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Tradições Afro-Brasileiras e Afro-Indígenas nas
dobras do tempo
Irani Cippiciani
Para citar este artigo:
CIPPICIANI, Irani. Tradições Afro-Brasileiras e Afro-
Indígenas nas dobras do tempo.
Urdimento
– Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 53, dez.
2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e128
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Tradições Afro-Brasileiras e Afro-Indígenas nas dobras do tempo1
Irani Cippiciani2
Resumo
O texto propõe pensar outros modos de relação com o Tempo, a partir de uma reflexão
sobre os conceitos de Ancestralidade, Corpo e Memória, quando associado às tradições Afro-
Brasileiras e/ou Afro-Indígenas. Nas fricções entre os diferentes tempo-espaços da cultura
popular, o artigo apresenta outras táticas de existir e resistir, através das Congadas. O texto
apresenta ainda exemplos bem-sucedidos de transformação de práticas de ensino-
aprendizagem nos espaços acadêmicos como aposta tática para o futuro. Para tanto,
cruzam-se diferentes referenciais bibliográficos sobre a cultura popular, estudos decoloniais,
estudos da performance e estudos da identidade.
Palavras-chave
: Cultura popular.
Congadas. Afro-diaspórico. Afro-indígena. Danças
dramáticas.
Afrobrazilian and Afroindigenous traditions in the folds of time
Abstract
The text proposes to explore different ways of relating to Time, based on a reflection on the
concepts of Ancestrality, Body, and Memory, particularly when associated with Afro-Brazilian
and/or Afro-Indigenous traditions. In the frictions between the different time-spaces of
traditional culture, the article presents other tactics of existence and resistance through the
Congadas
. The text also highlights successful examples of transforming teaching-learning
practices within academic spaces as a tactical bet for the future. To this end, various
bibliographic references on traditional culture, decolonial studies, performance studies, and
identity studies are interwoven.
Keywords:
Traditional culture. Congadas. Afro-diasporic. Afro-indigenous. Dramatic-dances.
Tradiciones afrobrasileñas y afroindígenas en los pliegues del tiempo
Resumen
El texto propone pensar en otras formas de relación con el Tiempo, a partir de una reflexión
sobre los conceptos de Ancestralidad, Cuerpo y Memoria, cuando se asocian con las
tradiciones Afrobrasileñas y/o Afro-Indígenas. En las fricciones entre los diferentes tiempos-
espacios de la cultura popular, el artículo presenta otras tácticas de existencia y resistencia
a través de las
Congadas
. El texto también presenta ejemplos exitosos de transformación de
prácticas de enseñanza-aprendizaje en los espacios académicos como una apuesta táctica
para el futuro. Para ello, se cruzan diferentes referencias bibliográficas sobre la cultura
popular, estudios decoloniales, estudios de la performance y estudios de la identidad.
Palabras clave
: Cultura tradicional. Congadas. Afrodiaspórico. Afroindígena. Danzas
dramáticas.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Ana Maria Marinho. Graduação em Letras
pelo Centro Universitário FIEO.
2 Doutorado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Artes da
Cena pela UNICAMP. Graduação em Educação Artística Artes Cênicas, pela Universidade de São Paulo
(USP). Atriz, dançarina e professora. iranicippiciani@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3064508473315571 https://orcid.org/0000-0001-8213-3816
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Guarnecer
Este artigo parte de considerações iniciais sobre o Tempo, como divindade
primeva, senhora dos princípios de ancestralidade e memória, assentados em
nossos corpos e por eles performados, como táticas de produção de outras
narrativas e dimensões históricas.
Dialoga com as perspectivas contracoloniais de Nego Bispo, assumindo que
vivemos uma “guerra de denominações” e nos convocando a produzir “palavras
germinantes”, capazes de combater a “cosmofobia, a monocultura e os saberes
sintéticos” que insistem em se colocarem como hegemônicos a despeito da
inegável diversidade que há no mundo (Dos Santos, 2023).
Nele, adentramos o rico universo de nossa cultura popular, guiados pelas
antigas coroações dos reis e rainhas do Congo e suas representações atuais
através das Congadas, apresentadas como exemplos eficazes de estratégia
popular de agenciamento de tradições marginalizadas e descredibilizadas, como
forma de afirmação de outros modos de existência, de outros imaginários,
desdobrados em corpos que cantam, dançam e batucam, e, por isso mesmo,
corpos afinados com o Tempo.
