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Editorial: Justiça Epistêmica em Artes
Cênicas
Dodi Tavares Borges Leal
Para citar este artigo:
LEAL, Dodi Tavares Borges. Editorial: Justiça Epistêmica em
Artes Cênicas.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0901
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Dodi Tavares Borges Leal
Florianópolis, v.2, n.50, p.1-7, abr. 2024
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Editorial: Justiça Epistêmica em Artes Cênicas
Dodi Tavares Borges Leal1
Resumo
Este editorial apresenta a proposta que vetorizou a concepção deste Dossiê
Temático, o qual buscou contribuições que problematizam e refletem sobre o
contexto atual e histórico de Justiça Epistêmica em Artes Cênicas, abrangendo a
produção e difusão de saberes do campo tanto nos contextos criativos como nos
meios acadêmicos. Tendo em vista as perspectivas das anticolonialidades este
dossiê considerou textos que abordam tópicos de
Justiça Epistêmica em Artes Cênicas em todas suas amplitudes e implicações.
Palavras-chave
: Justiça Epistêmica. Artes Cênicas. Estética. Anticolonialidades.
Editorial: Epistemic Justice in Performing Arts
Abstract
This editorial presents the proposal that vectorized the conception of this Thematic
Dossier, which sought contributions that problematize and reflect on the current and
historical context of Epistemic Justice in Performing Arts, covering the production
and diffusion of knowledge in the field both in creative and academic contexts.
Keeping in view the perspectives of anticolonialities, this dossier considered texts
that address topics of Epistemic Justice in the Performing Arts in all its amplitudes
and implications.
Keywords:
Epistemic Justice. Performing Arts. Aesthetics. Anticolonialities.
Editorial: Justicia Epistémica en las Artes Escénicas
Resumen
El texto posiciona a Pajubá, sociolecto de resistencia trans latinoamericana, en el
marco de procesos de reconocimiento cognitivo y justicia epistémica. Teniendo en
cuenta el trabajo realizado por el Grupo de Investigación 'Pedagogía de la
Performance: visualidades de la escena y tecnologías críticas del cuerpo'
(CNPq/UFSB) con el fin de inventariar Pajubá, analizamos cómo los preceptos y
procesos de la UNESCO para la preservación del patrimonio inmaterial aplicar en
este caso. Utilizando como clave las nociones de injusticia testimonial e injusticia
hermenéutica (Fricker, 2023), evaluamos las dimensiones anticoloniales del Pajubá
como formación de lenguaje, viéndolo en un viaje de justicia estética.
Palabras clave
: Justicia Epistémica. Artes Escénicas. Estética. Anticolonialidades
1 Doutora em Psicologia Social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e Licenciada em Artes
Cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Professora Adjunta do Centro
de Formação em Artes e Comunicação da Universidade Federal do Sul da Bahia. dodi@alumni.usp.br
http://lattes.cnpq.br/0796146302257664 https://orcid.org/0000-0002-1875-8616
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Os adultos da cidade brincavam de fazer as coisas e outros adultos
pagavam para vê-los: era o que chamavam de teatro. Quando a arte vira
mercadoria, passa a ser uma brincadeira de não fazer nada. O teatro é
para fazer as coisas de brincadeira, enquanto a brincadeira na nossa
comunidade a brincadeira de fazer coisas de fato. Quando a gente brinca
de fazer o Reisado, a gente faz o Reisado. Quando a gente brinca de fazer
a roça, a gente cresce aprendendo a fazer a roça, a gente brinca de fazer
a roça até fazer a roça de verdade. A gente brinca de fazer as coisas e faz
as coisas, enquanto o povo do teatro brinca de não fazer, ou melhor, faz
as coisas de brincadeira e não faz as coisas de verdade (Santos, 2023,
p.22).
Como se constituem os saberes das Artes Cênicas? De que modo os
dispositivos e agenciamentos da autoralidade cênica se configuram em termos de
justiça? Sob quais pressupostos éticos se assentam os fazeres consuetudinários
e os códigos epistêmicos em Artes Cênicas? Como se dão as jornadas de
reconhecimento dos conhecimentos produzidos na dança, teatro, performance,
circo, etc.? Quais as relações entre os modos de partilha do fazer cênico com os
valores epistêmicos que lhes são atribuídos? Quais as implicações do
rebaixamento estético, rebaixamento cognitivo e rebaixamento político para
comunidades epistêmicas não-hegemônicas em Artes Cênicas?
