticidad Viva.
Danza.
1 Doutorado e Mestrado em Educação, Linguagem e Arte pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
Graduação em Educação Física pela UNICAMP. Licenciatura em Música pelo Centro Universitário do Sul de
Minas (UNIS). Professor Associado junto ao Departamento de Educação Física da Universidade Federal dos
Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). joserafaelmadureira@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3840410194168195 https://orcid.org/0000-0002-8461-3132
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Apresentação
A relação do pedagogo e compositor suíço Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950)
com o devir da dança moderna vem sendo discutida pela historiografia do
espetáculo há mais de 40 anos. Todavia no Brasil, o acesso aos textos originais de
Dalcroze se manteve restrito aos pesquisadores versados na língua francesa
(idioma original dos escritos) e que tiveram a sorte de encontrar esses volumes,
raramente disponíveis nas bibliotecas públicas brasileiras. Esse quadro foi alterado
em 2021, ano em que a obra de Dalcroze entrou em domínio público, o que
fomentou a tradução e publicação de alguns artigos originais e do compêndio
O
Ritmo, a Música e a Educação
(Jaques-Dalcroze, 2023), obra capital do
pensamento dalcroziano2.
O texto intitulado
Rítmica, Plasticidade Viva e Dança
publicado
originalmente em 1916 e cuja tradução apresentaremos em seguida reúne
importantes argumentos sobre as interfaces estabelecidas entre o sistema de
educação musical criado por Dalcroze (conhecido como Rítmica) e o devir de uma
nova concepção de dança, que influenciou tanto o
Ausdruckstanz
alemão como a
modern dance
estadunidense.
O título do pequeno manuscrito (12 páginas, no original) revela um
direcionamento didático-pedagógico muito bem definido por Dalcroze. Para ele,
antes de dar início aos estudos específicos de dança, é preciso empreender uma
formação musical alicerçada sobre exercícios corporais ritmados, o que seria
possível através da Rítmica. Entre a Rítmica e a dança situa-se a Plasticidade Viva
(
Plastique Animée
, no original), concebida como um desdobramento dos estudos
rítmico-musicais direcionado a estreitar o diálogo entre o corpo e a música e
possibilitar o (re)nascimento de uma nova estética plástico-visual-sonora.
Plasticidade Viva é uma figura de linguagem que nos remete às artes plásticas
da Antiguidade e do Renascimento, quais sejam a escultura e a pintura. Inspirado
pela Estética Aplicada de François Delsarte (1811-1871), Dalcroze se propõe a
2 Sobre a obra capital de Dalcroze, consultar Madureira (2014).
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escrutinar a expressividade presente nesse patrimônio plástico-visual e fornecer-
lhe o sopro que lhe daria vida e movimento. A tradução do termo
Plastique Animée
em inglês, a propósito, na proposição de Harold Frederick Rubinstein, é
Moving
Plastic
: Plasticidade em Movimento.
Dalcroze conhecia muito bem a dança e os dançarinos modernos de seu
tempo, tendo apreciado as suas performances sempre que possível. Mary Wigman,
Suzanne Perrottet, Michio Ito, Hanya Holm e Marie Rambert estudaram os
fundamentos da Rítmica e da Plasticidade Viva sob a sua orientação direta.
Dalcroze tinha uma visão bastante ousada sobre o futuro da dança, o que
evidencia as ambições de um artista inteiramente comprometido em ajudá-la a
(re)conquistar o lugar que lhe seria devido enquanto uma arte “mais completa”,
“mais poética” e “verdadeiramente humana”, deixando de ser “[...] um simples
divertimento de pernas desvinculado de qualquer ideia inteligente, de todo
sentimento estético ou musical, de toda envergadura social e de todo interesse
artístico (Jaques-Dalcroze, 1916, p. 11).
Dalcroze é categórico ao condicionar a formação do dançarino aos estudos
da Rítmica. No entanto ele vislumbra o momento em que a dança se tornaria
autônoma e poderia prescindir da música: “O corpo bastará a si mesmo para
expressar as alegrias e as dores da humanidade, dispensando o suporte de
instrumentos que lhe determinem os ritmos [...]” (Jaques-Dalcroze, 1916, p. 15).
Em
Rítmica, Plasticidade Viva e Dança
, Dalcroze faz uma pequena exaltação
às danças de Isadora Duncan, ao mesmo tempo em que, indiretamente, desmonta
as danças (e os admiradores) de Loïe Fuller, descritas como exóticas e artificiais.
Em outra passagem do texto, Dalcroze elabora uma crítica detalhada e
contundente contra uma das produções do
Ballets Russes
, companhia que ele
detestava. Dalcroze vale-se dessa produção de Diaghilev o espetáculo
A tarde
de um Fauno
, de Nijinski, baseado no prelúdio homônimo de Debussy para
indicar equívocos estéticos que, fatalmente, levariam a arte da dança à completa
inexpressividade. A saída para o problema, evidentemente, poderia ser encontrada
na Plasticidade Viva, cujos exercícios deveriam ser conduzidos por um repertório
musical pianístico específico, produzido pelo próprio Dalcroze, disponibilizado em
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outras publicações e volumes integrados ao método Jaques-Dalcroze de
educação musical.
Rítmica, Plasticidade Viva e Dança
é o prefácio de um caderno didático
produzido por Dalcroze com dezenas de exercícios práticos de Plasticidade Viva
amplamente ilustrados com os desenhos de Paulet Thévenaz (entre outros
artistas) e as fotografias de Frédéric Boissonnas3. Por algum contratempo da
editora das obras didáticas de Dalcroze (Jobin & Cie.), o prefácio foi publicado em
um volume separado em 1916, um ano antes da publicação do caderno completo
(com os exercícios). Na versão completa, Dalcroze incluiu um novo parágrafo
que foi assimilado nesta tradução para o português e uma dedicatória à Adolphe
Appia, um de seus maiores colaboradores, responsável por fazê-lo compreender
que a Rítmica poderia ir além do campo da a pedagogia musical (escolar),
tornando-se um projeto estético revolucionário de formação de artistas
dramáticos4.
