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Erosões no rosto da linguagem
Manoel Moacir Rocha Farias Junior
Para citar esta Resenha:
FARIAS JUNIOR, Manoel Moacir Rocha. Erosões no rosto
da linguagem.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI:10.5965/1414573101502024e0802
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
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Manoel Moacir Rocha Farias Junior
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-8 abr. 20224
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Resenha da obra
UNO, Kuniichi.
Artaud:
pensamento e corpo. São Paulo: N-1 edições, 2022.
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Erosões no rosto da linguagem
Manoel Moacir Rocha Farias Junior1
Resumo
Esta resenha buscou mostrar as principais ideias do estudo de Uno sobre a poética
de Artaud. Observou-se que Uno faz um intenso diálogo com conceitos de filosofia,
como os de corpo sem órgãos e variação contínua, presentes sobretudo na obra de
Deleuze e Guattari. Objetivou-se mostrar a atualidade do pensamento de Artaud,
sua visão sobre uma política do corpo, seus ecos na cena artística e filosófica.
Palavras-chaves
: Artaud. Filosofia. Corpo.
Erosions on the face of the language
Abstract
This review sought to show the main ideas of Uno's study of Artaud's poetics. It was
observed that Uno forms an intense dialogue with concepts of philosophy, such as
the body without organs and continuous variation, present especially in the work of
Deleuze and Guattari. The aim was to show the current nature of Artaud's thought,
his vision of body politics, and its echoes in the artistic and philosophical scene.
Keywords
: Artaud. Filosophy. Body.
Erosiones en el rostro del lenguaje
Resumen
Esta reseña buscó mostrar las ideas principales del estudio que Uno hizo de la
poética de Artaud. Se observó que Uno establece un intenso diálogo con conceptos
de la filosofía, como el cuerpo sin órganos y la variación continua, presentes
especialmente en la obra de Deleuze y Guattari. El objetivo era mostrar la actualidad
del pensamiento de Artaud, su visión de la política del cuerpo y sus ecos en el
panorama artístico y filosófico.
Palabras clave
: Artaud. Filosofía. Cuerpo.
1 Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP). Mestrado em Artes Cênicas pela USP.
Especialização em Docência no Ensino Superior pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Graduação
em Letras português e inglês pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor de inglês na rede
municipal de Aquiraz. mmoacir81@gmail.com http://lattes.cnpq.br/3241283184164102
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Adaptado da tese de doutorado de Kuniichi Uno, orientado por Gilles Deleuze,
o estudo
Artaud: pensamento e corpo
chega num momento efervescente ao
cenário cultural brasileiro, num período de reconstrução de políticas públicas
afirmativas da vida, em oposição ao conservadorismo e aos diversos genocídios
dos anos do governo Bolsonaro.
Escritor de uma voz fluente e poética, que incorpora metáforas dos textos
artaudianos, Uno analisa um pensamento que muitas vezes esteve disperso em
cartas e cadernos, além dos textos mais conhecidos e publicados. Sua pesquisa
se divide em cinco capítulos, cada um deles se referindo não às ideias, mas
também a aspectos biográficos de Artaud.
Em
Pensamento sem imagens
, acompanhamos os primeiros passos de uma
poética que vai se desdobrando entre a poesia e o teatro, formas que sempre
estarão presentes nas muitas fases e faces de Artaud. A desconfiança da
linguagem que vemos aí viria, segundo Uno, da consciência do próprio sofrimento,
o que leva Artaud a se indagar sobre os signos do pensamento e de como lidar
com eles. ataques aos modelos tradicionais de representar e imaginar, como
se percebe na aliança com o movimento surrealista. Aliança esta que se mostrou
frágil, pois Artaud ali viu uma estética que, apesar de nova, não poderia dar conta
de suas questões com a criação.
No capítulo
A pesquisa de linguagem
, Uno nos remete às experiências de
Artaud no cinema e no teatro, seja como ator, roteirista ou fundador do Teatro
Alfred Jarry. No cinema se destaca sua obra (roteiro)
A concha e o clérigo
, que
apesar de ter obtido pouco sucesso comercial, se mostra como uma verdadeira
experimentação de linguagem que nada deve ao que de melhor se produziu no
cinema poético de uma Maya Deren ou de um Louis Buñuel. Tanto no cinema
quanto no teatro se percebe uma pesquisa de formas e tempos que são
traduzidos como uma música essencialmente visual. Talvez por isso, Artaud
abandona o cinema com a chegada do som.
