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Corporalidades mnemônicas:
histórias performadas em sonoridades enquanto dança
Daniel Santos Costa
Tiago Samuel Bassani
Para citar este artigo:
COSTA, Daniel Santos; BASSANI, Thiago Samuel.
Corporalidades mnemônicas: histórias performadas em
sonoridades enquanto dança.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 54, abr. 2025.
DOI: 10.5965/1414573101542025e206
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Daniel Santos Costa | Tiago Asmuel Bassani
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-25, abr. 2025
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Corporalidades mnemônicas1: histórias performadas em sonoridades enquanto dança2
Daniel Santos Costa3
Tiago Samuel Bassani4
Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão sobre a elaboração da ideia de Corporalidade Mnemônica no
contexto performativo. O processo descrito é fundamentado nas histórias de vida e no diálogo com a
oralidade popular brasileira. A narrativa apresentada destaca a trajetória de um indivíduo envolvido na
luta pela terra, expressando sua estética por meio da articulação entre corpo e voz, o que se manifesta
em diversas imagens, sonoridades e musicalidades. As criações performativas sugerem uma forma de
expressão que está profundamente enraizada na história do corpo e em uma espiral de memórias
performadas como sonoridades em dança.
Palavras-chave
: Corpo. Dança. Emblemas Corporais. Memória. Sonoridade.
Mnemonic Corporalities: Histories Performed in Sonorities as Dance
Abstract
This article presents a reflection on the development of the concept of Mnemonic Corporality in the
performative context. The described process is based on life stories and dialogue with Brazilian popular
oral traditions. The narrative highlights the journey of an individual engaged in the struggle for land,
expressing their aesthetics through the articulation of body and voice, which manifests in various
images, sounds, and musicalities. The performative creations suggest a form of expression deeply
rooted in the body's history and in a spiral of memories performed as sonorities in dance.
Keywords:
Body. Dance. Body Emblems. Memory. Sonority.
Corporalidades Mnemónicas: Historias Performadas en Sonoridades como Danza
Resumen
Este artículo presenta una reflexión sobre la elaboración de la idea de Corporalidad Mnemónica en el
contexto performativo. El proceso descrito se basa en historias de vida y en el diálogo con la oralidad
popular brasileña. La narrativa destaca la trayectoria de un individuo involucrado en la lucha por la
tierra, expresando su estética a través de la articulación entre cuerpo y voz, lo que se manifiesta en
diversas imágenes, sonoridades y musicalidades. Las creaciones performativas sugieren una forma de
expresión profundamente arraigada en la historia del cuerpo y en una espiral de memorias performadas
como sonoridades en danza.
Palabras clave
: Cuerpo. Danza. Emblemas corporales. Memoria. Sonoridad.
1 Este artigo resulta em 21% de partes de tese de doutorado de Daniel Santos Costa denominada: Corpo
Mnemônico: encruzilhando corporalidades populares brasileiras e histórias de vida num(a) giro(a)
performativo(a) decolonial”, defendida na Universidade de São Paulo, em 2019.
2 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Sonia Aparecida dos Santos. Doutorando, Mestrado
e Graduação em Linguística pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
3 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes da Cena pela
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bacharelado em Dança pela UNICAMP. Prof. Efetivo na
Universidade Federal de Uberlândia (UFU) - Escola de Educação Básica e no Programa de Pós-graduação
em Artes Cênicas e Mestrado Profissional em Arte (ProfARtes). grdcosta@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3266759891135746 https://orcid.org/0000-0003-3733-471X
4 Doutorado e Mestrado em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Especialização
em Artes Visuais, Intermeios e educação pela UNICAMP. Graduação em Artes Visuais pela UNICAMP.
Professor do curso de Artes Visuais e professor colaborador do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) tiagobassa@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4621887398114794 https://orcid.org/0000-0003-3177-9304
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Ao refletirmos sobre a ideia de sonoridades, enquanto dança, recorremos à
noção de
Corpo Mnemônico
(Costa, 2019) para compreendermos as estratégias do
pensar/fazer performativo. Tal percepção vincula-se à presença de um corpo sem
terra, nas encruzilhadas de suas histórias de vida, e em profusão com elementos
da oralidade popular brasileira. Desse ponto de intersecção, emergem
reverberações que espiralam silêncios, vocalidades, sonoridades, musicalidades e
emblemas sonoros os quais perambulam pela memória. Trata-se de paisagens
sonoras vinculadas ao tempo histórico e ao imaginário que constituem um corpo
em processo de formação e elaboração estética.
Nos cruzamentos referidos, apontamos para uma perspectiva das
Corporalidades Mnemônicas
, observando que o corpo diz quem somos, fala de
onde viemos e dança nossas histórias. Revela-se assim uma concepção de corpo-
oralidade que, junto às fricções corpovoz, corpovocalidades ou corporalidades,
configura possibilidades que podem ser angariadas nessa tessitura. Desses
estabelecimentos, emergem vozes incorporadas, memórias na pele, nos
músculos, nos ossos e no coração. Embrenha-se, portanto, no lugar da memória
e escavam-se seus próprios mitos em lampejos mnemônicos, articulados aos
processos de formação e criação performativa, seja na dança, no teatro ou na zona
tênue de atuação entre essas áreas do conhecimento. Tais percursos se ancoram
no caráter processual das experiências criativas, buscando territórios de encontro
e provocando ressonâncias e vibrações que elucidam as sonoridades do corpo
enquanto dança, por meio de suas
Festas Performativas5.
Ao se evidenciarem as sonoridades emanadas do corpo, retorna-se ao
mesmo lugar de constituição: às paisagens da terra, aos quintais da memória e ao
terreiro no qual esse corpo se enraíza performaticamente, numa espiral de
experiências vivenciadas no contexto das manifestações culturais no território da
oralidade popular brasileira. Nessa conjuntura, grande parte da história vivida, que
reverbera na experiência presente, está emaranhada nas paisagens rurais do
Cerrado de Minas Gerais, na região oeste do Triângulo Mineiro, zona fronteiriça com
5
Festa Performativa
é uma ideia de designação das elaborações estéticas articuladas pelo
Corpo Mnemônico
e faz parte da espiral metodológica
Corpo-Festa
, arquitetadas em Costa (2019, 2018).
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o estado de Goiás. Desses cenários, trazemos ranhuras, silêncios, ecos resvalosos
dos espaços sonoros que amparam a natureza em suas calmarias e intempéries
cantos de pássaros, intensidades de ventos, tempestades contínuas com seus
relâmpagos carregados, cantorias e ladainhas, orações,
jingles
e canções dos
programas de rádio, ouvidas no aparelho à pilha, quando vivíamos na zona rural,
ainda sem energia elétrica, em meados dos anos de 1990.
