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Curadoria e colonialidade: contradições no
processo de descolonização da MITsp
Daniel Vianna Godinho Peria
Para citar este artigo:
PERIA, Daniel Vianna Godinho. Curadoria e colonialidade:
contradições no processo de descolonização da MITsp.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 52, set. 2024.
DOI: 10.5965/1414573103522024e0201
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Daniel Vianna Godinho Peria
Florianópolis, v.3, n.52, p.1-26, set. 2024
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Curadoria e colonialidade: contradições no processo de descolonização da
MITsp1
Daniel Vianna Godinho Peria2
Resumo
Como pensar a curadoria em Artes Cênicas a partir de teorias e experiências na
periferia do capitalismo? Para isso, as edições de 2016 a 2020 da Mostra Internacional
de Teatro de São Paulo serão analisadas a partir do esquema de denúncia das
heranças coloniais e anúncio da descolonização. O campo curatorial se revela como
território em disputa, no qual convivem imposições institucionais do mercado
artístico e pressões de movimentos sociais interessados na transformação do
mundo como o conhecemos.
Palavras-chave
: Curadoria em artes cênicas. Decolonialidade. Festivais
Internacionais de Teatro.
Curatorship and coloniality: contradictions in MITsp’s decolonization process
Abstract
How to approach curation in the Performing Arts through the lens of theories and
experiences from the periphery of capitalism? This study addresses this question by
analyzing the editions of the Mostra Internacional de Teatro de São Paulo from 2016
to 2020, using a framework that critiques colonial legacies and anticipates
decolonization. In this context, the curatorial field emerges as a contested space
where institutional pressures from the art market intersect with the demands of
social movements aiming to transform the world as we know it.
Keywords:
Curating in performing arts. Decoloniality. International theater festivals.
Curatoría y Colonialidad: contradicciones en el proceso de descolonización del
MITsp
Resumen
¿Cómo pensar la curaduría en Artes Escénicas a partir de teorías y experiencias en
la periferia del capitalismo? Para ello, se analizarán las ediciones 2016 a 2020 de la
Muestra Internacional de São Paulo desde el esquema de denuncia de las herencias
coloniales y anuncio de la descolonización. Así, el campo curatorial se revela como
un territorio en disputa, en el cual conviven imposiciones institucionales del mercado
artístico y presiones de movimientos sociales interesados en la transformación del
mundo tal como lo conocemos.
Palabras clave
: Curaduría en artes escénicas. Descolonialidad. Festivales
internacionales de teatro.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Pedro Vianna Godinho Peria. Doutorando
e Mestre em Administração Pública e Governo - FGV EAESP. Graduando em Letras (Linguística e Português)
pela Universidade de São Paulo (USP). http://lattes.cnpq.br/7914540221550944
2 Graduando em Licenciatura em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Educador do Cursinho
Popular Ruth de Souza, coordenado pela Profa. Dra. Maria Lucia de Souza Barros Pupo.
periadaniel20@usp.br
http://lattes.cnpq.br/0761036375233181 https://orcid.org/0000-0002-9438-5575
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Há algo que passou e não passou
O cenário teatral brasileiro sempre foi marcado pela influência estrangeira,
seja por companhias ibéricas, que se apresentavam na América Portuguesa
durante o período colonial, seja por companhias francesas e italianas, que
ocupavam os tablados durante o século XIX (Faria, 2012). A partir do fim do século
passado, um novo agente e um novo formato passam a reger o sistema de
circulação de espetáculos: as/os curadoras/es e os festivais internacionais. Se,
antes, a figura central era o programador dos teatros, que comprava
apresentações de peças estrangeiras para compor a temporada a partir dos
princípios de sucesso de público e preenchimento da grade de atrações, agora, o
curador ganha centralidade.
Podemos, portanto, pensar que o programador está ligado a funções mais
comerciais, pois tem uma relação mais direta com o mercado. o
curador deve se perguntar por que determinados espetáculos foram
escolhidos em detrimento de outros; qual a relação que eles têm com o
conceito do festival em questão; e como as peças se relacionam e
evocam um discurso entre si (Rolim, 2015, p. 36).
Esse processo de transformação do sistema internacional de teatro não é
uma trajetória retilínea de superações, mas é composto por rupturas e
continuidades em relação aos modelos anteriores. A curadoria propõe outra lógica
em relação à programação, na medida em que prioriza as interações das obras
entre si, entre o público e entre a cidade. Formado por um olhar voltado para as
relações entre obra, território e sociedade, o pensamento curatorial se diferencia
da programação ao expandir seu olhar para além da obra, situando-a em um
contexto.
Contudo, a curadoria de festivais repete os padrões coloniais de circulação
de espetáculos existentes no modelo de programação. Em São Paulo, festival
internacional de teatro se tornou sinônimo de festival com alguma obra europeia,
da mesma forma que internacionalizar uma obra brasileira é igual a exportá-la
para Europa (Costa, 2021). Nessa geografia, o mundo fica reduzido a uma única via
de troca, na qual a ex-colônia comercializa com a ex-metrópole segundo os
parâmetros estéticos e financeiros da última. Dessa maneira, os diálogos entre
países do Sul Global ficam reduzidos a um mero apêndice do circuito de
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internacionalização, de modo que:
a história moderna de relações desiguais entre o Norte global e o Sul
global tem um peso tal que questionar e desafiar a zona de contacto tal
como esta se apresenta terá de ser a primeira tarefa do trabalho de
tradução. Aqui reside a natureza descolonizadora dos encontros a
promover (Santos, 2018, p.276).
