1
“Nunca se é corpo sozinho”
Entrevista com Sofia Neuparth
Concedida à Marina Magalhães
Para citar este artigo:
MAGALHÃES, Marina; NEUPARTH, Sofia. "Nunca se é corpo
sozinho". [Entrevista com Sofia Neuparth concedida à
Marina Magalhães].
Urdimento -
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v.1, n.50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0502
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
2
“Nunca se é corpo sozinho”
Marina Magalhães1
Sofia Neuparth2
Resumo
A entrevista com Sofia Neuparth traz a perspectiva da pesquisadora sobre o ensino-
aprendizagem em dança a partir da ideia de um espaço elástico de formação. A criadora tem
um percurso importante e singular no seio da arte contemporânea em Portugal. No final dos
anos de 1980 deu forma a um espaço de investigação, experimentação e criação a partir dos
estudos do corpo, do movimento e do comum: o c.e.m-centro em movimento. Neste
depoimento, Neuparth discorre, sobretudo, acerca de sua trajetória artística, seu sistema de
estudo do “nascer do gesto” e também a respeito do c.e.m como um organismo vivo e em
movimento.
Palavras-chave:
Sofia Neuparth. Dança Contemporânea. Lisboa. c.e.m-centro em
movimento
“You are never a body alone”
Abstract
The interview with Sofia Neuparth brings the researcher's perspective on teaching-learning
in dance based on the idea of an elastic training space. The creator has an important and
unique career within contemporary art in Portugal. In the late 1980s, she created a space for
investigation, experimentation and creation based on studies of the body, movement and the
commonplace: the c.e.m-centro em movimento ("center in movement"). In this testimony,
Neuparth talks, above all, about her artistic trajectory, her study system in the “birth of
gesture” and also about the c.e.m as a living and moving organism.
Keywords:
Sofia Neuparth. Contemporary dance. Lisbon. c.e.m-centro em movimento.
“Nunca eres un cuerpo solo”
Resumen
La entrevista a Sofia Neuparth trae la perspectiva de la investigadora sobre la enseñanza-
aprendizaje en danza a partir de la idea de un espacio elástico de entrenamiento. El creador
tiene una trayectoria importante y única dentro del arte contemporáneo en Portugal. A finales
de los años 80, creó un espacio de investigación, experimentación y creación a partir de
estudios del cuerpo, el movimiento y lo común: el c.e.m-centro em movimento (“centro en
movimiento”). En este testimonio, Neuparth habla, sobre todo, de su trayectoria artística, de
su sistema de estudio en el “nacimiento del gesto” y también del c.e.m como organismo vivo
y en movimiento.
Palabras-Clave:
Sofía Neuparth. Danza contemporánea. Lisboa. c.e.m-centro em
movimento.
1 Doutorado em Artes Performativas e da Imagem em Movimento pela Universidade de Lisboa e Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Mestrado em Artes Cênicas pela UNIRIO. Especialização em
Preparação Corporal nas Artes Cênicas pela Faculdade Angel Vianna (FAV). Graduação em Licenciatura em
Dança pela FAV. Professora Adjunta do Departamento de Interpretação da UNIRIO.
marinacamposmagalhaes@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0488277676915141 https://orcid.org/0000-0001-6560-9501
2 Nasceu em Lisboa em 1962. É uma bailarina, coreógrafa e investigadora portuguesa. Iniciou suas atividades
como professora de dança aos 18 anos de idade. Desde então, dedica-se à uma investigação artística na
qual integra dança e outras formas de conhecimento como a embriosofia e a filosofia. Cofundadora, na
década de 1990, do c.e.m centro em movimento.
cem@c-e-m.org https://c-e-m.org/equipa/sofia-neuparth/
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
3
Figura 1- Sofia Neuparth. Fotografia: Valentina Parravicini. Acervo pessoal da artista
Nascida em Lisboa, em 1962, Sofia Neuparth iniciou seus estudos na dança
com mestres tais como Teresa Rego Chaves, Anna Mascolo e, mais tarde, com
Tony Hulbert na dança clássica. Teve ainda a oportunidade de estudar e trabalhar
ao lado de nomes como Eva Karckzag, Simone Forti, Steve Paxton, Mary O’Donnell
Fulkerson, Bonnie Cohen, Lisa Krauss, dentre outros. Pouco depois de iniciar seus
estudos artísticos, aos 18 anos começou a dar aulas. Primeiro no European Dance
Development Center, em Arnhem, na Holanda, no qual chegou para um estágio de
alguns meses e acabou substituindo a então codiretora da escola, Mary O’Donnell.