Alguns trechos de
Rítmica, Plasticidade Viva e Dança
seriam posteriormente
revisados, ampliados e publicados nos capítulos XI e XII do compêndio supracitado
(Jaques-Dalcroze, 2023), cuja publicação original, também dedicada à Adolphe
Appia, ocorreu posteriormente, em 1920.
A tradução que se segue tem como propósito disponibilizar mais um
instigante e controverso texto de Dalcroze aos brasileiros e demais falantes da
língua portuguesa para que seja possível acessar essas discussões sem a
mediação dos comentadores e revisitar conceitos originais que, malgrado tenham
sido elaborados mais de 100 anos, não perderam o vigor, muito pelo contrário...
3 Essas imagens, desenhos e fotografias originais podem ser apreciadas no ensaio audiovisual produzido pelo
canal Hop Musical e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N-PNPafT7dw&t=9s. Acesso em 23
ago. 2024.
4 Sobre a parceria Dalcroze-Appia e a reverberação da Rítmica na encenação teatral consultar Madureira e
Padilha (2001).
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Rítmica, Plasticidade Viva e Dança5
Émile Jaques-Dalcroze6
Tradução: José Rafael Madureira
Este pequeno livro destina-se aos alunos de “rítmica”. Dada a multiplicidade
de exercícios rítmicos de nosso método, desenvolvido com o propósito de obter a
coordenação de movimentos em suas relações com a música, nós sempre fomos
obrigados a solicitar aos nossos alunos adultos que demonstrassem um
conhecimento prévio das leis da técnica corporal, independentemente do sistema
de ginástica escolhido, ou ainda, de adquirirem essa técnica corporal no decurso
de seus estudos de rítmica. Afinal, se os estudos de ginástica higiênica aqueles
de Ling, Hébert ou de qualquer outro7 – promovem resultados de primeira ordem
naquilo que concerne ao desenvolvimento das capacidades musculares,
constatamos que eles não cultivam suficientemente as
nuances
de movimento e
nem os deslocamentos de peso em todos os graus de
duração
, de modo que não
oferecem uma contribuição realmente eficaz para os exercícios do nosso método.
Pois a rítmica, antes de mais nada, é a arte de nuançar movimentos corporais a
partir das indicações da música, que é, essencialmente, uma arte rítmica. Por outro
lado, os diversos sistemas de ginástica “estética” dão maior ênfase ao cultivo das
atitudes
, ao passo que, para nós – como explicaremos pormenorizadamente logo
mais –, a atitude é apenas uma interrupção do movimento; ademais, nossos
estudos se fundamentam na experiência dos movimentos e não em suas
interrupções. Não exigimos de nossos alunos o virtuosismo corporal, muito pelo
contrário; esse virtuosismo demandaria uma especialização de meios físicos que
5 Texto publicado originalmente em francês sob o tulo de
La Rythmique, la Plastique Animée et la Danse
(Lausanne: Jobin & Cie., 1916, 16 p.). A presente tradução foi realizada a partir do volume original digitalizado
pelo
International Music Score Library Project (IMSLP)
e disponível em:
https://imslp.org/wiki/M%C3%A9thode_Jaques-Dalcroze_(Jaques-Dalcroze,_Emile). Acesso em: 5 ago. 2024.
Esclarecemos que em 2021, a obra de Dalcroze entrou em domínio público, o possibilitou a publicação desta
tradução sem a necessidade de autorização dos herdeiros (espólio).
6 Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950). Pianista e compositor suíço. Criador da Rítmica, sistema de educação
musical inteiramente realizado através de movimentos corporais que revolucionou os campos da pedagogia
musical, da dança, da encenação teatral e da ginástica (educação física).
7 Referência à
Pehr Ling
(1776-1839) e
Georges Hébert
(1875-1957), dois importantes autores de métodos
gímnicos muito respeitados por Dalcroze e que, em alguma medida, serviram de base e inspiração para os
exercícios de Rítmica. (N. do T.)
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se contraporia às nossas ideias. Nós reclamamos aos nossos alunos que
conheçam a si mesmos; e o nosso método os auxilia nessa autodescoberta.
Os pianistas mais virtuosos de nossos conservatórios raramente são músicos
completos. Os dançarinos e acrobatas virtuoses do corpo raramente são
homens completos. Nos estudos de virtuosismo pianístico, os professores
insistem em desenvolver as habilidades digitais dos estudantes em detrimento do
desenvolvimento de sua sensibilidade e inteligência musical. Nos estudos de
virtuosismo corporal, não se leva suficientemente em consideração as relações
estabelecidas entre o corpo e o espírito e tampouco a influência das emoções
sobre os movimentos, suas nuances e o seu estilo. E é por essa razão que
resolvemos publicar alguns exercícios de “plasticidade viva” que, mesmo não se
constituindo uma educação corporal completa, isso é um fato, indicam
claramente a nossa intenção de estabelecer, através dos exercícios de nosso
método de Rítmica, uma íntima aliança entre faculdades físicas e artísticas e,
também, para fazer com que a música, em suas infinitas nuances de dinamismo
e duração, possa favorecer a educação do corpo humano, um instrumento musical
por excelência...
***
Antes de empreendermos uma educação artística e estética, é necessário ter
plena consciência das forças naturais que dispomos e desejamos colocar a serviço
da arte. Se essas forças instintivas não forem desenvolvidas nem disciplinadas, se
algumas delas se agitarem em desacordo com as demais, nossos sentidos e nossa
vontade artística precisarão lutar, incessantemente, para obter os efeitos de
interpretação por eles requeridos. Entretanto, nas performances de natureza
corporal (dança, ópera, plasticidade viva ou pantomima), verificamos, com
bastante frequência, alguns distúrbios do sistema nervoso que impedirão o mais
prodigioso dos cérebros de registrar suas impressões artísticas com o suporte de
movimentos corporais. Não contemplamos alguns maestros de orquestra,
admiravelmente dotados para a música e providos de uma sensibilidade artística
de primeiríssima ordem, serem impedidos de comunicar seus sentimentos aos
instrumentistas que ele dirige devido a resistências musculares provocadas por
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uma excitação extrema do sistema nervoso? Por outro lado, não há ginastas que,
apesar de serem excepcionalmente treinados, são incapazes de traduzir as
emoções artísticas com os seus corpos, devido à ausência de correlação entre os
seus movimentos corporais e os movimentos do seu espírito? Antes de
empreender estudos artísticos específicos, convém submeter-se a uma educação
que tenha como propósito despertar o temperamento, dominar as resistências do
sistema nervoso e criar comunicações rápidas entre as forças imaginativas e as
forças realizadoras. O escopo do método de
Rítmica
é oferecer aos alunos a
consciência de suas faculdades, colocá-los em condição de dominar os seus
ritmos corporais naturais e, por fim graças a exercícios de automatização e
dissociação de movimentos corporais em todas as gradações de espaço e de
tempo, assim como exercícios de harmonização dos centros nervosos, de
excitação e de ordenação das funções motoras – de criar em seus cérebros uma
liberdade absoluta de controle e ação.
