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Perspectivas para uma pedagogia vocal:
possibilidades para uma voz desejante
Valéria Cristina Machado Rocha
Para citar este artigo:
ROCHA, Valéria Cristina Machado.
Perspectivas para
uma pedagogia vocal: possibilidades para uma voz
desejante.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0203
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Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-16, set. 2024
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Perspectivas para uma pedagogia vocal1: possibilidades para uma voz desejante2
Valéria Cristina Machado Rocha3
Resumo
Este artigo apresenta a "Pedagogia para a Voz Desejante", uma abordagem vocal oriunda
de pesquisa de doutorado realizada na Universidade Federal da Bahia (UFBA). A
abordagem potencializa a individualidade dos praticantes a partir do despertar do corpo
consciente. Dividida entre corpo físico e extracorpóreo, visa ampliar a consciência
corporal, promovendo uma experiência pessoal e autoral. Ao entrelaçar essas esferas,
busca-se compreender e apreender o corpo individualmente. Os pilares da pedagogia
visualização temática, sensibilização corpóreo-vocal e voz-dança organizam essa
prática.
Palavras-chave
: Voz. Pedagogia vocal. Práticas teatrais.
Perspectives for a vocal pedagogy: possibilities for a desiring voice
Abstract
This article presents the "Pedagogy for the Desiring Voice," a vocal approach stemming
from doctoral research conducted at the Federal University of Bahia (UFBA). The practice
enhances the individualities of practitioners by awakening the conscious body. Divided
between the physical and extracorporeal realms, it aims to expand bodily awareness,
fostering a personal and authorial experience. By intertwining these spheres, the goal is
to understand and grasp the body individually. The pillars of the pedagogy thematic
visualization, corporeal-vocal sensitization, and voice-dance organize the practice.
Keywords: Voice. Vocal pedagogy. Theatrical practices.
Perspectivas para una pedagogía vocal: posibilidades para una voz deseante
Resumen
Este artículo presenta la "Pedagogía para la Voz Deseante", un enfoque vocal surgido de
una investigación doctoral realizada en la Universidad Federal de Bahía (UFBA). La
práctica potencia las individualidades de los practicantes a partir del despertar del
cuerpo consciente. Dividida entre cuerpo físico y extracorpóreo, busca ampliar la
conciencia corporal, promoviendo una experiencia personal y autoral. Al entrelazar estas
esferas, se busca comprender y aprehender el cuerpo individualmente. Los pilares de la
pedagogía visualización temática, sensibilización corpóreo-vocal y voz-danza
organizan la práctica.
Palabras clave:
Voz. Pedagogía vocal. Prácticas teatrales.
1 Revisão ortográfica e gramatical realizada por Natália Leite Lopes. Pós-graduação em Revisão de Textos pelo
Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Bacharelado em Interpretação Teatral pela Faculdade de Artes
Dulcina de Moraes (FADM).
2 Este artigo resulta em 75% de minha tese de doutoramento denominada: A voz desejante: trilhas e pistas
para uma pedagogia da voz. Defendida no Programa de pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), sob orientação de Meran Vargens, em 2023.
