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Deixando cair as máscaras: uma conversa
entre amigas/mulheres-artistas
Entrevista com Patrícia dos Santos
Concedida à Maria de Fátima de S. Moretti (Sassá Moretti)
Para citar este artigo:
SANTOS, Patricia dos; MORETTI, Maria de Fátima de S. -
Deixando cair as máscaras: uma conversa entre
amigas\mulheres-artistas.
Urdimento -
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v.2, n.51, p.1-25,
jul. 2024.
DOI:10.5965/1414573102512024e0502
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Deixando cair as máscaras: uma conversa entre amigas/mulheres-artistas
Entrevista com Patricia dos Santos concedida à Maria de Fátima S. Moretti (Sassá Moretti)
Florianópolis, v.2, n. 51, p.1-25, jul. 2024
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Deixando cair as máscaras: uma conversa entre amigas/mulheres-artistas1
Maria de Fátima de S. Moretti (Sassá Moretti)2
Patrícia dos Santos3
Resumo
Este artigo levanta questões sobre as máscaras, seu uso e construção, com suporte em uma
conversa com duas amigas que estudaram juntas na década de 1990 e depois tomaram
caminhos diferentes, mas continuaram unidas por um afeto em comum, as máscaras e suas
facetas. Para contar um pouquinho dessa trajetória, traçamos um diálogo que mostra um
pouco da história e dos caminhos de Patrícia dos Santos e das máscaras com as quais ela
cruzou em seu caminho. Assim, por meio de uma entrevista, desvendamos as possibilidades
do trabalho com as máscaras, de um olhar sensível ao outro e a si mesmo, revelando o que
há de mais humano e poético nas máscaras cotidianas e teatrais.
Palavras-chave:
Máscaras. Lecoq. Clown. Sartori.
Dropping the masks: a conversation between friends/women-artists
Abstract
This article raises questions about masks, their use and construction, based on a
conversation with two friend s who studied together in the 1990s and then took different
paths, but remained united by a common affection: masks and their facets. To tell you a
little about this journey, we've drawn up a dialogue that shows a little of Patricia dos Santos'
history and the masks she came across along the way. Thus, through an interview, we unveil
the possibilities of working with masks, of a sensitive look at the other and at oneself,
revealing what is most human and poetic in everyday and theatrical masks.
Keywords:
Masks. Lecoq. Clown. Sartori.
Dejar caer las máscaras: una conversación entre amigas/mujeres artistas
Resumen
Este artículo plantea cuestiones sobre las máscaras, su uso y su construcción, a partir de
una conversación con dos amigas que estudiaron juntas en los años 90 y luego tomaron
caminos diferentes, pero permanecieron unidas por un afecto común: las máscaras y sus
facetas. Para contarles un poco sobre este viaje, hemos elaborado un diálogo que muestra
un poco de la historia de Patrícia dos Santos y las máscaras que se encontró por el camino.
Así, a través de una entrevista, desvelamos las posibilidades del trabajo con máscaras, de
una mirada sensible al otro y a uno mismo, revelando lo que hay de más humano y poético
en las máscaras cotidianas y teatrales.
Palabras-Clave:
Máscaras. Lecoq. Clown. Sartori.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Giovanni Secco. Mestre em Linguística pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
2 Pós-doutorado na Universite de Strasbourg Faculte de Philosophie França. Doutorado em Literatura pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestrado em Literatura pela UFSC. Especialização em
Metodologia do Ensino das Técnicas Teatrais pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Graduação em Licenciatura em Artes Cênicas pela UDESC. sassamoretti@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9087678319013848 https://orcid.org/0000-0002-4740-3718
3 Mestrado em teatro pela Universidad Rey Juan Carlos de Madrid. Atriz,
clown
, diretora, professora de teatro
especialista em jogo da máscara e análise de movimentos.
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Figura 01 Quadro com a escultura da máscara de Bonifácia à esquerda e finalizada à direita
Fonte: Imagens cedidas por Patrícia dos Santos, 2017
Há muito tempo trabalho no campo do Teatro de Animação, tendo um olhar
especial para as máscaras, linguagem pela qual me dedico alguns anos
ministrando aulas na universidade, onde confeccionamos máscaras (neutras,
larvárias,
Comédia Dell’Art
e outras) e trabalhamos sua prática com foco na cena.
Nesse percurso, costumo utilizar como principais referências teóricas os
pesquisadores Jacques Lecoq (2011), Dario Fo (2011) e Jacques Copeau (2013),
sempre com a preocupação de aproximar a teoria com possíveis práticas de nossa
realidade local. A partir de tal perspectiva, percebendo a escassez de materiais
bibliográficos que enfoquem vivências singulares e que permitam maior
aproximação do conteúdo com a realidade dos alunos, busco regularmente
estimular diálogos integrativos, como o que faço neste experimento. Assim, para
iniciarmos nossa jornada, quero apresentar esta menina, agora uma mulher,
chamada Patrícia dos Santos. Patrícia é uma grande amiga, e sempre foi uma
artista sonhadora, uma
clown
maravilhosa, coração de ouro. Ela sempre teve
vontade de viajar, e conseguiu. Viajou muito em busca de seus sonhos. As
máscaras ela encontrou na França, na Escola Lecoq; na Itália, na Escola Sartori;
em Madrid, na universidade onde concluiu seu mestrado. Para articularmos um
compartilhamento de saberes, preparei uma entrevista, que inicio aqui.
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Sassá Moretti - Patrícia dos Santos, sei que você fez um longo e rico caminho
para chegar até aqui. Quando você saiu do Brasil, foi em busca do teatro
europeu? Ou foi por acaso, você deixou a vida te levar.
Patrícia dos Santos -
Eu sinceramente não acredito que a vida seja regida
pela lei da mera casualidade. Creio que tudo é uma corrente entrelaçada de
acontecimentos em série divinamente ordenados, e se prestamos bem a atenção
perceberemos que tudo está conectado. Em 1998 foi a primeira vez que eu fui
para a Europa, para fazer um intercâmbio entre minha universidade no Brasil e
uma faculdade de filologia em Valência, na Espanha, porém meu objetivo era
estudar em Paris, na Escola Jacques Lecoq. em 2017, quando eu estava
morando em Budapest, tive a possibilidade de ir fazer o seminário Laboratório
Internacional sobre a Arte da Máscara, no Centro Maschere e Strutture Gestuali,
em Abano Terme, na Itália. Foi uma realização pessoal de desmascarar a ilusão
sobre mim mesma. Ter tido a possibilidade de trabalhar a máscara a partir do
feminino e com essas mulheres da família Sartori, Paola Pizzi, Sarah, e outros
incríveis artistas italianos na criação da máscara da
commédia dell’arte
. Eu estava
feliz de poder viver essa experiência sobre e compreender o processo e a arte
técnica de construção da máscara da commédia dell’arte
Sua base de trabalho com a máscara surgiu no Brasil, na universidade? De onde
surgiu essa vontade de trabalhar com máscaras, sejam elas da
commédia
dell’arte
ou de
clown
?
