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O colapso das representações: enfrentamentos
teóricos e práticos emergentes
Edélcio Mostaço
Para citar este artigo:
MOSTAÇO, Edélcio. O colapso das representações:
enfrentamentos teóricos e práticos emergentes.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0110
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O colapso das representações: enfrentamentos teóricos e práticos emergentes
Edélcio Mostaço
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-23, jul. 2024
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O colapso das representações:1 enfrentamentos teóricos e práticos
emergentes2
Edélcio Mostaço3
Resumo
Desde o último século uma acentuada crise nas representações cênicas emergiu e
se aprofundou, problematizando as antigas matrizes práticas e teóricas mobilizadas
para produzir certa teatralidade. Um processo que, desde os anos 1960, alastrou-se
a partir da lógica informática e numérica e, igualmente, com os movimentos
socioculturais associados às identidades e às atuações descoloniais. Reposicionar as
teorias cênicas a partir dessas outras bases torna-se tarefa urgente frente a esse
convulsionado conjunto de agenciamentos disruptivos.
Palavras-chave
: Artes cênicas. Tecnologias numéricas. Crise da representação.
Divergências teóricas.
Performances
digitais.
The collapse of representations: emerging theoretical and practical confrontations
Abstract
Since the last century, a sharp crisis in scenic representations has emerged and
deepened, problematizing the old practical and theoretical matrices mobilized to
produce a certain theatricality. A process that, since the 1960s, has spread from
computer and numerical logic and, equally, from sociocultural movements
associated with identities and decolonial actions. Repositioning scenic theories
based on these other bases becomes an urgent task in the face of this convulsed
set of disruptive agencies.
Keywords:
Performing arts. Numerical technologies. Representation crisis.
Theoretical divergences. Digital performances.
El colapso de las representaciones: enfrentamientos teóricos y prácticos emergentes
Resumen
Desde el siglo pasado, ha surgido y profundizado una aguda crisis de las
representaciones escénicas, problematizando las viejas matrices prácticas y teóricas
movilizadas para producir una cierta teatralidad. Un proceso que, desde la década
de 1960, se ha difundido desde la lógica informática y numérica y, igualmente, desde
los movimientos socioculturales asociados a identidades y acciones decoloniales.
Reposicionar las teorías escénicas a partir de estas otras bases se convierte en una
tarea urgente frente a este convulsionado conjunto de agencias disruptivas.
Palabras clave
: Artes escénicas. Tecnologías numéricas. Crisis de representación.
Divergencias teóricas. Performances digitales.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Denise Pessoa Ribas. Editora, preparadora e revisora
de texto. pessoa.de@gmail.com
2 Bolsista de produtividade em pesquisa CNPq.
3 Professor titular aposentado da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Entre seus últimos livros
estão:
Incursões & excursões
(Teatro do Pequeno Gesto, 2018);
Cena e ficção em Aristóteles: uma leitura da
Poética (Appris, 2020) e
Grafos: escritos nômades sobre a cena
(Teatro do Pequeno Gesto, 2024).
hateatro33@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5151925947504672 https://orcid.org/0000-0001-7611-7764
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Teoria e prática
O que é uma teoria e o que é uma prática? sabe-se que são atravessadas
pela estética, embora não do mesmo modo nem almejando as mesmas funções.
Sendo o teatro uma arte complexa, híbrida e passível de ser abordada a partir de
seus vários elementos constitutivos, como diferençar de modo pleno o que há ali
de teórico e de prático? Fenômeno europeu de nascença, o teatro foi exportado
para os impérios coloniais após as grandes navegações marítimas, fomentando, a
partir de então, formatos e soluções regionais e nacionais que sugerem investigar
se suas criações mais recentes podem ainda ser tomadas como símiles de uma
mesma matriz mimética e de representação.4
Observando-se o seu transcurso histórico, é possível dizer que o Ocidente
não articulou nenhuma teoria teatral até o século 15, momento em que, com a
redescoberta de Aristóteles, inicia-se um longo assentamento de postulados que,
entrecruzados, remanejados e colocados em sincronia, tudo arrastaram para seu
epicentro inclusive e principalmente o que veio antes deles. Essa força foi, pouco
a pouco, expandindo sua abrangência e aprofundando suas implicações, até
adquirir a face de uma teorização única para as artes para toda arte
estruturada em bases filosóficas.5
4 Reflexões articuladas a partir de afirmações um tanto quanto díspares efetivadas entre Mark Fortier, em seu
livro
Theory/Theatre
(2002)
,
e Catherine Naugrette, na obra
L’Esthétique théâtrale
. Segundo a autora
francesa, “no sentido estrito do termo, a estética teatral é essa disciplina de origem filosófica no interior da
qual são forjadas as ferramentas conceituais que permitem pensar o teatro. De um lado, ela se apoia sobre
as diferentes teorias do teatro elaboradas depois da Antiguidade grega por filósofos e escritores, os estetas
e os artistas. De outro, ela lhe permite se construir. [...] Assim, as problemáticas que ela forja, em um
incessante vai e vem entre teoria e prática, atravessam os sistemas e a cronologia do teatro, estendendo-
se do texto à encenação” (2010, p. 5, tradução nossa). Au sens strict du terme, l’esthétique théâtrale est
cette discipline d’origine philosophique à l’interior de laquelle vont être forgés les outils conceptuels
permettant de penser le théâtre. D’une part, elle prend appui sur des différentes théories du théâtre
élaborées depuis l’Antiquité grecque par les philosophes et les écrivains, les esthéticiens e les artistes. De
l’autre, elle leur permet de se construire. [...] Les problématiques qu’elle forge ainsi, dans un va-et-vient
incessant entre théorie et pratique, traversent les systèmes et la cronologie du théâtre, s’etendent du texte
à la mise en scène”.