A distribuição das forças no teatro se faz colocando seus elementos (voz,
gestos, luz, personagens) em variação contínua. Expressão que serve de base para
as análise de Deleuze sobre Carmelo Bene em
Um manifesto de menos
e que é
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por ele definida como: “amplitude que não pára de extrapolar por excesso ou por
falta, o limiar representativo do padrão majoritário” (Deleuze apud Uno, 2022, p.
106). Assim, é no teatro balinês que se mostra a Artaud a realização de suas ideias
sobre a criação de cenas em que se mostram importantes cada vez mais o cálculo
e o rigor, que são elementos chaves para definir seu teatro da crueldade, a nosso
ver. Mais importante do que anunciar um tipo único como válido, aqui se anuncia
um caminho alternativo ao aristotelismo (com o peso de sua
Poética
) numa nova
forma de compor a cena: “Descoberta na experiência da angústia, uma semiótica
pulsional se encarna no teatro de Artaud” (Uno, 2022, p. 111).
Em
Heliogábalo, a história das forças
, Uno estabelece alguns paralelos da
peça
Heliogábalo ou o anarquista coroado
, com a proposta da crueldade de seu
autor. Aqui o formato textual, cujo enredo começa no fim da vida do personagem
que lhe título, se num movimento circular. Trata-se da vida do imperador
romano, que tem origem síria, narrada em terceira pessoa, mas atravessada em
alguns momentos por um “eu”. Na análise de Uno: “O espaço de Heliogábalo é
afetivo
sem análise psicológica, é
demonstrativo
como estudo do espaço das
forças,
ritual
sem intriga, impessoal como tipologia de forças” (Uno, 2022, p. 152) .
A estrutura do texto de Artaud tem três partes:
O berço do esperma
, no qual
Heliogábalo se torna imperador romano;
A guerra dos princípios
, em que se
elaboram aspectos filosóficos de sua vida e
A anarquia
, a guerra pela qual ele
chega ao poder.
Recentemente traduzido em português, numa adaptação de Fernando
Carvalho e Celso, a história de Heliogábalo é resultante de uma pesquisa de
Artaud em textos sagrados orientais, buscando “tratamento e atividade das forças
que podem resistir à separação e à organização que o cristianismo e o Ocidente
operaram sobre a vitalidade e as forças” (Uno, 2022, p. 164). Nesse sentido, Uno
pontua que a crueldade se manifesta através de como são mostrados a guerra, a
política e os ritos, narrados de modo simples e num tom arcaico.
Em
A pesquisa do corpo
, temos um longo e apurado olhar para as metáforas
que envolvem corpo e linguagem em Artaud. Esse conflito, por assim dizer, se
expressaria na relação entre o corpo entendido como organismo (um corpo que
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deve funcionar segundo regras e funções) e o corpo sem órgãos (imagem que
aparece no texto
Para dar fim ao juízo de Deus
e que foi desdobrada e elaborada
como conceito na obra de Deleuze e Guattari).
Em 1936, Artaud viaja ao México e entraria em contato com o ritual do peiote
do povo indígena Tarahumaras, com o qual tanto se encantou como entreviu ali
uma perda de tradições e uma ocidentalização. Seu ritos, ainda assim, “consistem
em encontrar e realizar este outro corpo que não é mais uma montagem de
órgãos” (Uno, 2022, p. 192). Com o passar dos anos, Artaud sente cada vez mais o
peso do seu corpo biológico, com suas dores e doenças, ao qual ele considera
envenenado ou enfeitiçado, como se na sua produção enquanto esteve
internado em Rodez.
Sua busca por um novo corpo, leva-o a um retorno ao cristianismo primitivo,
o qual ele abandonará mais tarde. Essa etapa de seu pensamento, nomeada por
Uno como
gnóstica
, curiosamente o faz seguir para a gênese de uma outra noção
de corpo, mais próxima do corpo sem órgãos, acima aludido.
Em seus desenhos, o corpo é fragmentado, começando por autorretratos,
nos quais descobre figurações do rosto humano, que é tratado como um enigma.
Esse rosto “ainda não encontrou a sua face e cabe à pintura lhe conferir uma”
(Uno, 2022, p. 214). Tratado como alegoria de uma vida por vir, na continuação de
suas pesquisas sobre novas formas de (se) representar, ele está numa reinvenção
anatômica que novamente dialoga com muitas das figurações corporais das
vanguardas de seu tempo, desde o cubismo até a escultura de artistas como Hans
Bellmer ou Giacometti.