3 Doutorado em Artes Cênicas na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrado em Práticas e poéticas
Vocais pela Universidade Federal de Uberlândia(UFU). Especialização em Educação Física Escolar (
Faculdade Alvorada Brasília- DF). Bacharel em Artes Cênicas (Faculdade de Artes Dulcina de Moraes. Brasília-
DF), Licenciatura em Artes Visuais (Claretiano. Brasília-DF). Professora na Faculdade de Artes Dulcina de
Moraes nas áreas de artes visuais, Performance, Artes da cena, e voz. valeria.rocha24@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/6212668271380518 https://orcid.org/0000-0001-5808-8023
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Apresento neste artigo os princípios da "Pedagogia para a Voz Desejante", uma
abordagem vocal oriunda de minha pesquisa de doutorado. O objetivo é
desenvolver uma prática que considere as individualidades dos atuantes4 a partir
do despertar do corpo consciente. Dividido entre o corpo físico e o extracorpóreo,
esse despertar abrange desde a compreensão das estruturas anatômicas até a
exploração das sensações. A pedagogia busca, nesse sentido, ampliar a
consciência corporal, reconhecendo que cada indivíduo tem uma maneira peculiar
de perceber e organizar seu corpo. Ao entrelaçar as esferas física e extracorpórea,
essa abordagem visa proporcionar uma experiência pessoal e autoral, promovendo
a autonomia e a imersão do praticante em seu próprio desenvolvimento, sendo:
O corpo físico abrange a materialidade, e a organização mecânica do
corpo envolve as estruturas anatômicas e fisiológicas, o equilíbrio entre
músculos e ossos, assim como sua capacidade de resposta entre as
habilidades motoras e a coordenação de movimentos. O extracorpóreo,
por sua vez, compreende o campo das sensações, é a porosidade entre
sentir e receber estímulos e reagir criativamente a eles. A perspectiva
extracorpórea adentra o campo psicológico e imagético, possibilitando a
autoestimulação e a energização do corpo, ampliando a capacidade de
imaginação e a visualização tanto de órgãos quanto de cadeias
musculares. Essa perspectiva almeja ampliar a consciência corporal do
indivíduo (Rocha, 2023, p. 122).
A compreensão sobre o corpo consciente nas esferas física e extracorpórea
faz-se necessária na medida em que alguns indivíduos não conseguem conectar-
se com a fisicalidade do corpo pelo viés muscular ou articular, não conexão
com o próprio corpo, enquanto em outros casos, a coordenação motora é bem
construída, mas não é utilizada. “O desejo de movimento não encontra, assim,
nenhum meio de expressão” (Béziers, 1992, p. 12). Isso demonstra como cada um
possui uma maneira peculiar de organização e percepção sobre o próprio corpo.
Esses aspectos revelam como em alguns casos não são atributos físicos que estão
em desequilíbrio, mas a capacidade de sentir e perceber os elementos do corpo.
Tendo isso em vista, a perspectiva extracorpórea permite compreender e
apreender o corpo individualmente por meio de observações sutis e sensoriais,
4 A palavra " atuante" é adotada nesta pesquisa como substituição abrangente para as convencionais
designações de "intérprete", "atriz" ou "ator". Essa escolha se justifica pelo potencial de englobar as variadas
possibilidades artísticas visadas pela cena contemporânea.
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ampliando e ressignificando o entendimento desse corpo como um todo.
O entrelaçamento entre as esferas física e extracorpórea possibilita ao
atuante viver um processo pessoal, autoral, iniciado pelo mapeamento físico e
sensorial. Ele passa a conhecer a mecânica de seu corpo assim como o
funcionamento e o acionamento das cadeias musculares, ampliando sua
capacidade psicomotora. Essa imersão promove sua consciência corporal,
ampliando sobremaneira o seu repertório de movimentos. A compreensão da
esfera extracorpórea, por sua vez, o possibilita relacionar-se com o corpo
imagética e ludicamente, desfrutando de sensações e emoções. A união das
esferas física e extracorpórea propicia a autonomia e a imersão em si, revelando
maior compreensão dos processos de criação. Nesse sentido, de se estabelecer
conexões entre o atuante e sua sensibilidade, para que ele mapeie o surgimento
de tensões físicas e psicológicas a fim de que elas possam ser diluídas, permitindo
que as transformações conquistadas durante a prática sejam incorporadas à sua
memória corporal.
Diante desse panorama, este artigo analisará duas perspectivas
fundamentais: os pilares e os aspectos de uma pedagogia vocal voltada para a
liberdade criativa individual dos atuantes. Os pilares, metaforicamente entendidos
como colunas que sustentam uma construção, representam a base essencial
dessa pedagogia, formando a fundação que suporta e guia todo o seu
desenvolvimento. Os três pilares denominados respectivamente
visualização
temática
,
sensibilização corpóreo-vocal
e
voz-dança
são a chave mestra,
organizando e revelando como a prática se estrutura e se desdobra.