Três aspectos me chamaram a atenção nessas afirmações: a) a não distinção (ou a equiparação) entre teoria
e prática, como se entre ambas não se alojassem marcadas diferenças epistemológicas; b) a concepção
idealista de que o fenômeno teatral é construído a partir de uma disciplina; c) a noção de desenvolvimento
contínuo da arte teatral no tempo e no espaço, estabelecendo uma história e uma pedagogia próprias,
distantes e/ou além das sociedades nas quais as artes da cena se manifestam. O artigo pretende debater,
no curto espaço de que dispõe, essas afirmações.
5 Sobre tais implicações, cf. Dupont (2017), autora que classifica Aristóteles como um vampiro do teatro
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O que interliga o legado da tradição cênica grega antiga e latina e as várias
manifestações espetaculares efetivadas até os estertores da Idade Média? Nada.
As formas cênicas da Antiguidade, derivadas da
mímesis
e sob os auspícios da
noção de
representação
, definharam aos poucos, conforme as invasões bárbaras
avançaram sobre os portões do Império e em face do cristianismo triunfante que
como amplamente conhecido escorraçou os artistas cênicos e amaldiçoou
sua atividade como pecaminosa e idólatra (Le Goff, 2018; Fischer-Lichte, 2002).
Mesmo assim, um sincretismo poderoso incumbiu-se de fundir algumas
tradições míticas bárbaras com os mitos cristãos o Carnaval foi o caso mais
eloquente , conformando cerimônias e festejos que, pouco a pouco, foram
dissipando seus contornos em benefício dessas manifestações pulsantes da
cultura popular, todas elas práticas, desprovidas de qualquer teoria (Bakhtin, 2010;
Burke, 2010). Um estado de coisas que, no período considerado da baixa Idade
Média, foi muito lentamente se alterando quando as missas católicas, para
ampliarem seu poder evangelizador sobre as populações carentes de latim,
começam a recorrer a diálogos e curtas dramatizações de trechos escolhidos das
Escrituras, interpretados por monges e padres, a partir do século 12.
Essa nova ascensão da cena foi tomada por diversos analistas e historiadores
como um segundo nascimento do teatro na Europa, agora sob o manto da Igreja
e por ela incentivado, mas sem qualquer tipo de orientação conceitual que não
fossem os ensinamentos transmitidos de geração a geração através do
habitus
.6
Foi esse o caminho percorrido pelos autos, mistérios e moralidades que, desde a
segunda metade do medievo, começaram a se avolumar nas cidades de então em
função da atividade das guildas. Assim, é possível verificar que o extenso caminho
entre as origens gregas do teatro e esse seu segundo nascimento à luz da
cristandade um intervalo de mais de mil anos foi percorrido inteiramente
apoiado em práticas desiguais e descontínuas entre si, polivalentes enquanto
ocidental”.
6 Conceito de Pierre Bourdieu articulado como praxiológico, ou seja, uma sociologia da prática, baseada no
reequacionamento da dicotomia entre estrutura e ação. Ao reequacionar tal dimensão, a da interioridade da
exterioridade e da exterioridade da interioridade, Bourdieu possibilita uma análise conciliadora entre um
indivíduo que é produto mas também produtor da sociedade (e da história), ou seja, a estrutura é estruturada
mas também é estruturante (Bourdieu, 1996).
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estatuto e função, tradições representacionais que obedeceram a impulsos
diversos enquanto origem, finalidade e relações desiguais entre o
opus operatum
e o
modus operandi
7
(Watson e McKernie, 1993; Dupont, 2017).
O aristotelismo cênico
É preciso distinguir Aristóteles e sua obra
Poética
daquilo que é pactuado e
conhecido como aristotelismo. Escrito restrito aos estudiosos do Liceu, a
Poética
se constitui de anotações sem grande elaboração metodológica, um conjunto de
proposições e conselhos sobre a poesia e a tragédia, visando a subsidiar autores
e apreciadores da matéria. Poesia que, naqueles tempos, era predominantemente
oral e no caso da poesia cênica, o teatro, era inteiramente oral. Ela tem, nesse
sentido, estreita correlação com a
Retórica
, outra obra do autor, bem como
conexões com demais escritos de sua lavra. Escondido após a invasão da
Macedônia, o texto passou a ser copiado intermitentemente ao longo da Idade
Média, somente despertando interesse maior entre eruditos do humanismo a
partir dos séculos 14 e 15, quando várias outras obras gregas começam a ser
traduzidas e estudadas no Ocidente, inclusive as tragédias remanescentes,
movimento este que alcançou seu auge um século depois.
Enquanto a
Poética
jazia nos mosteiros, a
Ars poetica
, de Horácio, circulava
com maior desenvoltura entre os eruditos da Idade Média, tomada como o mais
consistente legado de preceitos oriundos da Antiguidade sobre aqueles assuntos.
A primeira tradução conhecida da
Poética
para o latim foi feita por Guilherme de
Moerbeck em 1300. O que não ajudou em sua difusão, uma vez que muitos de
seus termos permaneciam obscuros, arredios, frente à inexistência de tragédias
conhecidas. Um panorama que começa a mudar a partir do século 15, fomentando
um novo interesse sobre a Antiguidade (Bray, 1963; Gerould, 2000).
Segundo especialistas, com esse novo
revival
começam a surgir outras
traduções de textos aristotélicos, sendo a versão de Valla (1498) da
Poética
,
7
Opus operatum
e
modus operandi
refere a distinção entre uma interpretação autêntica e outra inautêntica
através da competência formal. Pela proximidade entre liturgia e jurisdição, observa-se uma correlação entre
os processos de legitimação simbólica do ministério sacerdotal litúrgico e as competências jurisdicionais,
possibilitando uma distinção crítica relativa à separação entre sujeito e ator social, pessoa e cargo, indivíduo
e função, decisão e organização.