Entendendo a potencialidade dos encontros e das relações que a curadoria
pode instaurar, o presente artigo parte desse ponto de vista para traçar as
heranças e as rupturas com a colonização presentes na Mostra Internacional de
Teatro de São Paulo (MITsp). A discussão tem como base os estudos decoloniais:
compostos por uma gama de abordagens que variam espacial e temporalmente,
mas que se unificam em torno da superação das feridas produzidas pelo
colonialismo político, econômico e epistemológico. Enquanto perspectiva
acadêmica, os estudos decoloniais têm suas origens em meados do século XX,
com as contribuições de Aimé Césaire, Frantz Fanon, Edward Said e Ranajit Guha
(Elizalde, Figueira e Quintero, 2019). O debate decolonial tem ampliado seus
campos de discussão nos últimos anos, criando um conjunto de autoras/es
contemporâneas/os das mais distintas áreas de pesquisa e partes do globo.
Dentro desse grupo, se destaca a contribuição de Jota Mombaça, socióloga e
performer potiguar, para quem
a única forma de pensar descolonização de uma maneira realmente
poderosa é não pensá-la como metáfora. Ou seja, não pensá-la como
significando outra coisa que não objetivamente a transformação das
relações materiais e políticas do como a gente se organiza e de como a
vida e sociedade são organizadas. Para que faça sentido a gente conversar
sobre isso, e não seja um termo - digamos assim - que na moda
em certos ambientes, para que ele seja de fato uma ferramenta que pode
levar a gente para algum lugar (Mombaça, Quebrada, Duart, 2021).
Mombaça nos instiga a viver a decolonialidade enquanto
práxis,
uma vez que
o diagnóstico da continuidade entre colonialidade-modernidade no sistema
produtivo das Artes Cênicas nos impulsiona a pensar prognósticos decoloniais
para a curadoria. Essa atitude, ao mesmo tempo inventiva e demolidora, nos
aproxima do pensamento pedagógico de Paulo Freire, para quem “não há anúncio
sem denúncia, assim como toda denúncia gera anúncio. Sem este, a esperança é
impossível” (Freire, 1976, p. 59). Sendo assim, quais são as rupturas com o passado
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colonial que a curadoria em Artes Cênicas pode criar? Como a internacionalização
do teatro brasileiro pode se dar de maneira transformadora e anticolonial? Como
espaços de internacionalização, como mostras e festivais, podem tensionar e
friccionar as desigualdades globais?
Uma vez que a curadoria se configura como uma idealização que se
concretiza no evento, para responder a essas perguntas é necessário observar
casos específicos cuja equipe curatorial buscou criticar os padrões coloniais da
cena. Nesse sentido, a MITsp se mostra um caso interessante por procurar inserir
em sua programação atividades e obras que questionam diretamente a
colonização desde 2016. Ao escolher um festival de médio porte que participa do
circuito internacional de circulação de espetáculos, não pretendemos encontrar
situações homogêneas, nas quais a descolonização seria realizada plenamente,
mas casos em que há tendências decoloniais juntamente com aspectos coloniais.
Assim, não se espera chegar a uma definição unívoca do que pode ser uma
curadoria decolonial, uma vez que estaríamos criando um conceito universal a
partir de um caso específico de uma capital, excluindo as contribuições que outras
experiências curatoriais poderiam agregar e tensionar nesse ponto de vista. O que
este artigo aponta são possíveis aproximações entre curadoria e decolonialidade,
tanto a partir da teoria quanto da prática, evidenciando as contradições e conflitos
que podem surgir desse encontro.
Mergulhando na complexidade do caso
Como estudar acontecimentos complexos, compostos por eventos com
propostas e formatos diversos, cujos únicos registros são breves descrições ou
vídeos curtos? Diferentemente de um espetáculo, que pode ser inteiramente
gravado e assistido repetidamente, a edição de um festival ocorre apenas uma vez
e é mais do que a soma das atividades programadas. Também fazem parte de sua
composição os acontecimentos não planejados, os trânsitos entre os espaços, os
momentos de convívio e as contaminações provocadas pelos territórios que ele
ocupa.
O presente artigo se depara com alguns obstáculos para analisar a MITsp, da
qual participei de algumas de suas atividades a partir de 2016. Portanto, os
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programas e textos curatoriais, as críticas publicadas e as entrevistas realizadas
com as/os curadoras/es serão fontes privilegiadas para recuperar a experiência
desses acontecimentos. Além disso, a observação das gravações de espetáculos
que não assisti presencialmente permite, mesmo que distante, a análise das
relações estabelecidas entre as obras.
Buscando esboçar os direcionamentos que o pensamento sobre a
descolonização da curadoria tem tomado, realizei uma revisão bibliográfica de
artigos, dissertações e teses que abordam essa perspectiva. Ao todo, foram 45
textos analisados no campo das Artes Cênicas e Visuais, escritos entre 2012 e 2021.