Paralelamente, os aspectos da Pedagogia para a Voz Desejante
compreendem três aspectos cruciais:
comunicação, relação da aprendizagem com
a vida e reflexão crítica
. A comunicação, destacada como fundamental em
ambientes de aprendizagem colaborativos, desenvolve-se de maneira
horizontalizada, promovendo o compartilhamento de experiências e o diálogo
constante. A relação da aprendizagem com a vida transcende as fronteiras da sala
de aula, reconhecendo a
expertise
e a sabedoria próprias do atuante. A reflexão
crítica, por sua vez, surge como a ferramenta que o permite analisar e
compreender seu processo de aprendizagem, estimulando questionamentos e a
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curiosidade.
Recorrendo à visualização temática, busca-se adentrar o imaginário e a
sensibilidade dos atuantes, estabelecendo uma conexão profunda deles com o
próprio corpo. A sensibilização corpóreo-vocal destaca o toque como protagonista,
despertando o corpo e fortalecendo a capacidade de sentir e reagir aos estímulos.
O pilar da voz-dança, por sua vez, propõe uma integração entre dança/movimento
e som, desenvolvendo a criatividade e a autonomia dos atuantes.
A Pedagogia para a Voz Desejante: principais aspectos e os três pilares
fundamentais
Figura 1 e 2 - Atuantes da Universidade Livre realizando improviso vocal. Imagens
elaboradas pela autora. (Teatro Vila Velha, Salvador, outubro de 2019)
Os três aspectos abordados neste trabalho são responsáveis pela formulação
inicial e pela orientação de como a prática é desenvolvida, enfatizando critérios
para seu desdobramento. A prática é realizada de modo horizontal, pois ambas
perspectivas, da condução e dos atuantes, compartilham as experiências
adquiridas por meio do diálogo, o qual implica os atos de ouvir e de falar.
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O primeiro aspecto dessa pedagogia é a
comunicação
, que também pode ser
feita por meio de desenhos, pinturas ou colagens realizadas ao final do trabalho.
É compartilhando as diferenças do que é testemunhado que se amplia a
consciência do olhar/escutar. Desenvolvem-se
feedbacks
construtivos de
ambos os lados, fortalecendo e encorajando o crescimento contínuo
tanto de quem ensina quanto de quem aprende. A comunicação como
via de mão dupla desenvolve a escuta, promovendo o respeito acerca das
diferenças e contribuindo para a criação de um espaço de aprendizagem
colaborativo e inclusivo. Além disso, uma comunicação horizontalizada
aprofunda discussões desenvolvidas pelo coletivo, ampliando o senso
crítico. Ademais, a comunicação consolida laços afetivos entre condução
e atuante, o que fortalece a confiança e a motivação para ambas as
partes (Rocha, 2023, p. 129).
A
relação da aprendizagem
com a vida reconhece que a prática não é
hierarquicamente estabelecida: quem aprende possui expertise e sabedoria
próprias. Como Paulo Freire (1996) afirma, ensinar não é transferir conhecimento;
pelo contrário, ensinar exige, segundo ele, respeito aos educandos. Nesse sentido,
a prática pode ultrapassar as paredes da sala de ensaio ao incluir experiências
pessoais e contexto social, valorizando a expertise do atuante, reforçando nele a
sensação de pertencimento e de autonomia.
a
reflexão crítica
revela como a prática é recebida e realizada pelo atuante,
tornando-o consciente de seu processo de aprendizagem. Ela estimula o
questionamento e a curiosidade e consequentemente amplia a capacidade do
atuante de analisar o que foi experimentado, de modo a fazê-lo compreender o
que acontece em seu corpo em cada etapa do processo, afastando-se por fim da
passividade na aprendizagem. Por meio da reflexão crítica, o atuante reconhece
suas habilidades e potencialidades.