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realizada em cotejo com a tradução em latim dos comentários antes feitos por
Averróis no século 11, mas decorrentes de uma complementação com a
Ars
poetica
de Horácio, com suas regras e seus preceitos sobre a obra poética, o
labor
poeticus
e o poeta. O texto aristotélico passou também, desde então, a ser tomado
como um tratado doutrinário e preceptivo (Bray, 1963; Cornilliat e Langer, 1997).
Percurso esse seguido e implementado com as traduções e comentários de
Robortello (1548), De’ Pazzi (1536), De Maggi e Lombardi (1550), e amplamente
consolidados nos extensos escólios de Picolomini (1575) e Riccoboni (1579). De
modo que, nos alvores do Renascimento, a Europa viu nascer o primeiro esboço
daquilo que foi tomado como uma teoria sobre a tragédia e o teatro.
Se a obra de Aristóteles, através de suas transformações e deformações,
está na base da doutrina clássica da crítica europeia, a duradoura
interpretação de Robortello acerca da obra é o primeiro passo na
formação desta doutrina. O que emerge do estudo de Robortello sobre o
texto determinará de um modo significativo a orientação geral da crítica
“aristotélica” durante os séculos seguintes [Weinberg, 1952].
Os comentários de Robortello extrapolam e fazem deduções a partir do texto
do Estagirita, estendendo-se sobre tipologias poéticas e cênicas ali não tratadas
(como a sátira, o epigrama e a elegia), bem como insistem, quanto à tragédia, na
fixação de uma regra para as três unidades, normas ainda mais ampliadas e
enrijecidas no compêndio
La Pratique du théâtre
, do Abbé d’Aubignac, no século
17, consolidando um conjunto de prescrições, normativas e conceitos tornados
conhecidos como
aristotelismo cênico.
De modo que, pela via da poesia e da
literatura, uma prática performativa – quer no passado, quer naquele momento
viu-se constrangida a padrões alheios a ela e, especialmente, alojada em um fluxo
temporal que a ligava a um período remoto que lhe era discrepante. As diretivas
assumidas pelo classicismo francês tornaram-se preponderantes em toda a
Europa, conformando a imaginação teórica desde então dentro da qual o
ut
pictura poesis
, concebido por Horácio, tornou-se um preceito basilar.8
De modo que, pouco a pouco, observou-se um entrecruzamento dessas
concepções e diretivas do aristotelismo apoiando os intentos com os quais o
8 “A poesia é como pintura”, expressão que consagrou a imaginação visual como preponderante em relação
ao oral e ao escrito, presente na
Epístola aos pisões
(ou
Arte poética
) e que reverberou com constância na
Europa do século 16.
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Iluminismo forrou suas certezas e emitiu seus juízos. Winckelmann, Burke e
Diderot este mais próximo do teatro contam entre aqueles que se debruçaram
sobre a história, a cultura e a arte, urdindo as primeiras cogitações de cunho
racionalista e teórico sobre tais domínios. No século 18, o espírito cientificista do
movimento atingiu seu cume, elevando os nomes de Kant, Baumgarten, Lessing e
na sequência Hegel à formulação da mais cultuada teoria dramática do Ocidente.
Uma base filosófica para a arte
O campo da estética constitui um importante denominador subjacente à
Fenomenologia do espírito
, obra maior de Hegel, escrita em 1807, que concebe a
existência da universalidade de um espírito subjetivo (representado pela alma, a
consciência e a razão), um espírito objetivo (referente ao direito, à moralidade e
aos costumes) e o absoluto (que abarca a religião, a filosofia e a arte),
entrelaçamento e confronto de estágios tomados como em desenvolvimento
dialético, ou seja, em que a uma dada afirmação corresponde uma negação,
originando uma posterior síntese como reza o método dialético. Os fenômenos
sensíveis e de percepção inerentes e associados a tais embates foram destacados
pelo autor em outra obra, de maior interesse aqui: o
Curso de estética
(1997 [1830]).
Tornada uma ciência do belo, a arte redime o ser humano da rudeza, da
violência e das vicissitudes do cotidiano conectando-o com outras esferas, como
a imaginação, a criatividade e o sonho um plano ideal, não alcançável, de onde
emerge o conceito de belo materializável através das obras artísticas quando
elas exalam o sublime, um sentimento que nos encanta e traz a sensação de
beleza. Percorrendo uma evolução histórica (arte simbólica, clássica e romântica),
em cada fase um tipo de elemento constitutivo lhe propicia o principal suporte;
vamos encontrar a poesia (e o teatro) no último estágio, quando a civilização
atingiu seu cume.
Hegel ratifica que as artes narrativas e literárias se manifestam de três modos
expressivos (épico, lírico e dramático), sendo o último o território específico do
drama. Síntese de densos embates interpessoais, o drama é absoluto, existe fora
e além de seu autor, constituindo a materialização poética do sublime mais
refinado, pois colado e produzido pelos corpos e paixões humanos enquanto
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resultado de um conflito ético.9 O conceito de drama não foi forjado por Hegel,
embora no
Curso
de estética
tenha conhecido amplo e esmiuçado
desenvolvimento. Ao que tudo indica, o termo surgiu com John Dryden (1973), que,
em seu
Ensaio sobre a poesia dramática
, de 1668, criou um diálogo imaginário
entre dois supostos especialistas em teatro. O autor deu abrigo, com essa
generalização vocabular, à vasta produção cênica ocorrida antes da Restauração,
que pouco se valera da
Poética
e que desbordava tanto a tragédia quanto a
comédia, tais como os interlúdios, as peças escolares, as mascaradas, as
chronicle
plays
de Shakespeare, além da tragicomédia e da tragédia doméstica, espécimes
tipicamente locais e com equivalentes apenas na Espanha do início do Século de
Ouro, outro país imune aos influxos do filósofo grego.