A penumbra da noite, vivenciada naqueles lugares, evoca ruídos de bichos e
assobios de vento, emaranhados aos imaginários de histórias assombrosas. Dentre
as possibilidades infinitas de narrar as composições sonoras pelas quais o corpo,
na condição de sem-terra, perambulou em sua formação e ainda finca suas raízes,
destaca-se também a abundância sonora e movente da água corrente, mesmo no
verão, quando escorregava quase como um fiapo, tal qual João Guimarães Rosa
cintila em
Grande Sertão: Veredas
(2005). Essas sonoridades líquidas compõem o
corpo nas memórias do banho, de levar a boiada para beber água, das lavagens de
roupa na beira do rio, das pescarias precárias, em busca de alimento, das
contemplações ao final do dia e do exercício diário de coletar água da mina, a
léguas de distância das casas, arquitetadas com troncos de árvores, taboca
(bambu) e lona preta.
As experiências trazidas à tona constituem corpos, que vivenciaram a morada
em acampamentos e assentamentos durante o movimento de luta pela terra, do
início da década de 1990 até o começo dos anos 2000. Em um percurso diaspórico,
envolvidos com o Movimento de Luta pela Terra, tais corpos estiveram em ação
na ocupação de terras improdutivas, na moradia precária em acampamentos e,
por fim, no assentamento da comunidade Vargem do Touro, no município de
Gurinhatã em Minas Gerais.
As tessituras da experiência, atadas à luta pela terra, compõem a ideia
enunciada de Corpo Mnemônico, trazida, no presente texto, para reflexão sobre
seus emblemas sonoros ou suas “sonoridades enquanto dança”. A intersecção
corpo-voz-som
gera reverberações infindáveis: silêncios, vocalidades,
sonoridades, musicalidades e outras insígnias que permeiam a memória e a
paisagem sonora, ligadas ao tempo e ao imaginário na formação e elaboração
estética do corpo em pleno movimento. Essa
Corporalidade Mnemônica
constitui-
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se num sentido íntegro e conectado à natureza, mas também coletivo próprio de
um modo de viver em grupo, atado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra (Costa, 2019).
Ao tentar aproximar a sonoridade, embrenhada no corpo, retoma-se o lugar
de moradia nos assentamentos e no acampamento, nos barracos de lona plástica.
Casas precárias que eram o único espaço de refúgio. Os corpos dos que ocupavam
a terra se protegiam nessa espécie de frágil casulo, sustentado por madeiras
coletadas da própria paisagem. Dessas casas de lona plástica, os corpos
guardavam o frio que entrava pelas frestas e o som do material que as compunha
balançava a cada ínfimo movimento. Quando a chuva caía sobre a superfície,
quase se sentia a fricção entre pele, plástico e água. Do lado de fora, todos os sons
eram audíveis – os ruídos da noite, as conversas que adentravam a madrugada e
seguiam até o raiar do dia. A noite era intensamente sonora.
Em determinado momento, a coletividade sem-terra, estabelecida em
assentamento, enquanto a desapropriação da área rural estava em negociação e
as famílias que ali viviam seriam assentadas, investia na construção de casas de
madeira e barro. Essas edificações proporcionavam maior conforto térmico ao
corpo e tinham maior durabilidade do que as habitações de lona plástica. É válido
lembrar que essas construções tinham caráter provisório, pois o despejo era uma
ameaça iminente. Tais imagens buscam elucidar na presente narrativa a
constituição de um corpo atravessado por instabilidade e deslocamentos
reverberados em uma
corporalidade
própria, constituída por uma complexa
tessitura sociocultural.
Essas reverberações do corpo vivido-pensado-experienciado evocam suas
sonoridades em performatividades expressas em um modo de fazer autoral,
ancorado em
corporalidades
abundantes seus próprios sons, movimentos e
gestualidades. Corpo e oralidade se conjugam em um espaço imaginal onde a
palavra ganha sentido e é dançada, ancorada em aprendizados e ensinamentos
que apenas as experiências nesses espaços festivos e de luta puderam compor.
O corpo performa, dança, teatraliza, brinca, ou seja, está em profusão de
sonoridades enquanto se mantém em ação, espiralando suas memórias
performaticamente. Tal conjunção de experiências vivenciadas é apresentada em
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três ações, em videoperformances, que sustentam esse imaginário-corpo e as
sonoridades que dele reverberam:
Quintais da Memória
(2009),
Corpo-Caminho:
Esboços Performativos em Paisagens do Campo
(2021) e
Impregnâncias Sem-Terra
(2022).
Quintal do Corpo - Cerrado (2013)6
https://www.youtube.com/watch?v=r7lnfPHmiC0&t=32s
corpo-caminho: esboços performativos em paisagens do campo (2021)7
https://www.youtube.com/watch?v=HeKpHjeW7Cc
impregnâncias sem-terra (2022)8
https://www.youtube.com/watch?v=omglVFbCiJI
Depois de propor esse espaço para a apreciação das experiências
performativas e criar um momento para acessar outra dimensão da percepção,
buscamos reforçar a compreensão não ensimesmada do trabalho autobiográfico.
uma linha tênue no jogo da relação arte-vida, que conduz a um manancial de
possibilidades. Portanto, para abrir os caminhos, lança-se mão do corpo
embrenhado na terra, destacado nas brechas, anteriormente escritas, ou
videografadas, sempre no recorte temporal daquilo que é possível abrir ao diálogo
no presente
Para buscar uma reflexão dialógica sobre a performatividade e
sonoridade
,
enquanto dança
, tecemos uma reflexão narrativa a qual se constitui pela
experiência, num processo de aprendizado que perambula dos assentamentos
vinculados ao movimento de luta pela terra ao espaço formal de aprendizado na
academia, associada à formação em dança, aos encontros com referenciais
teóricos, artísticos e a práticas que amparam as elaborações estéticas, além do
exercício de articulação com sonoridades como elementos que estimulam e
desdobram processos de criação.
6
Quintal do Corpo - Cerrado.
Captura de Imagem: Tiago Bassani. Edição de Vídeo: Daniel Santos Costa. 2013.
Locação: Assentamento Vargem do Touro, Sítio Bela Vista, julho de 2013.
7
corpo-caminho: esboços performativos em paisagens do campo
.
Captura de imagem: Daniel Santos Costa.
Edição de Som e Imagem: Tiago Bassani. Locação: Assentamento Vargem do Touro, Sítio Três Corações,
julho de 2013.
8
impregnâncias sem-terra.
Captura de Imagem: Tiago Bassani. Edição de Som e Vídeo: Eduardo Bernardt
(2022). Locação: Assentamento Vargem do Touro, Sítio Bela Vista, julho de 2013.
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Os caminhos trilhados evidenciam aprendizados sensíveis e técnico-
pedagógicos da palavra, do som, do movimento sonoro e das musicalidades nos
diversos espaços trajetória e contexto de vida, lugar de formação e na elaboração
performativa, espiralando essas ideias tal como um
DJ
, Ogã dos terreiros, mestres
de Folia de Reis, puxadores de ponto, em roda de jongo, as mães e pais de santo,
o balbuciar das benzedeiras e as vocalidades imperiosas de um cotidiano rural que
ecoa, preenchendo espaços de silêncios.
O
Corpo Mnemônico
se movimenta e é movimentado, assim como um rio
que segue caminhos desconhecidos, sempre ao encontro de novas provocações
e que deságua em alguma paragem. Nesses momentos, ouvem-se as histórias que
o fluxo das águas conta, tal qual as palavras-pensamento de Davi Kopenawa (2015)
e Daniel Munduruku (2015), ao nos lembrar de suas histórias, de seus povos e das
relações com as águas, com os sonhos, com os mitos. Há, portanto, a necessidade
de um olhar específico para determinados dispositivos, no emaranhado da
oralidade popular brasileira, no contexto da transmissão de conhecimentos.