Definidos esses principais aspectos, julgo indispensável delinear os três
pilares para a Pedagogia para a Voz Desejante:
visualização temática, sensibilização
corpóreo vocal e voz-dança
. É a partir dessas três bases que o trabalho se organiza
e se estrutura; elas são os eixos organizacionais nos quais são estabelecidas as
estratégias e os planos de ação para a abordagem. Também são os eixos
operacionais nos quais são estabelecidos os princípios para a realização da prática.
Os pilares promovem a sustentação que possibilita à prática ser desenvolvida.
Cabe destacar que esses três eixos são caminhos, apontam para trajetórias
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criativas para que a prática se instaure, mas podem ser alterados, não havendo
hierarquização ou sistematização a ser seguida. A escolha e a organização, assim
como o encadeamento dos três pilares, dependem das necessidades do atuante
ou do grupo, de modo a abarcar/acolher suas especificidades. Para isso, o olhar
atento de quem conduz a prática é fundamental, pois é por meio de uma
condução generosa e flexível que o trabalho acontece.
É interessante destacar que tal pedagogia anseia pela troca e pela
participação do atuante, ou seja, necessita entrosamento e confiança mútua entre
as partes, possibilitando que a cada etapa da prática ela se transforme e se amplie.
Diante disso, acredito que a atividade deva se iniciar a partir da estruturação
de um espaço favorável, livre para a experimentação do atuante sobre seu corpo.
Sendo essa uma prática que envolve a sensibilidade do atuante, cabe perguntar:
como o sensível atravessa a voz e se transforma em criação, em ação, em
movimento? Como promover a autonomia do atuante? Observo que, para
transformar a sensibilidade em criação, o indivíduo precisa
reconhecer
aquilo que
sente e ser capaz de direcionar a sensibilidade para a ação. Dessa forma, ele passa
a equilibrar suas emoções, ganhando consciência e afirmando sua autonomia. A
partir da reflexão decorrente dessas perguntas, iniciei a investigação sobre a
percepção e a sensibilidade, afirmando a personalidade e a identidade5 de cada
indivíduo, pois acredito que é pelo mergulho em si que a voz se expande e ocupa
o espaço. Os três pilares foram desenvolvidos de modo a contribuir para a
expansão da percepção. Acredito que não basta proporcionar uma pedagogia na
qual o atuante
sinta
, é preciso que ele saiba o que
fazer
com o que sente.
Cabe à condução da prática vocal uma refinada leitura sobre o corpo dos
atuantes, a fim de adaptar exercícios quando necessário. Com cada grupo,
mudam-se as formas e/ou estratégias de aplicação para a prática. Uma vez que
não existe uma fórmula fixa, “a ideia é que se o sujeito for ‘fisgado’ pela indicação
ou abertura de um caminho, ou atalho, seguirá seu próprio risco e impulso”
(Rangel, 2019, p. 81). O impulso pode ser visto aqui como a permissão para
5 Nesta pesquisa compreende-se personalidade como as características psicológicas, padrões de
comportamento que revelam-se através do modo como a pessoa pensa, sente e interage com o mundo ao
seu redor. Identidade é vista como a percepção pessoal e social, sendo profundamente influenciada por
fatores culturais, históricos, étnicos, de gênero e sexualidade.
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entregar-se à prática.
Acredito que a interpretação dos exercícios propostos durante a prática
faz parte do aprendizado do atuante, pois este não deve se fixar em
“fazer certo”, e sim em se deixar guiar por sua intuição para responder e
reagir ao que foi sugerido, desenvolvendo a confiança em si. Com essa
atitude, ele desenvolve e afirma sua autonomia e sua coragem sem
necessariamente esperar executar comandos ou esperar vir
exteriormente seu desenvolvimento vocal. Noto que tal abordagem
promove uma atitude reflexiva, fortalecendo o senso crítico e ampliando
a imaginação criativa (Rocha, 2023, p. 130).