Na ginástica higiênica e esportiva, o componente rítmico raramente intervém.
Todos os movimentos são reduzidos a uma unidade métrica inflexível criada
com o propósito de revitalizar o corpo como também discipliná-lo que os
distancia de seu ritmo primordial. Uma enervação corporal completa deve realizar-
se simultaneamente a uma inervação parcial; um movimento do braço inteiro deve
ter a mesma duração de um movimento do punho. Cada movimento deve ser
considerado como uma entidade e não como um fragmento de um todo
rítmico
.
Está bem, suponhamos que um instrutor de ginástica fique esmorecido com a
falta de liberdade oferecida pela manifestação natural de movimentos corporais e
decida abandonar a dimensão puramente métrica do seu ensino; ele tentará
superar a forma habitual do seu ensino, pautada na execução de movimentos
enérgicos e leves em um tempo pré-definido, para se dedicar a novas maneiras
de executá-los em todos os graus de rapidez e lentidão, ou seja, em todas as
nuances de dinâmica, pois o peso, do ponto de vista muscular, depende das
relações estabelecidas entre o tempo e o espaço. Ele irá perceber muito
rapidamente que os alunos mais aparelhados do ponto de vista físico e mais
treinados do ponto de vista atlético terão uma dificuldade enorme em ritmar os
seus movimentos com fluidez, em executar sucessivamente (ou combinar) um
movimento lento e (com) outro rápido ou um movimento acentuado e (com) outro
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desprovido de qualquer acentuação e, em efetuar simultaneamente, um
crescendo de energia de uma parte do corpo e um decrescendo de outra parte.
Isso ocorre, porque os estudos de ginástica pura não se ocupam das relações
estabelecidas entre as manifestações corporais e as concepções cerebrais e nem
oferecem meios para que os alunos possam subtrair atos dos desejos e
harmonizar as faculdades imaginativas com as faculdades realizadoras do
indivíduo. Em todos os domínios intelectuais ou corporais, tanto para o indivíduo
como para a sociedade, “a fase de desenvolvimento da personalidade é sempre
precedida de um período de imitação”. O professor irá se dedicar à descoberta de
modelos rítmicos que deverão ser traduzidos pelos seus alunos, em movimentos
corporais; de modo instintivo, ele buscará esses modelos na música que,
primitivamente, tomou-os por empréstimo dos ritmos naturais do corpo humano.
Todavia, através dos séculos, a música se transformou, multiplicando os tipos e
as combinações rítmicas até abandonar por completo suas origens corporais,
espiritualizando-se inteiramente; o corpo, de sua parte, desacostumou-se na
mesma proporção em que a educação investiu, de forma preponderante, em uma
cultura puramente intelectual. É por isso que a maior parte dos modelos rítmicos
tomados por empréstimo pela música moderna, ainda que sejam balés, não
podem ser traduzidos pelo corpo. Algumas músicas poderiam até
se sobrepor
aos
movimentos corporais, mas elas não poderiam ser interpretadas por eles e
tampouco
transpostas
plasticamente.
Os movimentos sonoros se contentam em ser desenvolvidos paralelamente
aos movimentos corporais; a música exerce um papel de acompanhamento e não
efetua uma verdadeira colaboração. A música não inspira, não penetra e não
vivifica os gestos, nem os movimentos e nem as atitudes. E é por isso que a
ginástica e a dança da atualidade não podem ser consideradas como artes
completas e muito menos contribuir para o progresso da arte.
Enquanto professor de música, percorri um caminho inverso ao que acabei
de descrever; iniciei minha trajetória na música e cheguei na ginástica, mas em
uma ginástica especial.
Esmorecido diante da incapacidade de um número enorme de alunos em
assimilar intelectualmente os componentes do ritmo musical, dirigi-me à natureza
do corpo para que ela me fornecesse modelos de movimentos rítmicos que,
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persistentemente imitados e automatizados, deveriam criar no cérebro dos alunos,
fatalmente, imagens rítmicas precisas que percorreriam toda uma gama de
graduações dinâmicas e temporais. A ginástica usual, todavia, não me forneceu
esses modelos pela razão anteriormente apresentada, ou seja, essa ginástica não
havia sido edificada sob o governo do ritmo, mas unicamente sob o governo da
métrica. Precisei impor a mim mesmo a tarefa de criar esses modelos,
introduzindo nos diversos movimentos de ginástica, o ritmo que lhes faltava,
convertendo a ginástica métrica em ginástica rítmica. Essa era a minha teoria; a
prática me provou que ela estava correta: “Todas as causas de arritmia musical
são
de ordem física
; se nós desejarmos encontrar a cura para essa arritmia
musical8, que é uma verdadeira doença, será preciso, antes de mais nada, tratar a
raiz do problema, ou seja, o corpo!”. Vou me explicar.