Organizei os apontamentos das/dos autoras/es em dois polos dialeticamente
complementares (Esquema 01). Não pretendo estabelecer classificações
estanques sobre as operações conceituais trazidas pelas/os autoras/es, pois é
preciso entender as subdivisões não como categorias taxonômicas - apesar de
este ser um risco constante às sistematizações - mas como partes integradas.
Esquema 1 - Vetores de força dos artigos revisados. Fonte: elaboração do autor.
Os textos recorrentemente faziam críticas à disparidade entre os tratamentos
de artistas do Norte e do Sul, disparidade que também se espelha no tratamento
entre os ditos “artistas” e os “artesãos”. Denunciam em diferentes níveis as
heranças coloniais que dividem o campo estético e o globo terrestre entre a arte
erudita e a popular. Dentre as denúncias, os artigos apontam para a recente
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captura do termo decolonial, a partir da inserção exotificante de artistas
subalternizados, destacando os limites que um discurso crítico à colonização pode
encontrar dentro de instituições de Arte.
No outro polo, as/os autoras/es apostam na capacidade da curadoria agir
pelas brechas, entrando nos sistemas de circulação de obras para subverter sua
lógica. Nessa direção, uma aposta na criação de comunidades temporárias a
partir de festivais ou exposições, capazes de desacelerar o tempo e suspender o
individualismo dominante, configurando-se como um mecanismo de cura para o
capitalismo, que nos adoece. Um dos exemplos dessa perspectiva, é a curadoria
de Galiana Brasil para o Festival A Ponte: Cenas do Teatro Universitário, que
conjuga estudantes de todo o Brasil para refletir, apresentar e criar obras ao longo
de um convívio duradouro, um “convite que nos impele, ainda, a pensar espaços
de respiros, uma ação de encontros estendidos, na cidade cujo lema é não parar,
a forjar uma sesta em conjunto, colaborativa” (Brasil, 2021, p. 3-4).
Complementarmente, as/os autoras/es postulam a dissolução entre a arte erudita
e a arte popular, uma vez que representa uma visão elitista que exclui
determinadas pessoas do circuito valorizado das Artes. Dessa forma, poderíamos
imaginar festivais de Artes Cênicas nos quais convivem conflitivamente obras
teatrais institucionalizadas com manifestações estéticas de difícil classificação,
como o bumba-meu-boi, os malabaristas de rua ou espetáculos feitos por
crianças. O objetivo é desierarquizar a estética, buscando uma percepção mais
ampla de nossos sentidos, em direção a uma
aesthesis decolonial
(Goméz e
Mignolo, 2012)
.
Por fim, os textos apontam para necessidade de pesquisas que
contem a história da curadoria a partir de exemplos e da perspectiva do Sul Global.
Será a partir desse esquema que serão identificados os movimentos realizados
pela equipe curatorial da MITsp entre as edições de 2016 e 2020, compreendendo
que as ações da curadoria podem variar de um polo a outro.
Um festival cravado em uma Metrópole na Periferia
A Mostra Internacional de Teatro de São Paulo teve sua primeira edição em
2014, organizada por Antônio Araújo e Guilherme Marques, que buscavam retomar
a experiência do Festival Internacional de Artes Cênicas realizado por Ruth Escobar
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entre 1974 e 1999. Contando com a parcerias públicas e privadas, a primeira edição
teve gratuidade em todas atividades, estruturadas a partir de quatro eixos: 1)
Olhares Críticos, composto por debates, palestras e publicação de críticas; 2)
Intercâmbio Artístico, no qual artistas estrangeiras/os e brasileiras/os criaram
coletivamente experimentos cênicos; 3) Fórum de Encontros, pensado como um
espaço em que público, técnicas/os, artistas e curadoras/es pudessem dialogar;
4) Mostra de Espetáculos, que contou com onze espetáculos vindos da Ásia, África,
América Latina e Europa.
Cada eixo foi pensado por uma equipe de curadoras/es que dialogavam,
criando uma curadoria colaborativa que não se estruturava a partir de um único
tema, mas através de núcleos vibratórios que “agregariam algumas obras, alguns
trabalhos, e esses núcleos, porque, como na vibração mesmo, eles também se
irradiam e contaminam um ao outro” (Araújo apud Rolim, 2015, p.108).
em sua primeira edição são apontadas algumas características que
marcam as oito edições da mostra realizadas entre 2014 e 2022: 1) a estrutura de
eixos curatoriais que dialogam, permitindo que a seleção de espetáculos não fosse
o centro do evento; 2) a curadoria em equipe, contrária à lógica da/do
curadora/curador única/o; 3) o pensamento voltado para núcleos vibratórios, não
centralizado em um único tema; 4) a busca por trazer espetáculos de companhias
que raramente circulam por São Paulo; 5) e a seleção de poucas obras, criando
um “jogo de poucas peças, na contramão da lógica quantitativa de outros eventos
afins. [...] Ou seja, privilegiou-se não apenas a excelência das obras escolhidas, mas
a qualidade interrelacional na experiência da recepção” (Araújo apud Rolim, 2015,
p.109).