Eu usei a máscara pela primeira vez num curso com o diretor carioca Lau
Santos, que tinha acabado de chegar da França com máscaras neutras, balinesas
e
commédia dell’arte
, isso em 1990. Fiquei completamente curiosa por esse objeto
e com o treinamento do ator com a máscara. Na mesma época, com a teoria na
Universidade do Estado de Santa Catarina, como estudante de artes cênicas na
disciplina de Laboratório de Pesquisa Dramática, onde estudávamos a história e a
utilização da máscara em diferentes culturas. Nós alunos construíamos um
“positivo” do próprio rosto, que servia, mais tarde, como molde para a construção
da máscara teatral feita de papel machê, e preparávamos cenas a serem
apresentadas ao final do curso. nesse início me apaixonei pelo treinamento com
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a máscara para a formação do ator, por sua função pedagógica e, ademais, como
forma de compreender melhor o nosso ofício como artistas e como seres
humanos – um olhar mais generoso ao outro.
Em relação ao
clown
, eu acredito que foi nessa pequena máscara que, ao
invés de esconder, revela a criança que existe em cada um de nós que encontrei
a minha verdadeira identidade sempre achei que fosse uma atriz dramática,
porém, para a minha alegria (e decepção do meu ego), encontrei no nariz vermelho
uma forma de caminhar pelo mundo. Eu acho que o riso também é uma máscara,
no sentido de que muitas vezes as pessoas que nos fazem rir escondem uma dor
profunda na alma. São seres humanos que assumem o seu próprio ridículo, que
aceitam os seus fracassos e tropeços, e o nariz nos mostra quão pequenos somos
perante a grandeza do universo e quão grande somos em nossa vulnerabilidade
uma grande maioria de artistas/pessoas tem sede de justiça e amor ao próximo,
muitas vezes são pessoas sofridas e que enfrentam com o riso os dissabores
desse mundo e da nossa trágica condição humana. O riso é a máscara dos que
resistem à vida com a intensidade de um amor profundo ao outro e conseguem
enxergar o que há de mais belo no ser humano – apesar de todos os defeitos de
nós seres tão “imperfeitos”. O riso é a máscara que mostra que vale a pena cada
encontro apesar de ser efêmero –, que o ser humano vale a pena e que vale a
pena tentar mais uma vez, apesar dos inúmeros fracassos. O
clown
mostra o
artista em toda a sua humanidade. A máscara, nesse sentido, é pequena no
tamanho, mas imensa na sua grandiosidade humana.
A máscara neutra é utilizada por Lecoq como um meio de trabalhar o ator e de
torná-lo capaz de representar a essência das coisas, de maneira limpa e clara.
É por isso que a própria máscara nada expressa, pois “busca corporificar aquilo
que é verdadeiro para toda a humanidade” (Sachs, 2004, p. 83). Você tinha
conhecimento do rico trabalho de Lecoq? Ou foi por acaso que você foi para a
França para fazer esse tão famoso curso?
Na década de 90 havia poucas referências, e poucos atores brasileiros tinham
passado pela Escola Lecoq. Não tínhamos sequer um livro publicado em
português, somente um artigo do antropólogo americano Laurence Wylie, que se
intitulava “Na Escola Lecoq descobri meu próprio clown quando um sério
professor de Harvard descobre o bobo adormecido dentro dele”, em que falava
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sobre a Escola Lecoq e o processo pedagógico com a máscara, a importância do
silêncio, da economia do movimento, de desbloquear o corpo, de uma nova
consciência de si mesmo e do descobrimento do seu
clown
.
Eu me dedicava a produção audiovisual em Florianópolis e a minha pesquisa
pessoal estava voltada ao trabalho do palhaço, mas eu tinha muita curiosidade de
conhecer pessoalmente a pedagogia da Escola Lecoq e acreditava que a referência
com máscara escondia um conhecimento que poderia me revelar algo essencial
para um trabalho artístico com mais profundidade e compreender melhor o
mundo que nos rodeia para ampliar os horizontes “mais distantes”.
Foram esses os argumentos que me levaram a estudar em Paris em 2000,
onde e quando descobri, além da máscara, a poesia, o espaço, o movimento, a
arquitetura (LEM), o encontro com diversos artistas de diversos países e um olhar
mais poético do mundo.
A máscara neutra permite constatar a diferença entre a agitação corporal e
o movimento. A partir do momento em que o rosto é coberto pela máscara, todo
o corpo reage, o corpo começa a pensar que o rosto não pode comunicar, o
corpo começa a se tornar consciente dos movimentos, com a máscara neutra. É
o corpo que fala, adquirindo, assim, uma nova consciência corporal e,
consequentemente, de si mesmo.
A máscara neutra permite a busca da economia do movimento, que é a
referência de todas as ações. O movimento justo, orgânico nos mostra a justeza e
o resplandor da presença do ator no espaço. Vai muito além do superficial, vai
fundo no gesto orgânico de cada indivíduo e no nosso gesto único em busca da
“perfeição” do ser humano e da nossa autêntica humanidade. É um grande
território de trabalho, que se apoia em todas as artes.
Quanto ao
nariz de palhaço,
considerada a menor máscara do mundo, que
apareceu nos anos sessenta na Escola Jacques Lecoq, é interessante lembrar
que naquele momento ele estava se interrogando sobre as relações entre a
commédia dell’arte
e os
clowns
de circo, quando descobriu o conceito do
fracasso
sem querer num dos exercícios. Ele afirmava que “o clown não existe
separado do ator que o interpreta” (Lecoq, 2011, p. 153). Nesse caso, o ator não
precisa entrar num personagem, mas descobrir o seu próprio
clown
, pois,
segundo Lecoq, “Todos somos clowns”. Quando e como o
clown
aparece na sua
vida, Patrícia?
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A “pequena máscara” apareceu no meu caminho, como citei acima, em
uma oficina oferecida por Lau Santos. Sem muito conhecer sobre o significado
dessa oficina, descobri nesse curso para minha surpresa– fazer rir as pessoas
com os meus erros e fracassos. Foi uma revelação na época, pois eu acreditava
que seria uma atriz dramática.
Nos primeiros anos trabalhando com atriz e produtora em Florianópolis nos
festivais, nos hospitais, intervenções, eu acreditava no conceito de Lecoq de que
o
clown
é um valor humano.
Todos temos particularidades que nos fazem únicos em nossa essência, com
a natureza humana de reconhecer em nós e de aceitar que somos “imperfeitos”,
em nossos mais perfeitos ângulos, e rir dos nossos fracassos, dos nossos erros.
Isso nos proporciona uma liberdade sem preconceitos sociais. Todos fomos
crianças, ingênuas e geniais, um dia, atuando no presente imediato do “jogo” de
viver, sem nenhuma máscara. Acreditava que iria encontrar respostas para as
minhas indagações, e, no entanto, saí com muito mais interrogações. Tudo em que
eu acreditava foi colocado de cabeça para baixo, me fazendo rever o mundo com
mais poesia e cada coisa de forma nova e diferente; enfim, tudo o que eu tinha
certeza foi destruído, mostrando toda a minha insignificância, e tudo o que eu não
tinha certeza foi revelado como um caminho ou possibilidade. A beleza da vida, da
arte, da poesia, das formas, do espaço, do movimento, do teatro de forma geral e
toda a humanidade reservada na diversidade cultural e nas máscaras que nos
escondem da nossa verdadeira beleza.