Destaca-se, portanto:
olhar, ver, perceber, entrar em sintonia, abrir-se ao outro, permitir-se a
imagem, acionar sensivelmente o imaginário, dançar, cantar, rodopiar,
percutir-se, batucar, girar, perambular, espiralando as memórias, contar
histórias, fazer comida à beira do fogão, sorrir largamente, enrustir-se, no
momento preciso, para segurar as energias que transpassam o corpo,
enfim, acreditar em outros mundos. Colocar-se em movimento, ecoando
suas sonoridades viáveis (Costa, 2019, p.52).
O movimento sonoro que embala o corpo também constitui silêncios, tal
como contemplamos a narrativa do rio. Nesse sentido, Kopenawa e Albert (2015)
nos trazem elucidações sobre a maneira de pensar dos Yanomamis, corroborando
a premissa de corporalidade que buscamos enraizar em prática-pensamento
performado:
O pensamento dos brancos é outro. Sua memória é engenhosa, mas está
enredada em palavras esfumaçadas e obscuras. O caminho de sua mente
costuma ser tortuoso e espinhoso. Eles não conhecem de fato as coisas
da floresta. contemplam, sem descanso, as peles de papel em que
desenham suas próprias palavras. [...] Seus dizeres são diferentes dos
nossos. Nossos antepassados não possuíam peles de imagens e nelas
não inscreveram leis. Suas únicas palavras eram as que pronunciavam
suas bocas e eles não as desenhavam, de modo que elas jamais se
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distanciavam deles. Por isso, os brancos as desconhecem sempre
(Kopenawa e Albert, 2015, p. 75-76)
Rodopiando com os autores, seguimos ancorados ao complexo universo
imaginário do poeta Manoel de Barros (2003), na premissa de que "Andando
devagar eu atraso o final do dia", e com a oralidade dos silêncios evocados por
Guimarães Rosa (2005), ao dizer que "mesmo quando achamos que nada
acontece, um grande milagre que não estamos vendo". Nessas toadas,
compreendemos sonoridades enquanto dança. Tal entendimento alia-se a uma
epistemologia possível, atrelada a uma sonoridade que embala o corpo, como se
sentar à beira do rio e observá-lo contar histórias silenciosas, um movimento
corriqueiro para quem mora na companhia do rio. Essas imagens são
cumplicizadas por Munduruku (2015) e também pela vida no campo, na terra, ou
seja, na ruralidade das paisagens do cerrado mineiro.
Da compreensão do local no qual somos enraizados
Dos terreiros em que pisamos, dos territórios que alcançamos, proclamamos
a terra-corpo, pautada na figura ancestral da avó, elemento primordial nas
manifestações das
corporalidades populares brasileiras
e na transmissão dos
saberes, especialmente aqueles incorporados. Retornamos, portanto, a terra como
lugar materno, sagrado e inaugural. Da oralidade dos pássaros, das nuvens, das
águas do rio e dos córregos, do balanço e das torções das árvores... da oralidade
da terra, escavada para plantações comunitárias, aprendemos, num tempo
dilatado, entre silêncios, fantasias e nos movimentos naturais da vida em
abundância, apesar da vasta alocação em um campo de luta constante pela
sobrevivência. “Essas oralidades singelas despertavam um corpo contemplativo
imerso, claro, em um contexto de vida singular que carrega tais inscrições como
constituição do movimento na ação no mundo” (Costa, 2019, p.70). Ranhuras da
voz, sonoridade da pancada da faca ao descascar mandioca e histórias contadas
em lampejos mnemônicos, tal como na elaboração estética Frestas (2017,
https://www.youtube.com/watch?v=c3iDd5Yw9_M).
O vídeo referido registra um instante cotidiano da noite corriqueira, entoado
pela ação de rachar mandioca de Sebastiana, Dona Doca, a Avó. Sua presença
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sonora acontece nos gestos de trinchar e de manipular o instrumento cortante e,
assim, na cumplicidade dos sons e dos silêncios conjuga um momento que se
enraíza no corpo. Tais percepções são reverberadas no exercício prático da criação
e arquitetadas na elaboração performativa. À noite, hiatos de silêncio entre uma
conversa e outra. A sonoridade do vídeo é composta por sinfonia aleatória,
capturada, ao vivo, no ruído dos insetos que se movimentam, na sonoridade do
corpo e na conjunção da imprevisibilidade, elementos que incorporam um
determinado imaginário.
A ideia de corpo e oralidade é tramada de um modo muito habitual. É o
contexto de vida popular se fazendo, fio a fio, sendo substancializado em verbo e
som, em palavra e em textos, ou seja, em singularidades, reforçando a dimensão
de uma
Corporalidade Mnemônica
. Falar desse lugar, implica entender um
contexto complexo de uma oralidade expandida, que projeta uma visão de que o
corpo e a voz “falam” e se imbricam em modos de interferências em suas
corporeidades, tais como as palavras-pensamentos indígenas tecidas
anteriormente. também concordância com Zumthor (1997, p.202), ao se
reforçar a dimensão da oralidade enquanto materialidade, em que “a oralidade não
se reduz à ação da voz, mas expansão do corpo, embora não o esgote". Assim, a
oralidade implica tudo o que em nós se endereça ao outro, seja um gesto mudo,
um olhar.
Vislumbramos, ainda, ecos no pensamento de Hampaté (2015), sobre a
relação da palavra e do corpo como algo indissociável. Segundo o autor referido,
um compromisso com a palavra pronunciada, palavras-corpo que se
movimentam na pronúncia verbal e, através das danças, dos sons e dos silêncios
em que “[...] tudo está escrito na natureza”. Nesse mesmo caminho, Munduruku
(2015, p.23) nos ensina: “É preciso apenas saber ouvir”.
Destaca-se
terrasommovimento
(2018), uma ação performativa, tecida no
território sem-terra, que evoca sons da manhã, barulho de pássaros, texturas de
terras na aurora do dia. Pés perambulam caminhos de terra.
(des)caminho das experiências do corpo mnemônico na terra.
Ignoro o movimento circundante.
Voo ao encontro dos cantos dos pássaros no cair da tarde.
Pôr do sol. Pássaros alvoroçados para o pouso.
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Caminhos de terra. Plantas do pé. Terra seca, macia.
Cheiros de assa peixe (vernonia polyanthes) inundam o corpo e
atravessam de volta para a infância perdida.
Voo9.
terrasommovimento
(2018)
https://www.youtube.com/watch?v=M7toAbHD40Y&t=319s
Após destacar um contexto de inserção sociocultural das nossas experiências
emaranhadas nas linhas do contexto de formação acadêmica e no caminho que
amplifica suas reverberações performativas, o intuito da narrativa enviesada é
fortalecer a premissa de um corpo dialógico, que narra histórias de vida num
contínuo processo diaspórico de atravessamentos e coletividades. Nesse percurso,
uma visão sobre um modo de perceber som e cena, olhar pautado na
idiossincrasia da história de vida de um corpo decolonial (Costa, 2019; Mignolo,
2008), de sua constituição, de seus silêncios e de suas sonoridades performativas.