O texto propõe ainda uma reflexão sobre o papel das universidades nesse
processo de construção de um mundo pluricultural, apontando os riscos de se
tentar transpor um sistema-mundo para dentro de outro sistema-mundo sem a
devida atenção as singularidades de cada sistema, em especial, sem a participação
direta de membros das tradições populares. Apesar de considerar os riscos, o
artigo apresenta dois exemplos bem-sucedidos, na esfera política e pedagógica,
para nos servir de farol ético-metodológico nessa empreitada tão necessária.
Aqui se cruzam abordagens filosóficas e poéticas, com exemplos práticos e
concretos de como esses saberes atravessam as realidades na construção de
novos projetos de futuro, novas encantações que precisam ser construídas a partir
de elevados padrões éticos de relação, evitando assim que o modelo vigente de
apropriação e apagamento se reproduza à revelia de nossa vontade ou como
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resultado de nossa inação.
Canto aos senhores do tempo e suas giras
Enfeita o terreiro, ô Ganga
Enfeita o terreiro, ô Ganga
Prepara a gira
Com folhinhas de pitanga
Ponto de abertura da gira
(Simas, 2022, p. 73)
Irôko, Kitembo, Viracocha, Teotihacan, Kala, Chronos, Anúbis, Enki... O Tempo.
Esta divindade primeira de muitos nomes que inaugura a criação e funda
cosmologias onde nós, humanos, viveremos em corpo e espírito. O Tempo não
como conceito abstrato, mas como presença emanada, experiência cruzada da
existência entre planos materiais e simbólicos que, atravessando as cronologias
lineares, move-se livremente em qualquer direção, conectando o que foi, com o
que é e com o que virá a ser um dia, desafiando nossa percepção racional de sua
atuação nos diferentes planos do existir.
O Tempo é o fundador da ancestralidade e de suas táticas primeiras de
manifestação: o contar histórias, o dançar, o cantar, o tocar, o escrever e inscrever
nos corpos, nas pedras, nas superfícies os símbolos coletivos que instauram e
ativam as memórias compartilhadas, os saberes para a vida cotidiana e para vida
espiritual não cindidas.
Em tempos de grandes esquecimentos e apagamentos é a eles, outra vez,
que chamaremos: as divindades do Tempo, da ancestralidade e da memória para
que, soprando em nossos ouvidos ensurdecidos suas canções atemporais, nos
façam dançar, nos auxiliando no processo de sonhar e construir outros mundos
possíveis, para além dos desencantamentos e da ignorância.
E se tratamos de pensar a ação da divindade Tempo em nosso plano de
existência como as fricções do passado no presente, nada melhor do que
inaugurar esta reflexão com um provérbio africano do povo Ashanti, atuais Gana e
Costa do Marfim, que diz: “Sempre é possível retornar e apanhar o que ficou para
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trás”, representado pelo ideograma Adinkra Sankofa, que mostra um pássaro
olhando para a própria cauda e que tem sido frequentemente utilizado por
artistas-pesquisadores afro-diaspóricos como símbolo de resistência e conexão
com os saberes tradicionais africanos na contemporaneidade.
Olhar para o passado, para as tradições e ressignificá-las no presente é um
modo de trazer à luz saberes marginalizados, desacreditados e invisibilizados, com
o firme propósito de fazer frente a esses apagamentos forçosos, realizados com
o propósito de fazer prevalecer uma única narrativa temporal no mundo, aquela
produzida pela modernidade e suas pretensões de universalidade.
Atravessar a compreensão de um tempo linear em direção a compreensão
de um tempo elíptico que, girando incessantemente em espirais ascendentes e
descendentes subverte as noções modernas de temporalidade, é uma forma de
contrariar esse regime de verdade absolutista e reinstaurar a perspectiva de outras
cosmovisões, não eurocêntricas, dando voz a narrativas esquecidas e legitimando
existências historicamente violentadas e desumanizadas.
Dar voz aos Xapiris (Kopenawa, 2021), aos Orixás, aos Nkisis, as Pretas e Pretos
Velhos e aos Caboclos da Jurema é aceitar outras cosmologias, temporalidades e
corporalidades como legítimas, cujas existências não negam o projeto ocidental,
mas, assentadas sobre outras dobras do tempo, reivindicam o direito de existirem.
Desse modo, podemos conceber que as diferentes tradições afro-brasileiras
e indígenas promovem, através do canto, da dança e da música táticas de
resistência material, simbólica e espiritual para fazer frente a essa monocultura
do saber imposta pelo Norte Global ao Sul Global (Santos, 2019) e que, dialogando
com a divindade Tempo, em suas qualidades de ancestralidade e memória,
resistem ao projeto de aniquilação de seus corpos e subjetividades, inscrevendo
suas possibilidades de existir do mundo.