Sabemos que Lecoq trabalhava com as máscaras dos Sartori, escultores
altamente qualificados, que estiveram envolvidos no campo e na pesquisa da
máscara teatral e artística. Amleto Sartori, escultor e poeta, dedicou os últimos
anos da sua vida a pesquisar a origem da máscara artística italiana, a
commédia
dell’arte
. Donato Sartori, após a morte do pai, além de continuar a sua carreira
como escultor, continuou a sua relação com o Piccolo Teatro na Itália, criando
máscaras para importantes diretores europeus, americanos. Destaco Dario
Fo, que trabalhou muito com as máscaras da
commédia dell’arte
a partir dos
Sartori. Foi por usar as máscaras dos Sartori na Escola Lecoq que você se
interessou em confeccioná-las?
Sim, todas as máscaras usadas na Escola Lecoq foram confeccionadas por
Amleto Sartori. Pelo que eu tenho conhecimento, o artista-mascareiro deu de
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presente a Lecoq quando este foi embora da Itália. O meu primeiro contato com
a máscara dos Sartori foi justamente na Escola Internacional Jacques Lecoq, em
2000. Utilizávamos primeiro a máscara neutra, logo após o jogo silencioso no
começo da pedagogia. Foi uma experiência arrebatadora, bastante forte quando
se coloca a máscara pela primeira vez, porém, no meu caso, foi frustrante. Fiquei
tão ansiosa que sem querer peguei uma máscara maior que o meu rosto, que
machucou os meus olhos, e eu não conseguia ver absolutamente nada. Eu não
quis parar o exercício para não prejudicar o meu parceiro de cena, e os meus olhos
se encheram de lágrimas. Quando tirei a máscara, estava chorando. Passei dias
com os olhos vermelhos e decepcionada comigo mesma. Apesar do meu primeiro
contato ter sido decepcionante, a escola era um constante pulsar e a curiosidade
aumentava em todos os sentidos ao redor da vida mesma. Foi onde comecei a me
interessar também pela poesia, pela pintura e pela construção da máscara me
interessava ir mais a fundo e me interessava saber o que havia por trás da
máscara, ir na essência do teatro e, consequentemente, do ser humano.
A pedagogia de Jacques Lecoq é bem clara em seus escritos, tem uma forma
muito especial de ajudar na busca da neutralidade. Segundo Lecoq (2011, p. 63),
“A máscara neutra constitui uma referência para todos”. Você conseguia
durante as aulas sentir essa busca da neutralidade, a calma, o equilíbrio? Como
você se sentia nesses momentos das aulas? Podes nos contar um pouco sobre
isso”?
O conceito de neutralidade se refere a um estado de calma, de equilíbrio,
receptividade e descobrimento. É um corpo que se move justo, com economia de
movimento. É um estado sem conflito interior, uma percepção de sentir ao seu
redor e de reagir sempre como se fosse sempre
a primeira vez
. É um estado de
disponibilidade, de consciência corporal e espacial, como se fosse uma
página em
branco
, onde poderá se imprimir a escritura dramática. Segundo Lecoq (2011, p.
49), a neutralidade “permite olhar, escutar, sentir, tocar as coisas elementares,
com a frescura da primeira vez”. A máscara neutra não deve ser uma meta, mas
um desencadeador de presenças, de ações artísticas, e a busca de si mesmo, além
do nosso “
pequeno eu
”.
Nas aulas eu me sentia como um peixe nadando contra a maré e em
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constantes crises. Na escola os professores nos alertavam que algumas coisas só
entenderíamos depois de alguns anos. E realmente era verdade. Somente quando
nasceu o meu filho, eu pude compreender o significado dessa experiência, quando
o meu filho começou a descobrir o mundo que o rodeava. A frescura no olhar das
coisas vistas pela primeira vez, a consciência de quando ele descobriu as suas
mãozinhas pequeninas, o seu olhar buscando o mundo que o rodeava, foi nesse
período que realmente compreendi o fenômeno do “estado de neutralidade”, no
olhar de uma criança descobrindo o mundo. Tem coisas que até hoje eu vou
redescobrindo pelo caminho da existência e penso “touché”, era isso que a
estavam se referindo.
No trabalho pedagógico de Jacques Lecoq a neutralidade é necessária para
buscar o essencial, muitas vezes escondida em diversas camadas de máscaras
invisíveis que vamos colocando sem perceber no caminhar da vida. A máscara
neutra nos faz descobrir novas possibilidades de acesso ao movimento, através
do trabalho corporal do ator/criador, assim como descobrir a consciência corporal.
Quando o ator encontra esse estado de calma, de disponibilidade, essa página em
branco, estará pronto para tirar a máscara. Lecoq dizia que o trabalho da máscara
neutra termina sem a máscara. então o ator estará preparado para utilizar as
outras máscaras. Portanto, o conceito de neutralidade no teatro hoje em dia está
diretamente ligado à máscara neutra confeccionada por Amleto Sartori em 1948.
Depois da Escola Lecoq, você resolve trabalhar com Philipe Gaulier (nascido em
Paris, em 4 de março de 1943), mestre francês, palhaço, pedagogo e professor
de teatro, fundador da École Philippe Gaulier, prestigiosa escola de teatro
francesa em Étampes, nos arredores de Paris. Estudou com Jacques Lecoq em
meados dos anos 60 e foi instrutor na École Internationale de Théâtre Jacques
Lecoq no final dos anos 70. Sempre atuou também como palhaço. Foi esse lado
palhaço que a atraiu para a Escola Philippe Gaulier? O que na versão de Gaulier
te interessa mais?
Depois do Lecoq eu voltei ao Brasil e comecei a dar aulas na universidade
como professora (substituta) e a dar curso de
clown
e movimento para atores e
grupos de teatro em Santa Catarina. Foi somente em 2010, quando eu estava
fazendo mestrado na Espanha, que tive a oportunidade de me colocar diante do
lado inteligente do “maestro Gaulier”, em Barcelona.
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Contra-argumentando a referência de Lecoq, o discípulo Phillipe Gaulier – na
minha opinião, um dos maiores mestres de
clown
do mundo atualmente – afirma
que não são todas as pessoas que podem fazer
clown
, pois nem todos estão
dispostos a fazer rir com o seu próprio ridículo, com o fracasso.
Conhecendo as duas escolas, e respeitando ambas as pedagogias, eu
pessoalmente me inclino mais para a linha do Phillipe Gaulier. Não acredito que
são todas as pessoas que estão dispostas a enfrentar os seus próprios fracassos,
de se expor ao ridículo e de ganhar a vida fazendo rir. Afinal, essa linguagem o
clown
pede uma coragem extrema de se despir das máscaras que nos
colocamos durante toda uma vida, do desprendimento das nossas máscaras
pessoais, muito arraigadas à pele, o despojamento do que é supérfluo e muitas
vezes difícil de aceitar em si mesmo. Aceitar o fracasso e, ademais, mergulhar na
nossa humanidade muitas vezes miserável, ignorante, ambiciosa, não é tarefa fácil.