No contexto da academia, era possível assumir a premissa de que a dança
era a “linguagem do indizível”. Durante esse período, os autores se viram imersos
num modo de fazer o qual lhes silenciava a voz e que envolvia uma rotina de
exercícios voltados ao corpo, que pouco considerava a palavra e sua
articulação/exploração em movimento. No entanto, as diversas experiências,
articuladas ao campo da cultura popular, como as vivências em terreiros e rodas
de Jongo, possibilitaram a associação entre corpo e voz. Nesse trajeto, a formação
e as experiências acrescentaram uma dimensão especial ao trabalho da voz em
cena, algo que a formação em dança não trazia à tona como elemento de
investigação aprofundada. O trabalho com a voz e as sonoridades, no contexto da
academia, era esporádico e voltado principalmente aos espaços de vinculado aos
processos criativos e exercícios autônomos no fazer coreográfico.
Em contraponto, percebemos hoje mudanças significativas, nas inovações
metodológicas e pedagógicas, oriundas de diversas pesquisas sobre a sonoridade
da voz, no contexto da dança e nas encruzilhadas tensivas, que ainda insistem em
separar a linguagem da dança e do teatro. Certamente, outras estratégias
metodológicas foram trilhadas, como é o caso das articulações originais, trazidas
9 Release da ação performativa terrasomovimento. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=M7toAbHD40Y&t=319s. Acesso em: 12 fev. 2024.
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por Camargo (2021) e Bueno (2012), em um pressuposto sobre a voz dançada, além
dos estudos fundamentais de Aleixo (2020, 2018).
A partir dessa premissa, é possível recordar a experiência de Aleixo (2020),
que compõe uma ideia de corpovoz, segundo a qual, as vivências de corpo e voz
são articuladas a processos e práticas de composição e criação artísticas. Num
primeiro momento, realizam-se estudos sobre o corpo, a voz, a fala e a linguagem
sob diferentes perspectivas, com ênfase na exploração da palavra, na expressão
verbal, no texto, na musicalidade e na fala.
Nesse rumo, a dimensão de corpo-voz, articulada por Ramos (2022), explana
um modo de lidar com essa dimensão corporal, tal como Leda Maria Martins, que
pronuncia sua perspectiva sobre o performar, inscrevendo, grafando, repetindo,
transcriando e revisando o que representa:
[...] o corpo-voz torna-se o espelhamento entre o tempo dos ancestrais
e o tempo atual dos rituais congadeiros. O corpo-voz é, simultaneamente,
o lugar da pertença e da presença, o espaço em que é engendrada uma
temporalidade que se faz acumulativa, compacta e fluida. Assim, o
corpo-voz ainda é, continua sendo e pode vir a ser, conforme as ações
rituais performatizadas vão acontecendo (Martins, 2003, p. 82).
A autora referida apresenta a ideia de corpo como um lugar de inscrição de
saber, para além do texto, o que coaduna com a perspectiva da corporeidade
mnemônica aqui desenhada. No caminho da presente reflexão, recorre-se a outros
desdobramentos, no trabalho voltado à interação do corpo e da voz trazido,
especialmente por Bueno (2012) e Camargo (2021) num sentido de ampliar e
entrecruzar o diálogo.
Bueno apresenta a ideia de que as “ações de vocalizar” e “ações de dançar”
são regidas por meio da organização do corpo em movimento, o que gera
comunicação e atua no propósito de construção de linguagem. Nesse escopo, a
autora propõe a “voz dançada”, que se faz num movimento de escuta, “na
percepção de informações sonoras que ganham mobilidade, que se movimentam
em forma de signos de dança” (Bueno, 2012, p. 92). Nesse caminho, ainda nos
presenteia com a ideia de que a voz dançada não é limitada a uma maneira
específica de organização, mas a outros e vários modos e singularidades.
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Camargo, desde 1999, desenvolve trabalhos que entrecruzam música, teatro
e dança. As experiências desenvolvidas por ela também se articulam nas práticas
pedagógicas da Universidade de São Paulo, nas aulas de técnicas de corpo e voz
desde 2013. Segundo a autora, tais proposições não desarticulam saberes, mas
afirmam uma indissociabilidade entre voz e movimento, articulando
procedimentos técnicos-criativos de diferentes técnicas vocais e corporais, com a
intenção de integrar a produção vocal com gestualidade e trabalho coreográfico.
Essas abordagens artístico-pedagógicas vêm evocando uma miscelânea de
possibilidades, revendo caminhos para um trabalho corpovocal, numa perspectiva
mais indivisível, e lançando mão de outras nomeações e possibilidades de
friccionar o campo na ideia de uma voz dançada e de um corpo sonoro.
Em uma perspectiva ampliada da dança-teatral
performativa brasileira
10,
exploramos, em encruzilhadas (Rufino, 2019; Martins, 2003), uma relação dialógica
entre profissionais das artes visuais, do teatro, dos elementos cênicos, da
dramaturgia, do audiovisual, da produção cultural, além de mestres e mestras da
cultura popular. Um exemplo disso é a obra
Ô de Casa? Ô de Fora! ou A História
do Homem que Pediu uma Folia à Pombagira Cigana
(com estreia em 2014), um
processo coletivo que se fundamenta em uma falange sincrética e em um
pronunciar performativo. Nessa obra, uma profusão de elementos que
desfazem as fronteiras tradicionais, gerando reflexões sobre as sonoridades que
emergem na construção desta Festa Performativa.
Nossa formação acadêmica esteve em interlocução com a comunidade, o
que possibilitou a realização de pesquisas que relacionam saberes populares e
conhecimentos acadêmicos. Entre elas, destacam-se as vivências nas Folias de
Reis rurais, em Minas Gerais, nas Folias de Reis urbanas em São Paulo11, nas
Umbandas e Candomblés, em diversos terreiros, e nas rodas de Jongo. uma
tessitura reverberada em
Festas Performativas
que articula diferentes trabalhos
10
Encruzilhadas do corpo (em) processo: f(r)icção arte-vida na criação de uma dança-teatro brasileira
,
Investigação de mestrado desenvolvida por Daniel Santos Costa entre 2012-2014, na Universidade Estadual
de Campinas, junto ao Grupo de Pesquisa Pindorama (CNPq), liderado por Grácia Navarro.
11 Entre 2005 a 2010, foi desenvolvida uma pesquisa nas manifestações de Folias de Reis de Campinas e em
cidades limítrofes a esta região metropolitana. Parte desse trabalho está registrado no livro Histórias e
Memórias de Folias de Reis (Costa, 2010).
Corporalidades mnemônicas: histórias performadas em sonoridades enquanto dança
Daniel Santos Costa | Tiago Asmuel Bassani
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-25, abr. 2025
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de direção cênica, investigação e composição musical e visual, arquitetada e
atravessada por
corporalidades mnemônicas
, pautadas na poética da terra e
emaranhadas em muitos fios da oralidade popular brasileira.