Tendo em vista estas questões, o intuito de problematizar e refletir sobre o
contexto atual e histórico de Justiça Epistêmica em Artes Cênicas guiou a busca
de contribuições para deste Dossiê Temático, que compõe o número 50 da revista
Urdimento. Procuramos abranger aqui a produção e difusão de saberes do campo
tanto nos contextos criativos como nos meios acadêmicos. Tendo em vista as
perspectivas das anticolonialidades este dossiê considerou textos que abordam
tópicos de Justiça Epistêmica em Artes Cênicas em todas suas amplitudes e
implicações.
As prerrogativas averiguadas preliminarmente na concepção deste Dossiê
Temático encontraram confluência com os textos aprovados e aqui dispostos para
o público. À título de análise, desenhamos três eixos constitutivos para este
compêndio, os quais atravessam, de maneira não-linear e não exaustiva, as
investigações teóricas e/ou práticas aqui reunidas. São eles:
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- Epistemologia Social em Artes Cênicas:
manifestações sociais
e justiça enquanto epistemologias em Artes Cênicas; processos políticos de
produção de saberes da cena: dinâmicas acadêmicas e criativas; linguagens e
metodologias sociais das Artes Cênicas; saberes populares, marginais, não-
urbanos, não-humanos, periféricos e não cafetinados em Artes Cênicas; tráfico
epistêmico; as práticas da crítica, da editoria e da curadoria teatral, de dança e de
performance no contexto da justiça epistêmica.
- Justiça Estética em Artes Cênicas:
processos de reparação estética em
Artes Cênicas; dinâmicas epistêmicas de reconhecimento afetivo, cognitivo e
social em Artes Cênicas; história e pesquisa estética em Artes Cênicas no âmbito
da justiça epistêmica; expedientes de justiça estética da museologia, curadoria e
arquivologia em Artes Cênicas; Direitos Humanos e políticas identitárias;
burocracia e formalismo jurídico em Artes Cênicas; justiça estética não
textocêntrica em artes cênicas.
-
Comunidades Epistêmicas em Artes Cênicas:
Pedagogia das Artes
Cênicas e justiça epistêmica; comunidades de aprendizado e de ensinagem dos
saberes da cena; políticas públicas em artes cênicas e justiça epistêmica; análises
sobre instituições e diretrizes regulatórias da pesquisa e do fomento teatrais, da
dança e da performance; direito de expressão, censura e circuitos comunitários de
articulações epistêmicas; apropriação epistêmica e epistemicídio; jornalismo e
comunidades comunicacionais em Artes Cênicas no âmbito da justiça epistêmica.
O teatro, assim como qualquer outro tipo de arte que é mercantilizado,
bloqueia a conversa das almas, porque a arte é a conversa das almas, a
arte alimenta a vida, ela não deve ser mercadoria. Ninguém sabe quem
compôs as cantigas do Congado, não existe uma patente, todo mundo
pode cantá-las. Todo mundo pode tocar as caixas do Congado nos ritmos
e nas músicas que o povo compôs. Não se sabe a autoria da maioria das
cantigas cantadas no quilombo. Um artista dos nossos uma vez explicou
que não escrevia para vender: "Escrevo para o povo cantar, se você quiser
cantar, que cante, a música está aí. Por que você precisa comprar uma
música para cantar se todo mundo está cantando? Cante a música,
moço!" (Santos, 2023, p. 22-23).
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Apesar de não haver a pretensão de dar conta de todos os temas possíveis
dentro de cada um destes eixos, e em sua relação, os textos que apresentamos
no dossiê provocam uma iniciativa fundamental e ainda muito escassa no campo
das Artes Cênicas que é a formulação dos pressupostos de justiça e dos percursos
de produção epistêmica.
As marcas coloniais que matriciaram a história da arte no Ocidente
determinaram, por exemplo, a égide de práticas e contextos institucionais de
injustiça epistêmica
nas Artes Cênicas. Neste sentido; perguntamos: com quais
bases e interlocuções poderíamos examinar e auferir a
confiança epistêmica
em
Artes Cênicas?