Caberá, então, aos sujeitos desse Sul não-geográfico (Santos, 2019), no qual
estamos todos implicados como sujeitos brasileiros e latino-americanos ou, se
preferirmos como sujeitos dessa “Améfrica Ladina” (Gonzáles, 1982) traçar nossas
estratégias de luta e afirmação, como uma sociologia das emergências (Santos,
2019), que se sobreponham a sociologia das ausências e seus apagamentos
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históricos.
Que nos falem sobre outras “ecologias de saberes” (Santos, 2019) como
conjuntos outros de conhecimento possíveis, capazes de instaurar “ruínas
sementes”, indo buscar na memória, nas dobras do tempo, projetos outros de
futuros, capazes de produzir “apropriações contra hegemônicas”, eliminando as
hierarquias de saber e, finalmente, produzindo “zonas libertadas”, comunas que
nos rememorem da pluralidade existencial e epistêmica que há no mundo.
Tal ação empreende o que pesquisadores do campo dos estudos decoloniais
chamam de “giro decolonial” (Mignolo, 2000), dando protagonismo à discursos,
narrativas e sujeitos históricos solapados pelos violentos processos coloniais que
instauraram três tipos de colonialidade nas Américas (Quijano, 2010): a de poder,
que define quem pode representar a si e aos outros; a do ser, que define quais
subjetividades são aceitáveis e civilizadas e quais são abjetas e primitivas; e do
saber, que estabelece os saberes eurocêntricos como universais a partir de um
olhar positivista e cientificista, que exclui e deslegitima saberes tradicionais não-
ocidentais e não acadêmicos
Neste contexto global, passamos do paradigma da ausência, como
negação ontológica de subjetividades outras para o paradigma da agência, como
prática de legitimação e performatividade dessas identidades estigmatizadas. Se
é certo que para a estruturação das identidades é preciso sempre haver um
processo de inclusão
versus
exclusão, a afirmação da existência do Eu e do Outro,
criando o que Derrida chamará de
Différance
(2003): local de agenciamentos entre
sujeitos, deslocamentos e transgressões do que está estagnado. Também é
verdade que o século XXI tem sido palco de inúmeras lutas e pautas identitárias
que, em suas performatividades insistentes (Butler, 2003), elaboram estética e
politicamente um conceito de representatividade que vai abrindo espaço concreto
para a legitimação dos saberes afro-brasileiros e indígenas em nossas terras.
Tais lutas performadas publicamente visam desestabilizar as hegemonias
engessadas e cavar espaços para a afirmação de outras identidades e discursos,
capazes de forjar novas tradições a partir da costura de saberes ancestrais, o que
Hobsbawm chamará de “tradição inventada” (2012) e Anderson de “comunidades
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imaginárias” (2008).
O que, no caso do Brasil e em relação direta as tradições afro-brasileiras e
indígenas, são os vestígios e rastros de laços rompidos com a terra-mãe,
resultantes do genocídio e da escravidão, cujo elo deslegitimado ou apagado
precisa ser refeito tanto pela resistência política, quanto pela imaginação, pelo
coração e suas tessituras afetivas que, buscando na memória ancestral, vão
refazendo as tramas cindidas e produzindo novos padrões e ideogramas
identitários.
A arte é, portanto, campo de luta e disputa de narrativas identitárias neste
século e quando adentra os palcos e os espaços de educação formal e não formal,
mas, especialmente as universidades, este espaço de manutenção das hierarquias
epistêmicas ocidentais-brancas, não pode se esquivar de sua responsabilidade de
buscar outras metodologias de pesquisa, criação e ensino que coloquem em jogo,
em roda, em gira, os saberes afro-brasileiros e indígenas.
Ancestralidades, corpos e memórias como pedagogias
possíveis para as artes da cena
Dentro dessa perspectiva, no campo das artes da cena, três termos ganham
imensa relevância artístico-epistemológica:
ancestralidade, memória
e
corpo,
precisando estar implicados teórica e praticamente aos processos de ensino,
pesquisa e criação.
Segundo Inaicyra Falcão, a ancestralidade brasileira é pluricultural e
representa o laço indissolúvel entre os vivos e os mortos: “A homogeneidade de
expressão é destruidora, sendo, por isso, indispensável compreender a pluralidade
da cultura brasileira” (Falcão, 2021).
Ela pode ser experenciada pedagogicamente e metodologicamente no campo
das artes da cena de três formas complementares: “desde dentro”, a partir do
contato direto com as tradições; “desde fora”, a partir da observação e estudo de
diferentes saberes tradicionais a partir de um olhar acadêmico e “desde fora para
dentro”, em processos contínuos de reinvenção, reelaboração e trânsito entre o
que está dentro e o que está fora (Falcão, 2021).