Nas manifestações vinculadas à oralidade popular do Brasil, é possível
observar um
modus operandi
coletivo que não dissocia corpo e voz, chegando à
ideia de uma corporalidade mais integrada, aproximada à dimensão tríade de
batucar-cantar-dançar
, articulada por Ligiéro (2011), quando este analisou tais
características da performance na África Negra, através dos estudos do Congolês
Bunseki Fu-Kiau. De outro lado, um diálogo profícuo com a movimentação de
Ramos, quando o autor referido apresenta sua percepção sobre o
corpo-
encruzilhada
, destacando-o como:
[...] um corpo-espaço atravessado, entrecruzado pelos elementos e
saberes-fazeres que compõem o universo em que ele se encontra.
Carrega uma noção de tempo-espaço espiralado, curvilíneo, que aponta
uma gnosis em um movimento de eterno retorno, não ao ponto inicial,
mas às reminiscências de um passado sagrado, para o fortalecimento do
presente e o deslumbramento do futuro. É, desse modo, uma
característica que se apresenta na dimensão performativa do corpo nos
rituais e que pode ser experienciado como elemento técnico e estético
pelos artistas da cena. (Ramos, 2022, p. 297).
Aliado às manifestações da oralidade popular brasileira, o encontro artístico
com Diane Ichimaru12, artista da dança residente em Campinas, São Paulo, trouxe
grande influência na articulação precisa entre voz e corpo. No Centro de
Convivência, da referida cidade, a experiência com o espetáculo
Território Interno
,
com direção de João das Neves13, trouxe um sentido intrínseco à atuação artística
e tem fortalecido, desde então, o conceito de
corpovocal
integrado. Diane,
certamente, traz uma singularidade na articulação entre corpo e oralidade. Sua
coreografia perambula majestosamente entre movimento e sonoridades,
12 Diane Ichimaru (1964) é bailarina, coreógrafa, dramaturga, diretora de cena e artista plástica, sua formação
inclui dança clássica, moderna, contemporânea e danças brasileiras. Nas artes plásticas possui formação
livre e experiência profissional em comunicação visual, ilustração, cenografia e figurino. Recebeu o Prêmio
APCA 2009 na categoria criadora-intérprete de dança. Fundadora e integrante da Confraria da Dança
(Campinas/SP).
13João das Neves (1934-2018). Foi diretor, escritor, ator, iluminador, cenógrafo e produtor cultural. Contribui
para a formação intelectual e estética de grupos teatrais de várias partes do Brasil, provocando discussões
em torno das múltiplas linguagens e da necessidade de realizar um teatro político sem perder de vista a
dimensão da beleza e da estética. Disponível em: https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa20122/joao-
das-neves. Acesso em: 14 fev. 2024.
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conectando palavras, textos, vocalidades, entonações, pronúncias e musicalidades
pautados na investigação prática do corpo. As palavras proferidas ganham
corporalidades próprias, e todos os seus trabalhos artísticos reverberam a
potência
corpovocal
, incluindo
Adverso
14 (com estreia em 2009), um importante
espetáculo que marcou um momento de sua premiação como intérprete pela
Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).
Além de outros trabalhos como
Território Interno
(2002) e
Cartas para Não
Mandar ou Cantigas Interrompidas
(2005), o presente espetáculo de Diane
Ichimaru aponta para uma forma distinta de articulação
corpovocal
. A bailarina
abria a cena com uma voz projetada em diversas texturas sonoras e gestualidades.
Os movimentos-sons estavam diretamente atados à sua precisão vocal,
articulados em cada palavra de sua narrativa ficcional, mesclada com elementos
autobiográficos.
No trânsito entre dança, teatro e literatura, a artista performou uma obra que,
segundo o release do trabalho, expressa uma criação tecida na relação entre
movimento, respiração, entonações corporais e vocais. Ao explorar estados de
tensão do corpo-verbo em movimento, um desenho musical composto com
arranjo original para a obra por Rafael de Oliveira, além da execução para piano.
Nas sonoridades provocadas, ainda era possível perceber o bailar nas sílabas
pronunciadas pela dançarina, em cada síncope de um corpo-verbo em
inquietação, que se queda e se levanta em meio à composição musical e ao corpo
que dança em sons, silêncios, gestualidades e outras musicalidades provocadas
pela dramaturgia e pelos elementos cênicos, como figurino, iluminação e
cenografia.
Outras obras também se tornaram importantes referências, como Aboio
(com estreia em 2000) e Beneditas (com estreia em 1998), espetáculos marcados
por uma profusão sonora que mescla elementos da oralidade popular brasileira,
como aboios, cantorias de folias, ladainhas de orações e cantigas religiosas.
14 O espetáculo Adverso estreou em 2009. Versão resumida:
https://www.youtube.com/watch?v=6p8YX3gFxS0/. Acesso em: 14 fev. 2024. Em 2021, a obra foi adaptada
para o formato audiovisual no contexto da pandemia, dentro do programa
Cultura em Casa
, do Governo do
Estado de São Paulo. Versão completa e disponível em: https://cultspplay.com.br/video/adverso/. Acesso
em: 14 fev. 2024.
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Desde então, mantemos um diálogo encruzilhado com Diane Ichimaru. Entre
as experiências mais significativas no campo da criação, destaca-se Gosto de
Calêndulas
(com estreia em 2006), uma obra coletiva que trazia um emblema
sonoro da estação ferroviária (atualmente denominada Estação Cultura de
Campinas, SP), onde o trem, ao apertar os trilhos e entoar seu apito, atravessava
os ensaios noturnos sempre no mesmo horário às 21 horas. Som que foi
compondo corporeidades por meio dessa pronúncia sonora, que fez parte da
dramaturgia e da narrativa de histórias de encontros e desencontros.
Além da lembrança sonora de
Gosto de Calêndulas
, as experiências com o
processo de criação da obra
Guyrá Apó - Ave Raiz
são referenciadas como uma
das três experiências performativo-pedagógicas que buscam articular, de forma
mais precisa, a exploração do som em cena, as narrativas e dramaturgias sonoras,
além das estratégias dos processos que reverberam em escutas, vocalidades e
sonoridades contemporâneas. Estas foram desveladas na articulação de três
Festas Performativas:
Entre Paragens
15 (com estreia em 2010),
Ô de Casa? Ô de
Fora! ou a História do Homem que Pediu uma Folia à Pombagira Cigana16
(com
estreia em 2014) e
Guyrá Apó - Ave Raiz17
(com estreia em 2018). Nessas obras, há
um trabalho que articula direção cênica proposital e acompanhamento de
músicos e profissionais da produção musical, como Marco Scarassatti18, Inácio
15
Entre Paragens.
Ficha Técnica: Direção: Rosana Bapstistella | Criação: Daniel Santos Costa e Rosana
Baptistella | Atuação: Daniel Santos Costa| Trilha sonora original: Marco Scarassatti | Figurinos e Cenário:
Heloísa Cardoso | Iluminação: Eduardo Albergaria | Arte Visual e Fotografias: Tiago Bassani. Financiamento:
Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC) 2009/2009. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=O9Na70sO-kg&t=657s. Acesso em: 14 fev. 2024.
