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Da antiteatralidade à cena contemporânea:
visões do outro na teatralidade
Bruno Leal Piva
Para citar este artigo:
PIVA, Bruno Leal. Da antiteatralidade à cena contemporânea:
visões do outro na teatralidade.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0111
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Da antiteatralidade à cena contemporânea: visões do outro na teatralidade
Bruno Piva
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-17, jul. 2024
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Da antiteatralidade à cena contemporânea: visões do outro na teatralidade1
Bruno Leal Piva2
Resumo
De Platão à atualidade, a teatralidade tem sido interrogada por prismas teóricos
trans-históricos, arbitrariamente contestada por filósofos, artistas e críticos de arte.
Sob a perspectiva da tríade ator-encenador-espectador, busca-se compreender as
nuances entre aquela e a antiteatralidade, de cujos intentos não se espera uma
separação, mas uma retroalimentação que se perfaz entre as contradições de suas
semelhanças e diferenças no teatro. O outro indivíduo, corrente, tempo, visão,
artifício - torna-se elemento primordial para aproximar a produção da percepção de
teatralidade da cena contemporânea, através das suas particularidades no coletivo
entre arte e vida.
Palavras chave:
Teatralidade. Antiteatralidade. Outro. Visão. Corrente
.
From anti-theatricality to the contemporary stage: visions of the other in theatricality
Abstract
From Plato to the present day, the theatricality has been questioned through trans-
historical theoretical prisms, arbitrarily contested for philosophers, artists and art
critics. From the perspective of the actor-director-spectator triad, the aim is to
understand the nuances between that one and anti-theatricality, whose intentions
are not expected to be separate, but rather a feedback that takes place between the
contradictions of their similarities and differences in the theatre. The other
individual, current, time, vision, artifice - becomes a key element in bringing the
production closer to the perception of theatricality on the contemporary stage,
through its particularities in the collective between art and life.
Keywords
: Theatricality. Anti-theatricality. Other. Vision. Current
De la antiteatralidad a la escena contemporánea: visiones del otro en la teatralidad
Resumen
Desde Plató hasta nuestros días, la teatralidad ha sido cuestionada a través de
prismas teóricos transhistóricos, arbitrariamente contestada por filósofos, artistas y
críticos de arte. Desde la perspectiva de la tríada actor-director-espectador, se
busca comprender los matices entre aquella y la antiteatralidad, de cuyas
intenciones no se espera una separación, sino que una retroalimentación que tiene
lugar entre las contradicciones de sus semejanzas e diferencias en el teatro. El otro
individuo, corriente, tiempo, visión, artificio se convierte en un elemento clave
para acercar la producción de la percepción de teatralidad de la escena
contemporánea, a través de sus particularidades en el colectivo entre arte y vida.
Palabras clave:
Teatralidad. Antiteatralidad. Otro. Visión. Corriente
.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada pelo autor, por ter formação em Letras.
2 Doutorando do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, financiado
por fundos nacionais através da FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do
projeto 2020.04605.BD. Mestre em Artes Cênicas na FCSH/UNL. Graduado em Letras (Port./Esp.) na
FFLCH/USP. Ator-pesquisador. brulepi@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-5145-8391
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Enquadrar os termos
teatralidade
e
antiteatralidade
num escopo teórico traz
de início uma indeterminação: serão ideias, conceitos, noções3? Não arriscaria
defini-los, postas as variadas interpretações dos estudiosos teatrais, as diferentes
aplicações nos contextos da história do teatro e suas inserções em relações
complexas dentro da encenação teatral. Se a teoria não conta de determinar
com exatidão as funções operativas que eles exercem e que os formam, talvez
seja uma falácia tentar compreendê-los como conceitos, conferindo a tais ideias
e noções um acompanhamento através da história dos estudos teatrais. Uma
história não pertencente a um passado estático e inflexível: ao contrário, um
passado interferente e interferido por diferentes condições socioculturais e
artísticas, aliadas a experimentações do próprio teatro que constantemente se
desdobrou e fornece bases para entendermos como reatualizá-lo agora, um agora
contemporâneo que acabou de passar ao escrever estas palavras e que se projeta
para um futuro logo adiante4. Assim como a história, o teatro é uma forma de arte
que nasce de um
outro
tempo, tendência, contra tendência - e, desse modo,
torna-se impossível observá-lo sem estabelecer uma discussão com o elemento
humano em seu seio social, embora a sua individualidade seja fundamental para
a independência em seu modo de ver, enquanto também acaba por ser coletiva.