Existe um risco inerente ao fazer artístico. Paulo Freire (1996) sugere que
ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação. O risco se devido à inerente exposição, ao perigo de caminhar
rumo ao desconhecido. Para que haja liberação da voz, deve haver generosidade e
abertura para o erro, para o tropeço, para o fracasso, além da compreensão do
que é experimentado durante a prática. É no ser “fisgado” pelo processo que se
instaura o mergulho em uma viagem interior por todo o corpo, mapeando-o
detalhadamente, valorizando e incorporando os processos criativos e reflexivos
desenvolvidos enquanto a prática está acontecendo.
Além disso, a prática propicia o aprofundamento sensório e motor do
indivíduo, que deixa de se relacionar com seu corpo de maneira inconsciente para
paulatinamente internalizar os efeitos dessa experiência de maneira consciente.
Assim, desenvolve a habilidade de organizar e acomodar as informações em seu
corpo, compreendendo o caminho interno e posteriormente tornando-se capaz
de reconhecer padrões de fala assim como de movimento. Isto posto, a seguir
apresento cada um dos pilares da pedagogia para a voz desejante.
Visualização temática
A visualização temática baseia-se em alguns princípios da educação
somática, como a visualização interna dos órgãos. O Body-Mind Centering (BMC),
criado por Bonnie Bainbridge Cohen, utiliza essa prática para explorar a relação
entre órgãos, tecidos e movimentos, ajudando a criar uma experiência de corpo
mais integrada e consciente.
Nessa etapa, os atuantes são convidados a adentrar em seu imaginário
assim como em sua sensibilidade. Para isso, são escolhidos grupos
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musculares ou partes do sistema respiratório, além da estrutura óssea
ou determinados órgãos concomitantemente a alguma imagem, que é
desenvolvida em forma de narrativa como tema para a visualização. A
estratégia de separar a visualização por grupos/temas mostrou-se eficaz
no sentido de focar a imaginação criadora do atuante, dando a ele tempo
e aprofundamento em suas sensações, oportunizando-o visualizar
possibilidades de soltura muscular, investigando o corpo internamente,
promovendo o uso expressivo de sentimentos, desejos e pensamentos.
Com isso, renova-se sua relação com o próprio corpo, criando e
estabelecendo conexões entre inconsciente e consciente, descortinando
o desconhecido sentido pelo movimento corpóreo-vocal. Compartilho
abaixo a visualização que utilizo para a respiração que denominei
respiração-bulbo (Rocha, 2023, p. 131).
Figura 3 - Respiração-bulbo. Imagem elaborada pela autora (2019)
Com a visualização, almeja-se concentração, escuta ativa, participação,
presença, disponibilidade e atitude de respeito consigo e com o outro. Acima de
tudo, aspira-se à autopermissão para mergulhar/mergulhar-se nas sugestões
advindas durante a prática, sejam individuais ou coletivas, de maneira a promover
a autopercepção.
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Ademais, o pilar da
visualização temática
se apoia na sensibilidade e na
imaginação individual, acionando-as para que sejam protagonistas da ação. Para
tanto, a condução da prática descreve narrativas, sugerindo o caminho que os
olhos internos irão percorrer, criando imagens mentais que possibilitem a imersão
para a sensação interna do corpo. Essas sugestões podem ser ditas de forma lenta
e pausada, para que a narrativa seja formada aos poucos pela imaginação do
atuante. Ao visualizar o corpo por dentro, o atuante diminui o ritmo sobre a
respiração, equilibra suas energias corporais e potencializa a consciência sobre si
e a conexão com seu corpo, o que promove relaxamento como um todo,
potencializando a autopercepção.
Cabe destacar que quanto maior for o número de detalhes durante a
visualização, maiores serão as sensações e minúcias cativadas no imaginário do
atuante, o que o conduzirá a uma profunda conexão com o interior de seu corpo.
O método de visualização é amplamente utilizado nas terapias somáticas, como
o Body-Mind Centering (BMC), pois intensifica a sensação de que “seria o próprio
estímulo mecânico dos receptores sensórios do organismo” (Cohen apud Pizarro
e Brito, 2018, p. 269). Sobre a visualização, destaco ainda que:
[...] é uma jornada experimental contínua pelo território vivo e mutável do
corpo. O explorador é a mente nossos pensamentos, sentimentos,
energia, alma e espírito. Nessa jornada, somos conduzidos a uma
compreensão de como a mente é expressa pelo corpo em movimento
(Cohen apud Pizarro e Brito, 2018, p. 269).