É nesse contexto e nessa estrutura que se insere a MITsp, realizada em
2016. O evento fazia parte do debate público desde junho de 2015, quando o
diretor branco sul-africano Brett Bailey esteve em São Paulo para preparar a
montagem brasileira de sua peça
Exhibit B
, que faria parte da mostra. Em 2014, a
obra foi fortemente criticada em Londres e Paris por grupos do movimento negro
que identificavam no espetáculo a perpetuação de representações opressivas,
uma vez que era composto por quadros vivos no quais atrizes/atores negras/os
retrabalhavam imagens do século XIX, em que pessoas escravizadas eram levadas
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para Europa para serem exibidas em exposições racistas. Essas críticas também
foram feitas por grupos do movimento negro brasileiro, o que levou a curadoria a
reconsiderar a participação do espetáculo na mostra.
Então, em dezembro de 2015, foi pensada a substituição da peça pela ópera
Macbeth
, na qual a encenação de Bailey reposiciona o enredo shakespeariano para
discutir os conflitos militares e empresariais vividos no Congo. Contudo, as/os vinte
e oito atrizes/atores que faziam parte do elenco de
Exhibit B
mostraram-se
contrárias/os a essa decisão, fazendo com que a curadoria repensasse a exibição
da peça, que foi definitivamente cancelada em janeiro de 2016, juntamente com
outras dezenove que comporiam a mostra. O cancelamento se deu por conta da
alta do dólar e do euro, dificultando a vinda de espetáculos que não tinham apoio
de embaixadas ou institutos culturais de seus países de origem, evidenciando as
desigualdades globais da circulação de obras. Todavia, o corte não provocou o
debate sobre o jogo assimétrico dos financiamentos de espetáculos, como
argumenta o curador dos Olhares Críticos, Eugenio Lima:
Eu acho que o que faltou para poder vir ou não poder vir, em termos
politizados, é contexto. E o contexto, eu acho, não foi suficiente. Não foi
suficiente nem a politização proposta, em um determinado momento,
pelos atores. Como não foi suficiente o debate dessa performance com
a sociedade. Como também não foi suficiente a própria estrutura da MIT
suportar esse debate (Metrópolis…, 2016).
um reposicionamento da definição de pensamento curatorial, que poderia
ser lido como uma contextualização histórica da obra perante o público, mas que,
diante da fala de Eugênio Lima, passa a ter significados mais amplos. Produzir
contextos não se limitaria apenas às estratégias de mediação entre as/os
espectadoras/es e os espetáculos, mas incluiria a análise e a ação da equipe
curatorial diante das condições políticas para que determinada obra possa vir a
público. Caberia à curadoria instaurar o debate entre os diferentes agentes
políticos envolvidos, possibilitando que as decisões não se dessem apenas no nível
financeiro, mas que incluíssem as/os artistas e os movimentos sociais.
Esse processo reflexivo se deu
a posteriori,
durante a realização da mostra
de 2016, através do ciclo de debates
Discursos sobre o Não Dito
, que já fazia parte
da programação do eixo Olhares Críticos antes mesmo das questões envolvendo
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o
Exhibit B
virem à público. Curado por Eugênio Lima, José Fernando Peixoto de
Azevedo e Leda Maria Martins, o ciclo tinha como disparador o espetáculo
Revolting Music: Inventário das Canções de Protesto que Libertaram a África do
Sul
, de Neo Muyanga, que fazia parte do núcleo vibratório que discutia o racismo
dentro da mostra de espetáculos, juntamente com
Cidade Vodu
do Teatro de
Narradores e com
A Carga
de Faustin Linyekula. Portanto, houve um diálogo entre
os eixos curatoriais, permitindo, segundo Eugênio Lima, a construção de “um
pensamento transversal para debater a questão da negritude. Tirar essa relação
de colocar ela dentro de um sistema blocado ou de um sistema de exceção, mas
sim pensar de maneira transversal ” (Mesa..., 2016).
O ciclo aconteceu no Centro Cultural São Paulo entre os dias 4 e 6 de março,
com uma apresentação de
Revolting Music
a cada dia, antecedida por uma mesa
de discussão: no dia 4, com as/os próprias/os curadoras/es do ciclo; no dia 5, com
o historiador Luiz Felipe de Alencastro, a escritora Ana Maria Gonçalves e o próprio
Neo Muyanga; e, finalmente, no dia 6, a palestra-performance
Descolonizando o
Conhecimento
, de Grada Kilomba, que havia construído trabalhos artísticos com
Muyanga. Essa estrutura permitia que a obra disparadora fosse posta em diálogo
com diferentes formas de conhecimento, desde o discurso curatorial, passando
pela fala de pesquisadoras/pesquisadores, até a justaposição com outra obra
artística.
Nesse sentido, o ciclo vai além, uma vez que, após a estreia de
Revolting
Music
, a curadoria planejou a
Performance Poético-Política: Em Legítima Defesa
,
na qual as/os atrizes/atores que participariam da montagem de
Exhibit B
ocupavam as plateias e recitavam um inventário de textos antirracistas, dialogando
com as músicas de libertação inventariadas por Neo Muyanga. As falas
denunciavam não o racismo em geral, mas como ele se concretizava naquele
espaço, quando “um dos atores contou quantos negros havia na plateia de 321
lugares: ‘Dezesseis ao todo. Essa é a cota?’” (Prado, 2016). A performance nos faz
questionar sobre o público alcançado pelas ações da MITsp, que, entre 2016 e
2020, se concentraram na região central da cidade: dos 54 espaços utilizados nas
cinco edições, 36 se encontravam no Centro, oito na Zona Oeste, oito na Zona Sul,
três na Zona Leste e dois na Zona Norte.