Compreendendo a história, faz-se teoria, e fazendo teoria, exercita-se um olhar
crítico sobre o objeto que se almeja e sobre o mundo à nossa volta junto com esse
outro
que contribui com a criação, renovação e transformação da própria teoria e
história das quais o teatro se recicla.
A produção do conhecimento dá-se, então, pela dialética entre a história e a
teoria em exercício crítico. Ora entram em fricção, ora se complementam.
Estabelecem-se por suas semelhanças e diferenças, partindo de variações do
comum humano memória, linguagem, vida, morte - para atingirem uma
desestabilização e transformarem nossas vivências, emprestando o termo
comum
de Peter Pál Pelbart (2008, p. 36, grifo do autor): “o comum é um reservatório de
singularidades em variação contínua, uma matéria anorgânica, um corpo sem
3 Por exemplo, Luiz Fernando Ramos (2013, p. 3) aponta que podem ser considerados termos ou conceitos,
dependendo das linhas de análise adotadas, mas não especifica quais. Mais tarde, o professor e pesquisador
(2015, p. 33) sugere
ideia
para teatralidade e
conceito
para antiteatralidade.
4 Cf. Agamben (2009) e sua profícua discussão do que é o contemporâneo.
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órgãos, um ilimitado (
apeiron
) apto às individuações mais diversas”. Ao mesmo
tempo que produz diferenças, o comum passa a se reestabelecer pelas próprias
diferenças que geram, à medida que o indivíduo as reproduz e as torna novamente
comuns. Esse retorno previsível também se pela identificação com um
outro
humano, o espelho de si mesmo, e nasce de posturas críticas, embora em graus
distintos umas mais alienadas que outras. E as críticas nada mais são do que
uma tentativa de se aproximar de um
outro
- uma outra visão, um outro modo de
ver -, potências em vias de diferença e repetição que afetam corpos e noções
continuamente e proporcionam novas percepções – sob certa semelhança à ideia
pós-estruturalista deleuziana. Nem a repetição nem a diferença serão as mesmas,
mas produzirão novas perspectivas sobre um objeto comum e revelarão uma
qualidade inventiva de se apropriar dele, ou melhor, abrirão uma margem de
invenção possível através duma atitude mimética performativa, como propõe Luiz
Fernando Ramos (2015).
O diálogo que se tenta travar aqui com os autores escolhidos e com os
leitores outrem não diz respeito a um exercício crítico
de
teatro, mas
do
teatro,
“do objeto teatro”, como sugere Jean-Pierre Sarrazac (2009). Poder-se-ia dizer que
o objeto ou a margem de invenção seria o teatro. Pois bem, de fato o é, mas o
teatro é lugar amplo e se faz necessário promover uma discussão mais delimitada
sobre essa máquina e seus proeminentes agentes humanos: o ator, esse
estrangeiro convidado pelo povo para representá-lo numa espécie de tribuna,
como designa Denis Guénoun (2003), o espectador e o encenador. Indivíduos que
atuam juntos e ao mesmo tempo distantes sob a visão do coletivo, que se
aventuram nos percursos da
teatralidade
e anti
teatralidade
- palavras estas
semelhantes e diferentes que vale a pena analisar através da história e teoria
críticas do teatro.
Tanto teatralidade como antiteatralidade são termos que passaram a ser
discutidos substancialmente pelos estudos teatrais no início do século XX. No
modernismo europeu5, o primeiro a defender um cunho antiteatral seja talvez o
5 O período modernista é aqui proposto entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, dividido
em três frentes: a literária; as vanguardas dadaísta e futurista que iniciariam o chamado
teatro sem teatro
como união entre arte e vida, e os reformadores teatrais do processo de reteatralização que prezavam pela
artificialidade cênica. A partir da segunda metade do século XX até o fim dos anos 90, os movimentos
artísticos encabeçarão uma época pós-modernista ou pós-dramática, originando a contemporânea.
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poeta Mallarmé. Para o criador dos
closet dramas6
, como aponta o crítico literário
Martin Puchner (2002), uma cena não deveria estar atrelada a ações físicas, mas
se autogerar a partir dos símbolos abstratos oferecidos pelo compositor em seu
texto, como sonhos, memórias e devaneios. Os atores, assim, deveriam sair de
cena e dar espaço apenas à exposição do criador e sua obra ao restrito público
leitor, tornando-se o único porta-voz misterioso e silencioso. Agora, segundo o
olhar do historiador crítico teatral Jonas Barish (1981el, p. 337):
As relações de Mallarmé com o teatro formam um estudo em
autocontradição e uma lição no inatingível, uma tentativa quixotesca por
parte do princípio antiteatral de capturar o teatro. Existe algo de absurdo
e heroico no espetáculo do mestre do silêncio, da interioridade e da
imobilidade tentando impor essas qualidades no mundo agitado do palco
público, tentando forçar o teatro, a contragosto, a desistir da ação, da
narrativa e da fisicalidade7.