Um ofício para valentes. E exige maturidade para enfrentar a si mesmo, a condição
humana. Não são todas as pessoas que deixam crescer/desenvolver a criança que
existe em cada um.
Você tem notícias de quando e como Lecoq conheceu as máscaras de Amleto
Sartori? E, mais especificamente, a neutra, que foi um grande e belo trabalho,
que nos é tão especial?
Claro. Quando Lecoq vai trabalhar com Gianfranco De Bosio, na Universidade
de Pádua, com a possibilidade de unir a sua pedagogia e criação, descobre a
commédia dell’arte
e conhece o escultor e mascareiro Amleto Sartori. A magnífica
parceria desses dois grandes artistas e, principalmente, os esforços de Amleto
resultam na criação da máscara neutra feita em couro – depois de vários estudos
e experimentos. Este conseguiu criar, para o nosso privilégio, pela primeira vez na
Itália, a máscara neutra que conhecemos hoje em dia, utilizada nas mais diversas
escolas de teatro no mundo para o treinamento do ator.
Sobre a máscara neutra, Giorgio Strehler, no artigo “O ofício da poesia”, relata
que Amleto confessa ter sido uma das coisas mais difíceis que enfrentou: “Foi
uma grande fatiga intelectual, uma pesquisa formal voltada para os limites do
impossível, pois, dado o tema, logo percebemos a dificuldade absoluta para a sua
realização. Uma máscara que deveria representar a ausência” (Sartori, 2010, p. 115).
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Quando, onde e como foi o seu contato com a família Sartori e as máscaras de
couro da
commédia dell’arte
?
Eu cheguei em Abano Terme, uma simpática cidadezinha de águas termais,
na província de Pádua, na região de Veneto, em junho de 2017, acompanhada do
meu filho, e foi um mergulhar na cultura da máscara. O Museu Internacional da
Máscara Amleto e Donato Sartori e o Centro da Máscara e Estrutura Gestual
estavam espalhados por todos os cantos do centro da cidade. É praticamente um
patrimônio cultural da cidade através da máscara, um percurso pedagógico e
cultural que transformou Abano em uma capital do teatro, em Veneto. O trabalho
de pesquisa em torno da máscara teatral da família Sartori é reconhecido por
todos os habitantes e, através do Centro de Máscara, Estrutura Gestual e o Museu
da Máscara, atrai turistas do mundo todo. são realizadas diversas atividades
culturais, intercâmbios internacionais e a escola da commédia dell’arte,
transformando a pequena cidade em lugar de troca e acolhimento para os artistas
vindos de todas as partes do mundo para participar do Seminário “Arte della
Maschera”.
Ter a possibilidade de conhecer a origem e a história da
recuperação/retomada da técnica do couro para a construção da máscara na
commédia dell’arte, resgatada por essa família italiana, pioneira na construção da
máscara neutra, e trabalhar com esses artistas de diversas partes do mundo me
estimulavam a seguir a investigação e construir a máscara fabricada em couro
pela tradição das mulheres da família Sartori.
A Escola de Albano Terme, onde você fez curso com as filhas de Amleto Sartori,
confecciona máscaras, mas também trabalha a teoria e o corpo a partir das
máscaras. Você pode nos contar um pouco sobre esse momento tão
importante para quem se relaciona muito bem com as máscaras?
Na primeira semana foi feito um apanhado sobre a história da máscara.
Toda a parte teórica, antropológica e funcional do uso da máscara. Estudamos
filósofos desde Aristóteles, as máscaras gregas até chegar em Roma, na Itália. Vale
a pena ressaltar que Amleto Sartori foi também o responsável por
recuperar/resgatar a tradição da máscara da commédia dell’arte feita em couro.
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Ressuscitou a técnica dos mestres “mascareiros” e fez de um sonho a realidade
de uma tradição que havia se perdido com o tempo não havia documentos
precisos sobre a construção da máscara com a técnica do couro. Depois de muita
pesquisa, um trabalho exaustivo e intuitivo, resgatou com maestria uma tradição
parcialmente (para não dizer totalmente) perdida. Giorgio Strehler relata: “Graças
sobretudo a Amleto Sartori, esta criatura teatral tão cara que retomou do nada,
assim que solicitado por nós, uma técnica perdida no tempo: aquela dos mestres
‘mascareiros’ dos séculos XVI, XVII e XVIII. Ele esculpiu e construiu as suas
primeiras máscaras em couro, após inúmeras tentativas” (Sartori, 2010, p. 118-119).
Você sabe da relação entre o ator Marcello Moretti (primeira família do
Arlequim) e o mascareiro Amleto Sartori? Se sim, como se deu o
relacionamento, sabendo que os atores na época tinham características bem
específicas? Pergunto isso porque você é uma atriz e, com certeza, prestou
atenção nos atores com quem cruzou. Você teve relação tranquila por onde
passou?
A primeira vez que Amleto se encontrou com o famoso ator do personagem
Arlequim foi no Piccolo Teatro, quando ensaiava a peça
L’Amante Militar, de
Goldoni
, do diretor Giorgio Strehler. Amleto relata que, nessa ocasião, tinha levado
a máscara para o ator provar, e Moretti explodiu num ato de fúria “Não se pode
atuar com essa coisa na cara, me esmaga, eu não enxergo... e jogou a máscara no
chão” (Sartori, 2010, p. 135). Depois dessa briga, e da reconciliação feita por Strehler,
nasceu uma amizade que durou toda uma vida entre o ator e o mascareiro, e uma
parceria na construção da máscara do Arlequim da
commédia dell’arte
. Uma
amizade afetuosa, na qual o grande ator Moretti deu importantes contribuições
para a construção das máscaras criadas por Amleto.
Marcello Moretti relutou, no início, em usar a máscara, preferia a maquiagem,
achava que iria limitar os seus movimentos. Giorgio Strehler relata que aos
poucos a máscara foi aceita por Moretti graças à insistência de Amleto. O escultor
criou o Arlequim tipo gato, raposa e touro especialmente para o ator, que
escolheu primeiro a máscara gato, por ser mais ágil, depois passou para a de
raposa e, por último, para a de touro. Depois de certo tempo, ele não conseguia
atuar o seu personagem de Arlequim se não estivesse com a máscara e confessou
ao diretor: “Agora, sem a máscara, parecia estar nu” (Sartori, 2010, p. 119).
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Você pode nos contar exatamente como trabalhavam? Quais os primeiros
passos para chegar até a construção das máscaras? Eles usam o desenho para
ajudar na construção?
O estudo de cada máscara parte de animais? Das
próprias pessoas? Da fisionomia, de características, tipos? De que forma o ator
é envolvido para construir a sua máscara?