Sensibilização corpóreo-vocal
A sensibilidade é a capacidade de receber impressões por meio dos sentidos.
É nossa primeira reação a algum estímulo, o qual pode ser interno ou externo ao
corpo. Ela fortalece e ampara a percepção do atuante, sendo fundamental para o
desenvolvimento, a organização e a soltura da voz.
Nessa etapa, o toque é o protagonista da ação. Busca-se aqui o despertar do
corpo, ao dilatar e incrementar a propriocepção do atuante concomitantemente à
sua respiração. Para isso, podem ser utilizados sons de vogais ou consoantes, além
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de balbucios, grunhidos ou sussurros. Os atuantes são estimulados a perceber
como o toque os afeta, traçando o caminho mentalmente, o que acarreta, por sua
vez, o direcionamento da atenção, promovendo foco, dilatação e estimulação da
reação aos estímulos.
Para a sensibilização corpóreo-vocal, é ideal que a respiração seja
constante e profunda, de modo a contribuir na maneira como o toque
auxiliará na soltura de tensões. Abrangem-se aqui as relações entre o
toque, a voz e o movimento, sendo esse o processo de integração entre
os aspectos físico, psicológico e emocional. Observo que o toque
desperta e potencializa o afeto, revela emoções diversas e profundas e
fortalece a capacidade do sentir, reconhecendo as sensações das
ressonâncias, das musculaturas específicas e da respiração (Rocha, 2023,
p. 134).
Essa abordagem mostrou-se essencial para a apreensão da prática vocal,
uma vez que com ela o atuante passa a organizar sua percepção no corpo,
atravessando o plano inconsciente e primeiro da sensação. O foco da investigação
está em apreender como o estímulo é acionado, e nesse sentido o toque revelou-
se uma poderosa ferramenta, pois “à medida que você refina o local de iniciação,
o movimento se torna mais articulado e diferenciado. De certo modo, trata-se
realmente de uma questão da mente e de onde ela está focada (consciente ou
inconscientemente)” (Cohen apud Pizarro e Brito, 2018, p. 273).
Nessa etapa, o atuante além de investigar o corpo do outro, examinando o
surgimento do impulso para a vocalização em diferentes partes do corpo, também
explora movimentos intuitivos, sem preocupar-se com a finalidade das ações. É,
portanto, incentivado a ceder a impulsos.
A condução pode auxiliar o atuante por meio de narrativas, sugerindo partes
específicas do corpo. No entanto, aqui entende-se por narrativa o auxílio
promovido pela condução da prática, no sentido de despertar a atenção do
atuante para partes pouco percebidas e para ações motoras automáticas (como
engolir saliva, piscar etc.), reparando ainda no posicionamento da língua relaxada
no interior da boca, no encaixe dos dentes na mandíbula e no peso dos globos
oculares. Quando se leva atenção para partes pouco percebidas do corpo,
conscientemente o processo de propriocepção torna-se ainda mais potente.
Nosso corpo se move como nossa mente se move.
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Voz-dança
Figura 3 - Atuantes da Universidade Livre em improviso. Imagem elaborada pela autora
(Teatro Vila Velha, Salvador, agosto de 2019).