Depois, ensinando Dança e Anatomia-Fisiologia Experiencial como uma
investigação sobre as percepções do corpo e do movimento. Em consequência,
foi instigada a desenvolver um sistema aberto de ensino-aprendizagem que
constitui uma abordagem própria ao
nascer do gesto e à fisicalidade
a partir da
dança em interface com outras áreas do conhecimento, como a filosofia, a
embriologia, a fisiologia, a geografia crítica e a antropologia.
No final da década de 1980 começou a juntar pesquisadores de diversas áreas
para refletir sobre a urgência da criação de um espaço elástico de formação e
investigação artísticas em Portugal. Foram alguns anos até a fundação do
c.e.m-
centro em movimento
, um organismo singular com uma sólida longevidade e uma
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
4
notória atividade continuada nas áreas de formação, investigação, criação e
documentação. O c.e.m atua como uma estrutura que dá suporte a processos de
pesquisa em suas mais diversas expressões. A partir de espaços experimentais
incentiva novas práticas e cria um campo poroso e aberto ao conhecimento. Seu
trabalho fundamenta-se na inscrição do corpo na pesquisa artística mas também
na sua potência relacional. Trata-se de um espaço que contribui com a
descentralização e uma democratização do saber, tendo uma potente escala
internacional (seja como porta de entrada de artistas vindo de outros países, em
particular do Brasil, mas também em sentido inverso, a partir de
compartilhamentos e outras estratégias).
Essa entrevista foi realizada em Lisboa, em 06 e 08 de julho de 2021, e faz
parte de uma pesquisa realizada no âmbito do Doutoramento em Artes da
Universidade de Lisboa em cotutela com a Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro (UNIRIO) sobre o ensino-aprendizagem da dança em sua interface com
as práticas somáticas.
Figura 2 - PORTA33 Sofia Neuparth | Coalescer, no espaço do corpo em pensamento3
3 PORTA33 -
Coalescer, no espaço do corpo em pensamento
Seminário contínuo e colectivo de desenho, dança e filosofia. Concepção: Ana Mira PORTA33 Fevereiro
2020 Fevereiro 2023
Fonte: https://www.porta33.com/porta33_madeira/eventos/content_eventos/coalescer/coalescer-sofia-neuparth.html
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
5
Marina Magalhães - Bom dia Sofia, tudo bem? Essa entrevista faz parte de
uma pesquisa sobre o ensino da dança em uma abordagem somática que
estou realizando em Lisboa e no Rio de Janeiro. Eu gostaria de conversar
sobre as possibilidades de formação em dança e os processos de ensino-
aprendizagem. Mas antes disso, você poderia se apresentar?
Resumidamente, quem é você?
Sofia Neuparth -
[
Risos
]. Eu costumo brincar e dizer que sou uma pessoa
coletiva. Eu estudo embriosofia e sempre penso nessa movimentação que vai
gerando corpo. O fascínio pelo movimento é o meu primeiro nome. O movimento
que atravessa a gestualidade. Para mim, gesto e movimento não são exatamente
a mesma coisa. Não estou falando de um conceito, estou falando de uma
experiência de "falejar": deixar sair a fala e ver se aquilo que eu estou a sentir ou a
ser, de alguma forma, afina-se com a formação das palavras e do discurso. Mas
eu desconfio que o movimento será toda essa ondulação, vibração, transpiração
que depois aparecem nas formas. E então, o movimento é o que no fundo gera os
tecidos do corpo. Em termos embrionários, se os diversos componentes como
células, espaços internos ou fluidos não se deslocassem, não se
movimentassem, não se juntassem ou se empurrassem, não havia agora sequer
um osso. Portanto, para mim, o movimento é essa contínua ondulação mais ou
menos perceptível que, na dança, passa por ser gesto.