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É possível compreender a ação do Coletivo Legítima Defesa como uma forma
de ocupar as instituições e sabotá-las, na medida em que as vozes das/dos
atrizes/atores, que não foram ouvidas durante o processo de cancelamento da
obra, ocupam seu espaço na mostra. Aquilo que não havia sido dito pode ter corpo
e voz para uma plateia lotada no Theatro Municipal de São Paulo. A ação aconteceu
também no dia 7 de março, após a apresentação do espetáculo
100% São Paulo
,
do coletivo alemão Rimini Protokoll.
O gesto curatorial de incluir a
Performance Poético-Política: Em Legítima
Defesa
na programação ultrapassa as noções básicas de curadoria como o
estabelecimento de relações entre ações artísticas; com o conflito gerado pela
obra de Brett Bailey, cria a possibilidade de se instaurar como um processo
curativo. Esse caso demonstra que a cura não é sinônimo de apaziguamento das
tensões, mas que ela pode surgir quando os conflitos são explicitamente postos
na arena pública. Em diálogo com essa perspectiva, a curadora Aline Vila Real
(2018, p. 212) postula que “a curadoria, então, é uma ação coletiva, que acontece a
partir de uma provocação feita por uma ou mais pessoas que idealizam encontros
e vislumbram potências em suas reverberações. Esses desdobramentos possíveis
são as marcas”, traçando paralelos com os rituais curativos do candomblé,
especificamente o
bere
no qual se fazem marcas no corpo para realizar a cura.
Contudo, essa possibilidade da curadoria enquanto cura está condicionada a
uma mudança ampla da Mostra, não somente ao tratamento dado ao caso do
Exibt B.
Nesse sentido, a curadoria não deve reformular apenas uma ou outra
estrutura, uma vez que “antídotos históricos e a cura não virão para um se não
vierem para todos, que o racismo existe e se perpetua não sob o efeito de ações
individuais, mas sim sob elementos estruturais que mantém nossas instituições”
(Correa et al, 2020, p. 126). Nesse sentido, a MITsp-2016 é um caso heterogêneo,
no qual cenas coloniais de silenciamento se transformaram em gestos
anticoloniais, que se desdobraram nas outras edições.
A edição de 2017 é a primeira após o golpe que derrubou a presidenta Dilma
Rousseff, colocando Michel Temer no poder e intensificando a política de corte de
gastos para Cultura em nível nacional. Além disso, é a primeira edição sob o
governo de João Dória na prefeitura e sob a secretaria de André Sturm, que
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congelou 43,5% do orçamento da Secretaria Municipal de Cultura. A cerimônia de
abertura aconteceu no Theatro Municipal e foi marcada por manifestações do
público e das/dos apresentadoras/es contra as gestões federal e municipal. Além
disso, após o espetáculo
Avante, Marche!,
da Companhia Les Ballets C de la B,
integrantes da Banda Sinfônica de São Paulo, que compunham o elenco da peça,
levantaram faixas pedindo o descongelamento de verbas para a Cultura. Esse
gesto ecoa a ação do Coletivo Legítima Defesa e pode ser visto como uma forma
de ocupar as instituições e sabotá-las
.
Dentro desse contexto, a curadoria busca se contrapor ao retrocesso político
vivido no país. Se, no plano federal, víamos a descontinuidade de políticas públicas,
a mostra decidiu optar pela permanência de suas ações:
Sem se pautar pela ‘lógica da novidade’ de eventos de tal natureza, a
mostra retoma e continuidade a questões de outros anos, como é o
caso, por exemplo, do empoderamento e protagonismo negro.
Acreditamos numa dramaturgia curatorial que estabeleça conexões não
apenas no interior de uma determinada edição da mostra, mas que possa
entretecer fios com as edições anteriores e com as que estão por vir
(Araújo e Marques, 2017, p. 10-11).
Nessa direção, a Mostra continuidade e desdobramento aos encontros
provocados na edição de 2016, com o
Seminário Discursos sobre o Não Dito:
racismo e a descolonização do pensamento,
com a curadoria de Eugênio Lima e
Majoí Gongora. A ação teve como disparador a peça
A Missão em Fragmentos: 12
cenas de descolonização em legítima defesa,
a partir da qual duas mesas de
debate foram instauradas. As/os curadoras/es assim descrevem seu gesto
curatorial: “O ato único deste ciclo de debates é fazer reverberar outras vozes”
(Lima, Gongora, 2017, p. 16). A escolha do verbo é precisa e reflete uma posição
política contrária à ideia de que a curadoria “dá voz” às pessoas. Reverberar aponta
para um pensamento curatorial que cria situações capazes de instaurar espaços
de escuta, para que ouçamos vozes que estão falando muito tempo, como
propõe Grada Kilomba em sua palestra-performance
Descolonizando o
Conhecimento,
que esteve presente na edição de 2016.