A seguir, Artaud continua com seu projeto de um Teatro da Crueldade,
recitando poemas. “Todas as operações físicas e sonoras das palavras - gaguejar,
gritar, respirar, modular, apitar, etc. - serão realizadas para que elas se tornem
signos e ondas do espaço das forças. adquirindo uma consistência indeterminada”
(Uno, 2022, p. 218). Esse posicionamento criativo o leva a se identificar à poesia de
Gerard Nerval e mais tarde com a pintura (e à vida) de Van Gogh.
A escrita é, assim, fonetizada e passa a receber palavras inventadas,
neologismos, que enriquecem seu texto, embaralham os sentidos, instalam o
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nonsense
, levando a associações livres entre letras e palavras. Tanto Joyce como
Beckett foram dois grandes escritores que levaram até as últimas possibilidades
essa aventura modernista, que teve na escrita e nas leituras de Artaud um ponto
alto.
Nas últimas obras, Artaud vislumbrou uma política do corpo, no qual
instituições (como família, indústria, Estado, medicina, psiquiatria, etc.) são tidas
como
orgãos
ou
juízos de Deus
. Não à toa, um de seus últimos textos é a
peça/entrevista radiofônica
Para dar fim ao juízo de Deus
, que traz o tom da
denúncia já no provocador título.
Uno entrevê, no capítulo
Sem concluir
, diversas figurações corporais,
atravessadas também ao longo do livro. Sendo a mais forte a ideia de que o corpo
em Artaud busca ser refeito, sendo como que virtual. Sua poesia é uma forma de
pensar sobre isso, sobre o paradoxo criado pela luta entre o corpo organismo, o
que nos é dado, e o corpo sem órgãos, que está ainda em gestação.
É importante ressaltar aqui, com Uno, que Artaud fez tudo o que lhe foi
possível em direção desse projeto estético e de vida, a despeito da acusação de
ele não ter sido um homem de teatro com muita produção ou sucesso (comercial).
Testou em si, e pela escrita sobretudo, possibilidades que iluminariam todo o
século XX e que ainda repercutem no nosso, nos desafiando e pedindo sempre
novas elaborações.
Além disso, um dos interesses neste livro, é ver como ele desenvolve uma
conversa com conceitos deleuzianos como os de variação contínua ou o de corpo
sem órgãos, que são citados por Uno, às vezes com mais rapidez, outras com
maior aprofundamento. Aqui podemos ter uma espécie de introdução ao texto do
volume três de
Mil platôs
,
Como criar para si um corpo sem órgãos?
. Nele , a
imagem poética de Artaud ganha grande plasticidade e se renova como um
conceito ético: o CsO (corpo sem órgãos). Uma das perguntas que os filósofos se
fazem é: “Como criar para si um CsO sem que seja o CsO canceroso de um fascista
em nós [...]?” (Deleuze, 1996, p. 26).
Do mesmo modo, Nietzsche2 e Spinoza são autores que são chamados para
2 “Há certamente, questões e pensamentos comuns entre Artaud e Nietzsche em suas profundidades. Ambos
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uma conversa filosófica que os coloca junto a Artaud na busca por novas formas
de vida e por uma genealogia de poderes e fazeres com o corpo que diríamos ter
se desdobrado bem na obra de Michel Foucault.
Por aqui, pesquisadores brasileiros como Ferdinando Martins, Ana Kieffer3,
Cassiano Quilici e André Lage têm nos mostrado como Artaud tem muito a
conversar com nosso contexto, num momento em que cada vez mais se
repensam as formas ocidentais de fazer teatro e as artes. Parece-nos que Artaud
estava , como se diz, bem à frente do seu tempo, buscando vanguarda nas
tradições não-europeias, abrindo outras vias de pensar o teatro e a poesia, numa
deriva muito próxima da cena contemporânea que temos visto surgir.
Referências
DELEUZE, Gilles E GUATTARI, Félix.
Como criar para si um corpo sem órgãos?
In:
Mil platôs
: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.
KIFFER, Ana Paula Veiga. Correspondência fabulatória entre Ana K. e A. Artaud.
Vazantes
Revista do Programa de Pós-graduação em Artes, Fortaleza, v. 2, n. 1,
p.105-116, 2018.
UNO, Kuniichi.
Artaud:
pensamento e corpo. São Paulo: N-1 edições, 2022.
Recebido em: 13/03/2024
Aprovado em: 15/03/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br
são pensadores da doença, “doente numa perspectiva terapêutica, mas na qual o jogo é uma grande saúde
vital fundamental. [...]. E ambos conceberam um teatro novo e original sobre estas perspectivas.” (Uno, 2022,
p. 257)
3 Kieffer (2018) expõe, por exemplo, de maneira ficcional sua relação com os textos de Artaud e como eles
podem servir de base a leituras de questões contemporâneas.