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A ancestralidade é, portanto, o ponto de partida para a jornada épica do
religare
diaspórico ou originário, no caso dos povos indígenas. Um verdadeiro
processo de (re)iniciação que deve ser protagonizado por quem de direito, mas
não prescinde da presença compartilhada dos demais, nascidos neste tempo-
espaço chamado Brasil, constituído como território plural, celeiro de
inventividades, promessa latina e tardia de outros futuros e sociabilidades.
Reconheço que existem três tipos de ancestralidades que nos atravessam e
que precisam ser conhecidas. A primeira é a Ancestralidade de Nascença. Ela se
liga diretamente aos nossos laços sanguíneos, as nossas linhagens familiares e
todas as sociabilidades que dela se engendram. Essa, recebemos quando
nascemos, ou, se quisermos crer, antes mesmo disso e dela somos indissociáveis.
E como as condições de nascença são muitas, somos diversos e plurais desde
sempre, não podendo haver nenhuma dúvida de que, em tal condição original, não
nascença mais bem nascida, ou traço de existência física que seja hegemônico.
A segunda é a Ancestralidade de Pertença e essa nos conecta diretamente
com o lugar, com o território em que calhamos de nascer. Ela nos coloca em um
tempo-espaço específico, em um contexto histórico-social específico, e faz de
nós, comunidades singulares que fundam diferentes sistemas culturais no mundo.
Somos, portanto, a um tempo construtores e usufrutuários desses sistemas-
mundo partilhados.
No caso do Brasil, onde a hibridização cultural é a regra, ainda que não
sejamos negros ou indígenas, somos atravessados e conformados por esses
saberes em processos históricos de aculturação e apropriação, nem sempre
éticos, mas inegáveis. Podemos e devemos, portanto, vivenciá-las em nossas vidas
de diferentes formas, em diferentes graus porque ela nos uma identidade no
mundo: nos torna brasileiros.
A terceira é a Ancestralidade do Desejo, a que não se assenta no sangue ou
no território, mas no entre, esse terceiro espaço (Bhabha, 1994), caminho
intersticial ou liminar (Caballero, 2011), fundado pela imaginação-coração que
deseja alcançar o que não está posto à primeira vista, mas está lá, em outras
dobras do tempo-espaço para ser compartilhado também.
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Aquilo que não me foi dado vivenciar pelos vínculos de nascença ou pertença
e que, portanto, para se tornar uma realidade, é preciso caminhar em direção à. E
quem caminha, quem se move, deseja. E quem deseja, constrói para si, outros
imaginários possíveis de partilha com outras culturas, povos e línguas do mundo
ou com culturas diversas dentro de seu próprio território, o que também se
configura em um tipo de interculturalidade. E o faz não como quem as possui,
mas como quem as compartilha e saboreia do prazer inenarrável de não ser único,
especial, superior. De se saber apenas uma, dentre tantas formas de existir e estar
no mundo. Se praticada como ética, a Ancestralidade do Desejo permite que
experimentemos outros sistemas-mundo e aprendamos com eles estratégias de
praticar o Bem Viver (Acosta, 2016).
Aprofundando esse raciocínio, outros dois conceitos ganham relevância para
pensar as fricções e desdobramentos das três formas de ancestralidade: memória
e corpo. Para Martins (2021) aquilo que se instaura no corpo-voz dos sujeitos é a
memória viva de uma tradição, de um povo, o que ela irá chamar de Oralitura, um
conjunto de práticas transmitidas oralmente e vivenciadas coletivamente através
da performance ritual, desembocando numa encruzilhada de possibilidades
expressivas, encontradas em diversas expressões culturais populares afro-
brasileiras, indígenas e afro-indígenas.
As palavras escritas podem iludir, mas o corpo-voz não mente, por isso, tanto
em África, quanto nas culturas tradicionais da Ásia e entre os povos originários de
todo mundo, o corpo é o grande recipiente da tradição, entendida como memória
coletiva e atravessada pelas três formas de ancestralidade, a urdidura que permite
o desenho de muitas tramas diferentes, no caso, diversas expressões culturais.
Falcão (2021) e Martins (2021) nos falam da importância dos Itans e Oriquis,
das narrativas mitológicas e hinos laudatórios presentes nos rituais afro-religiosos
e dos cantos de invocação presentes na cultura popular brasileira como, por
exemplo, aqueles que vimos nos Congados e Jongos, como potentes mananciais
por onde flui um canal de reconexão com a ancestralidade africana negada e
apagada. Essas histórias, vividas no corpo-voz do iniciado, são um caminho
possível para conectar, outra vez, o corpo-vivido ao corpo-matriz da tradição,
propiciando uma experiência muito concreta de pertencimento e reescrita da
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história pessoal e coletiva de seus descendentes no Brasil.