Após Hegel, além de uma filosofia, uma verdadeira teoria da arte restou
instituída, sendo que, naquilo que concerne ao teatro, não quanto a seus
aspectos internos (diretivas de composição, coerência nos modos de exposição,
normas dialéticas para as personagens, sentidos e sentimentos a elas permitido
etc.), mas também quanto aos externos (a exposição tripartida dos conflitos, o
modo de interpretação dos atores, as características de palco e espetáculo que
lhe eram congruentes etc.). Entre Kant e Hegel localiza-se o tempo histórico
tomado como inaugural do regime estético, na apreciação de Jacques Rancière
(1996 e 2021).
Tendo entrado em crise na segunda metade do século 19, o drama vai sendo
paulatinamente desfeito nas décadas seguintes, quando novos formatos
dramatúrgicos e de encenação começam a surgir nos palcos europeus (Williams,
1973 e 2010). Um século após, contudo, o drama volta a ser considerado uma baliza
teórica, agora pelas mãos de um jovem húngaro: Peter Szondi.10
Tal como se apresenta, o estudo
Teoria do drama moderno
(2004) estabelece
uma investigação fundamente idealista, uma glosa de Hegel
ça va sans dire
, que
pisa em ovos para não despertar polêmicas nem criar entraves. Ele retoma a teoria
9 O trágico, no contexto hegeliano, tem por origem uma forma de autodivisão e autoconciliação do espírito, é
o desempenho de um atributo humano. Próprio à burguesia de seu tempo, ele se mostra em plenitude
naquilo que se convencionou chamar de
drama burguês
. Ver Szondi (2004).
10 O livro de Szondi foi publicado originalmente em 1956.
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dos gêneros, mas, como é amplamente reconhecido, lírico, épico e dramático
constituem categorias que se ajustam mal às múltiplas e polivalentes escrituras
possíveis e existentes, em qualquer tempo histórico, especialmente porque
albergam inextricável aderência ontológica junto à
mímesis
, uma limitação
expressiva já abandonada no regime da representação ocidental.
Na proposição de Szondi, todavia, “a forma de uma obra de arte tem sempre
algo de inquestionável, o conhecimento de tal enunciado formal é em geral
alcançado por uma época em que o antes inquestionável é posto em questão e
em que o naturalmente aceito passou a ser um problema”. Um problema, forçoso
reconhecer, apenas para ele, ao se colocar distante do intenso debate teórico
acumulado em decênios anteriores, porque deslocou sua atenção para outro lugar,
de cunho eminentemente ideológico, e assim expresso: “A concepção histórico-
dialética de forma e conteúdo mina as bases da poética sistemática enquanto tal”,
uma vez que está no âmago de uma “poética filosófica, que não busca regras a
serem empregadas na
práxis
, nem diferenças a serem consideradas na escrita,
mas um conhecimento que se basta a si mesmo” (Szondi, 2004, p. 24-25).
Resumindo: o objetivo não é problematizar ou discutir o drama e a cena existentes,
mas deixar-se levar pela voragem idealista de seus pressupostos e acidentes de
percurso, uma vez que os toma como algo inquestionável e que se auto explicita,
quando coados através do funil histórico-dialético, gerando sua própria hipóstase.
Com tal operação, estamos diante de um conhecimento autotélico, que busca por
uma verdade que se baste a si mesma, conhecimento esse identificado com o
grande projeto erigido pela metafísica ocidental. Ou seja, não se trata do mundo
empírico, marcado pela fatuidade, pela diferença, pela ação dos homens e da
sociedade, pelos conflitos de interesses e de classes, transtornos e desvãos das
linguagens, e menos ainda de um mundo passível de outra representação senão
aquela vinculada à
mímesis
. Mas é um caldo de cultura autocomplacente, outro
modo de flagrar a ideologia em sua fulgurante emanação.
No Brasil, Szondi foi ressuscitado por muitos artistas e analistas da cena no
final dos anos 1990, e sua vigência conceitual durou até a primeira década do
século 21, conformando uma teoria cênica regressiva e apassivada, em luta contra
as manifestações performativas e de teatralidades que se afastavam ou se
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voltavam contra a
mímesis
, se espraiavam sobre novas estruturas narrativas,
derivadas de procedimentos inventivos nascidos de outras matrizes
representacionais (Watson e McKernie, 1993; Crary, 2012).
Novas tecnologias
Com o aprofundamento da psicologia, a partir do último terço do século 19,
novos enquadramentos relacionados ao humano passam a vigorar, redefinindo o
que até então fora considerado consciência e representação. No plano filosófico,
igualmente, verificam-se mudanças profundas, com o desenvolvimento da
fenomenologia. Tais reviravoltas recolocaram em discussão o que era tomado
como teoria e prática, além da indispensável
vivência
(ou seja, a experiência),
coisas que, no ambiente das artes da cena, implicaram alterações quanto aos
paradigmas da atuação. O ator deixou de ser um eco do dramaturgo ou um
repetidor mimético de estilos gestuais convencionados, passando a desempenhar
um papel criativo no resultado da cena como podem ser situados os primeiros
entendimentos sobre a
performance
. De modo que o século 20 foi marcado por
diversas rupturas com códigos, padrões e vínculos estabelecidos desde séculos; e
no campo artístico, mais especificamente, identificados como procedimentos
oriundos das vanguardas na arte (Goldberg, 2006; Schechner, 2003). Novas ondas
de insurgência parcialmente arrefecidas durante os conflitos bélicos, mas que
ressurgiram após as décadas de 1950 e 1960, tomadas como neovanguarda,
investimentos disruptivos mais intensos de desestabilização diante dos padrões
da representação mimética.
Desde meados dos anos 1960 a utilização do vídeo começou a alastrar-se,
em função não da miniaturização dos equipamentos mas, sobretudo, da
possibilidade de registro e difusão dos produtos criados, ampliando sua presença.