Ser musicalmente arrítmico é ser incapaz de realizar um movimento durante
o tempo necessário à sua realização normal; é apressá-lo ou retardá-lo quando
ele deveria permanecer uniforme; é não conseguir acelerá-lo quando necessário
ou retardá-lo; é estremecer e fragmentar o movimento quando ele deveria ser
articulado e vice-versa; é iniciá-lo tarde demais ou em demasiada antecipação; é
finalizá-lo muito antes ou muito depois do esperado. Ser musicalmente arrítmico
é não conseguir encadear um movimento que possui uma certa qualidade a outro
que tenha uma qualidade distinta: um movimento lento a um movimento rápido,
um movimento flexível a um movimento rígido, um movimento enérgico a um
movimento doce. Ser musicalmente arrítmico é não conseguir realizar dois ou
vários movimentos contrários como também não ser capaz de nuançar um
movimento, ou seja, executá-lo em uma gradação imperceptível entre o “piano” e
o “forte” ou reciprocamente; e por fim, não conseguir acentuar metricamente ou
pateticamente passagens fixadas pelo andamento ou pela emoção musical. Todas
essas faltas,
sem nenhuma exceção
, resultam de muitas coisas, quais sejam a
incapacidade do cérebro em dar ordens suficientemente rápidas aos músculos
encarregados da execução do movimento, a incapacidade do sistema nervoso em
transmitir essas ordens fidedignamente e com tranquilidade sem se equivocar em
relação ao destinatário, ou ainda, a incapacidade dos músculos em executar essas
8 Arritmia: desordem, irregularidade (Nota original do Autor).
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ordens de um modo preciso. A arritmia provém, portanto, de uma falta de
harmonia e coordenação entre a concepção do movimento e sua realização e de
uma desordem nervosa que, em alguns casos, é a consequência dessa
desarmonia, em outros, a sua causa. Em alguns indivíduos, o cérebro concebe
normalmente os ritmos, estando por hereditariedade providos de imagens rítmicas
muito bem definidas e claras, mas os seus membros, ainda que disponham de
todas as condições para executá-los, falham em realizar essa tarefa, pois o seu
sistema nervoso está em desordem. Em outros indivíduos, por conta de uma
degeneração, são os membros que não conseguem executar as ordens cerebrais
claramente dadas, uma vez que suas descargas elétricas, demasiado ineficientes,
acabam por desregular o sistema nervoso. Há, também, aqueles indivíduos que,
embora possuam nervos e músculos em excelente estado, receberam uma
educação rítmica insuficiente e, por conseguinte, são impedidos de efetuar no
cérebro um registro claro de imagens duradouras. O objetivo da ginástica rítmica
é regularizar os ritmos naturais do corpo e registrar, no cérebro, graças a sua
automatização, imagens rítmicas definitivas.
***
Os exercícios que eu criei podem ser dispostos em várias categorias: alguns
obrigam os músculos a executar as ordens do cérebro com precisão e num tempo
determinado, quais sejam ordens de movimento ou ordens de inibição
(interrupção de movimentos); outros buscam automatizar as séries de movimento
em seus múltiplos encadeamentos e desdobramentos; aqueles que visam à
eliminação das enervações inúteis de todas as ações motoras e provocar o
equilíbrio das forças musculares antagonistas; ainda, por fim, um conjunto de
exercícios destinados a individualizar as sensações musculares e a aperfeiçoar a
percepção das atitudes. Todos eles têm como objetivos máximos o aumento da
concentração psíquica, a organização evidente de economia física e a expansão da
personalidade. Tudo isso se torna possível graças a uma educação progressiva do
sistema nervoso que promove um desenvolvimento da sensibilidade nos
indivíduos insensíveis ou pouco sensíveis e, ao contrário, uma regularização das
reações nervosas nos indivíduos hipersensíveis e desordenados. Acredito que seja
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possível afirmar de um modo muito consciente que as crianças saudáveis que
forem submetidas a essa educação especial preconizada por mim poderão se
tornar, ao final de três ou quatro anos, indivíduos rítmicos, ou seja, indivíduos livres
de todas as irregularidades de ordem nervosa ou muscular que se opõem à plena
liberdade de seus movimentos indivíduos que possuam funções cerebrais e
corporais plenamente harmonizadas e que saibam apreciar claramente as
relações dos movimentos, estabelecidas no tempo e no espaço. Resta ainda
demonstrar quais são as consequências
morais
e estéticas dessa educação.
***
Depois de um curto período de agitação no qual o cérebro se atormenta
diante da dificuldade em obter a obediência do corpo e uma vez que diminuímos
o “tempo perdido” entre a ordem cerebral e sua realização muscular, à medida
que as ações corporais se encadeiam mais facilmente graças a eliminação dos
antagonismos musculares desmesurados, eis que a calma é instaurada no corpo
e, com ela, a alegria! Eu não tenho como lhes explicar a natureza dessa alegria,
mas posso assegurar que ela existe em todos os indivíduos que tenham se
dedicado aos estudos da ginástica rítmica
durante o tempo necessário
. Ah! Sei que
pode parecer exagerado declarar que exercícios corporais possam exercer
tamanha influência sobre a mentalidade geral; entretanto, essa influência é
exatamente a qual afirmo. Ela provoca uma alegria mansa e confiante, uma
satisfação íntima que invade o corpo inteiro. Essa alegria se origina de uma calma
corporal e moral engendrada pela diminuição das irritações, acanhamentos,
inquietações e ressentimentos que provocam um desacordo entre as faculdades
imaginativas e as faculdades de realização. Essa alegria é amplificada por uma
confiança em si mesmo que busca a segurança das ações rápidas, uma certeza
de que é possível realizar aquilo que foi decidido exatamente como foi desejado e
uma sensação muito evidente de um fortalecimento da vontade. Esse último
deve-se à convicção de que a afirmação dos desejos, com toda certeza, pouco a
pouco, irá triunfar sobre as resistências. Ao tomar gosto pelo querer, habituamo-
nos a ter vontade. E se essa alegria se apresenta sob uma forma serena, mansa e
permanente, é por que ela é acompanhada por uma faculdade de se concentrar,
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o que verificamos como resultado inicial de uma educação cujo objetivo é conduzir
o aluno a
perceber-se a si mesmo com clareza
. Essa educação também é
acompanhada por uma expansão da personalidade, que não é nada mais do que
“a individualidade diante da consciência e da inteligência de si mesmo”
(Lacordaire)9. Em muitos casos, a falta de personalidade provém de uma fraqueza
do sistema nervoso que impede a afirmação do temperamento. Ser capaz de agir
com rapidez ou não, de agir com lentidão ou não, de assimilar rapidamente um
bom hábito ou interromper vivamente um hábito ruim, de se esforçar através de
uma série de demorados exercícios para automatizar os atos úteis e criar, assim,
novos reflexos, de encontrar rapidamente a solução de uma questão e saber se
concentrar para encontrá-la calmamente, pesando os seus prós e contras... eis os
resultados dessa educação que investiga as relações estabelecidas entre a
velocidade e a lentidão, entre a força e a flexibilidade, entre os movimentos e as
interrupções, entre as sonoridades e os silêncios, entre o esforço e o repouso,
entre a sombra e a luz, tudo isso em conformidade com as leis da alternância e
do equilíbrio que fundamentam as leis do ritmo. E para que essa educação
produza em nós a alegria, ela ficará responsável por desenvolver em cada um de
nós o sentido estético, pois a partir da alegria que nos habita, nós envolveremos
tudo aquilo que nos rodeia e criaremos a beleza.