A antiteatralidade de Mallarmé, assim, consistia em recusar não apenas a
serventia do texto dramático ao teatro, mas também a participação de outros
atores, que não seriam capazes de reconstruir a essência das coisas como elas
são. A irrupção de seu descontentamento com o teatral advinha de um
preconceito contra a mimese atribuída ao ator ao longo da história do teatro,
semelhante à de Platão. O filósofo grego é considerado antiteatral na medida em
que ojerizava o teatro como dispositivo hábil para ensinar seus discípulos e narrar-
lhes acontecimentos heroicos, considerando-o um veículo falso e desprovido de
alcançar o espírito das coisas. E seu preconceito teatral também era sublinhado
por uma atitude conservadora sobre o papel do ator, o hipócrita que ele chamava,
mas ainda mais realçado dentro do contexto de sua época: as ações do
declamador ou ator poderiam desviar os padrões comportamentais dos cidadãos,
retirando-os de sua acomodada participação social que moldava e perpetuava as
hierarquias, nas quais estava a elevada posição do filósofo. Manter os cidadãos
6 Cf. Puchner (2002). Os
closet dramas
consistiam num evento para leitura de textos em espaço e tempo
determinados, destinado a um público seleto. Mallaracusava o teatro como reprodutor de teatralismo
(tradicionalmente dramático e mimético) e defendia a libertação do texto escrito do contexto teatral. Ao
separar a arte literária da teatral, acabou por apenas reafirmar o lugar do teatro como dispositivo
independente - logo livre, como defendiam também os reformadores teatrais.
7 Mallarmé´s relations with the theater form a study in self-contradiction and a lesson in the unattainable, a
quixotic attempt on the part of the antitheatrical the principle to capture the theater. There is something
absurd and heroic in the spectacle of master of the silence, inwardness, and immobility trying to impose
these qualities onto the bustling world of the public stage, trying to force the theater, against its grain, to
give up action, narrative and physicality. (Tradução nossa)
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sob as rédeas do Governo significava manter a ordem, os bons costumes, a
estabilidade, como defenderiam mais tarde os puritanos ingleses e os jansenistas
franceses, que figuravam ao ator o estigma de vagabundo, bêbado, ladrão e
profano8.
Não nos esqueçamos, porém, que toda corrente nasce de outra que lhe
início. Se os propósitos antiteatrais eram muitos, desde atribuir a luxúria, a vaidade
e a desobediência civil ao ator nos séculos anteriores, até a reapropriação do
espaço privado em substituição do espaço público pelos modernistas literários, o
surgimento do encenador também alavanca uma discussão de expropriação do
dramaturgo e do ator na cena, e a consequente reteatralização do teatro, como
propunha Craig e Meyerhold, na visão de Béatrice Picon-Vallin (2006). Suas linhas
de enfrentamento à representação de personagens imediatamente identificáveis
e às imitações de gestos explorados através do psicologismo no teatro naturalista
(e modernista), podem trazer uma falsa ilusão de que ambos seriam antiteatrais.
Pelo contrário, reforçavam a teatralidade por suas ideias e encenações,
enfatizando a artificialidade tanto no espaço como no ator teatrais, para defender
a ideia de um teatro autônomo apto a executar as outras formas artísticas com
um ator extremamente bem treinado, denotado por suas ações precisas e
esvaziadas de feições figurativas e representativas da realidade imediata uma
arte do teatro
diferente da conhecida arte total wagneriana. Ao invés ou vista
por outro ângulo, a
Arte do Teatro
seria a arte que, nascida da visão do encenador, deslancha e desencadeia
a visão dos espectadores sem alimentar neles o fluxo de visível - a
imagética - que começa a agitar o ocidente desde o início do século XX,
que se tornou o que se conhece hoje, morno, ininterrupto e analgésico -
o século do "visual" (Picon-Valin, 2006, p. 91-92, grifo da autora).