Sim. Começamos estudando a fisionomia do rosto. Os tipos de rostos. Os
temperamentos: melancólico, fleumático, sanguíneo e colérico. O carácter e a
personalidade do indivíduo. A postura física, os arquétipos. Foram reveladas muitas
dicas sobre o que deveríamos ou não fazer na criação do desenho da nossa
máscara. Começamos com o trabalho de observação, de atenção, de estudo para
desenhar a máscara no papel. Muito próximo ao trabalho do ator ao construir um
personagem do diretor russo Stanislavski, com a diferença de que estávamos
construindo, em vez de um personagem teatral, o desenho de uma máscara para
ser feita no laboratório e posteriormente utilizada pelo ator. Foi um trabalho de
observação, de estudo dos animais, para encontrar o caminho da máscara de cada
artista. No método do Stanislavski o ator entra antes da construção do
personagem. Na construção da máscara o ator entrará depois.
Na verdade, depende muito de cada pessoa e da ideia
a priori
que cada um
tem da máscara que pretende construir. Alguns vinham com uma ideia da
máscara que iriam construir, outros (no meu caso) não vinham com nada
programado. Para Amleto Sartori, por exemplo, na Escola Lecoq, as máscaras
“Representam caracteres, frequentemente sacados da vida cotidiana”. O
mascareiro se inspirava nos rostos das pessoas que passavam na rua e dos
professores da universidade de Pádua. Também se inspirava, como requer certa
tradição, em personagens da vida política (Lecoq, 2011, p.66).
No entanto, para construir a máscara da
commédia dell’arte
, estudamos
muito os animais, fizemos analogias e questionamos as nossas próprias ideias
iniciais, idealizamos a nossa máscara, desenhamos e construímos histórias em
grupos. Estudávamos minuciosamente os traços do rosto, as emoções, os
movimentos. Fizemos e refizemos várias vezes rascunhos de desenhos até
encontrar algo que nos aproximava da ideia original, da máscara que queríamos
construir depois, no laboratório. O trabalho começa de uma ideia, no interior,
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Entrevista com Patricia dos Santos concedida à Maria de Fátima S. Moretti (Sassá Moretti)
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mental, da observação, do pensamento, da razão, da mente, para depois passar
para a forma exterior e se transformar em realidade, o objeto, a máscara.
Você se considera uma artista construtora de máscaras?
Como você mesma
colocou, quando se constrói uma máscara, na maioria dos casos, se tem uma
ideia do que construir, mas com você não é assim que acontece. Será que é
porque você pensa mais no uso da máscara do que na sua construção?
Uma escultora de máscara? Não. Eu não tenho essa pretensão. Creio que sou
uma eterna aprendiz em todos os âmbitos da vida. Me encanta construir máscaras,
mas me considero uma aprendiz sempre e em todos os momentos. Sou eterna
aprendiz da máscara tanto no teatro, na vida, na psicologia, na poesia, na história,
na arquitetura, na cultura...
Confesso que me fascina usá-las, descobrir o movimento adequado para
cada uma, o movimento justo, orgânico, dar vida a esse objeto e ensinar como
usá-las é para mim um desafio, em que me considero com o olhar sempre de
eterna aprendiz e, em alguns raros momentos, quando me é permitido,
humildemente maestra.
Quando chegamos ao laboratório para a construção da máscara já tínhamos
o desenho feito, estudado, analisado e pronto para a sua confecção.
Eu, como já comentei, não tinha uma ideia preconcebida da máscara quando
fui para Abano. Deixei ser conduzida pelo olhar mais experiente da Paola e da
Sarah no processo de criação do desenho da máscara. Todo esse trabalho prévio
de estudo mental, técnico, racional, através do processo de criação da
personagem, revelava, particularmente para mim, uma aventura na construção da
máscara de couro, no misterioso caminho dessa particular técnica italiana. Depois
de uma semana de estudos teóricos, com toda a informação assimilada e as ideias
mais definidas, o desenho ficou pronto. A minha máscara da
commédia dell’arte
,
eu a batizei de
Bonifácia
. Ela era colérica, apaixonada, um pouco arrogante,
interesseira, namoradeira, com um temperamento forte, contrastando com um
lado infantil de menina, ingênua, que gostava de brincar. Era um tipo
zanni
: uma
servente, engraçada, esdrúxula e um pouco bufônica. O animal que descobrimos
depois de várias intentos e descartes foi – para a minha surpresa o hipopótamo.
Era idêntico ao trabalho de estudo de personagens de Stanislavski, porém, em
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Abano, era para a construção da máscara de
commédia dell’arte
. Depois dessa
fase inicial, de estudo teórico e da criação do desenho, chegava a hora de colocar
a mão na massa, ou seja, na argila. E fomos finalmente para o laboratório, construir
a máscara.
No sentido da construção, podes nos contar com detalhes essa construção,
esse viver com a argila? Isso porque o construtor artista não constrói de
qualquer forma; ele se coloca dentro da argila, para revelar dali o personagem
idealizado.
Na primeira fase do processo no laboratório modelar a argila é feita o que
chamamos
base
em uma espécie de bandeja de madeira quadrada. Ali colocamos
mais ou menos 20 cm de altura de argila, para logo após construir como se fosse
uma escultura o rosto e, por fim, a máscara. E começamos a modelar a argila
para acercar-nos ao rosto humano, pulsando, colocando, moldando. No início, a
argila vai tomando forma desconexa e demonstra que o imaginávamos nem
sempre corresponde à realidade igual à vida mesma. Essa massa pastosa vai
nos revelando que o rosto refletido na terra tem os seus próprios caminhos e
mistérios insondáveis. A argila nos desafia a pulsar e a pensar no que se está
modelando. É um processo que vai do interior ao exterior. Da imaginação à
realidade. De dentro para fora. De cima para baixo. Vamos nos mirando na argila
(que se transformará em máscara) e nos reconhecendo na ideia, na forma. Um
pulsar e tirar na argila, que vai formando o nariz, a face, a testa e os olhos da
máscara.
Foi nesse instante que comecei a dar vida a Bonifácia: amassava a argila até
torná-la flexível e dócil. A realidade é que modelei até a exaustão, me sentia
esgotada em alguns momentos do processo. Afinal, eu tinha que transformar o
desenho em realidade a partir de um monte de argila. E era desafiador, porém,
como sei que o caminho tem de ter um certo risco para se aproximar
minimamente de uma “obra de arte”, arrisquei um pouco mais. Desde que não
seja um erro muito grande, o que nos levaria a uma tragédia, o erro nos diferencia
da cópia diária. A máscara tinha que nascer de um “pulsar”, de uma oposição e de
uma pitada de imaginação essencial para qualquer processo de criação humana.
E assim foi, com a mão na massa e o coração batendo em descompasso que ela
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mostrava a sua face mais engraçada na argila modelada.
Nesse primeiro dia parece que não encontraria a forma, parecia uma bola de
massa. No segundo dia consegui ver um pouco o seu rosto e tentava imaginar
como ficaria aquela que estava diante de mim. Um espelho. Era ela feita de
barro, água e pulsar, de dentro para fora, de cima para baixo. Era Bonifácia
nascendo nas minhas mãos e diante dos meus olhos. Paola e Sarah vinham avaliar
de tempo em tempo. Como essas parteiras da vida que nasce, que nos mostram
o caminho, e só o fato de saber que elas estão ali nos dá um pouco de confiança
de que existe vida pulsante – ou máscara – além de todo aquele monte de barro,
Bonifácia, ainda disforme, nascendo nas mãos de “mascareira iniciante”, como
mãe de primeira viagem que sou e sempre serei. Tinha certo temor se estava
fazendo o correto para a máscara funcionar, mais tarde, de uma forma teatral.