16
Ô de casa? Ô de fora! ou a história que um homem que pediu uma folia à pombagira cigana
. Ficha Técnica.
Concepção, atuação e dramaturgia: Daniel Santos Costa| Direção e dramaturgia: Grácia Navarro | Colaboração
em dramaturgia: Isa Kopelman | Atuação: Alessandro Oliveira, Eduardo Cecconello | Trilha Sonora: Inácio
Azevedo (Inácio Berra) | Assessoria Musical (Gravação e Mixagem): João Arruda (Estúdio Venta Moinho)|
Cenografia e Figurinos: Tiago Bassani | Assistência de cenografia e Figurinos: Carolina Heldes, Letícia Lopes |
Preparação Vocal: Luciane Olendzki | Desenho de Luz: Erika Cunha, Alice Possani | Videoartista: Bruno Torato
| Design gráfico e fotos: Tiago Bassani | Produção artística: Daniel Santos Costa | Produção executiva: Tiago
Bassani | Apoio Técnico: Rafaela Melo| Patrocínio: Fundo de Investimentos Culturais de Campinas - FICC
2012/2013 - Secretaria de Cultura - Prefeitura Municipal de Campinas. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cLy7VCnq_6o. Acesso em: 14 fev. 2014.
17
Guyrá Apó Ave Raiz
. Ficha Técnica: Daniel Santos Costa | atuação, criação e produção executiva. Diane
Ichimaru | direção artística, cenografia e figurino. João Arruda | trilha sonora original. Marcelo Rodrigues |
Iluminação, pesquisa sonora e operação de luz e som. Bruno Torato | fotografias e registro audiovisual. Tiago
Bassani | arte. Financiamento: Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC) 2009/2009. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=AVfDC3ZEXzk. Acesso em: 15 fev. 2024.
18 Artista sonoro e compositor realiza pesquisas em educação musical, pesquisa e constrói esculturas,
instalações e emblemas sonoros. É professor Adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG. Tem
participado de inúmeros festivais, mostras e exposições.
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Berra19 e João Arruda20.
Para tentar articular uma possível percepção sobre o trabalho
corpovocal
,
nas
Festas Performativas
, recorre-se a uma dimensão geral do trabalho,
destacando esboços e lampejos dos processos criativos e dos momentos
dialógicos, que permitam identificar um eixo comum na articulação do corpo, da
voz e das demais sonoridades urdidas coletivamente. Os três trabalhos referidos
possuem direção cênica de distintas diretoras mulheres artistas atuantes na
cidade de Campinas, com pesquisa no universo do corpo, da dança, do teatro e
das performatividades articuladas ao manancial da cultura popular brasileira na
contemporaneidade. São elas: Rosana Baptistella, Grácia Navarro e Diane Ichimaru.
Os processos em questão mantiveram diálogo profundo com outros
importantes profissionais do campo da produção cultural e das linguagens
artísticas. Portanto, buscamos tramar uma tessitura do
Corpo Mnemônico
, que
visa a elucidar rascunhos de sua elaboração performativa, tramados em suas
localidades e outras sonoridades em diálogo com a cena.
Entre Paragens21
resvala em silêncios, nas paragens dos corpos, dos lugares das memórias
e das f(r)estas de sensações e sentidos corporalidades, mascaramentos,
performatividades boieiras, sonoridades festivas e intuitivas, entre
relâmpagos do corpo em texturas, delírios, abismos e devaneios (Costa,
2019, p. 223).
Em um cenário onde as Folias de Reis são potencializadas e trazidas à tona
numa ruralidade intensa, articulada com elementos da Umbanda e de tantos
motrizes evocados da cultura brasileira ritmos, sons, movimentos, canções,
corporalidades, imagens e memórias culminam sempre em uma
19 Músico da cidade de Campinas (SP). É um dos idealizadores do bloco de carnaval Berra Vaca, tradicional
aglomeração popular carnavalesca no distrito de Barão Geraldo.
20 Músico, cantor, percussionista, violeiro e produtor fonográfico. Nascido em Campinas (SP), o artista é
comprometido com a valorização e recriação de temas e canções da cultura popular brasileira, bem como
de outros países. Participou de mostras, festivais e programas de rádio e TV além de compor diversas trilhas
sonoras para espetáculos, documentários, mostras e filmes. Fonte:
https://joaoarrudavioleiro.wordpress.com/about/. Acesso em: 15 fev. 2024.
21 Entre Paragens. Ficha Técnica: Direção: Rosana Bapstistella | Criação: Daniel Santos Costa e Rosana
Baptistella | Atuação: Daniel Santos Costa | Trilha sonora original: Marco Scarassatti | Figurinos e Cenário:
Heloísa Cardoso | Iluminação: Eduardo Albergaria | Arte Visual e Fotografias: Tiago Bassani. Financiamento:
Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC) 2009/2009. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=O9Na70sO-kg&t=657s. Acesso em: 14 fev. 2024.
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performatividade singular.
Ô de casa? Ô de fora! ou a história que um homem que pediu uma folia à
Pombagira cigana22 ,
concebido como diálogo transcultural, evidencia saberes de
muitos lugares: dos mestres de folia, dos terreiros de Umbanda, dos estudiosos
das culturas populares, dos mestres ancestrais, dos avós, dos colaboradores de
pesquisa, de artistas visuais, atores, músicos, produtores e programadores
culturais. Tudo isso em uma “intensa relação com a história de vida de um sujeito-
pesquisador, oriundo da luta pela terra, que anseia pelo diálogo com as culturas à
margem das formas hierarquizadas de produção de conhecimento”(Costa, 2019,
p.216).
O processo, desse modo, demonstrou-se como uma proposta de um fazer
dentro do universo da cena contemporânea, marcada pela experimentação e pelo
hibridismo, buscando “outros” modos de comunicação, especialmente em um
tratamento que permitisse olhares despojados sobre a tradição em seu
dinamismo, distantes da cristalização frequentemente observada em obras
contemporâneas, ao retratar temas das tradições da oralidade popular brasileira.
Guyrá Apó Ave Raiz23
amparou-se na figura de uma velha passarinheira,
buscada nas histórias da avó que ecoavam no corpo, um emblema de pássaro. As
cenas evocam diversas situações em que a avó se impregnou no corpo: imagens
dela e o cuidado com o outro, nos barracos de plástico dos acampamentos, a
ventania que movimenta lembranças, a árvore que compõe histórias com raízes
esvoaçantes, a lamparina que projeta luzes dançantes de passados distantes até
a composição de um corpo-ave, uma velha passarinheira, a qual invoca paisagens
22
Ô de casa? Ô de fora! ou a história que um homem que pediu uma folia à pombagira cigana
. Ficha Técnica.