Denominado
voz-dança
, esse pilar da Pedagogia para a Voz Desejante
consiste no desdobramento para uma voz que dança. A partir dos improvisos,
jogos e experimentações, notei como a dança viabiliza possibilidades de criação, e
a partir disso estruturei exercícios, jogos e improvisações com a intenção de
promover e ampliar a criatividade dos atuantes com base nas técnicas de Contato
Improvisação e da dança contemporânea. A dança em contato favorece a
propriocepção dos atuantes, por meio do toque, e fortalece um sentido interno a
eles, estimulando uma noção global do seu corpo e do espaço. A dança promove
um estado de entrega e escuta que se mostrou fundamental para o
desenvolvimento da pedagogia para a voz desejante, pois, conforme os
movimentos acontecem, a respiração altera-se natural e espontaneamente,
alocando-se no corpo dos atuantes de variadas formas e em diversos ritmos. Da
mesma maneira, a ressonância e a projeção vocal podem ser percebidas a partir
das várias posições que vão se formando enquanto se dança, ampliando a
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experiência. Tal fato aponta para o desenvolvimento da técnica por um meio
orgânico, intuitivo e prazeroso; os atuantes desenvolvem a coordenação motora,
desbloqueiam-se sem racionalizar seu processo.
Cabe destacar que desenvolver a
voz-dança
demanda tempo, tanto ao
atuante, que precisa perceber seus movimentos, desenvolver seu alongamento,
força, resistência, ressonância, projeção e dicção, como também para a condução
da prática, que necessita notar o ritmo e a entrega do grupo e também seus
padrões de movimento, de modo a auxiliar nas improvisações, criando jogos que
viabilizem a soltura.
A
voz-dança
pode se desenvolver e chegar à Voice Jam Session (Rocha, 2023),
termo que desenvolvi para descrever uma roda de improvisação vocal na qual os
atuantes improvisam com sua voz e corpo fundindo voz e dança, sendo quase
como a culminância do processo. Destaco que para a Voice Jam Session faz-se
necessário desenvolver a sensibilidade e um repertório prévio de voz e movimento.
Tendo isto em vista, os atuantes são incentivados inicialmente a moverem-
se a partir do interior do corpo, visualizando e conectando-se aos órgãos. A partir
dessa conexão, o encadeamento de movimentos se inicia, podendo ser individual
ou em contato. Dessa maneira, são sugeridos deslocamentos, que podem ser
iniciados pelo chão, através de rolamentos, seguidos de movimentos livres e
intuitivos. Tais movimentos buscam despertar e ativar o corpo, promovem um
estado de atenção global, a pele fica aquecida, o que potencializa a sensação sobre
o corpo como um todo, facilitando a descoberta de novos sons e movimentos.
É interessante destacar que, por se tratar de voz em movimento, cria-se uma
união profunda com o prazer, pois o calor entre os corpos promove relaxamento
e bem-estar e aguça intuição e atenção. Mesmo o atuante estando entregue às
suas sensações, continua atento ao que está acontecendo ao seu redor enquanto
se move. A todo momento precisa reagir aos estímulos vindos do outro, que sugere
posturas e sons, em uma constante troca de motivação.
Cabe destacar que a investigação de movimentos se inicia a partir de certos
padrões de locomoção naturais do atuante, ou seja, aquilo que ele sabe e consegue
fazer com seu corpo. Em um primeiro momento, a investigação em dupla se
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apenas no deslocamento de peso, um projetando o peso das costas sobre o outro,
de modo a que compreendam fisicamente a troca de peso e como o movimento
pode ser desenvolvido a partir disso. Em seguida, o atuante experimenta a leve
fricção da pele por meio dos braços e pernas e, conforme adquire confiança, passa
a aventurar-se em outros movimentos. Estes passam a ser naturalmente
selecionados em improvisos, ampliando o repertório de movimentos.
Posteriormente eles se tornam mais vigorosos, e o atuante adquire confiança em
si e passa a explorar cada vez mais seu potencial.
Cada indivíduo possui uma maneira intuitiva de mover-se, e isso pode ser
revelado ao longo das improvisações, a partir das escolhas das partes do corpo
que iniciam o movimento, da dinâmica com a qual ele é desenvolvido e assim por
diante. O mesmo acontece com o ritmo: existe um ritmo para cada indivíduo, que
expressa e reverbera sua personalidade e seu estado emocional. Ao improvisar
com diferentes corpos ao longo das práticas, o atuante passa a perceber as
energias que emanam desses corpos, podendo sintonizar-se com energias
diferentes. Despertar tal consciência possibilita-lhe expandir seu repertório,
tornando-o mais criativo e confiante.