Será que ela conseguirá se expressar? Será que encontrará o seu caminho na
expressividade? Terá a força que eu desejo que tenha? Deixará por esse orifício
passar o brilho que desejo e a luz que almejo? Será que irá funcionar como
máscara? Será que terá vida? Será que terá movimento? Será que será? Confesso
que o meu medo maior era ela se tornar uma caricatura. Todas essas perguntas
que, como mães, nos fazemos quando estamos grávidas, a máscara Bonifácia me
fazia questionar como mascareira. Uma coisa era certa: éramos curiosas as duas
(ou aqui, nesse caso, as três).
Acredito mais no ator do que nos objetos, embora eu trabalhe muito com os
objetos comuns, objetos máscaras e objetos bonecos. A meu ver, os objetos
transmitem vida a partir da energia do ator. O que me dirias se eu te dissesse
que a tua máscara pode ser a melhor do mundo, mas, se não souberes usá-la,
nada acontecerá? Podes falar um pouco sobre isso?
Concordo plenamente contigo. Uma máscara pode ser tecnicamente bem-
feita, inclusive esteticamente, bonita aos olhos, mas impossível de ser utilizada ou
posta em movimento. É preciso que sua forma encontre expressividade graças ao
corpo do ator. Porém, uma boa máscara ajudará bastante o trabalho do ator. Uma
máscara bem confeccionada auxiliará o jogo. É uma sinergia do objeto e o humano.
Nesse caso, a arte e a criatura ou criação. Tudo e todos estamos conectados. Se
conseguimos essa conexão entre ator e máscara, a magia poderá acontecer mais
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facilmente. Lecoq (2011, p. 66) descreve assim: “Entrar numa máscara é sentir o
que a fez nascer, reencontrar o fundo da máscara, buscar em si mesmo a vibração
da máscara. Depois do qual será possível atuar desde o interior”. Com certeza o
trabalho do ator é essencial, no entanto acredito que uma máscara bem
confeccionada poderá auxiliar bastante no processo do ator. Essa é uma das
minhas grandes paixões, auxiliar o ator nessa descoberta, descobrir o há por trás
da máscara, o que de profundo em cada ser, quais movimentos exigem a
máscara e o brilho que emana do olhar de cada ator através desse objeto. Nesse
caso, a máscara funciona como pedagogia de uma consciência corporal do ator –
tema da minha dissertação de mestrado – com a máscara neutra. Por isso o meu
interesse em conhecer como se confeccionava a máscara, especialmente com a
família Sartori, que é a criadora das máscaras utilizadas no Lecoq. Essa é a origem
da máscara neutra que conhecemos hoje em dia e os pioneiros nessa técnica.
Ademais, somos cientes também de que vários objetos podem servir para
ser utilizados como máscaras. Por exemplo, na Escola Lecoq nós utilizávamos o
que chamamos de as
máscaras utilitárias
máscara de
hockey
sobre o gelo, do
soldador, do esquiador... como trabalho de treinamento do ator. Vários objetos
podem servir para ser utilizados como máscaras. Vai depender da qualidade do
movimento de cada ator para dar vida à máscara ou, nesse caso, a objetos
utilizados como máscara.
Depois da argila, qual foi a próxima etapa do processo da construção da
máscara? Para chegar até a tua Bonifácia, os moldes positivo e negativo?
Sassá, o mais inovador e surpreendente nessa etapa foi descobrir que eles
construíam ao contrário do que imaginávamos nós, a maioria dos artistas que
participavam do laboratório a máscara de papel machê ao revés, ou seja, a
papietagem era feita dentro do “negativo”. A técnica era diferente e reveladora para
os que tinham experiência na construção da máscara, pois eram feitos dois
moldes: um deles era feito com lâminas de latinhas de refrigerantes cortadas em
quadradinhos de 1 cm, molhadas, e o outro com uma camada fina de gesso. Entre
os dois moldes – um para a máscara de papel machê e o outro molde para fazer
o positivo da máscara na madeira uma fina camada de tinta vermelha para
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marcar o limite entre eles. Uma técnica inovadora, laboriosa e artesanal, que
requeria muita atenção e cuidado. Eram segredos bem guardados, como se fosse
uma alquimia, onde se transformaria todo o conhecimento em ouro puro ou,
literalmente, em máscaras de couro. Nessa etapa foi construída a Bonifácia no
tradicional papel machê: a primeira camada era feita de papel secante com água;
a segunda (e última camada) de papel sutil, pincelado com cola; a terceira, papel
jornal; e a quarta com papel grosso molhado na cola. Detalhe é que as camadas
não podiam se sobrepor uma sobre a outra. Era um processo minucioso e
delicado. E Bonifácia estava ficando engraçada e, de certa forma, a meu ver, bonita.
Depois de cortada e pintada, nasceu Bonifácia no papel machê. Simpática e cheia
de graça.
Na escola da família Amleto Sartori, onde você construiu Bonifácia, sua
personagem, eles também ensinam o trabalho de esculpir a madeira para a
confecção das máscaras em couro. Você conseguiu se envolver nesse trabalho
também? Sabemos que é mais difícil trabalhar com a escultura em madeira.
Mas sei que você construiu sua Bonifácia e passou por essa fase. Podes nos
contar um pouco sobre esse momento, que acredito especial? Sabemos que
esse molde feito tão especialmente em madeira serve para receber um pedaço
de couro e transformá-lo em personagem. Percebendo o carinho com que você
trata a sua máscara, gostaria de saber sobre o processo de construção do
couro, o qual foi transformado na sua preciosa Bonifácia?
Sim, foi bem especial. Foi nesse momento que começamos a escolher a peça
de madeira em demonstrações ao ar livre, em contato direto com a natureza, na
terra de Veneto, com o conhecimento das artistas mascareiras. Eram feitas “aulas-
exposição”, em que explicavam que tipo de madeira usar, de que forma e como
usar. E terminava essa etapa quando cada artista escolhia uma peça de madeira
para começar o trabalho de esculpir. Nesse processo nos ajudaram também dois
maravilhosos escultores, Mateo Schiavo e Paolo Trombetta.
Eu não tinha ideia de como começar esse laborioso trabalho de escultura da
máscara na madeira. Nessa fase, ao contrário da argila, que pulsávamos para
“colocar”, na madeira pulsávamos para “tirar” o excesso, as sobras. Eram dois
extremos de um trabalho de escultor de máscara que se revelava, e o
conhecimento da geometria se fazia necessário como uma arquitetura da
máscara. Cada toque se tornava o tamanho, a forma, o espaço entre o nariz e a
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boca. Tudo minuciosamente estudado, com instrumentos necessários
(compassos, réguas...). No início, parecia um mistério. O que inicialmente
construímos na argila, no gesso, tínhamos que repetir de forma idêntica na
madeira. Era a arte da máscara, geometria, ciência e pura magia para os meus
sentidos. Eu tive receio de estropear o troço de madeira com os meus talentos
recém-descobertos de aprendiz de escultora de máscara, porém era monitorada
pelos olhares atentos dos artistas escultores. Inevitavelmente eu era sempre a
última a terminar as etapas, todos iam na frente, e eu apavorada de não conseguir
chegar a tempo com a escultura. Afinal, era quando iria fazer a tão sonhada
máscara de couro. A minha querida Bonifácia, uma máscara da commédia dell’arte
italiana em couro. Toda uma preciosidade de garota.