É quase impossível determinar a elevada quantidade de pessoas que não
gosta de música ou não a compreende (o que não é a mesma coisa), visto que
suas faculdades auditivas não estão intactas e também, porque a educação
oferecida pela escola não se empenha em desenvolver o sentido auditivo da
criança. Eu vou mais longe. A quase totalidade das crianças que não gosta de
música por ter um ouvido ruim, fatalmente, irá apreciá-la se suas faculdades
rítmicas forem desenvolvidas. O ritmo exerce na música um papel tão importante
quanto a sonoridade, e eu sei por experiência que, graças a um único ritmo
experimentado em si mesmo e graças a uma educação capaz de desenvolver os
ritmos naturais do corpo, poderemos fazer com que até mesmo as crianças que
não apreciam as sonoridades passem a amar a música.
Elas amarão a música
por conta dos movimentos
que ela abarca tão logo
9
Lacordaire, Henri
(1802-1861). Religioso e intelectual francês. Dalcroze não cita a fonte da citação, mas ela
talvez tenha sido extraída da obra
Conferências
, publicada em 1848 (N. do T.).
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esses movimentos se tornarem para ela algo natural e familiar. Alguém poderá
dizer que estamos depreciando a música ao fazer com que ela seja amada por
alguém que aprecia somente uma de suas duas qualidades principais. Eu
responderia que depreciar a música, de fato, é limitar o seu ensino a um único
elemento: a virtuosidade. E esse é o caso da maior parte dos conservatórios. Ao
cultivar a Rítmica não apenas nas escolas de música, mas também nas escolas da
rede pública de ensino, nós desenvolveremos o sentido musical das gerações
futuras em proporções inacreditáveis.
Acredito, firmemente, que se nós buscarmos desenvolver nas crianças o
sentido artístico ao mesmo tempo que a vontade, a personalidade e a
concentração psíquica, através de uma educação
para e através do ritmo
, a própria
arte (tanto a música quanto a plasticidade viva), ao se apoiar sobre essa educação,
só poderá triunfar.
***
Muitos entre os senhores devem ter se perguntado, ao constatar como a
música envelhece rapidamente, quais seriam exatamente os elementos que se
desenvolvem mais rapidamente do que outros de tal maneira que nos resta
apreciar certas obras de um ponto de vista historiográfico nas quais esses
elementos se encontram em um estado embrionário? No momento em que
decidirmos abordar a questão, a resposta será imediatamente revelada. Se a
música se torna a cada dia mais grandiosa é devido à harmonia, às modulações e
aos efeitos orquestrais de sonoridade. Se uma obra nos parece envelhecida, é por
que não congrega harmonias pitorescas, modulações imprevistas e timbres
orquestrais saborosos aos quais nossos ouvidos se habituaram e que se
constituem um enriquecimento de seus meios de expressão. Por essa razão,
Glück, Handel, Haydn e Mozart cujas passagens, repletas de genialidade, ainda
são capazes de nos comover nos transportam ao mesmo grau de entusiasmo
que um Beethoven, um Wagner ou um Mussorgski. Por acaso algum dos senhores
sentiu pena da pobreza
rítmica
inerente às obras de Glück, Handel, Haydn ou
Mozart? É claro que não, e isso se deve pela ótima razão de que a pobreza pode
ser constatada em comparação com a riqueza: pois os ritmos das obras modernas
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são os mesmos encontrados nas obras dos séculos precedentes. De um ponto de
vista rítmico, a música não fez nenhum progresso, ao contrário – que pena! –, ela
retrocedeu! De fato, não chega a ser um progresso fazer alguém ouvir
simultaneamente quatro ritmos diferentes, mas pouco interessantes. É um
retrocesso não ser possível utilizar, cotidianamente, ritmos a 5, 7, 11 ou 15 tempos
como aqueles empregados nos cantos populares eslavos ou orientais. E a prova
mais evidente da pobreza métrica e rítmica atual é que os músicos nem mesmo
tentaram criar um símbolo para designar uma figura com duração de 5 tempos
(cinco semínimas ou cinco colcheias); essa ausência se justifica, porque os
músicos, sem exceção, dividem as métricas a nove tempos em 3 x 3 sem cogitar
o uso de combinações mais interessantes
como 4 + 5, 5 + 3 + 1, 2 + 2 + 3 + 2, etc.
O domínio musical ainda possui um campo enorme a ser explorado, e esse campo
é aquele circunscrito pelos movimentos rítmicos, que deverão fornecer à arte de
se emocionar pelos sons um inacreditável tesouro de novos meios de expressão.
Preste atenção! Se a rítmica musical não progride, não é por que os músicos não
buscam novos ritmos, é porque eles não os encontram; ademais, ainda que os
seus espíritos criativos, a duras penas, forjem uma obra original, eles não podem,
todavia, servir-se desses ritmos, simplesmente porque são
incapazes de senti-los
.