Superando o 16 mm e o super-8, logo surgiram o VHS e o Betacam, gerando a
videoarte e a intermídia, produtos híbridos que fundiam várias expressividades
anteriores: fotografias, grafismos, imagens em movimento, cores, sons, ruídos,
dança e teatro, desestabilizando-as em relação a seus gabaritos instituídos. O que
foi colocado em causa foi o princípio mesmo das representações e sua aderência
aos vínculos entre presença e convivialidade
(Auslander, 2012; Gomes, 2013; Bay-
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cheng, 2023)
.
Não mais o escopo analógico, mas uma outra coisa que, fugindo do tempo e
do espaço aparentes, ainda que apenas percebida e inferida, necessitou esperar
explicações das ciências numéricas para ser inteiramente decodificada: o
cibernético. A intermídia valeu-se de produtos e processos nascidos de máquinas,
através de operações que demandavam codificadores e decodificadores,
transmissão de códigos e capacidade de gerar bancos de dados que facilitassem
e viabilizassem operações futuras. O mundo sonoro foi amplamente atingido, não
pelo surgimento de instrumentos musicais eletrônicos e sintetizadores mas
sobretudo pelas novas possibilidades acústicas descortinadas para sons, ruídos,
efeitos e emissões capazes de compor palavras e músicas. O espectro das
imagens também foi impactado, não apenas pelo aperfeiçoamento de lentes e
transístores como, quanto às artes gráficas, pela expansão das possiblidades
visuais até então conhecidas. A Polaroid permitiu obter uma foto em instantes, ao
contrário do longo processo laboratorial anterior. O
offset
, o
xerox
e o
fax
a
reproduzir imagens e textos em alta velocidade. O mundo eletrônico ultrapassou
limites, possibilitando colocar foguetes espaciais em órbita, monitorar marés e
cardumes de peixes, efetivar intervenções cirúrgicas através de robôs, de modo
rápido e eficiente. Toda a vida humana começou a conhecer uma aceleração do
tempo, uma diminuição das distâncias, um reordenamento das interações entre
indivíduos.
O corpo humano, a
res extensa
de Spinoza, permanecia, todavia, o que
sempre fora um protótipo para a representação, um suporte para a
comunicação, um veículo para a interação. Sua presença ou ausência
determinavam e isolavam, sem ambiguidades, o real do fictício, o dado frente ao
suposto, o modelo mais estável para toda a representação humana ocidental. Em
sua totalidade ou em suas partes, o corpo conheceu toda uma semântica
largamente assentada de sentidos e acepções. Duas noções centrais atravessaram
os séculos: havia identidade entre as ações corporais manifestadas e suas
intencionalidades causais; e, quando da encarnação de uma personagem, o
intérprete nunca era a criatura ela mesma. Tais princípios apoiavam-se na
arraigada crença de identidade entre corpo/função, gerando uma lógica própria,
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uma analogia, estribada sobre o ilusório e sobre a força do fictício (Safatle, 2005).
Tudo isso mudou com a
performance
. Quando um artista furou o dedo com
um prego, se masturbou em público ou penteou dolorosamente seus cabelos
repetindo a frase “a Arte deve ser bela, a artista deve ser linda”, seu corpo não
representava, sua carne sofria os efetivos impactos de suas ações. Foram esses
os novos paradigmas propostos pelo grupo Fluxus, pela
body art
, pela arte
conceitual, pela antiarte que, em diversos quadrantes, fugiram aos parâmetros de
equacionamento do corpo humano e da arte. Os acionistas de Viena chegaram à
morte, Joseph Beuys colocou sua vida em risco ao lado de um coiote, Burden
sofreu o impacto de um tiro real no braço, tudo em nome da negação da
representação e da exposição de um corpo orgânico padecendo uma ação efetiva.
Ao negar o fictício e o ilusório, a
performance art
voltou-se contra o falso e o
ardiloso, extinguiu a analogia experimentada pela representação anterior, em
benefício da lógica da sensação, fincando uma matriz artística única e irrepetível,
desviando a arte de um dado produto para um dado processo (Deleuze, 2007). O
vivo e a vida, em suas pulsações frementes, adquiriram o
status
de valores
enaltecidos e documentados por registros e imagens captadas e exibidas em telas
a partir de códigos numerais (Auslander, 2012; Vial, 2013; Sadin, 2015).
O impacto causado por essas mudanças foi vivido ora com euforia, ora com
melancolia, a depender de cada qual. Para muitos, o “verdadeiro” teatro é aquele
ao vivo e capaz de infundir fundas emoções presenciais. Todavia, esses mesmos
espectadores não deixam de se comover no cinema ou com música gravada,
distantes da presença um paradoxo de apreensão inteligível quando verificado
que a consciência humana comporta também dessincronias e desajustes
sensíveis e emotivos.
Se for compreendido que uma representação constitui a tradução mental de
uma realidade exterior percebida e ligada ao processo de abstração interior, tal
conceito foi perdido com a cultura numérica. Estamos agora no metaverso, uma
dimensão paralela pela qual transitamos quase sem perceber. Um âmbito
fortemente estruturado através de
scripts
fornecidos pelas linguagens Python, C#,
Java script, Goland, SQL, entre outras, responsáveis pela quase totalidade de
funções, operações, conexões, rodagem de aplicativos e funcionalidades de um
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website
usado diariamente. A maior parte de tudo isso está coalhada de
algoritmos, vetores para entrada e saída de dados, direcionados para vários fins,
conforme os interesses do
website
, propiciando o
fishing
, o redirecionamento para
outra página ou janela, geralmente anúncios comerciais ou formulários para a
captura de informações.