De modo complementar, Zeca Ligiéro (2011), inspirado pelo pesquisador
congolês Fu-Kiau (2014) nos apresenta o conceito de motrizes culturais como
disparadores comuns a diferentes manifestações culturais de matrizes africanas
no Brasil. Dentre eles, ressalta o “cantar-batucar-dançar”, como instrumento
eficaz de restauração e instauração desses saberes africanos negados na diáspora.
Não é preciso dizer que essa tríade se replica nas diferentes tradições
culturais dos povos indígenas no Brasil e, como resultado esperado, aparece
íntegra em nossas danças dramáticas3 e diversas expressões da cultura popular
brasileira. Podemos pensar, portanto, que as motrizes culturais são outro
dispositivo artístico-pedagógico de levar esses saberes para dentro das escolas,
universidades e espaços não-formais de educação. Partilhando elementos
constitutivos de diferentes tradições a partir de seus cantos, danças, narrativas
etc., podemos reformular nossos currículos e práticas pedagógicas e artísticas.
Ligiéro (2011) nos propõe, por exemplo, o estudo da tríade miudinho, ginga e
rebolado para entender as diferentes corporeidades africanas que impregnaram
muitas de nossas tradições culturais populares, a saber: o samba, o jongo, a
capoeira, dentre tantas outras. Trazidas para as salas de aula das universidades de
teatro e dança, elas podem, não apenas nos trazer outros referenciais corporais,
mas outras possibilidades de enunciação, narrativas e performatividades, para
além daquelas impostas por anos de eurocentrismo.
Desse modo, a ancestralidade africana e indígena são a memória viva
instaurada no corpo-voz de seus descendentes diretos, mas também daqueles
que são gentes dessa terra chamada Brasil. Memória que vai fluindo e irradiando
através de diferentes tradições culturais populares e religiosas, compreendidas
como exemplos concretos de desdobramentos e fricções do passado no presente,
de reatualizações dessa história primeva ou mesmo de reescrita afetiva e
simbólica daquilo que não pode mais ser resgatado, mas que, à despeito da
3 O termo Danças Dramáticas foi utilizado, pela primeira vez no Brasil, por Mario de Andrade e refere-se as
danças tradicionais brasileiras constituídas por bailados (trechos de dança pura ou performance
processional) e embaixadas (trechos com dramatizações), categorizadas como autos populares sendo, o
mais tradicional deles em todo território nacional, o Bumba-meu-Boi (Andrade, 2002).
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violência perpetrada, pode ser reinventado e reimaginado.
Como consequência, a ancestralidade assume um caráter temporal cíclico,
ligando passado, presente e futuro numa linha temporal elíptica, sendo entendida
como a possibilidade de acessar um saber-fazer sempre a partir de uma posição
renovada a cada giro no espaço-tempo que nos é dado partilhar e celebrar.
Salve o congo e o congá, os congadeiros e a congada
Hoje é dia de festa,
Hoje é dia de alegria,
Festa de Santa Efigênia
Com Rosário de Maria.
(Congada de Santa Efigênia de Mogi das Cruzes/SP)
Como exemplos dessa experiência de reatualização e reinvenção das
tradições ancestrais, podemos citar uma tradição cultural afro-brasileira, as
Congadas, capaz de instaurar não apenas a ancestralidade do corpo-vivido, através
da aplicação prática e diversa da tríade “cantar-batucar-dançar”, mas a
instauração desse tempo-espaço elíptico, sagrado e ritual, em espaços públicos,
muitas vezes negados a corpos negros e indígenas e suas comunidades.
Leda Martins (2021) e Zeca Ligiéro (2011), nos falam das Congadas como
manifestações afro-brasileiras de caráter processional e origem Banto, que
sincretizam elementos africanos, cristãos e, posteriormente, indígenas em
episódios de dramatização da vinda dos africanos para o Brasil, através de ritos de
aflição e
religare
. Trata da Coroação do Rei do Congo e da Rainha Jinga, de Angola,
através de cortejos e embaixadas: canto, dança, música, jogos de agilidade,
simulações de guerra, hasteamento de mastro, cenas de coroamento, bailes etc.,
vindo a influenciar a formação das Escolas de Samba.