Muitas definições e concepções de conhecimento expressam algum tipo
de confiança epistêmica como uma condição para que o sujeito o
detenha, seja como parte de uma condição para crença ou como parte
de uma condição para justificação. Se quisermos nomear uma visão
epistemológica seminal a esse respeito, então certamente deve ser a
ideia de Descartes de que um estado de absoluta confiança na crença
um estado de certeza é requisito para o conhecimento, posto que a
suposição internalista cartesiana se fez sentir em tantas concepções de
conhecimento posteriormente. O significado para a presente discussão é
que, em qualquer concepção de conhecimento que inclua confiança, as
implicações para alguém que se depara com a injustiça testemunhal
persistente são sombrias: a pessoa não está apenas sujeita ao insulto
epistêmico intrínseco, que é a principal injustiça, mas, onde essa
debilitação intelectual persistente faz com que ela perca a confiança em
suas crenças e/ou sua justificação para tal, ela literalmente
perde
conhecimento.
Talvez alguma parcela de conhecimento que a pessoa
detenha seja apagada em uma onda de subconfiança. Ou talvez ela sofra
uma erosão prolongada da confiança epistêmica, de modo que esteja
permanentemente em desvantagem, repetidamente deixando de obter
itens de conhecimento que, de outro modo, teria sido capaz de conseguir
(Fricker, 2023, p.76).
Diante de configurações em que a perda de conhecimento se associa ao
rebaixamento estético, político e cognitivo de comunidades epistêmicas não-
hegemônicas, os estudos de Justiça Epistêmica em Artes Cênicas contribuem,
além de outras coisas, para a redução da insegurança do saber e da desconfiança
acadêmica na área. Temos que, com desdobramentos a partir deste dossiê, se
possa seguir em novas pesquisas que visem consolidar o interesse no exame
prático-teórico do Direito em Artes Cênicas tendo em vista as dinâmicas e fricções
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entre legibilidade, legitimidade e iterabilidade discursiva, em direção
à Justiça Epistêmica.
Pode a arte, altamente marcada pelo neoliberalismo e colonização ser vista
como um sistema de justiça? De que forma a partilha comunitária configura outros
domínios de fruição epistêmica em Artes Cênicas? Quais dinâmicas de
autoralidade se consubstanciam em paradigmas individualistas e excludentes da
arte? Como reverter condições de injustiça epistêmica em Artes Cênicas? Quais
formas de justiça são criadas e recriadas por comunidades epistêmicas não-
hegemônicas? O que fazer quando não confiança epistêmica na academia?
Quais as medidas de reconhecimento dos saberes não-universitários e não-
humanos em Artes Cênicas? Quais as extensões e possibilidades de justiça social
se configuram na dança, teatro, performance, circo, etc.?
Não tivemos aqui a pretensão de esgotar as discussões destas e de outras
questões, mas de abri-las e amplificá-las, delineando a maneira como os
propósitos e dinâmicas dos fazeres/saberes em Artes Cênicas se dimensionam
em termos de justiça.
A arte é a conversa das almas porque vai do indivíduo para o
comunitarismo, pois ela é compartilhada. A cultura é o contrário. Nós não
temos cultura, nós temos modos modos de ver, de sentir, de fazer as
coisas, modos de vida. E os modos podem ser modificados. Quando a
gira está rolando num terreiro e alguém puxa um ponto, todo mundo
canta junto. Colocamos uma toada, compartilhamos essa toada e cada
um vai com a letra. É assim que fazemos. Dentro da cultura, é preciso se
submeter às notas. A cultura é uma coisa padronizada, mercantilizado,
colonial. Os colonialistas dizem que não temos cultura quando não nos
comportamos do jeito deles. Quem não sabe tocar piano ou não sabe o
que é música erudita, quem nunca frequentou um teatro, quem não
frequenta o cinema, para eles, não tem cultura. Para nós, quem não sabe
dançar e cantar no batuque, quem não sabe fazer uma comida, quem
não se emociona com a cantiga de um pássaro não tem um modo
agradável de viver (Santos, 2023, p.23).
Referências
SANTOS, Antônio Bispo dos.
A terra dá, a terra quer.
São Paulo: Ubu Editora /
PISEAGRAMA, 2023, p. 22.
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FRICKER, Miranda.
Injustiça Epistêmica
: o poder e a ética do conhecimento.
São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2023, p. 76.
Recebido em: 23/02/2024
Aprovado em: 25/04/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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