Sim, Sassá, eu não escondo o carinho que tenho pela minha máscara. Era um
momento esperado por vários artistas do seminário. Paola e Sarah nos fizeram
uma aula-demonstração do couro. Nessa etapa, a força e a obstinação se faziam
necessárias. Igual ao parto natural, quando empurramos, empurramos, até chegar
o momento da covardia – momentos antes do nascer, quando temos vontade de
desistir. Para trabalhar com o couro também temos de ter força para subordiná-
lo à nossa vontade, forçar mesmo, torturar o pedaço de couro destinado à
confecção da máscara. Uma técnica que exige força, paciência para amolecer e
tornar flexível o couro para a construção da máscara.
Mergulhamos na água morna, para que nos obedecesse, para torná-lo mais
flexível. As cores do couro ficavam diferentes quando mergulhado. Eu gostaria que
fosse mais escuro, porém, por obra do destino, ou raiva do boi, me foi concedido
um couro mais claro. Bonifácia seria mais clara do que eu imaginava, porém o
importante é que estava a caminho. Creio que, no final, a cor do couro foi o ideal-
perfeito.
Depois passamos para o que eu denominei de
crucificação do couro
, ou seja,
quando ele é colocado sobre a madeira que tinha sido esculpida durante as duas
últimas semanas e pregado com pequenos pregos especiais pelas várias mulheres
mascareiras que chegaram ao laboratório naquela última semana, para nos ajudar
no nosso ofício de mascareiro.
Nessa fase de criação, chegaram ao ateliê Lidia, Tereza, Ornella... Eram
mulheres da região, e amigas que tinham trabalhado durante muito tempo com
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Donato Sartori, Paola e Sarah. Eram como uma grande família de mascareiras
italianas. Todas muito habilidosas, amorosas e simpáticas.
Elas chegaram (como ajudantes de uma parteira), se sentaram e colocaram
um tecido sobre as pernas, a matriz da madeira esculpida, e iam nos ensinando, a
cada artista, individualmente, como deveríamos fazer o laborioso e complexo
ofício da confecção da máscara. Colocar o couro banhado, aderir a superfície na
escultura de madeira e martelar os preguinhos metálicos de cobre na máscara.
Isso me recordou a cena da peça “Yerma”, de Garcia Lorca, sobre a tragédia
da esterilidade e o desejo maternal frustrado de ter um filho. Na peça do
dramaturgo espanhol a cena se passava entre as mulheres lavando roupa no sul
da Espanha; no laboratório, na pequena cidade de Abano Terme, eram mulheres
com um pano no joelho construindo máscaras, dando vida a um objeto inanimado.
Na obra de Lorca existia falta de amor, no laboratório sobrava, pois as mulheres
falavam do amor por Donato Sartori, que tinha partido, infelizmente, fazia um ano.
A dor e a falta do maestro, do pai, do esposo e do amigo, ainda eram sentidas no
ar. Era amor ao ofício das “mascareiras” ao sagrado que habita em todas as
mulheres. Eram senhoras, divertidas, cúmplices num ato de amor e lembrança ao
maestro. Paola, Sarah, Tereza, Lidia, Ornella... todas mulheres fazedoras de
máscaras que tinham a força de continuar a tradição, o conhecimento da arte e o
ofício da máscara nas mãos e no coração.
As máscaras expostas pelo ateliê eram histórias de árduo esforço, estudo,
sabedoria, técnica e amor. De uma tradição ressuscitada por Amleto como regalo
aos homens de teatro, que vinha sendo perdida/esquecida e que foi recuperada
por esse artista da máscara. Donato, filho de Amleto, ampliou as suas pesquisas,
e a partir de 2016, com a sua partida repentina, essas mulheres guerreiras
mascareiras – deram bravamente continuidade a essa tradição.
Depois de estar a máscara seca, foi tirada da matriz e começou o trabalho
de acabamento. Tinha que furar as laterais, passar o verniz e, por último a minha
etapa favorita –, passar para a sala de ensaio no centro da Abano Terme com o
ator do teatro Piccolo de Milano Giorgio Bongiovanni.
Por fim, a máscara estava pronta, tinha nascido Bonifácia, lá estava ela, mais
engraçada do que eu havia imaginado, mais tonta do que eu havia pensado. Não
era uma beleza de perfeição acadêmica, tampouco retórica – que seria o fim para
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uma máscara. Era uma forma despojada, como criança, dessas que estão prontas
para brincar. Simples e bonita, imperfeita como todo ser humano. E perfeita para
mim.
Então, como havíamos comentado, a máscara precisa estar viva em cena,
claro. Sendo assim, gostaria que nos falasses um pouco como foi o momento
de trabalhar a sua máscara em cena? Como reagiu a Bonifácia, estou louca para
conhecer. Como foi o processo de treinamento com o ator de teatro, no Picolo
de Milano? Quem eram os professores e qual a metodologia utilizada por eles?
O processo de treinamento do ator com a máscara se iniciou com a utilização
da máscara neutra e das expressivas, iguais às que eu já havia utilizado na Escola
Lecoq, com o artista Fabian Gysling, da Bélgica. Durante uma semana fomos
guiados com maestria pelo ator do Piccolo Teatro de Milão Giorgio Bongiovanni,
que atua mais de 30 anos no espetáculo “O servidor de dois amos”, de Carlo
Goldoni, interpretando o personagem Pantalone.
No processo de treinamento com a máscara, Bongiovanni nos fez provar
várias máscaras da tradição da commédia dell’arte italiana (todas confeccionadas,
óbvio, pelos Sartori) com a técnica dos movimentos de cada personagem,
trabalhamos as improvisações inerentes a essa linguagem com todo um
conhecimento de um verdadeiro mestre.
Experimentamos as cinco máscaras típicas da commédia dell’arte: os dois
velhos (Pantalone e Doutor) e os três criados (Zanni, Arlecchino e Brighella).
Pantalone, comerciante veneziano rico e mesquinho. E o pedante Doutor da
cultura de Bolonha. Zanni é a máscara de servo mais antiga, e Brighella é a velha
serva, astuta e ladra. Arlequim é o servo mais ingênuo e jovem. Também
trabalhamos com Serveta, uma jovem criada inteligente. Cada qual com gestos e
movimentos específicos, de cada personagem da tradição italiana. Toda uma
tradição à disposição da criação, que nos foi transmitida com generosidade.
Após esse trabalho técnico dos movimentos com a máscaras da commédia
dell’arte, começamos a trabalhar os caminhos dos movimentos das máscaras
confeccionadas por nós. Concentramos nos movimentos da máscara e da contra
máscara.