Por outro lado, é indiscutível a relevância do naturalismo/realismo na
instituição de um trabalho do ator sobre si mesmo, gerando reações contrárias
daqueles quanto a uma suposta teatralidade estética imitativa da vida dada pelas
ações dos atores numa encenação ilustrativa, além da vanguarda dadaísta e
8 Cf. Barish (1981). O autor faz um exaustivo estudo histórico sobre as tendências antiteatrais, passando
minuciosamente desde o período socrático grego a a primeira metade do século XX, à luz do texto
dramático, da mimese, do ator, da mulher na sociedade, do Estado e da Igreja.
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futurista que iniciaram o chamado
teatro sem teatro
9 como proposta artística
estreitamente vinculada à manifestação da vida como expressão.
O
teatro sem teatro
, ao contrário do que o termo possa sugerir, é uma
expressão criada recentemente para a exposição e catálogo homônimos vindo do
Museu de Arte Contemporânea de Barcelona em coparceria com e para o Museu
Colecção Berardo, em Portugal, em 2007. O termo sugere conduzir e aplicar a
teatralidade da vida nas artes e destas na vida, por meio do olhar atento em meio
ao caos diário que se repete e diferencia uns dos outros: uma teatralidade que
surge para refletir, como diz a investigadora Ana Pais (2009, p. 115-116),
categorias como o tempo, o espectador, o espetáculo, a presença e a
efemeridade, no teatro e nas outras artes que nele encontram formas de
escapar aos seus limites disciplinares […], ou seja, a perspectiva
particular, o ângulo do olhar artístico através do qual um mundo pode ser
criado […], dando-se a ver e estabelecendo-se num plano determinado
de relação com o outro.
Assim, tal noção visa estimar a produção e presença de teatralidade em obras
das diferentes ramificações artísticas, cuja abordagem gira em torno da
organização espacial numa experiência temporal cênica desses diversos gêneros
uma presença corpóreo-espacial entre humano e inumano, visível e invisível, por
meio das percepções sensoriais do espectador em contato com a obra.
Picon-Valin (2006) sugere que a imagem é um fenômeno ótico, que se inicia
e termina nos olhos, enquanto a visão é um fenômeno mental, que começa nos
olhos e se completa no espírito. Neste sentido, vejo que o princípio de teatralidade
– e de performatividade da atuação - deveria prezar a visão, cujo sentido de visão
estende-se ao toque, tocar como ver ou tocar como conhecer, revelando-se
paulatinamente pelos olhos no espírito do espectador, que não recebe significados
óbvios pautados por movimentos retirados do comportamento cotidiano e,
portanto, não atrelados a uma funcionalidade lógica da realidade imediata, nem
representativa ou figurativa. Trata-se de instigar o espectador
a
buscar
possibilidades novas de ver e interpretar o
outro
e o/no mundo.
O teatro parece reassumir, então, o retorno a uma teatralidade livre e
9 Segundo Puchner (2002, p. 7), o fundador do movimento futurista Filippo Tommaso Marinetti clamou por
uma
teatralidade sem teatro
, devido ao seu descontentamento com os teatros existentes.
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desimpedida de preconceitos contra sua gênese, aparentemente abandonada no
período grego pré-socrático – dadas as diferenças em suas semelhanças. E o que
torna a teatralidade em aparente regresso (já que ela nunca deixou de existir) nas
décadas seguintes, concentra-se no estabelecimento do contato aberto com o
espectador, que agora está ao lado do ator e com ele joga
para ser visto,
reconhecendo-se parte integrante de um coletivo do evento. Entretanto, como
todo movimento margem a uma inventividade, a teatralidade ou
literalidade
cênica incita involuntariamente um golpe antiteatral – ou
antiliteral
-, cujo líder
e propositor dos termos destacados - foi Michael Fried (1998).