Sua estrutura simbólica e litúrgica consiste na dramatização e ritualização da
vinda dos negros para as Américas. Ritos de aflição, religação, transcritos por
estratégias de ocultamento (realidade opressiva), o que inclui o sincretismo com
o catolicismo e as pajelanças indígenas (caboclos). É composta por
cantigas
:
partes dançadas e ritualizadas em formato de procissão/cortejo e
embaixadas
:
danças-dramáticas e encenações (autos), ciando uma verdadeira
pedagogia
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congadeira
, que visiona outras teatralidades e performatividades disponíveis para
nós.
As Congadas ocorrem especialmente na região sudeste, centro-oeste e sul
do Brasil. Entretanto, o primeiro registro de um cortejo de Congada ocorreu em
Pernambuco em 1674. Depois, em 1704, na Bahia, ambos nas Igrejas de Nossa
Senhora do Rosário dos Pretos, vinculadas às Irmandades do Rosário e Irmandades
de Santa Efigênia, que no século XVII organizavam as Congadas, com a aprovação
da igreja católica, como parte das celebrações do ciclo natalino.
Seus temas são: 1) Vida de São Benedito; 2) Encontro da imagem de Nossa
Senhora do Rosário no mar por um Moçambique (mito de origem); 3) Luta de
Carlos Magno contra os mouros; 4) Santa Efigênia, a princesa etíope; 5) Vida do Rei
do Congo, Galanga ou Chico Rei4.
As Congadas possuem suas próprias hierarquias: Congado de cima (reis,
rainhas, príncipes e a corte); Congado de baixo (embaixadores, secretários,
capitães). Os grupos são chamados de
ternos
ou
guardas
e podem ser de
diferentes tipos: Congos, Moçambiques, Marujos, Catopés, Vilões, Caboclos (já de
influência indígena), Contradanças, Ternos Femininos etc. (Andrade, 2002).
Os
congos
vão na vanguarda, abrem os caminhos do cortejo e são
representações guerreiras. Vem em duas alas paralelas com movimentos rápidos
e bélicos, usando espadas e bastões. Os
moçambiques
são os guardiões, usam
guizos nos pés e dançam aos toques dos tambores sagrados. Sua dança mais
lenta e sincopada, seus pés nunca se afastam muito da terra e seu tronco
permanece quase sempre curvado. Eles guardam o poder espiritual da tradição.
Pelo que foi apresentado, fica claro que as Congadas, ainda que de origem
Banto, são conformadas por um profundo processo sincrético, como estratégia
pedagógica de preservação de saberes e proteção de seus membros das violências
impostas pela cultura dominante, entre a matriz africana, a matriz europeia e a
matriz indígena.
Esse processo permitiu a criação de comunidades alternativas ou
4 Sobre isso ver: Congadeiros - episódio 1 | Histórias do congado (youtube.com) e Congadeiros - episódio 2 |
Origens do congado (youtube.com).
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communitas,
como definido por Turner (1982), onde o pertencimento e o apoio
mútuos são possíveis, como estratégias de afirmação e sobrevivência, como bem
se nas histórias das Irmandades dos Homens Pretos e sua ação direta na
compra da liberdade de negros escravizados e como espaço de inserção e suporte
material e simbólico para os negros marginalizados e estigmatizados pela
sociedade pós-abolição.
Não é preciso dizer que tais tradições dependem, quase que exclusivamente,
de meios de transmissão oral de saberes e fazeres, tornando ainda mais
contundente a afirmação de Martins (2021) de que é no corpo-voz dos mestres e
mestras que está a memória, o saber e o vínculo com as ancestralidades.
Podemos concluir, portanto, que tradições populares não são estruturas
engessadas no passado, mas organismos vivos que se agenciam no presente, no
campo ético-estético, como forma de resistência e (re)existência material e
simbólica, projetando um futuro que começa no agora e caminha, circularmente,
para encontrar o passado em uma outra dobra do tempo.
As universidades públicas e a formação de intérpretes a partir
da cultura popular
Em 2003 foi promulgada a lei 10.639 que tornava obrigatório o ensino de
cultura africana e afro-brasileira nas escolas. Em 2008 foi promulgada a lei
11.645, que também tornou obrigatório o ensino da cultura indígena. Em 2009 foi
emitido pelo MEC o Plano Nacional para uma Educação Étnico-Racial. Em 2010, o
Conselho Nacional de Educação, emitiu os pareceres 4 e 7 para a
implementação da educação escolar Quilombola, seguida, em 2012, pela
promulgação das Diretrizes Nacionais para Educação Quilombola, impulsionando
a entrada desses saberes nas licenciaturas das universidades.