Eu espero que os indivíduos das gerações futuras, elevados pelo ritmo e através
dele, tenham sofrido uma tal transformação em suas mentalidades que lhes será
possível encontrar ritmos musicais interessantes sem nem mesmo precisar
procurá-los, isso por que o ritmo tornar-se-á uma parte integrante do seu corpo,
porque a música dos movimentos lhe habitará, porque no íntimo de sua existência,
educada pelos mais numerosos atos conscientes de movimento, a emoção
artística se expressará em movimentos
inconscientes
,
igualmente, mais
numerosos e mais significativos.
***
Numerosos anos serão necessários para que se produza na arte musical esse
desejado renascimento do ritmo. Não dúvida sobre isso. Porém, estamos
seguros de que um tempo relativamente curto será suficiente para que essa
educação rítmica contribua para o aprimoramento das interpretações musicais
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dramáticas e coreográficas. Essa educação rítmica será primeiramente
indispensável para despertar nas pessoas de teatro, que a ela se submeterem, o
entendimento de que, se esse estudo não for empreendido, será impossível
interpretar ritmicamente a música de um modo satisfatório. Nove em dez
espectadores de uma representação lírica não se dão conta do
enorme abismo
estabelecido entre a orquestra e a cena; eles não percebem, tampouco, que os
cantores e os dançarinos sobrepõem gestos e atitudes – desprovidos de qualquer
lógica a uma música que eles
não conhecem
ou conhecem apenas
superficialmente e de um modo imperfeito; que os seus pés caminham quando
não deveriam caminhar; que os seus braços se elevam quando não deveriam se
elevar; que os seus corpos se comportam em relação à música como se
comportariam suas vozes se eles cantassem desafinados ou fora do tempo ou,
ainda, atacassem a ária de uma outra ópera enquanto a orquestra continuaria a
executar a obra que foi iniciada! E essas faltas provém tanto da inabilidade dos
membros mal treinados no domínio do ritmo quanto de uma mentalidade
insuficientemente educada e, por consequência, ignorante das íntimas relações
estabelecidas entre os movimentos executados no espaço e os movimentos
executados no tempo. Eu desafio qualquer cantor que não tenha sido submetido
a uma educação especial projetada com o objetivo de identificar as ações
musculares por meio de movimentos sonoros, ainda que ele seja genialmente
dotado, a interpretar plasticamente a mais singela das composições musicais com
um sentimento rítmico
exato
. Essa educação deverá ser a mesma para todos os
cantores líricos das gerações futuras e deverá ser integrada ao ensino do canto. E
os resultados serão tais, tenho íntima convicção sobre isso, que o público das
gerações futuras ficaria surpreso que tenha sido possível existir uma época em
que o estudo dos ritmos corporais não fazia parte dos programas de ensino das
artes dramáticas.
O estudo do ritmo, do mesmo modo, será incorporado ao programa de ensino
dos regentes de orquestra e dos diretores de teatro, assim como do compositor
dramático, que precisa conhecer as múltiplas fontes desse instrumento tão
expressivo o corpo humano – antes de tentar lhe oferecer uma música a ser por
ele interpretada. E as relações estabelecidas entre os ritmos sonoros e os ritmos
plásticos serão igualmente ensinadas aos dançarinos, cuja arte, pressentida por
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Grétry, Schiller, Goethe, Schopenhauer e Wagner, será enobrecida, tornando-se
mais humana e, ao mesmo tempo, mais poética; enfim, deixará de ser aquilo que
ela é hoje, ou seja, um simples divertimento de pernas desvinculado de qualquer
ideia inteligente, de todo sentimento estético ou musical, de toda envergadura
social e de todo interesse artístico.
***
A falta de conhecimento dos ritmos musicais não é a única causa da
inferioridade presente nas expressões artísticas através das quais o corpo se
afirma. Um outro equívoco contribui para enfraquecer em nossos espetáculos a
ação soberana do corpo: tomar como modelo para os movimentos corporais as
atitudes fixas empregadas pela pintura e pela escultura.
Desde muito tempo, diante de alguns espetáculos de dança
freneticamente aplaudidos por notáveis espectadores artistas, eu venho me
interrogando: Por qual razão o meu sentimento musical se sente às vezes
ultrajado? Por qual razão, apesar do incontestável talento dos intérpretes, sou
tomado por um constrangimento e, ao mesmo tempo, por uma sensação de
artificialidade, de afetação e de ausência de naturalidade? Eu presenciei alguns
pintores dotados de um primoroso julgamento compartilharem aos berros o seu
entusiasmo diante do esplendor das atitudes, do refinamento dos gestos, da bela
harmonia dos agrupamentos e das ousadas acrobacias... e, apesar de examinar
atentamente essas qualidades, de me prostrar diante de tão louvável sentimento
artístico, tanta sinceridade, engenhosidade e ciência, apesar de todos os meus
esforços, eu era incapaz de sentir qualquer emoção estética, o que me levou a
condenar-me por ser uma pessoa fria, acusando-me de incompreensão e beatice.
Foi durante uma montagem de
A Tarde de um Fauno
, de Debussy, encenada
alguns anos, que a razão das minhas hesitações e resistências foi revelada. Um
cortejo de ninfas entrava lentamente em cena; depois de oito ou 12 passos, o
deslocamento era interrompido para que pudéssemos admirar suas adoráveis
atitudes copiadas de vasos gregos. Em seguida, as dançarinas retomavam o
deslocamento mantendo a forma da última atitude, atacando a atitude seguinte
no momento de uma nova interrupção no deslocamento sem nenhum
movimento
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de preparação
, provocando uma impressão de sequências picadas como aquelas
produzidas pelo cinematógrafo perante uma série de gestos que seriam
suprimidos das películas principais. Compreendi que esse choque foi provocado
pela falta de articulação e encadeamento entre as atitudes, a inexistência de um
movimento contínuo
que nós deveríamos observar em toda manifestação vital
animada e sustentada por um pensamento. As atitudes graciosas das ninfas gregas
se sucediam entre si sem que fossem costuradas por uma atividade
verdadeiramente humana. Elas estabeleciam um conjunto de quadros do mais
artístico efeito, mas que era voluntariamente privado de todos os benefícios
proporcionados pelo tempo: a duração; eu percebo a continuidade, as
possibilidades de um desenvolvimento lento, a preparação suave e a resultante
quase fatal e inevitável do movimento plástico no espaço, elementos
essencialmente
musicais
que, sozinhos, permitiriam assegurar a verdade e a
naturalidade de uma aliança estabelecida entre os gestos e a música.