Nada disso é
natural
, embora o pareça, dada a massiva presença dos
smartphones
em todas as mãos, utilizados diuturnamente para inúmeras tarefas
do dia a dia. Mas tudo isso acarreta também uma outra representação, não mais
analógica ou mimética, mas numérica e codificada, obedecendo não mais a
agenciamentos de deliberações e desejos humanos diretos, mas ao que é oriundo
de operações maquínicas, em uma era considerada por vários analistas pós-
humana. Para as artes da cena, seja do ponto de vista teórico ou do prático, essa
nova dimensão se tornou uma questão crucial. Quando estruturadas a partir do
mimismo a imitação física ou comportamental de outrem , as noções de
presença, energia
e
convivialidade
restaram fortemente implicadas e impactadas
em suas manifestações e ocorrências, componentes que circunscreviam e
definiam suas qualidades enquanto fato ético e estético compartilhados entre
palco e plateia. Especialmente quando estamos diante da
performance
e do
performativo, a realização verdadeira ou efetiva de um ato ou ação dada em
espetáculo.
Isso tudo foi impactado e alterado pela representação digital, as interfaces
mediadas pelas telas e as funcionalidades então possíveis e produzidas. Aos
poucos, uma cisão ocorreu entre um e outro modelo, tornando cada vez mais
estranho a um usuário
cyber
adaptar-se aos antigos padrões do outro. Um ponto
de passagem entre esses mundos é o ciborgue, esse ser metade silício e metade
orgânico que se avoluma nos dois ambientes, espécie de metamorfose ambulante
que junta uma ponta à outra. Não por outra razão, avultam atualmente as
personagens híbridas, limítrofes ou trans nos discursos amplos e de gênero, como
também no
streaming
, nos jogos eletrônicos, nas comunicações, na publicidade e
no entretenimento.11
11 O
Manifesto Ciborgue
surgiu em 1985, uma crítica feminista de Donna Haraway (2020) ao identitarismo que
marcara um momento anterior do movimento. Fruto de controvérsias, ele levou Rosi Braidotti a ponderar:
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Tais parecem ser as razões centrais pelas quais quer a teoria, quer seus
epistemas analógicos entraram em crise, incapazes de responder às novas
configurações do mundo e, consequentemente, pensar e explanar essas
representações. adubadas pelas incursões do identitarismo, do descolonial, dos
influencers
a cada dia mais auxiliados e apoiados pelas inteligências artificiais –
, as artes da cena também acabaram precisando lidar com o mundo numérico,
possibilitando a realização de espetáculos com intérpretes em diferentes cidades
e continentes, com atores de faces mutantes, com a visualização de ângulos não
visíveis a olho nu e até mesmo sem
performers
.12
Um deslocamento crescente que, para falar com Deleuze e Guattari (2014),
veio tornando o teatro uma “arte menor”, uma língua minoritária no interior de
outra hegemônica. Quer dizer, em meio ao apelo massivo e global de
expressividades e linguagens planetárias, ele ocupa uma fatia diminuta. Não
apenas as salas de espetáculos se reduziram em tamanho e quantidade como, de
resto, ele demanda certo ritual sociocultural: a saída de casa, o percurso até o
local de apresentação, a espera pelo início, sua gradual recepção no tempo, o
retorno ao domicílio. Esse é um tempo longo se comparado à rapidez daquilo que
é obtido
online
. E ele exige paciência, outra virtude em extinção na atualidade, um
ócio quase incompatível com as agendas sobrecarregadas das pessoas em geral,
mas também na direção oposta à da rapidez dos executáveis utilizados pelos
dispositivos numéricos.
Falar em tempo é também falar em espaço, uma vez que as duas dimensões
constituem interfaces de uma mesma ocorrência: a localização e a duração. Ainda
que a sensação de passagem do tempo seja causada por fatores psicológicos e
neurológicos, o espaço também é relativo, variando conforme a velocidade e a
gravidade daquele que está imerso no fenômeno – é o que a física nos ensina. Se
O ciborgue de Haraway insere uma consciência de oposição no coração do debate sobre as novas
sociedades tecnológicas em formação, de modo a destacar questões de gênero e diferença sexual dentro
de uma discussão muito mais ampla sobre a sobrevivência e a justiça social. Mais do que nunca, portanto,
a questão das relações de poder e da resistência ética e política emerge como relevante na era da
informática da dominação” (Braidotti, 2006, tradução nossa). “Haraway’s cyborg inserts an oppositional
consciousness at the heart of the debate on the new technological societies currently being shaped, in such
a way as to highlight issues of gender and sexual difference within amuch broader discussion about survival
and social justice. More than ever, therefore, the question of power relations and of ethical and political
resistance emerges as relevant in the age of informatics of domination”.
12 A esse propósito, ver nesta edição o artigo “O vídeo em cena”, de Josette Féral e Julie-Michèle Morin.
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nos sistemas analógicos a intensidade da experiência era tomada quanto à relação
de adequação entre as duas dimensões, o que fazia intensificar e credenciar as
sensações e as vivências, agora as coisas se apresentam diversas e em
conformidade com outros parâmetros. Os sistemas digitais conectam os eventos
espaçotemporais quase simultaneamente, fornecendo um intervalo mínimo para
a absorção de sensações e percepções, causando acumulação, sobrecarga,
overdose quase impossíveis de ser processadas pelo cérebro humano (Coelho,
2019).
Tais vetores indicam uma paulatina desagregação do teatro analógico e
mimético, em função da avassaladora invasão da lógica numérica, o que requer
uma intensa e aprofundada reinterpretação das teorias e das práticas que
sustentam as artes da cena, para que elas possam adquirir e promover
inteligibilidade sobre si mesmas. Ainda mais quando nos encontramos igualmente
atravessados pelas demandas cênicas identitárias e descoloniais, que exploram
vivamente os recursos
web
numéricos.