Concepção, atuação e dramaturgia: Daniel Santos Costa | Direção e dramaturgia: Grácia Navarro |
Colaboração em dramaturgia: Isa Kopelman | Atuação: Alessandro Oliveira, Eduardo Cecconello | Trilha
Sonora: Inácio Azevedo (Inácio Berra) | Assessoria Musical (Gravação e Mixagem): João Arruda (Estúdio Venta
Moinho)| Cenografia e Figurinos: Tiago Bassani | Assistência de cenografia e Figurinos: Carolina Heldes, Letícia
Lopes | Preparação Vocal: Luciane Olendzki | Desenho de Luz: Erika Cunha, Alice Possani | Videoartista: Bruno
Torato | Design gráfico e fotos: Tiago Bassani | Produção artística: Daniel Santos Costa | Produção executiva:
Tiago Bassani | Apoio Técnico: Rafaela Melo| Patrocínio: Fundo de Investimentos Culturais de Campinas -
FICC 2012/2013 - Secretaria de Cultura - Prefeitura Municipal de Campinas. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cLy7VCnq_6o Acesso em: 14 fev. 2014.
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Guyrá Apó Ave Raiz
. Ficha Técnica: Daniel Santos Costa | atuação, criação e produção executiva. Diane
Ichimaru | direção artística, cenografia e figurino. João Arruda | trilha sonora original. Marcelo Rodrigues |
Iluminação, pesquisa sonora e operação de luz e som. Bruno Torato | fotografias e registro audiovisual. Tiago
Bassani | arte. Financiamento: Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC) 2009/2009. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=AVfDC3ZEXzk . Acesso em: 15 fev. 2024.
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corporais ancoradas em histórias que se agarram ao seio familiar, às canções
populares, aos mitos indígenas e ao desejo de voar. Assim, tal corporalidade se
embrenha no corpo do bailarino que perambula entre tantas paisagens em
movimento. Corpo que se curva a terra, que aciona um amontoado de imagens e
de sonoridades, no gesto efusivo ou silencioso, corpo que dança as rugas que o
delineiam, corpos que transpiram a história vivida e concentram em si a memória
do mundo sob um ponto de vista sempre singular.
Considerações finais
O
Corpo Mnemônico
ampara uma ideia imaginativa e também uma maneira
de falar sobre um corpo complexo, o qual coexiste com a multiplicidade de
conhecimentos que o rodeiam e o constituem. É uma possibilidade de perceber a
memória, atualizando-a de forma perene ou atroz, e de nomear um princípio
dinâmico, uma pronúncia que se faz
corporalmente
na articulação
corpo-voz
, que
tentamos evidenciar, um corpo que tem voz através do giro, do gesto, da pisada
leve ou pesada, da intenção de suas partes, em diálogo com as direções espaciais,
com a velocidade da ação, com a textura da voz, com o volume do corpo, as
torções e o olhar que emana conhecimento, compartilhando histórias sob a
oralidade das nuvens, nos gestos cotidianos, na contemplação do outro, em um
movimento que se faz simultaneamente coletivo e individual (Costa, 2019).
Nos distintos processos de criação, buscamos estratégias mnemônicas,
amparadas na prática do corpo, como pesquisa, no arcabouço decolonial (Walsh,
2013), procurando um rumo que legitime a fala subalterna, a história rompida, os
saberes ausentes. Emanam vozes do corpo, histórias, memórias e lampejos
desejosos de expansão. Experiências do corpo em ação, numa dança mnemônica
e espiralada. Ouvem histórias de corpos andantes, dançantes, abundantes, como
meios possíveis de tensionar a leitura das diversas perspectivas de conhecimento,
deparando-nos com encruzilhadas que oportunizam adentrar, dialogar ou tentar
enveredar por paisagens que desconfortam um dançar rasante. Pronunciamos, em
movimento, um discurso ético-político-performativo que faz espiralar passado-
presente-futuro, evocando um engajamento prático com o mundo, na
reverberação de experiências que apontam para as epistemologias da cena,
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apresentando o
Corpo Mnemônico
como um corpo-político que esboça, através
da experiência, sua gramática performativa, por meio de um giro performativo
decolonial tal como enuncia Costa (2019, p. 331).
As sonoridades “enquanto” dança revelam sua conjunção tríade: temporal,
proporcional ou conformativa. A provocação textual proclama uma possibilidade
de pensar as sonoridades, em movimentos, povoadas de possibilidades e de
imprevisibilidades de um jogo performativo. Assim, a trajetória do Corpo
Mnemônico, aqui refletida, propõe como jogo sonoro-coreográfico os emblemas
corporais, os quais se articulam em sete protocolos de investigação sobre
características específicas do corpo em movimento, suas qualidades expressivas
atadas à movimentação e às sonoridades.
Os Corpos Emblemas são complexos não lineares que são capazes de ser
acionados indistintamente, podendo ainda ser aprimorados como processo de
preparação e também aliados às escolhas estéticas , aos distintos processos de
criação e as dramatúrgicas de cada trabalho artístico, dado seu caráter de
transformação, que o amalgamar de cada experiência performativa proporciona.
Até o presente momento, apresentamos sete emblemas:
Corpo(c)errado,
Corporio, Corpogira, Corpovelho, Corpofolião, Corpobicho e Corpopássaro
. Trata-
se de um complexo imaginário acessado e atravessado, em um giro decolonial,
permeado pelo desejo de dialogar com saberes diversos e enraizados na história
de vida dos sujeitos em relação à luta pela terra. Esses emblemas são
apresentados como dispositivos passíveis de amplos desdobramentos, em
experiências artístico-pedagógicas, na perspectiva da descolonização do corpo e
do imaginário, além da comunicação entre um emblema e outro. São pontos de
partida, indícios e raízes que possibilitam o voo, em um jogo que considera nossa
história de vida, e ainda daqueles que estão inseridos no complexo campo da
oralidade popular brasileira. Nesse contexto, Lerro (2015, p. 40) contribui para a
compreensão, ao afirmar que "o seu corpo não é somente um organismo-massa,
organismo dos músculos, mas, ao contrário, é uma arquitetura corporal da
memória, composta por diversas partes, cada qual ligada a uma força primordial".
Os emblemas que mencionamos são estratégias em constituição, para
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recordar determinadas memórias e matrizes que os corpos carregam, em diálogo
com experiências fundadas, assentadas e emergidas nos processos de criação.
São, portanto, estratégias abertas que permitem o exercício técnico-poético do
corpo, em movimento, uma espécie de casa-corpo-memória que carrega imagens
e sonoridades, compondo cada movimento, vocalidade e gestualidade. Assim,
explicitamos a ideia do encontro com o emblema
Corpo-velho
.
A memória dos velhos (enquanto lembrança no corpo, imagem, sensação,
gestualidade e sonoridades, entre outros) pode, ao ser tensionada, provocar uma
revisão da história que nos é contada. Distante de uma visão unilateral, nessa
revisão, reconhecemos que cada sujeito viveu e está atado a um certo mundo, e
que muitos ocupam um lugar marginal na história oficial frequentemente
dominada pela primazia da palavra escrita.
Há, assim, a possibilidade de descortinar outras
corporalidades
, destacadas
por uma percepção do velho como manancial de saberes expressos em seus
corpos e memórias arcaicas suas danças, cantos, relatos de brincadeiras,
histórias do passado, gestos silenciosos, olhares que viram muito, andares que
pisaram inúmeros solos, além das intenções, ranhuras e texturas reveladas por
um vasto conhecimento incorporado.