A ligação entre as edições também se estabelece na Mostra de Espetáculos,
composta por dois núcleos vibratórios: o diálogo entre teatro e documentário e o
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debate do racismo em cena. O segundo núcleo foi constituído por uma tríade de
espetáculos:
Black Off
, da artista sul-africana Ntando Cele;
A Missão em
Fragmentos,
do Coletivo Legítima Defesa; e
Branco ou o cheiro do lírio e do formol
,
de Alexandre Dal Farra e Janaina Leite. O primeiro espetáculo buscava discutir os
estereótipos e as expectativas do público ligadas a artistas vindas/os do continente
africano, utilizando-se do formato do
stand-up
e de apresentações musicais. O
segundo partia do texto
A Missão: lembranças de uma revolução
, do dramaturgo
alemão Heiner Muller, para debater o colonialismo, inserindo na dramaturgia
trechos de discursos revolucionários da descolonização de países africanos. A
composição sonora do espetáculo é assinada por Neo Muyanga, que esteve na MIT
de 2016 e continua sendo parceiro do coletivo. Nesse sentido,
A Missão
desdobra
sobre o material de Heiner Muller os elementos de inventário e citação de músicas
e textos experienciados em
Revolting Music
e na
Performance em Legítima Defesa.
Contudo, ao mesmo tempo em que a curadoria possibilitou a criação de
vínculos, ela evidenciou fraturas e desencontros, uma vez que a estreia de
Branco
reacendeu os debates provocados por
Exhibit B
. Se em 2016 a questão era a forma
em que atrizes/atores negras/os estavam em cena, em 2017 o questionamento se
voltou para a completa ausência de artistas negras/os em uma peça que pretendia
discutir o racismo.
É interessante buscar a recepção do espetáculo documentada pelas críticas,
escritas por convidadas/os pela própria mostra, que se dividiram em dois campos:
aquelas/es que reconheciam na peça um gesto de coragem de um coletivo de
brancos questionando-se sobre seu racismo, e aquelas/es que identificavam na
peça a perpetuação do autocentramento branco, no qual o Outro pode estar
presente se mediado pelas fantasias do Eu. Tendo como base o procedimento de
heteroidentificação racial, proponho o cruzamento entre o posicionamento em
relação à peça com a posição de fala das/os críticas/os para sustentar o
argumento subsequente. Vemos que no primeiro campo se concentram os
homens brancos que, em suas críticas, mostram uma identificação entre a peça e
seus próprios questionamentos, enquanto no segundo campo reúnem-se as
críticas brancas e o único crítico negro convidado pela mostra. Essa relação
evidencia que para descolonizarmos as práticas curatoriais é preciso, além de
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espetáculos que tragam à cena vozes até então silenciadas, que essas vozes
também se façam presentes no corpo crítico convidado pela mostra.
Os textos apontam para o desconforto provocado pela peça, explicitado por
um espectador durante o debate após o espetáculo: “uma peça feita pela
burguesia para criticar a burguesia, mas quando se assiste tem a impressão de
que a única classe ofendida é a dos proletariados” (Piscitelli, 2017, p. 1). Heloisa
Souza (2017, p. 1) desdobra o problema ao evidenciar que “a ausência de pessoas
negras na encenação reflete a ausência das mesmas no público”. Michele Rolim
revela um acontecimento que inverteu as relações de poder do espetáculo:
Nem bem cessaram os aplausos e o espetáculo ganha outra camada
quando uma intervenção tomou conta da Sala Jardel Filho, do Centro
Cultural São Paulo. São secundaristas que gritam frases e contam
histórias sobre as ocupações nos colégios. [...] Essa ação, incorporada ao
acontecimento teatral, outra dimensionalidade ao espetáculo (Rolim,
2017, p.1).
Essa intervenção era fruto da residência artística
ATOS DE RESISTÊNCIA II:
Ações performáticas de estudantes secundaristas
, inserida dentro do eixo de
Ações Pedagógicas da MITsp. A ação ecoa a
Performance Em Legítima Defesa
realizada naquela mesma sala no ano anterior, radicalizando a noção de ocupar as
instituições e sabotá-las
,
uma vez que as/os agentes da intervenção de fato
haviam ocupado suas escolas em 2015 e 2016. Outra semelhança em relação à
ação de 2016 é que as/os estudantes participantes do ato viriam a criar a Coletiva
Ocupação.
Se em 2016 havia um alinhamento entre o espetáculo de Neo Muyanga e a
ação do Coletivo Legítima Defesa, em 2017 uma cisão entre a peça apresentada
e a intervenção realizada, mostrando que a curadoria pode estabelecer relações
não apenas de alinhamento entre as obras, mas também de contraponto e
conflito.
Seguindo essa linha, a edição de 2018 buscou tensionar o contexto político
do país
,
estabelecendo debates públicos na rua e performances interativas em
que artistas dialogam com passantes. É nesse contexto, em que os
Olhares
Críticos
debatiam a censura nas artes e a
Mostra de Espetáculos
tinha como um
dos núcleos a “memória, história e política”, que é criada a
MITbr - Plataforma
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Brasil
, com curadoria de Christine Greiner, Felipe de Assis e Wellington Andrade,
que explicitam os objetivos da plataforma no texto curatorial:
Não se trata de atender à demanda da globalização, transformando a
criação cênica em uma mercadoria altamente vendável nos circuitos
muitas vezes céleres e eufóricos dos festivais internacionais, mas, antes,
de reconhecer possíveis relações entre as especificidades do contexto
brasileiro com questões e experiências propostas em âmbito
internacional. Assim, a preocupação da MITbr - plataforma Brasil é
diferenciar, historicizar e contextualizar os espetáculos convidados para
essa interlocução, levando-os a diálogos que sejam, de fato, fricativos,
mobilizadores, heterotópicos (Greiner, Assis e Andrade, 2018, p. 22-23).