Descolonialização e identidarismo
Em circulação desde muito tempo, os movimentos identitários ganharam
força e visibilidade no Brasil na última década do século 20. Iniciados bem antes
como reivindicações e lutas específicas de mulheres, de negros, da comunidade
LGBTQIAP+ , eles evoluíram para aproximações e interconexões entre si, em
alguns casos interligadas com aspectos socioeconômicos e políticos, em outros,
com noções agregadas, como a ecologia, o veganismo, o capacitismo, o etarismo,
a gordofobia etc. O alvo preferencial dessas lutas foi e continua sendo o
patriarcado, notadamente em suas feições mais odiosas, como o machismo, o
autoritarismo e a xenofobia, corporificados no protótipo do macho, branco, hétero,
cis, cristão
(Silva, 2022).
Ao final do século 20, todas as áreas das humanidades e das expressões
culturais e artísticas foram frontalmente atingidas por tais investidas, não só pelo
reiterado apontamento do caráter estrutural desempenhado pelo patriarcalismo
na engenharia social e do Estado como também pela reivindicação de uma
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interseccionalidade costurando o conjunto de suas pautas. Efetivamente, a cultura
europeia forjou e disseminou, por meio de conceitos e teorias tomados como
universais, seus próprios pressupostos e os impôs ao resto do mundo, supondo a
necessidade e a existência de uma civilização global.
Nesse contexto, para o mundo da representação e sobretudo da
autorrepresentação, importa destacar duas acepções ou planos referentes às
identidades: aquele organizado em torno do
Self
(Mim), a partir das experiências
orgânicas e psicossociais íntimas, que vão se consolidar enquanto uma
subjetividade autopercebida como única; e um plano maior, dimensionado através
das relações e interações coletivas que esse sujeito vai construir ao longo do
tempo (Eu), com ênfase sobre a autoestima, os sentidos e os sentimentos
mantidos e alimentados no âmbito da convivência com os demais planos esses
que, para o construtivismo, são sociológicos e históricos, abertos às mudanças e
exigem permanentes negociações consigo mesmo.
A política identitária, ao tomar por paradigma a
identity policy
estadunidense,
opõe ao
establishment
grupos sociais autodefinidos como
excluídos
, pois se sente
oprimida e fora das agendas propostas pelas políticas públicas das sociedades,
reunindo indivíduos que, por um ou outro aspecto, se identificam entre si, tomados
como
comunidades.
Entre seus princípios e fundamentos circulam noções e
conceitos genéricos pouco claros ou com acepções desiguais – empoderamento,
orgulho, equidade, pertencimento, ancestralidade, sororidade, resiliência,
representatividade, passabilidade etc. –, mas reluzentes e atrativos para fomentar
adesões e afetos progressistas. O problema político maior que se observa nessas
atuações é que pautas concretamente reivindicadas pelos direitos humanos, como
a representação (o
Self
e o nós), deslizam para a representatividade (Eu e a tribo),
na equívoca suposição de que um indivíduo pertencente a um segmento oprimido
vá trabalhar e atuar necessariamente contra a opressão ou promover seus iguais.
Por outro lado, novas identidades não param de emergir aqui e ali, fragmentando
ainda mais o que antes foi tomado como uma comunidade coesa.
Além disso, nem todas as pautas identitárias se mostram equivalentes ou
comungam posturas morais, éticas, estratégicas e políticas: a luta das mulheres
brancas é distinta daquela das mulheres de outros fenótipos e trans; as diversas
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opressões apontadas podem admitir ou não seu caráter de classe, étnico ou de
gênero quando é invocado o conceito de interseccionalidade que as unificaria.
Entre as agendas da comunidade LGBTQIAP+ também desajustes, uma vez que
a exigência de igualdade civil defendida pelos
gays
frente à ordem da família
heteronormativa é distinta daquela das mulheres lésbicas frente às trans etc.
(Butler, 2015 e 2019).
Se esse painel de particularismos fica ainda mais aguçado em função dos
ataques e rejeições promovidos pela direita e pela extrema direita que encarnam
o
establishment
, os componentes estruturais e de classe inerentes às lutas sociais
correm o risco de se dissipar diante do modo de produção. É o que se verifica
quanto a algumas concessões absorvidas pelo mundo corporativo que acolheu
a
diversidade
, a
integração
e a
pluralidade
como estratégias de assimilação
operadas pelo
marketing
, mas não asseguradas por uma legislação civil efetiva que
as garanta no tempo – uma vez que não alcançaram os fundamentos do sistema,
mas apenas uma sua interface mais amena e filantrópica, um novo rebote
neoliberal.
As lutas identitárias se associaram, igualmente, a outra perspectiva
problemática, organizada em torno do descolonial, um legítimo anseio de
reparação proveniente das ex-colônias dos impérios metropolitanos de outrora e
vitimadas pelas estruturas da civilização então implantadas (Mignolo, 2017). A
reavaliação e a revitalização das culturas autóctones e originárias, dos símbolos
nativos e ancestrais, dos hábitos culturais anteriores à assimilação constituem
êmulos poderosos na luta política, racial, étnica, cultural e simbólica, mas desde
que alcancem, igualmente, suas interfaces econômicas e sociopolíticas, quer dizer,
desde que articulem um descolonialismo. Tais pautas implicam a desconstrução
de estruturas mentais e etnológicas arraigadas, de hábitos estratificados e bem
mais difíceis das associações e alianças sociopolíticas produzidas e incorporadas
nos regimes de cooptação atuais, um legado de trato espinhoso e pontilhado por
hibridismos, fusões e miscigenações em grande parte irrevogáveis. Em tais
circunstâncias intricadas, quando ocorrem as chamadas
reparações
, elas tendem
a ser mais simbólicas que reais, mais afetivas que materiais, mais intencionais que
práticas.