O crítico e historiador das artes plásticas e escultóricas defende que o objeto
de arte deve pertencer ao universo do artista criador, feito sob condições que
retirem qualquer participação do público em sua constituição. A pintura e a
escultura não se apresentariam nem com o estatuto de objeto literal – ou teatral
-, nem como objeto representativo ou figurativo da realidade imediatamente
reconhecível, mas dariam vazão ao mergulho no plano abstrato para a imanência
do que pode (vir) existir. A planície do suporte/quadro em relação independente (e
não justaposta) com a convenção (a pintura em si) conduziria à convicção de
opticidade, através da visão e da ilusão por ela criada: “se a ótica é a ilusão
almejada, e às vezes alcançadas por forças notáveis, a tactilidade permanece uma
metáfora inevitável e, se manuseada com cuidado, extremamente útil para
caracterizar o ilusório opticamente” (Fried, 1998, p. 232)10. Ou seja, a importância
não estaria na imagem ou no espaço em que se apresentaria, mas no fenômeno
mental construído através da insistente observação do espectador
solitário
. Desse
modo, será indiscutível a afirmação de que Fried é antiteatralista, que a obra
concluir-se-ia pelos olhos do espectador em seu espírito e, ainda, sob a condição
da ilusão? Ou ainda, se ele diz (1998) que não existe qualquer relação literal ou
arquitetônica entre o observador e a escultura de Anthony Cairo, mas que ao
mesmo tempo ela está enraizada em potencialidades do corpo humano, não
estará ele encerrando a obra numa espécie de mimese, uma figuração humana ou
antropomórfica, interpretando uma passagem do abstrato para o concreto? Não
10 if opticality is the illusion aimed at, and sometimes achieved with remarkable force, tactility remains an
unavoidable - and, if handled with caution, extremely useful metaphor for characterizing the illusive
optically. (Tradução nossa)
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estaria ele mesmo realizando o que tanto temia do espectador no interior do
teatro, o da participação na constituição da obra e, mais ainda, de um teatro
naturalista/realista pautado na divisão palco/espectador? De todo modo, com seu
posicionamento preconceituoso contra o teatro e tudo o que ele representa,
equiparando-se ao daqueles apontados por Barish e comedidamente por
Puchner11, podemos deixá-lo acreditar que se trata de um grande antiliteralista,
vítima de sua própria armadilha ao associar sua
objetualidade/literalidade
à
teatralidade, pois acabou por corroborar e antecipar o que viria alimentar o teatral
tanto no surgimento da
performance art
como no teatro pós-dramático, como
partilha Óscar Cornago (2008, p.25):
Em alguns casos, como nos anos 1960 e 1970, esses agrupamentos
davam aos integrantes uma identidade política. A desintegração dos
discursos sociais afetou também o teatro, e as identidades coletivas
abriram espaço para os criadores em primeira pessoa. Como reação à
dissolução dos tecidos sociais, o ator, procurando uma nova dimensão
social, é impelido a mostrar-se com nome e sobrenome, a expressar-se
em primeira pessoa, tentando reconstruir uma possibilidade do social, ou
seja, do político, com base no pessoal, no próprio corpo.
Assim, é condição do artista/ator, a de tender a não representar nem se
figurar a um outro
ele
, mas a se apresentar, se inscrever em e escrever tessituras
com seu corpo-mente como potência sensível, em processo de resgate da
interioridade e memória pessoais (que se exteriorizam e também são coletivas),
deslocando-se do
outro,
ele,
para o
outro de si mesmo
, diminuindo os limites entre
o real e o fictício. A condição do espectador, nesse período, a de participante
individualizado, independente do robusto espírito de coletividade formado contra
as ditaduras governamentais formadas na época.
Nessa direção, e a título de exemplo, Kantor e Grotowski são dois diretores
diferentes em suas semelhanças socioculturais que dão significativas pistas sobre
esse
outro
distinto que surge na teatralidade. Embora a ideia prematura de que
11 Puchner (2002) faz uma abordagem diferente à de Barish (1981). Ele tenta demonstrar que, embora haja uma
crítica precipitada sobre a teatralidade no fim do século XIX, a partir de Wagner, e início do século XX, essa
função estaria presente em ambas as esferas teatrais e antiteatrais. A antiteatralidade defendida pelos
modernistas não estaria negando o teatro, mas rediscutindo a sua funcionalidade, assim como a vanguarda
teatral, mas por caminhos distintos: enquanto os vanguardistas seguiam pelas reformulações da
teatralidade, os modernistas optavam pela sua negação, confluindo no objetivo de transformar o teatro. Tal
reflexão conduz à genealogia teatral que, em conjunto com os aspectos sócio-histórico-culturais,
constituem-se como ferramenta fundamental para discutir o valor do teatro e da teatralidade.