Sendo a cultura popular brasileira um campo onde esses saberes tradicionais
se entrelaçam e florescem, parece natural que, de repente, o assunto surja nos
programas de ensino superior como abordagem ideal para se cumprir as leis, mas
é preciso atentar às sutilezas e possíveis contradições implicadas nessa
perspectiva.
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Florianópolis, v.4, n.53, p.1-19, dez. 2024
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É preciso que nos perguntemos: que saberes africanos, afro-brasileiros e
indígenas precisam adentrar os espaços educacionais? E, sobretudo, como fazê-
lo preservando suas integridades, seus contextos de produção e modos de
transmissão? A educação superior, do modo como está posta, conta de
absorver como pedagogia a oralidade? O ritual? A festa? A brincadeira? Está apta
a dar protagonismo ao corpo-voz? E, sobretudo, está disposta a rever a hierarquia
de saberes estabelecida para produzir novos currículos e práticas efetivas de
ensino-aprendizagem? Como docentes, estamos dispostos a revisar nossos
saberes e construir novas bases referenciais de criação e pesquisa?
Sem essa revisão íntima e profunda do sistema educacional, suas entranhas
e engrenagens, as chances de uma transformação significativa e qualitativa nos
currículos atuais, parece pouco promissora e bastante utilitarista.
Como artistas da cena devemos nos perguntar seriamente: o que estamos
buscando quando nos aproximamos da cultura popular e a levamos para nossas
salas de aula, ensaio e espetáculo? Quando lanço essa pergunta, me lembro de
Rustom Bharucha, no livro
Theatre and the World: performance and the politics of
culture,
queixando-se de como Peter Brook havia conseguido transformar o grande
épico hindu,
Mahabharata
, em algo absolutamente ininteligível para os indianos
:
“Ele pegou um de nossos textos mais significantes e o descontextualizou de sua
historicidade com o propósito de ‘vendê-lo’ para as audiências do Ocidente”
5
(Bharucha, 1993, p. 68). E devemos sempre nos questionar sobre como levar a
cultura popular para a academia sem incorrer no mesmo equívoco
academicista/colonialista (Cippiciani, 2023).
Corre-se o risco, então, de esvaziamento e achatamento dessas tradições
culturais, que passam a funcionar como trampolins para se alcançar parâmetros
e metas formativas alheias a sua estrutura original, que pode ser fragmentada,
recortada e rearranjada, de acordo com os interesses de cada disciplina ou área
do saber, contando com pouco ou nenhum contato direto com suas fontes
criadoras: mestres, mestras, brincantes, tocadores etc., sem nenhum tipo de
5 He has taken one of our most significant texts and decontextualized it from its history in order to ‘sell’ it to
audiences in the West. (Tradução nossa)
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contextualização histórico-social.
Não se trata de criar impedimentos e dificuldades para que esses saberes
acessem os centros hegemônicos de produção de saber e cumpram sua função
de balançar as estruturas, mas de refletir eticamente sobre como fazê-lo, a partir
de estratégias, metodologias e didáticas que não os apequenem.
Dentro dessa perspectiva, gostaria de apresentar duas ações que considero
bem-sucedidas: a primeira de teor macro estruturante e a segunda, de teor
pedagógico, como uma lente que se fecha sobre a estrutura e se desenvolve a
partir dela:
Programa Nacional Encontro de Saberes
A criação do Programa Nacional Encontro de Saberes, em 2010, pelo INCTI,
Instituto do CNPq na Universidade de Brasília, pelo Prof. Dr. José Jorge de Carvalho,
nasce como estratégia política para decolonizar as universidades, “desobrigar-se
de reproduzir o eurocentrismo compulsório” (Carvalho, 2018), promovendo a
diversidade epistêmica e a equidade étnico-racial, através de ações afirmativas
para o corpo discente, o corpo docente e pela construção pluriepistêmica dos
planos de ensino, currículos e suas ementas:
Podemos qualificar, então, de cotas epistêmicas o atual movimento do
Encontro de Saberes, que promove a inclusão dos mestres e mestras dos
nossos povos tradicionais indígenas, quilombolas, as comunidades
afro-brasileiras e as culturas populares tradicionais como professores
das universidades em matérias regulares, com a mesma posição de
autoridade dos docentes doutores (Carvalho, 2018, p. 80).
Amparado não apenas nas leis já citadas, mas na lei de cotas sócio raciais no
ensino superior nº 12.711/2012 e na Lei de Cotas Raciais em Concursos Públicos
12.990/14, o programa reforça a necessidade de não apenas acolher negros e
indígenas nas universidades, mas considerar seus saberes legítimos. Entretanto,
como fazer isso, sem incluir também seus mestres e mestras? Sem dar o
protagonismo epistêmico a quem de direito?