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Do ponto de vista artístico e estético as lutas identitárias e descoloniais
realizaram muitos espetáculos e continuam muito ativas quanto à
desestabilização das representações, atingindo os paradigmas teóricos e práticos
tomados como
naturalização
. Naturalização no sentido da
mímesis
, esse
marcador de enorme constância entre as culturas ocidentalizadas, agora acossado
pelas contestações e reivindicações do
politicamente correto
. Fruto do ambiente
acadêmico universitário estadunidense dos anos 1970, a expressão designa as
iniciativas e as ações afirmativas decorrentes do multiculturalismo ao
promoverem discursos e comportamentos antissexistas e antirracistas. A língua e
o
habitus
, portanto, demandam ser ajustados e remanejados para não ofender,
injuriar ou discriminar aquelas e aqueles que são suas vítimas, o que coloca a
autoestima individual e o apreço social como parâmetros reguladores. Se o
politicamente correto
está na base da equidade, ele invoca, mais atrás, todos os
malefícios e preconceitos que a
naturalização
produziu e disseminou,
conformando um imaginário coalhado de violências, preconceitos e injustiças. Que
se refletiu nas expressões linguísticas, na visualidade, nas inter-relações pessoais,
nos símbolos e noções vigentes nas sociedades do passado, mas também em
seus paradigmas mentais e teorias sociais, distorcendo e induzindo a equívocos
na totalidade de suas representações.
Se as representações nos espetáculos demandam urgentes
reequacionamentos, é preciso ficar atento, contudo, aos pressupostos subjacentes
à representatividade no plano das expressões artísticas que insistentemente vêm
exigindo
autenticidade
quanto às
performances
: um ator não pode interpretar uma
personagem parda ou oriental, nem uma indígena ou transgênero se não o for em
sua origem. A ficção foi abolida, o imaginário foi aprisionado.13 E a reiterada
insistência de autodeclaração de seus hábitos íntimos consagrada pela atitude
de
sair do armário
, tornada um marcador decisivo para sua escalação para tal
ou qual papel, resquício dos impulsos populistas vigentes nos primórdios das lutas
identitárias e descoloniais, ao privilegiarem uma suposta autenticidade existencial
13 Não há aqui espaço para sintetizar, dada sua complexidade, todas as injunções abertas em torno do fictício
e do imaginário, razão pela qual remeto à obra seminal de Cornelius Castoriadis:
A instituição imaginária da
sociedade
(2008).
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do Eu como único lugar de fala autêntico.14 Ainda que Judith Butler (2015) insista
em afirmar que toda a subjetividade de um ser humano é fruto de uma continuada
performatividade psíquica e social e não de uma autenticidade etnocultural , o
superego identitário continua acintosamente apontando a aparência (a
passabilidade
) de cada qual para defini-lo, enquadrá-lo e admiti-lo não apenas
enquanto representatividade, mas também enquanto representação. Resulta
então uma clara subversão e a revogação do simbólico: ele não é mais o
intercessor, a conexão possível, a base da língua e da comunicação entre humanos,
mas tornou-se o pequeno balbuciar da novilíngua de uma tribo. Como contraponto
a essa atuação fragmentada e subjetivamente autoritária, afirma Butler (2019, p.
322): “A incompletude de qualquer formulação ideológica é central para a noção
de futuro político do projeto democrático radical”.
As artes da cena sentiram os impactos dessa emersão sociocultural
identitária e descolonial, colocando em cena feitos e depoimentos de indivíduos
prenhes de reivindicações motivadas por preconceitos, violências e injustiças
(
performances
coletivas ou no formato de espetáculos unipessoais, testemunhais
e documentais, além de autoficções), assim como voltando sua atenção para
símbolos, logradouros públicos ou processos colonialistas que demandam
urgentes revisões de
status
(com destaque para o recurso ao
site specific
, ao
biográfico e à imersão), aspectos até pouco tempo atrás não abordados pelas
curadorias artísticas, como as consequências da diáspora negra, das migrações
forçadas, das guerras étnicas e genocidas, a fome, a crise climática, mas também
a própria tecnologia e seus processos de interação, novos aportes para um selo
abrangente como a arte performativa, pública e relacional. É preciso, contudo, ficar
atento: esse estilo de enunciação qualificado como imediaticidade pode
estar promovendo tão somente uma nova vítima epistêmica do rebote neoliberal:
O emprego da primeira pessoa como idioma resolve o paradoxo
democrático de estar representando outros, elegendo-se como mais
denso política e esteticamente do que as teorias ou táticas sustentadas
pelas subjetividades coletivas ou pelos significados compartilhados. [...]
No entanto, ao esvaziar as dimensões convocatórias e generalizantes da
14 É quando a
autenticidade
é reivindicada pelo recurso populista, na acepção de Laclau, que a entende como
como uma lógica discursiva em que uma porção de demandas insatisfeitas se reúnem ao redor de um
símbolo que as nomeie em oposição a uma elite. Ver Dunker (2018).
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crítica, ele quer preencher esse vazio com as contundentes formas que
alteram as classificações de gênero da fala real, a imediaticidade exprime
a sua univocidade [Kornbluh, 2023].15
Estamos no olho do furacão. Crises de todas as naturezas nos atravessam
(ideológicas, econômicas, políticas, de saúde pública, ecológicas, entre
fundamentalismos, entre tecnologias etc.), em focos de conflitos armados entre
países, entre grupos sociais, entre classes e correntes de opinião dentro dos
regimes políticos. São momentos decisivos que demandam inovações quanto aos
procedimentos, a revisão de padrões, o reequacionamento de recursos e a recusa
de estratégias que, comprovadamente, não obtiveram resultados. Repensar o
mundo é repensar as teorias e as práticas que lhe fornecem sentido e possibilitam
sua compreensão – assim como suas representações , revolucionando corpos e
explorando campos e territórios ainda não desbravados.
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signifiers. [...] Yet, in emptying out the convocative and generalizing dimensions of critique and then filling
that void with the genre-bending fulminations of the real talk, immediacy pronounces it univocity” (Kornbluh,
2023, tradução nossa). Univocidade é a característica daquilo que só admite um significado; que não possui
ambiguidades, como uma lei ou verdade científica.
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Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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