Iluminado por essa observação, analisei igualmente os movimentos de vários
dançarinos do mais elevado mérito e percebi que os mais musicais entre eles e
que se aplicavam em modelar os contornos da música, de um modo mais rigoroso,
não respeitavam – tal como as ninfas sobre as quais eu acabei de mencionar – o
princípio da
continuidade do movimento
e do
fraseado
plástico. Percebi na
dinâmica de seus membros que o ponto de partida era a atitude, não o movimento
em si mesmo.
Os músicos irão me compreender: na composição musical, as vozes de uma
melodia polifônica não são costuradas sobre um tecido formado por acordes
determinados, fixos e antecipadamente encadeados. Não, muito pelo contrário:
são os acordes que dependem inteiramente dos contornos e desenhos da
melodia. O ouvido percebe e analisa esses acordes somente quanto as vozes
finalizam os seus movimentos e permanecem, como se diz, em
tenuto
. O mesmo
deve ocorrer com a plasticidade viva. As atitudes são os tempos de imobilidade
do movimento. Sempre que durante a sequência ininterrupta de movimentos – a
denominada “melodia plástica” houver um sinal de pontuação e fraseado, uma
pausa correspondente a uma vírgula, um ponto e vírgula ou um ponto final, tal
qual em um discurso falado, o movimento se tornará estático e será percebido
como uma atitude.
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A percepção autêntica do movimento, todavia, não é de ordem visual, mas
muscular; a sinfonia viva dos passos, atitudes e gestos encadeados, do mesmo
modo, não é construída e regulada pelos olhos, concebidos como um instrumento
de apreciação, mas pelo aparelho muscular como um todo, concebido como um
instrumento de criação. Sob a ação de sentimentos espontâneos e imperiosas
emoções, o corpo vibra, entra em movimento e depois se fixa em atitudes. As
atitudes são o resultado direto dos movimentos que a elas se entrepõem,
enquanto o movimento, para a arte coreográfica da atualidade, não passa de um
ponto de conexão entre duas atitudes distintas. Há, portanto, na arte coreográfica
como a compreendemos atualmente no contexto teatral, uma incoerência entre
a experiência visual e a experiência muscular.
Os dançarinos10 escolhem como modelo para as suas atitudes as obras-
primas da escultura e da pintura, inspirando-se em afrescos gregos, estátuas ou
pinturas, sem se dar conta de que essas mesmas obras foram produzidas a partir
de uma estilização especial, uma espécie de acordo estabelecido entre os
movimentos, uma série de eliminações e sacrifícios que possibilitou aos artistas
criadores, ao operarem sinteticamente, oferecer-nos uma ilusão de movimento.
No entanto, se é necessário que as artes plásticas notadamente privadas da
colaboração do tempo realizem uma síntese ao fixar uma atitude corporal, é
contrário à verdade e ao natural que o dançarino tome essa síntese como ponto
de partida de sua dança e que procure recriar a ilusão do movimento, justapondo
uma série de atitudes e ligando-as umas às outras através de gestos, em vez de
retornar à fonte da expressão plástica que é o movimento em si mesmo.
Os especialistas em artes plásticas, não resta dúvida, têm todo o direito de
se regozijar com a dança atual que, na magia das cores, nos impressionantes
contrastes de luz e com o concurso quase imaterial dos voos de tecidos pesados
ou leves, satisfazem as necessidades decorativas mais refinadas, oferecendo aos
olhos prazeres raros e pitorescos11. No entanto lhes pergunto: esses prazeres são
10 Em muitas de suas interpretações plásticas, a grande artista Isadora Duncan entregava instintivamente o
seu corpo ao movimento
contínuo
, e essas interpretações eram as mais vivazes e fascinantes (Nota original
do Autor).
11 Alusão às danças de Loïe Fuller (1862-1928), dançarina estadunidense celebrada como um dos grandes
ícones da Belle Époque e que marcou em caráter definitivo o
Art Nouveau
e a obra dos principais pintores,
escultores, fotógrafos e cineastas europeus do período (N. do T.).
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de ordem espiritual e emotiva? Seriam eles o produto direto de sentimentos
profundos e sinceros tão completos que poderiam satisfazer a nossa necessidade
de prazer estético e nos impregnar da emoção que engendrou a obra de arte?
O movimento corporal é uma experiência muscular; essa experiência é
apreciada por um sexto sentido: o sentido muscular, responsável por regular as
múltiplas nuances de força e velocidade dos movimentos corporais de um modo
condizente com as emoções inspiradoras desses movimentos, de modo a
assegurar à mecânica do corpo humano a possibilidade de estilizar as emoções e,
assim, fazer da dança uma arte completa e essencialmente humana.