Éramos provocados a reagir em várias direções diferentes dos movimentos
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e, como construímos meia-máscara, podíamos responder a algumas perguntas
para revelar as características do personagem e descobrir os movimentos de cada
máscara. A commédia dell’arte é um território de pleno jogo, e tudo é urgente.
A contramáscara é quando trabalhamos exatamente o contrário do que a
máscara sugere. Por exemplo, a minha máscara era uma servente, velha,
esdrúxula, estranha, interesseira trabalhamos de forma contrária ao que a
máscara aparenta, os movimentos vão em outra direção; ela se revelou uma
personagem mais jovem, uma adolescente, ingênua, mais alegre, mais simples. A
contramáscara exige muito esforço e sensibilidade do ator.
E, finalmente, preparamos as cenas para apresentar em um evento aberto ao
público no Museu Internacional da Máscara. Eu conseguia sentir a presença dos
Sartori com a batuta do Giorgio Bongiovanni e Fabiano Gysling no último dia do
seminário.
Trago uma simples anedota. No dia da apresentação, todos deveríamos usar
roupas pretas (você sabe, a cor da roupa preta neutra é sempre quase uma
exigência para a utilização do treinamento com a máscara). Como eu não tinha
levado roupa preta, Sarah Sartori, gentilmente, me emprestou uma camiseta do
pai dela. Foi uma honra para mim poder usar a camiseta do saudoso Donato
Sartori no dia da gala. Um presente dos deuses.
Atuar com a máscara Bonifácia naquele espaço também era a minha maneira
singela de respeitar a tradição e de agradecer à vida e a essas mulheres uma
maneira simbólica de me despedir do museu das máscaras de Abano Terme e da
família Sartori.
Sabemos que os encontros com teatreiros, principalmente italianos, são
regados a muita comida e alegrias. Além das apresentações finais, houve algum
ritual de encerramento entre os artistas participantes dessa experiência?
Sim, teve uma grande festa com muita comida, bebida, música, dança,
artistas italianos e estrangeiros ao ar livre, no próprio laboratório (e casa) da família
Sartori. Foi o último evento, para finalizar toda essa incrível experiência com a
máscara e a cultura italiana.
Tínhamos preparado uma festa, como um
Ritual de Encerramento
, afinal
todas as coisas importantes entre o céu e a terra devem ser sagradas. E lá estava
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eu e o meu filho Kim (que na época tinha 9 anos) para festejar a vida pulsando ao
redor de uma fogueira. Bonifácia ficou guardada, com cuidado, dentro de uma
maleta, esperando para viajar no dia seguinte para a Hungria. Sentia-me parte de
algum evento histórico, em que homens de grande valor do teatro tinham passado
por ali e deixado um rastro de algo tão essencial a ressureição da máscara de
couro da commédia dell’arte. E era incrível como nos sentíamos realizados nesse
final. Como se algo nos conectasse ao divino ser que por trás das máscaras
que vamos deixando cair – se conseguimos avançar – ao longo do caminho.
Estávamos todos felizes. Uma felicidade de nos encontrar, no presente que
nos foi concedido, de passar por essa experiência juntos e, por fim, sem máscaras.
Dançávamos, conversávamos sobre toda a experiência que vivenciamos juntos
nesse seminário, sobre o processo da criação das nossas máscaras. Tínhamos que
deixar uma das peças construídas por nós para o laboratório, e eu deixei o positivo
do meu rosto e espero ter deixado também um pouco o positivo do meu pulsar.
Era a última noite de lua cheia em Abano Terme, e cada um voltaria para a
sua vida, suas histórias em países diferentes, cada um com as suas máscaras
feitas orgulhosamente de couro, os seus positivos, negativos, madeira talhada e,
principalmente, no coração, a lembrança das mulheres da família Sartori as
mulheres mascareiras de Abano Terme.
Alguma coisa mais forte te chamou a atenção quanto a essas mulheres de
Abano Terme, o fato de serem mulheres, filhas de um homem tão forte, um
artista?
Recordando agora, depois de 4 anos dessa experiência, no último dia uma
fogueira no meio da festa me fez trazer à memória o “fogo sagrado” dos índios
americanos, o elemento que faltava para fechar a alquimia, que revelava que em
mim ainda ardia o desejo de viver e de atuar, de fazer nascer uma simples
máscara, de trazer a Bonifácia à luz do dia e de mostrar essa força feminina que
existe dentro de cada uma de nós mulheres, e pulsar pelos nossos sonhos. Foi
uma noite de pura magia. Dessas experiências que nos fazem ter a certeza de que
estamos aqui para “des-cobrir” algo essencial ou “des-mascarar” o supérfluo.
Foi como um ritual sagrado, em que a máscara era o objeto que nos unia,
que nos fez atravessar países para nos encontrar. Como um milagre, um encontro
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de almas ancestrais que nos revelava a técnica, o estudo, a pesquisa, a criação, a
entrega, as tensões, o pulsar, o empurrar, também o desistir e o tentar novamente,
e, por fim, terminar ali todo um processo de construção da máscara de couro. A
partir de uma ideia, chegar ao jogo teatral e ao fogo final.
Com a força desse objeto gramaticalmente feminino que simboliza o teatro
e a aprendizagem que tive com essas mulheres de Abano, que me ensinaram que
o amor continua depois da morte, que podemos transformar argila, madeira, papel
e couro em máscaras como formas de criação, aprendi a olhar em outras direções,
a olhar por trás da máscara o horizonte à nossa frente, o que, às vezes, não
conseguimos enxergar quando estamos tão inseridas em sua prática.
O teatro e a vida nos proporcionam encontros extraordinários, assim como
este com a nossa Sassá Moretti, e nos fazem seguir viagem com amor, com um
pouco mais de sabedoria, um pouquinho mais de técnica, mas, principalmente,
com mais perspectiva na humanidade em que habitamos e no ser divino que
reside por trás de todas as máscaras, que, por muitas vezes, não nos atrevemos a
explorar.
Figura 02 Patrícia dos Santos e Sassá Moretti no Museu de Cervantes em Alcalá de Henares
Fonte: Imagem cedida por Patrícia dos Santos, 2009
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Referências
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Apelos
. Trad. J. R Falero. São Paulo: Perspectiva, 2013.
FO, D.
Manual mínimo do ator
. Franca Rame (ORG). 4a ed. São Paulo: Senac, 2011.
LECOQ, J.
O corpo poético
: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Senac,
2011.
SACHS, C. M.
A metodologia de Jacques Lecoq
: estudo conceitual. Florianópolis:
Udesc, 2004.
SARTORI, A.; SARTORI, D.
A arte mágica
. Museu Internacional da Máscara. Curadoria
de Carmelo Alberti e Paol Piizzi. Abano Terme Italia. Trad. Maria de Lourdes Rabetti
(Beti Rabetti), 2010.
WYLIE, L. Na Escola Lecoq descobri meu próprio clown.
Psicologia
, Paris, n. 43, p.
17-27, 1973. (Trad. José Ronaldo Faleiro).
Recebido em: 01/04/2024
Aprovado em: 20/05/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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