Observo que geralmente indivíduos introvertidos, tímidos e retraídos tendem
a mover-se lenta e pausadamente e a observar o espaço com cautela. Geralmente
escolhem um espaço para ocupar, delimitando uma área para si. Os movimentos
tendem a ser menores, da mesma forma como sua voz tende a ter menor projeção
nas improvisações iniciais. Os indivíduos que são mais enérgicos e comunicativos
tendem a mover-se com mais tônus muscular, agilidade e velocidade. Sua voz
tende a projetar-se na sala. Parecem explorar a intensidade dessa voz com mais
facilidade em um primeiro momento.
Unir ambas as personalidades mostrou-se uma excelente forma de
aprendizado, pois, ao improvisarem juntas, ambas se favorecem a partir da troca
dessas diferenças. É interessante ressaltar que essa análise aponta para padrões
e tendências de movimentos, e que com a autopercepção é possível transformar
tais parâmetros, o que é altamente aconselhável. Vale evidenciar que de modo
algum busca-se generalizar padrões de comportamento ou personalidades, mas
encontrar a desenvoltura e a exploração de movimentos.
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Em
voz-dança
, as experimentações com a ressonância podem ser percebidas
em todo o corpo, uma vez que a movimentação global do corpo fortalece e
engrandece a sensibilidade. A projeção inicia-se com balbucios ou escalas
musicais, e conforme o atuante adquire confiança, passa a explorar cantilenas e
vocalizes que surgem de improviso e que passam com o tempo a integrar seu
imaginário e repertório criativo. Ou seja, se em um primeiro momento tanto
movimento quanto som surgem de forma despretensiosa e intuitiva, com a
estruturação da prática o atuante desenvolve um repertório próprio de
movimentos, sons e ritmos. Dessa forma, experimenta as áreas de ressonância e
projeção por meio da dança, observando a influência direta sobre a voz e a voz
sobre a dança.
Ao entrelaçar dança e voz, é possível perceber-se como um todo: ora a voz
guia e propõe movimento, ora é conduzida e guiada por ele. Desenvolve-se assim
uma leitura sobre o corpo enquanto a voz-dança está sendo realizada, notando os
impulsos oriundos do interior do corpo e exteriormente a ele. Observo, nesse
sentido, o desenvolvimento da autonomia do atuante amplia sobremaneira seu
repertório físico-vocal, uma vez que ele investiga e explora sua capacidade motora,
refinando sua habilidade de ação e resposta aos impulsos emocionais que o
conduzem ao som e ao movimento.
Em síntese, a pesquisa sobre
visualização temática
,
sensibilização corpóreo-
vocal
e
voz-dança
revela-se uma investigação abrangente e multidisciplinar, que
busca compreender os complexos processos de integração entre mente, corpo e
expressão vocal. Por meio de uma abordagem interdisciplinar que engloba
princípios da educação somática e artes cênicas, esta pesquisa explora as práticas
a partir da autopercepção, da comunicação e da expressão dos atuantes. Ao
examinar os resultados obtidos de observações, entrevistas e análises de
desempenho, é possível identificar não apenas os benefícios físicos e vocais
dessas técnicas, mas também seu impacto no desenvolvimento pessoal e
interpessoal dos participantes.
Perspectivas para uma pedagogia vocal: possibilidades para uma voz desejante
Valéria Cristina Machado Rocha
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-16, set. 2024
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Referências
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PIZARRO, Diego; BRITO, Nayara. Dinâmicas somáticas da voz na anatomia
experiencial do método Body-Mind Centering.
Repertório
, Salvador, ano 21, n. 30,
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RANGEL, Sônia.
Imagem e pensamento criador
. Lauro de Freitas: Solisluna, 2019.
ROCHA, Valéria.
A voz desejante: trilhas e pistas para uma pedagogia da voz
. 2023.
Tese (Doutorado em Processos Educacionais em Artes Cênicas) Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2023.
Recebido em: 16/04/2024
Aprovado em: 06/09/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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