Através da concessão de títulos de notório saber para mestres/mestras
tradicionais e da cultura popular, o Programa Nacional Encontro de Saberes
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permite que esse desnivelamento neocolonial seja equacionado, contribuindo para
a formação de um sistema acadêmico híbrido que coloca em paridade doutores e
mestres/mestras tradicionais.
Trata-se, portanto, de uma ação política macro estruturante que viabiliza a
inclusão desses saberes nas universidades, entre docentes e discentes, abrindo
espaço para que outros currículos sejam gestados no chão das salas de aula e no
intercâmbio entre diferentes sistemas-mundo.
Proposta pluricultural de arte-dança-educação
A segunda proposta é metodológica, didática e pedagógica e se estabelece
como um modo de fazer definido por Inaicyra Falcão como “desde dentro para
fora” (Dos Santos, 1993 apud Falcão, 2021), que implica em aprender no seio das
tradições, em seu caso, tradições africanas e afro-brasileiras. Tal ação implica em
ir direto às fontes, aos mestres e mestras e aprender com eles em seus espaços
de criação e convivência. Essa abordagem nos pouparia da possibilidade de
incorrer em etnocentrismos, posturas colonialistas e apropriações culturais
indébitas, mais comuns do que gostaríamos de admitir.
Tendo aprendido “desde dentro para fora”, pode-se, então, aprender “desde
fora para dentro” (Falcão, 2021). Quem vivenciou uma tradição verticalmente pode
analisá-la e compreender como articulá-la com outros saberes, alheios àquele
sistema cultural. então, é possível pensar em produzir traduções, releituras das
tradições em outros contextos de criação, de forma ética e embasada. Ou seja,
produzir outras textualidades artísticas que não firam ou apequenem as origens.
Tal metodologia conta com princípios didáticos bem definidos, tais como:
exercícios técnicos de corpo-voz, exercícios criativos, ampliação de referencial
bibliográfico e pesquisas de campo (Falcão, 2021). Tudo isso ensejando uma
proposta pedagógica pluricultural que viabilize:
[...] a possibilidade de identificação do sagrado no cotidiano e do
cotidiano no sagrado; a reafirmação da história pessoal na vivência da
tradição; a reelaboração dessa tradição de origem na sociedade
contemporânea (Falcão, 2021, p. 32).
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Canto de despedida
Este texto, que em seu canto de abertura começou com um ponto, terminará
com um provérbio Africano, o conhecido
Ubuntu
ou Sou pelo que Somos6. O que,
nesta escrita em especial, significa pensar os agenciamentos das tradições afro-
brasileiras, indígenas e afro-indígenas nas diferentes frestas do tempo, como
estratégias potentes para fazer frente aos violentos processos do capitalismo
tardio no Sul Global (Santos, 2019), cuja proposta é deixar morrer todos que não
produzem para o sistema ou de acordo com suas regras, legitimando a existência
material e subjetiva daqueles que foram excluídos pelo projeto civilizatório branco,
patriarcal e euro centrado da modernidade.
Cantar, dançar, batucar, saudar os ancestrais, consagrar a natureza, não
deixar morrer o sentido do sagrado que habita este mundo para além dos dogmas
religiosos, é ação concreta no mundo de produzir não-esquecimento, de resistir
existindo com profundidade, de projetar contranarrativas que operem na
contramão dos discursos de desesperança e inação, de reafirmar que somos e
estamos dispostos a não arredar de nossas convicções e projetos de existência
que desafiam o
establishment.
Este artigo trata das dificuldades encontradas nesta jornada, mas também
das táticas de superação que estão sendo postas em prática agora por muitas
pessoas ao redor do mundo e, em especial, entre nós, artistas, docentes e
pesquisadores brasileiros, para equilibrar essa balança e produzir algum tipo de
simetria e equidade cultural, política e social entre diferentes sistemas-mundo.
Entretanto, é imperativo que essa proposta não seja equivocadamente
compreendida como a simples substituição de uma monocultura por outra, mas,
antes a substituição de um modelo de pensamento universalista por um modelo
“pluriversal” (Dussel, 1998), capaz de produzir Liberdade, Igualdade e Fraternidade,
assentados sobre a pedra fundamental da Diversidade. Valores civilizatórios e
éticos fundamentais, capazes de produzir o “Ser Mais” no mundo (Freire, 1978) e,
em última análise, nossa própria sobrevivência como espécie neste planeta.
6 Ver: O Que é a Filosofia Ubuntu, e o Que Podemos Aprender com Ela? - Revista Meu Retiro
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