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ambos os artistas enquadrar-se-iam num teatro não teatral, ou seja, sob a crença
de uma antiteatralidade vista como teatro antimimético e antidramático que
prezava pela desconstrução da linearidade textual, assim como a não
dramatização de personagens-tipo, percebo a impossibilidade da antiteatralidade
como integrante de seus trabalhos, quando vista sob a perspectiva histórica jocosa
aferida às atividades teatrais. É interessante apontar os dois polacos pelo fato de
que ambos apresentam conceitos-chave da virada da segunda metade do século
XX e que invariavelmente podem tanto dialogar com artistas anteriores a eles,
como por exemplo, Kleist, Maeterlinck, Stanislavski, Kandinsky, Schlemmer, os
citados Craig e Meyerhold, como com seus contemporâneos. De uma forma
e
outra, possuem semelhanças e diferenças no que diz respeito aos efeitos teatrais
dentro de suas obras, seja pela via do vazio, da ausência, da sombra, do
abstracionismo, da morte como tema e conceito operativo, seja pela via do pleno,
da presença, da luminosidade, do concretismo, da vida como fonte e conceito
operatório. E se existia a possibilidade de pensar seus trabalhos como produções
- ou na falta de espetáculos -, como não teatrais, pautado por um suposto
conceito de antiteatralidade, tal presunção foi derrubada. Porque se este termo
possui em seu percurso histórico uma tentativa falha de destruir o teatro (e sua
teatralidade), ou de considerá-lo a única forma de arte dependente das demais,
ao mesmo tempo o levou a se alargar e a se expandir, paradoxalmente
impulsionando a teatralidade a ele inerente às outras artes, rompendo barreiras
fronteiriças entre gêneros.
As semelhanças entre Kantor e Grotowski aparecem na medida em que seus
conceitos ou noções, ou ideias –, por exemplo, de morte e corpo-vida, ou de
arte abstrata e de arte como veículo, respectivamente - lidam com uma base
comum: a vida é morte anunciada, que por sua vez engendra a vida; e se a arte
abstrata se materializa no mundo exterior, torna-se uma ferramenta, um veículo
que possibilita o reingresso ao reino do abstrato individual. Além do mais, o
encontro de si do ator estendido ao espectador como testemunha,
através
e
com
o
outro
, foi pauta conceitual de Grotowski (2001) em fase do Parateatro e do Teatro
das Fontes, cujas linhas deram continuidade ao desenvolvimento do resgate da
interioridade do ator como indivíduo por meio do corpo-memória iniciado no
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Teatro das Representações. para Kantor (2008), cujas intenções e realizações
também foram transformando-se no decorrer de suas distintas fases (do Teatro
Independente ao Teatro da Memória), suas derradeiras obras propunham ao ator
e ao espectador que estes deveriam vasculhar os cantos empoeirados de sua
memória para buscar uma identificação com um
outro de si mesmo
, como em
efeitos de sonho, de estranhamento, de entrada a um universo desconhecido, de
encontro com a morte.
Na cena contemporânea, esvaziada12, desconhecida, multiplicada e
fragmentada pela crescente popularização dos meios digitais, que passam a dividir
a sua atenção entre projeções, telas, espaços públicos e privados, distorções
sonoras e desconstruções sintáticas e semânticas para desorientar os sentidos, o
espetáculo (
opsis
) tenta separar-se da fábula (
mythos
) teleológica, fechada e
finalizada. Busca, então, angariar para o teatro suas possibilidades de existência
em comunhão paradoxalmente independente com as outras artes, como um
teatro sem teatro
com ator que
inverte a posição do espectador, que antes
convidava o ator a representá-lo no evento, concedendo ao ator (ou ao encenador)
a função de anfitrião:
o espectador passou a ser convidado pelos actores ou por um outro
mentor do jogo […] a interessar-se não tanto pelo acontecimento do
espectáculo mas sobretudo pela forma como aparece o próprio teatro
no coração da representação pelo aparecimento daquilo a que
chamamos
teatralidade.
Mudança de regime no teatro, que se liberta do
espectacular associando o espectador à produção do simulacro
(Sarrazac, 2009, p. 17).
É possível associar o
espetacular
em Sarrazac à espetacularização das peças
teatrais como produto de consumo, incumbidas de atrair a grande massa ao
entretenimento, em que observar a vida do
outro
(tanto um personagem
melodramático como o colega ao lado) fosse um anestésico para se desfocar de
sua própria vida, mesmo ainda hoje – e talvez em futuro longo. Se o teatro não for
assumido como um dispositivo físico
per si
que torna visível o invisível, as
confusões e as insistências continuarão existindo para tentar-se definir o que é
12 Cf. Sarrazac (2009, p. 16), que aponta a teatralidade da cena no esvaziamento da representação da vida, pondo
em confronto os instrumentos específicos que constituem a realidade do teatro: “O palco, mesmo (e
sobretudo) o mais preenchido, continua vazio; e é justamente esse vazio - o vazio de toda e qualquer
representação - que ele parece estar destinado a exibir perante os espectadores".