Assumindo uma posição crítica em relação àquelas/es que enxergam na
internacionalização apenas uma possibilidade de mercado, a curadoria pretendia
que a plataforma fosse, ao mesmo tempo, um panorama da produção nacional,
permitindo criar discussões sobre a situação do país e uma forma de estabelecer
pontes entre os contextos de diferentes regiões do globo. Pensando dessa forma,
a plataforma se estruturou através de três categorias de ação: os espetáculos, os
ensaios abertos e o seminário
Artes Cênicas: desafios para internacionalização.
Composto por três mesas, o seminário girou em torno de duas questões
principais:
Internacionalização e Descolonização
e
Políticas Públicas para
Internacionalização das Artes Cênicas
. Se por um lado as temáticas apontam para
um distanciamento da lógica mercantil, tanto por voltar-se para as estratégias
públicas quanto por tensionar o afã internacionalizante com a perspectiva crítica
decolonial, por outro, vemos uma aproximação com o mercado, tanto pelo próprio
espaço em que a ação aconteceu quanto pela repercussão das críticas
jornalísticas. Com a manchete “Pouco exportado, teatro brasileiro mira
internacionalização”, a jornalista Maria Luísa Barsanelli traduz a perspectiva
mercantilista do processo:
A dificuldade em exportar peças, dizem gestores culturais, deve-se em
especial à falta de políticas públicas para divulgar o trabalho brasileiro no
exterior. [...] Pensando nisso, artistas têm se mobilizado para encurtar o
caminho até palcos estrangeiros. E têm visto os festivais de artes cênicas
brasileiros como ferramenta para a venda de produções nacionais
(Barsanelli, 2018).
A utilização dos termos “exportar” e
venda
vai na contramão da proposta
curatorial, evidenciando que a noção de uma plataforma de reflexão sobre a
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produção nacional e a condição do país ficou em segundo plano para os jornais.
Contudo, isso não significa que essa perspectiva crítica não tenha se manifestado
nas discussões dos seminários e nos diálogos com curadoras/es de outros países.
Sendo assim, precisamos nos voltar para os espetáculos apresentados e para
as aberturas de processo que compuseram a plataforma, uma vez que através
delas se explicita o posicionamento da curadoria. Das treze ações artísticas que
compunham a plataforma, oito eram de São Paulo e as demais eram do Rio de
Janeiro, Belo Horizonte, Recife, Curitiba e Brasília. Se a intenção era constituir um
panorama nacional das Artes Cênicas, a MITbr reforçou o autocentramento da
capital paulistana em relação às demais regiões do país. Analisando o processo de
internacionalização de espetáculos brasileiros, Matheus Menezes evidencia que
a contradição deste modelo está posta nos seguintes termos: ao mesmo
tempo que os festivais internacionais de artes cênicas possuem uma
demanda por trabalhos locais, artistas de outras regiões do país também
almejam apresentar suas criações nestas plataformas, contudo, dado os
altos custos logísticos diante de um reduzido orçamento, os festivais do
eixo São Paulo-Rio não conseguem dar conta de oferecer um panorama
das criações em artes cênicas representando todas as regiões do Brasil.
Isto restringe a representação artística das produções cênicas brasileiras
(Costa, 2015, p. 56).
Apesar da desigualdade de representações de regiões do país, a maioria dos
espetáculos da edição de 2018 traz uma posição crítica frente à realidade
brasileira. Contudo, é possível observar um certo isolamento da MITbr em relação
aos outros eixos curatoriais, que não incluíram nenhum dos espetáculos da
plataforma em suas programações. Além disso, não entrevistas ou ensaios
críticos sobre os espetáculos nacionais dentro da Revista Cartografias, como
ocorre com as obras da mostra internacional, dificultando o trabalho de
contextualização das peças e dos coletivos participantes da MITbr. É possível
afirmar que “a não presença de brasileiros na mostra global, entrando somente
com performances, gera uma subcategorização ao situar a programação à parte
da internacional e em espaços muitas vezes não tão privilegiados” (Ribeiro, 2018).
Esse comentário evidencia a porosidade da MITsp em relação às críticas tecidas a
ela, uma vez que a edição de 2019, além de ações dos Olhares Críticos e das Ações
Pedagógicas voltadas para a plataforma Brasil, contava com três espetáculos
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nacionais dentro da mostra internacional, dentre eles a estreia de novas obras de
duas/dois artistas censuradas/os e que retrabalham referências modernistas:
A
Boba
, de Wagner Schwartz, que foi mestre de cerimônia da abertura da edição; e
Manifesto Transpofágico
, de Renata Carvalho.