A Rítmica atribui à experiência corporal o seu ponto de partida; isso está
totalmente correto do mesmo modo que os ritmicistas, ao assistirem aos
exercícios realizados pelos seus camaradas, não os apreciam unicamente com os
olhos, mas com a inteireza de seus corpos. Eles comungam o espetáculo que
assistem com grande intimidade; ao apreciar esse espetáculo, eles experienciam
a alegria de uma natureza muito especial: a necessidade de se mover, de
vibrar
em uníssono com as evoluções daqueles que eles observam e de se expressar
corporalmente! Em uma palavra: eles sentem despertar e palpitar em si mesmos
uma música misteriosa que é o resultado direto de seus próprios sentimentos e
sensações. Essa música da personalidade seria suficiente para regular os
movimentos humanos se os homens não tivessem perdido o sentido da ordem e
da variação na expressão corporal, um sentido sem o qual a renovação da dança
não será possível. Não uma tradição de movimentos corporais. E como nós
acabamos de verificar, os dançarinos modernos tomam por empréstimo das
belas-artes uma cultura das atitudes que substitui as experiências intelectuais por
sensações espontâneas e transporta a dança a um patamar secundário dentro do
domínio das artes. Existe somente um meio de restituir ao corpo a gama completa
de seus meios expressivos: submetê-lo a uma cultura musical intensiva e colocá-
lo em posse de todos os elementos de ordem dinâmica e agógica de que ele
dispõe e num estado que lhe permita sentir todas as nuances da música dos sons
para que possa expressá-las por meio de seus músculos. A educação liberta a
música aprisionada na alma do artista; e é justamente essa música pessoal que,
ao ser colocada diante daquela que ele deverá interpretar e fundir-se intimamente,
transmitir-lhe-á um acréscimo de vida, assim como os ritmos individuais de todos
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os intérpretes de uma obra coreográfica produzem uma emoção coletiva que não
é nada além da gênese do estilo. Como disse Élisée Reclus: “O povo que somos
todos nós move-se em um ritmo constante; em cada um de nós, a música interior
do corpo, cuja cadência ressoa no peito, regula as vibrações da carne, os passos,
os impulsos da paixão e até os volteios do pensamento; quando todos esses
batimentos se conciliam e se unificam em uma mesma harmonia, um organismo
múltiplo é concebido, abraçando uma multidão inteira e lhe oferecendo uma
alma...”12.
***
Convém, então, que uma parte da educação a que desejamos submeter os
artistas seja reservada ao sistema nervoso. É preciso que exercícios especiais
ensinem os nervos a transmitir rapidamente os comandos do cérebro aos
membros encarregados de realizar as suas vontades e a estabelecer, com o
suporte do ritmo, uma circulação viva e ordenada em todas as nuances de
movimentos entre os diversos agentes do organismo. É preciso criar novos
movimentos automatizados que a vontade inteligente saiba utilizar em um sentido
artístico, combinando-os, opondo-os e os sobrepondo. É preciso, do mesmo
modo, que as manifestações subconscientes do indivíduo possam florescer sem
causar prejuízo à harmonia da plasticidade. É preciso, sobretudo, que o intérprete
plástico das emoções musicais seja capaz de senti-las profundamente, e que ele
seja conduzido por uma cultura artística e moral. Pois, para todos aqueles que não
forem assaltados pela música e aos quais ela não impuser imperiosamente as
suas vontades, toda busca pela expressividade será uma mentira. Tudo isso parece
ser muito complicado, os senhores me dirão, muito pedante, muito bem-
intencionado, muito escolástico... Mas, não! Essa educação é imposta pelo
professor de piano ou violino às mãos e aos dedos de seus alunos sem que
ninguém a considere exagerada. O artista da dança deve servir-se do seu corpo
inteiro para expressar os seus sentimentos; é, portanto, imprescindível que todos
os seus membros sejam educados em consequência disso. E em relação à parte
12
Reclus, Élisée
(1830-1905). Geógrafo e anarquista francês. Dalcroze não indica a fonte, mas a citação localiza-
se ao final do XI capítulo (
Educação
;
A arte é a vida
) do VI volume da enciclopédia de geo-história intitulada
O Homem e a Terra
, publicada originalmente em 1908 pela
Librairie Universelle
(N. do T.).
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do ensino que abrange a harmonização do sistema nervoso, é muito claro que ela
deve ser compulsória, não apenas aos dançarinos, mas a todos os artistas que irão
servir-se do ritmo: os instrumentistas, como também os cantores e os regentes
de orquestra.
Essa educação culminará na criação de pessoas sensíveis, plenas de vida e
em condição de exteriorizar sensações exuberantes e espontâneas, além de
compreender e amar a música, cujas emoções, elas ficarão encarregadas de
traduzir. O artista-intérprete não deverá ser um simples instrumento, mas um ser
humano capaz de comunicar os seus sentimentos ou os sentimentos de outra
pessoa – a outros seres humanos capazes de senti-los e compreendê-los.
A dança precisa ser inteiramente restaurada; e nesse domínio como em
tantos outros, parece ser completamente inútil tentar melhorar o que existe. É
preciso destruir por completo essa arte decaída e edificar um novo edifício
alicerçado sobre os princípios da beleza, da pureza, da sinceridade e da harmonia.
É preciso que o dançarino e o público se elevem e aprendam a respeitar as formas
corporais. É preciso que a corajosa e nobre tentativa de Isadora Duncan e de suas
discípulas em recuperar a pureza da plasticidade do corpo, idealizada pela quase
nudez das formas corporais, não seja aniquilada pelos protestos de uma burguesia
hipócrita e estúpida. É preciso ainda que os corpos educados a realizar
estilisticamente as sensações ritmadas aprendam a se comunicar através do
pensamento e a se deixar impregnar pela música, que representa para a dança
um elemento psicológico e idealizador. Ah! Sem dúvida! Um dia será possível!
Quando a música adentrar nas profundezas do corpo humano e se fundir a ele
como uma unidade; quando o organismo humano for inteiramente impregnado
pelos ritmos múltiplos das emoções da alma, restando-lhe apenas reagir com
naturalidade para afirmá-los plasticamente em uma transposição que se altera
somente em aparência. Ah! Sem dúvida! Será, então, possível dançar danças sem
qualquer acompanhamento sonoro. O corpo bastará a si mesmo para expressar
as alegrias e as dores da humanidade, dispensando o suporte de instrumentos que
lhe determinem os ritmos, porque todos os ritmos se encontrarão reunidos dentro
dele e serão expressos com muita naturalidade através de movimentos e atitudes.
Porém, até lá, que o corpo aceite a íntima colaboração da música ou, ainda
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melhor, que o corpo consinta se submeter sem restrição à disciplina dos sons em
todas as suas acentuações métricas ou patéticas, que ele possa adaptar esses
ritmos aos seus e também aos ritmos sonoros que ele procura opor com ritmos
plásticos, culminando em um florido contraponto nunca antes experimentado e
que estabelecerá, em caráter definitivo, uma aliança entre o gesto e a sinfonia. E
que a dança das gerações futuras seja uma dança de expressão e poesia, uma
manifestação de arte, emoção e verdade.
***
É, também, muito importante que ela forneça às pessoas a oportunidade de