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indefinível, mensurar o imensurável, negando seu caráter próprio cíclico e mutável,
sua função dispositiva de ater, iluminar e dar visão a um
outro
– tempo, espaço e
agentes humanos - que se reveza em períodos históricos e altera a teatralidade
com suas possíveis contracorrentes.
Tendo em vista que o teatro contemporâneo é perpassado por uma
teatralidade composta por meios múltiplos de recursos advindos de diferentes
áreas artísticas em experimentações tecnológicas, seria possível dizer que ele
ainda é um dispositivo de representação? Segundo Sílvia Fernandes (2010, p. 54),
seguindo Lehmman, o teatro pós-dramático “[é] um modo novo de utilização dos
significantes no teatro, que exige mais presença que representação, mais
experiência partilhada que transmitida, mais processo que resultado, mais
manifestação que significação, mais impulso de energia que informação”. Se as
encenações se diferem uma das outras em cada local, com cada mecanismo, com
cada agente humano, num mundo globalizado e transformado velozmente por
enunciações sem enunciados, de fato é tarefa impossível dar ao teatro a
responsabilidade de representação incontestavelmente unívoca em tempos
líquidos:
o teatro responderia a essa instabilidade por meio da simultaneidade de
canais de enunciação, da pluralidade de significados e da estabilização
precária em estruturas parciais, em lugar da fixação em um modelo geral.
À semelhança do movimento das partículas elementares, a teatralidade
explodida do pós-dramático tomaria direções tão diversificadas que seu
único traço comum seria o fato de se distanciar da órbita do dramático
(Fernandes, 2010, p. 49-50).
Não mais como capturar uma ideia, emoldurá-la e referenciá-la como
paradigma fixo, pois as imagens e as reinterpretações de dada situação proliferam
instantaneamente nos
media
, limando qualquer definição de seu caráter
cristalizado. Ao invés de se preocupar com um representacionismo, o teatro quer
provocar a individualidade, mexer com os sentidos, fazer nossos corpos e olhos
revirarem-se para todas as direções e tornar a experiência a mais longe possível
da de um consagrado veículo de comunicação. Em via de emancipar e estilhaçar
a representação unilateral, como afirma Bernard Dort (2013, p. 51, grifo do autor)
“[c]onstatamos hoje uma emancipação gradual dos elementos da representação
teatral e observamos uma mudança estrutural: a renúncia à unidade orgânica
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ordenada
a
priori
e o reconhecimento do fato teatral enquanto polifonia
significante, aberta para o espectador”.
Portanto, hoje a teatralidade tende a se recusar a explicar o que se passa no
acontecimento, impossibilitada de representar figurativamente a efemeridade das
múltiplas e fragmentadas imagens em dramaturgias desenvolvidas por todos os
instrumentos cênicos que questionam e rematerializam a presença física do ator,
movendo-se para apresentar, e não representar, aproximando-nos até certo ponto
das palavras de Cornago (2008, p.22):
A sociedade da imagem e […] a cultura da integração elevaram os níveis
da teatralidade social […] à proporção que telas e monitores se
multiplicaram. Cada um desses espaços, reais ou virtuais, é uma ocasião
para desenvolver uma representação, para (re)apresentar-se diante do
outro
Realmente faz todo sentido pensar nos modos de funcionamento da
representação durante os anos 20, 60 e 90 do século XX, para que possamos
conhecer seus meios de sustentação e, quiçá, resgatá-los e reatualizá-los num
“estudo das tradições e da inovação no interior dessas tradições e de analisar em
seguida os novos caminhos que se abriram ontem e que se oferecem atualmente
às artes da cena” (Picon-Vallin, 2009, p. 319). Porém, é urgente pensar nos aparatos
que formam a cena contemporânea - embora a representação persista,
contrariamente às tendências atuais, presente nos variados espetáculos (e suas
teatralidades) realizados por artistas que acreditam em seu poder e se ancoram
em seus propósitos políticos, culturais e ideológicos. Se a teatralidade
acompanhou nos anos anteriores os movimentos de seu tempo e suas
consequentes representações, talvez o espaço teatral de localizar mecanismos
que não concedam o seu extermínio, como por exemplo, através dos robôs que
tentam estabelecer uma relação intersubjetiva baseada num espelho distorcido
em “devir-ser”
com o
outro
, para apagar as próprias individualidades do
ser-ver
que tem como referência o outro isolado como objeto numa vitrine. Os seres-
máquinas, assim, não deixam o
outro
(humano) indiferente e o estimulam a
repensar sua condição de representado e os modos de representação do mundo,
