Tradições Afro-Brasileiras e Afro-Indígenas nas dobras do tempo
Irani Cippiciani
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-19, dez. 2024
Aquilo que não me foi dado vivenciar pelos vínculos de nascença ou pertença
e que, portanto, para se tornar uma realidade, é preciso caminhar em direção à. E
quem caminha, quem se move, deseja. E quem deseja, constrói para si, outros
imaginários possíveis de partilha com outras culturas, povos e línguas do mundo
ou com culturas diversas dentro de seu próprio território, o que também se
configura em um tipo de interculturalidade. E o faz não como quem as possui,
mas como quem as compartilha e saboreia do prazer inenarrável de não ser único,
especial, superior. De se saber apenas uma, dentre tantas formas de existir e estar
no mundo. Se praticada como ética, a Ancestralidade do Desejo permite que
experimentemos outros sistemas-mundo e aprendamos com eles estratégias de
praticar o Bem Viver (Acosta, 2016).
Aprofundando esse raciocínio, outros dois conceitos ganham relevância para
pensar as fricções e desdobramentos das três formas de ancestralidade: memória
e corpo. Para Martins (2021) aquilo que se instaura no corpo-voz dos sujeitos é a
memória viva de uma tradição, de um povo, o que ela irá chamar de Oralitura, um
conjunto de práticas transmitidas oralmente e vivenciadas coletivamente através
da performance ritual, desembocando numa encruzilhada de possibilidades
expressivas, encontradas em diversas expressões culturais populares afro-
brasileiras, indígenas e afro-indígenas.
As palavras escritas podem iludir, mas o corpo-voz não mente, por isso, tanto
em África, quanto nas culturas tradicionais da Ásia e entre os povos originários de
todo mundo, o corpo é o grande recipiente da tradição, entendida como memória
coletiva e atravessada pelas três formas de ancestralidade, a urdidura que permite
o desenho de muitas tramas diferentes, no caso, diversas expressões culturais.
Falcão (2021) e Martins (2021) nos falam da importância dos Itans e Oriquis,
das narrativas mitológicas e hinos laudatórios presentes nos rituais afro-religiosos
e dos cantos de invocação presentes na cultura popular brasileira como, por
exemplo, aqueles que vimos nos Congados e Jongos, como potentes mananciais
por onde flui um canal de reconexão com a ancestralidade africana negada e
apagada. Essas histórias, vividas no corpo-voz do iniciado, são um caminho
possível para conectar, outra vez, o corpo-vivido ao corpo-matriz da tradição,
propiciando uma experiência muito concreta de pertencimento e reescrita da