Dessa forma, assim como o emblema
Corpo-velho
, cada um dos outros
emblemas se anuncia como possibilidade de investigação do corpo em exercício
prático de criação. Diante de tais exercícios, novas imagens povoam os contextos
performativos, como ocorre no imaginário, atravessando todos os outros
emblemas como um eixo transversal que fundamenta as experimentações.
Desde a precariedade da moradia, até os sons e silêncios evocados neste
texto, o elemento casa se entrelaça com histórias e memórias, na f(r)icção entre
arte e vida. Dos barracos de lona preta ao silêncio essencial que habita esse
terreno, dos terreiros de umbanda e de candomblé às rodas de jongo,
frequentemente performado em quintais e moradas de mestres e mestras, as
casas visitadas em peregrinações e rituais tornam-se espaços de acesso a
memórias ancoradas em nossos corpos. Esses acontecimentos fortalecem um
imaginário em consonância com cada elemento dramatúrgico e performativo em
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21
cena.
No processo criativo de
Ô de Casa? Ô de fora! ou a história do homem que
pediu uma folia à Pombagira cigana
, por exemplo, as imagens ecoaram ao
emblema corpo-casa, enquanto era solicitado ao bailarino repetir trechos da
forma que viesse na manifestação corpóreo-vocal, embebido de memórias
autobiográficas tais como: a voz do avô e seus aboios, com a boiada no quintal, a
oralidade do rádio, às 18 horas, momento do programa
Hora do Brasil
, ruídos e
memória olfativa das máquinas de beneficiamento de arroz, alvoroço dos pássaros
nas árvores e as brincadeiras de crianças nas ruas, quintais, tantas paisagens do
campo. Além das sonoridades advindas do campo das memórias outras e de
acessos contextualizados às inspirações de materiais literários e outros
imaginários (trilhas sonoras, álbuns de cancioneiros populares, gravações de
áudios e sonoridades capturas no campo, narrativas registradas em áudios pelos
sujeitos da criação, registros de caderno de criação, materiais em vídeos coletados
em pesquisas, entrevistas, materiais artísticos disponíveis publicamente entre
outros).
O exercício sensível de articulação e mobilização, através das imagens,
sonoridades, paisagens, gestos, sensações, corporalidades organizam
possibilidades singulares vinculadas ao território de pertencimento que se
espiralam em danças e enunciam uma tessitura sonora criativa complexa. Propõe-
se acordo para elaborações estéticas com enunciados, escolhas e pontos de vistas
sobre o mundo, articuladas em corpo-voz-movimento e suas reverberações em
cena sempre vinculada à história pessoal e às referências artísticas dialógicas, tais
como estes que foram apresentados acima, através de suas proposições e
perspectivas sobre o corpo e a voz.
Em
Guyrá Apó Ave Raiz
, realizamos previamente uma pesquisa e
exploração musical com Marcelo Rodrigues, ao que se seguiu a elaboração das
trilhas, composição e edição, a partir da seleção de diversas sonoridades, que
foram trazidas, tanto por elementos previamente escolhidos, quanto pela relação
entre corpo e objetos, como o chocalhar das favas com sementes de flamboyant,
que compuseram as texturas de inúmeras faixas sonoras do espetáculo.
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Além disso, foram utilizadas, em cena, como elementos cênicos integrados à
narrativa, representando pássaros, espadas e outras referências visuais. Expondo
a textura desse processo, apresentamos as palavras-corpo-sonoridade:
Ao iniciar, buscávamos acordar o corpo. Cada um ia achando as
demandas, as vontades, os exercícios que estimulavam, as canções
balbuciadas e depois exploradas em vocalidades diversas. Os estímulos
externos, muitas vezes, eram trazidos por Marcelo Rodrigues.
Geralmente, ele iniciava conosco uma prática de aquecimento, que se
fazia individual, mas era uma forma de conversa entre os corpos. Aos
poucos, desprendia-se e nos oferecia comandos externos, tal qual
músicas, sons de pássaros, assistia com um olhar de fora o aquecimento,
a preparação e toda a estrutura dos ensaios. Esse primeiro momento
durava, geralmente, em torno de uma hora (Costa, 2019, 299).
Em relação à festa performativa
Entre Paragens
, fortemente vinculada à
paisagem rural e à lida com o gado, às lembranças dos cantadores e dos palhaços
de Folias de Reis, bem como a todo o universo imaginal associado à participação
e ao pertencimento, às manifestações e às grandes festas de chegada da Folia de
Reis na zona rural de Minas Gerais, elementos fundamentais na construção
narrativa e corporal. A relação entre corpo e voz, articulada ao contexto da cena,
é elucidada por Baptistella (2010, p. 3) quando a autora descreve as nuances das
Folias e o fluxo de emoções que emergem nos contextos das falas e cantorias,
destacando que “este percurso da voz nos permite perceber nitidamente a
integração do corpo e o preenchimento do espaço interno (do corpo) e externo
(do ambiente)”.
Rosana Baptistella e Marco Scarassatti, diretora e músico do espetáculo,
revelam as tramas e o inventário das interações entre palavras, sons, objetos e
sentidos, descrevendo-o da seguinte maneira (2010, p. 1):
O processo deu-se de maneira interdisciplinar, desenvolvendo um trajeto
que partir de estímulos coletivos para a criação autoral e autobiográfica.
Dessa observação, noto, então, que uma relação com o outro e o
mundo. Os artistas envolvidos, tiveram seus processos criativos
deflagrados pelos elementos primeiros trazidos por mim, elementos
estes (re)interpretados e mediados pela diretora, circunstancialmente
criaram e habitaram o espaço cênico com as manifestações das suas
singularidades relacionando-as com as dos demais. Nesse jogo, os
elementos que iam aparecendo disparavam reações criativas
singularizadas, por cada uma das áreas envolvidas, formando um coletivo
manifestado.
Corporalidades mnemônicas: histórias performadas em sonoridades enquanto dança
Daniel Santos Costa | Tiago Asmuel Bassani
Florianópolis, v.1, n.54, p.1-25, abr. 2025
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Ao revisitarmos as “sonoridades enquanto dança”, podemos compreender
que o
Corpo Mnemônico
percorre diferentes caminhos, a partir de uma narrativa
das experiências vividas, seja por meio das escolhas dramatúrgicas, baseadas em
referências imagéticas, literárias e sonoras, ou pela colaboração com profissionais
de distintas experiências no campo da arte, como diretores, preparadores vocais,
músicos e produtores musicais. Cada trabalho poderia ser aprofundado em suas
complexas tessituras na articulação entre som e cena, pois, apesar de
compartilharem um eixo comum e estarem intrinsecamente ligados a
experiências, cada um seguiu uma trajetória singular, em suas histórias
performadas.
Por fim, as experiências se estruturam, a partir de um fazer coletivo que
emerge das sonoridades enquanto dança, integrando técnicas vocais, teatrais e
novas possibilidades criativas. Esse processo constrói um universo que relaciona
corporalidades mnemônicas, que transitam entre o tangível e o imaginal. Assim, a
epistemologia da cena se desenvolve em perspectivas diversas, em constante
desdobramento, ampliando o conhecimento nas interseções, dança e som, no que
traçamos como sonoridades enquanto dança.
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Recebido em: 21/04/2024
Aprovado em: 30/03/2025
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