ou melhor, da exposição de seu mundo próprio em regime neoliberal: “o ato teatral
se torna uma ocasião de encontro com o outro” que não se apoia em “formar
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novos grupos, novas estruturas estáveis, ligados, por sua vez, a discursos
ideológicos ou econômicos, mas sim em devir-grupo […] em tornar o social um
acontecimento aqui agora” em que na “idéia [
Sic
] de grupo se estende o imaginário
de rede, uma estrutura que viva em contínuo fazer-se e desfazer-se à medida que
ocorrem os cruzamentos” (Cornago, 2008, p. 25). Assim, os discursos emergentes
desse contexto social alteram a relação do
outro de si mesmo
– que inicialmente
se pautava
no outro
, passando ao
outro coletivo
- e desemboca na exigência de
uma relação entre
eu
e
tu
:
O ator político -, em outros tempos organizado em torno de um
discurso ou de uma estratégia de representação previamente elaborada,
um passo atrás, torna-se visível em primeira pessoa, e permite
vislumbrar o gesto indicativo de uma vontade de ir a lugares que sabe
que não poderá alcançar, uma vontade de atuação, cênica e política,
formada com base na consciência de sua debilidade e nesse devir menor
ao qual foram reduzidas as atitudes locais em face das estratégias
macroeconômicas. Desse modo, a cena não chega a formular um
discurso político, tampouco um mecanismo de representação. Apenas
permite vislumbrar uma postura ética, uma vontade de ação frente ao
outro, da qual se tenta recuperar a possibilidade do social em termos
menores, não mais da ação revolucionária, com letras maiúsculas, mas
sim da ação do eu em frente ao tu […]. Esse tipo de comunicação próxima,
em primeira pessoa, constrói um eu pessoal e físico, atravessado por uma
necessidade social, pela busca do tu, que define o ser-social. Perante a
hermenêutica de Heidegger, Lévinas defende o eu-para-o-outro antes do
eu-com-o-outro (Cornago, 2008, p. 26).
Por fim, uma das vertentes da teatralidade sugerida por Josette Féral (2002)
é a de que ela é gerada a partir de um processo dinâmico entre o olhar do indivíduo
e os espaços que o circunscrevem, resultante de um ato consciente do ator,
espectador etc. Isto é, na relação entre o que observa e o que cria nasce um tipo
de percepção teatral que nem sempre é explícita para os dois – como o exemplo
que a autora usa da observação de alguém que está na calçada duma cafeteria,
olhando os transeuntes, considerando suas passagens e desvios como uma dança.
Tal visão consiste num tipo de teatralidade que lleana Diéguez (2014) propõe como
campo expandido
em que, para além de incluir as características da cena
expandida - dotada de ferramentas visíveis não justapostas nem sobrepostas, mas
praticadas de modo independente em seus campos e particularidades artísticos
em contextos cênico, teatral e performativo percebe-se também uma
articulação híbrida e impura de retroalimentação entre arte e vida, o mesmo
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recurso do
teatro sem teatro
que sugere levar e aplicar a teatralidade da vida nas
artes, o olhar atento em meio ao caos diário que se repete e nos diferencia do
outro
. Para que o campo expandido seja devidamente observado, então, seria
necessário, para além da interdisciplinaridade entre as artes, mesmo daquelas que
os antiteatralistas defendem a favor do extermínio do teatro, que outras áreas do
conhecimento permeiem essas estruturas. Em comunhão e partilha com outros
profissionais, será possível manter a circularidade entre teatralidade e
antiteatralidade acesa, compondo-se e recompondo-se a partir de visões
realmente críticas do outro, construtivas e
solidárias
, mesmo que discordantes.
Assim, é questionando a visão dos modernistas antiteatrais e a
antiliteralidade de Fried, que teremos brechas para reinventar o seu discurso: “o
teatro e a antiteatralidade [NÃO] estão em guerra hoje […] com a arte como tal”
(Fried, 1998, p. 63, acréscimo e grifo nossos). O teatro e a antiteatralidade, ao
contrário, estão buscando na teatralidade os modos de subverter o próprio teatro,
vendo como esse outro atua e critica ao visionar, para então modificar os seus
próprios métodos de dar a ver. É nesse confronto cíclico que o teatro se
potencializa, arranja saídas para se reformular e se transformar num lugar comum,
partindo de correntes aparentemente contrárias que emergem da repetição e da
diferença, permitindo que as visões do outro possam ser mais críticas, singulares
num devir-ser-coletivo, para que possamos novamente dela nos aproximar e,
também, nos afastar como indivíduos
outros de nós mesmos
.
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