Frente ao primeiro ano do mandato de Bolsonaro na presidência, a curadoria
radicaliza seu posicionamento crítico ao apoiar a construção de obras novas por
meio de coproduções, tais como
Democracia,
de Felipe Hirsch, e
Altamira 2042,
de Gabriela Carneiro da Cunha. Nesse contexto, a coprodução ultrapassa seu
caráter meramente comercial e se constitui como ato político de abrigar artistas
perseguidas/os pelo conservadorismo. No plano internacional, esse gesto se
manifesta na presença do espetáculo
O alicerce das vertigens
, do diretor congolês
exilado na França, Dieudonné Niangouna. A presença da obra de Niangouna na MIT
de 2019 dialoga e tensiona o espetáculo
Compaixão: A História da Metralhadora
,
do diretor belga Milo Rau, artista em foco da edição de 2019. A justaposição dessas
obras, ambas discutindo as heranças da colonização na África, permite comparar
as perspectivas de um diretor vindo de regiões colonizadas com a de outro diretor
originário de regiões colonizadoras.
Há, portanto, uma forte presença de ações críticas aos processos
colonizatórios passados e contemporâneos, não nas mostras de espetáculos
nacionais e internacionais, mas também nos Olhares Críticos. Dentre suas ações,
destacamos o
Fórum descolonização: os desafios de quem vive em estado de
emergência
, que se insere na linhagem do
Ciclo de Debates: Discursos sobre o não
dito
da MIT de 2016 e do
Seminário - Discursos sobre o Não Dito: racismo e a
descolonização do pensamento
da edição de 2017. O fórum buscou alterar a
partilha da fala e da escuta nos espaços dedicados à reflexão. Se, nos anos
anteriores, as ações eram realizadas no formato de palestras, espacialmente
dispostas na frontalidade entre palco e plateia, em 2019 as cadeiras estavam
dispostas em roda, instigando a participação do público. Segundo José Fernando
Peixoto, houve um esforço da curadoria em instituir uma ágora, na medida em que
“a gente não vai falar para. A pergunta não era para quem nós estamos falando,
mas com quem nós estamos falando?” (FÓRUM…, 2019). Contudo, durante o
debate, uma das espectadoras do fórum apontou para a permanência da divisão
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palco e plateia nas atividades. A fala evidencia a dificuldade de alterar as dinâmicas
de partilha, tradicionalmente vinculadas à estrutura “uns falam, outros ouvem” ou
“uns se expõem, outros se eximem”, indicando que alterar as mãos que seguram
o microfone não altera o fato da existência de um microfone.
Se, por um lado, no Fórum vemos a presença de pensadoras/es e artistas
negras/os, indígenas e brancas/os de diferentes países da América Latina, quando
nos voltamos para outras atividades da Mostra, essas presenças e as perspectivas
decoloniais são obliteradas por lógicas de mercado. As atividades voltadas à
internacionalização foram pautadas principalmente em referências do Norte
Global, buscando “desenvolver e aprimorar mecanismos que permitam projetar
externamente os valores culturais, a exemplo de França, Reino Unido, Estados
Unidos” (Assis, Sobral e Andrade, 2019, p. 1). aqui uma contradição entre um
discurso curatorial decolonial e um aparato institucional voltado para a herança
colonial.
A partir disso, as iniciativas de descolonização precisam ser colocadas sob
suspeita, dado que apenas incluir as/os sujeitas/os subalternizadas/os pelo
processo histórico não produz, por si só, uma alteração nas estruturas coloniais.
um esvaziamento do termo “curadoria decolonial”, que passou a ser uma
adjetivação propagandística ao invés de uma posição radicalmente crítica ao
mundo artístico tal como ele foi desenhado pela modernidade/colonialidade
europeia. Assim, o atual interesse das instituições de artes em questionar seu
passado colonial transforma-se em mera imagem, dado que não uma revisão
e ruptura com as estruturas que sustentam essas heranças.
Enquanto a política de exibições e programas públicos tende a proclamar
sua colaboração com os sujeitos periféricos [...], as políticas de gestão e
organização institucional são avaliadas segundo critérios mais afins aos
da indústria cultural. É como se o “museu do Sul” quisesse
desesperadamente ser qualificado como “museu do primeiro mundo”,
nos termos que essa expressão implica: empresarial, eficiente, sucesso
de bilheteria e de vendas. Como se assistíssemos à construção de um
museu descolonizado em seu discurso curatorial e museográfico, mas
ansioso por ser recolonizado no que se refere ao seu arcabouço
institucional (Cocotle, 2019, p. 9-10).
Há, portanto, a necessidade de se fazer a pergunta: “Que curadoria decolonial
é essa?” (Brasileiro e Leal, 2021, p. 16). A partir dela, nos deslocamos para a última
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atividade realizada na edição de 2020 antes do cancelamento das atividades da
mostra por conta da pandemia. A ação
Curadoria na Encruzilhada
, dentro dos
Olhares Críticos da edição, ao mesmo tempo explicita e tensiona essas dinâmicas
ao colocar em debate curadoras/es dos eixos da MITsp: Grace Passô, curadora da
MITbr, Maria Fernanda Vomero e Dodi Leal, curadoras das Ações Pedagógicas; e
Andreia Duarte, Daniele Avila Small e José Fernando Peixoto, curadoras/es dos
Olhares Críticos. O debate foi escolhido para encerrar este estudo de caso sobre <