Para mim, a dança é, portanto, a poesia do gesto, a poética, a criação do
gesto. Quando eu era mais pequenina, eu tinha muita energia. Mas eu nunca tive a
ideia de que seria bailarina, embora adorasse assistir dança. Mas só comecei a ter
aulas de dança com quatorze anos. Não tínhamos dinheiro para isso. Nossas
atividades eram brincar, cortar papéis, jogar a bola na rua e coisas assim, um
bocadinho mais selvagens digamos. Eu realmente era assim: uma força bruta de
energia. A minha mãe teve a ideia de me pôr na ginástica rítmica. Porém, era
impossível. Primeiro, as pessoas estavam todas vestidas iguais. Depois era aquela
coisa de tirar a bola e apanhar, ou tirar a corda. Eu andava trepada pelas
paredes. Não estou a dizer que a ginástica rítmica se ensine dessa forma, mas
tenho 59 anos. Portanto, eu fui expulsa da aula de ginástica rítmica. E depois de
ser expulsa, cá fora, à espera, a pensar como é que eu ia dizer para minha mãe e
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
6
para o meu pai o que tinha acontecido, eu ouvi uma música. Espreitei uma outra
aula, no caso era uma aula de dança moderna, e apaixonei-me. E foi por que
começou. Quer dizer, eu sempre dancei. Mas, pensando na dança codificada, entrei
pela dança moderna. Depois, comecei a fazer balé. Mas também me lembro que
a professora intimidava as pessoas com coisas tipo "vocês não podem comer
chocolate" e eu sempre tinha vontade de rir. Sempre me senti muito livre, muito
feliz. Nunca me senti aprisionada, nem obrigada a fazer coisa alguma.
Curiosamente, a forma física ou biológica com que o meu corpo se compõe nunca
foi propriamente muito “balética”, no sentido de ter as pernas até as orelhas ou
ter um
grande
turnout
ou por aí fora.
De modo que sempre estudei, desde antes de começar a dançar, sempre me
interessei e lia muito. Mas sempre me interessou as histórias que depois vim a
saber que se chamavam anatomia e fisiologia. Porém, eu senti que era muito mais
interessante estudar os corpos vivos ao invés dos corpos dissecados e mortos.
Isso nunca me fez sentido. É aquilo de olhar para o corpo morto e tentar imaginar
como é que ele seria vivo. Quando tu estás aqui cheia de vivacidade, gestualidade,
ritmos, respiração e tudo. Portanto, desde o início dediquei-me a estudar de uma
forma bastante experiencial. E nunca quis estar em uma escola, nunca gostei da
ideia de escolas e academias. Eu sempre fui mais de criar desde a raiz: não entrar
dentro de formas que existem, mas estar na
gestação das formas
. Mas agora,
por acaso, ao contrário, às vezes vou dar aulas na academia. Tantas coisas dão
voltas, não é?.
Você falou um pouco desse interesse pela anatomia e eu li que você
começou lecionando aulas de dança, anatomia e fisiologia experiencial.
Você pode falar um pouco mais sobre isso? O que você chama de anatomia
experiencial?
A ideia de ser experiencial tem a ver com o fato de não ser o estudo do corpo
morto. Ou seja, não era o estudo de um cadáver. Eu chamava de anatomia porque
eu não tinha este fascínio pelas palavras que agora eu tenho. Hoje acredito não
ser possível essa ideia de uma descrição em partículas. Eu sinto que aquele
Frankenstein, de Mary Shelley, apresentou ao mundo um sintoma, uma forma de
ver o corpo que prevalece ainda hoje: um corpo que é composto por peças. Em
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
7
termos embrionários, as pessoas continuam a achar que são o resultado dos
genes. Porém, ser um monte de órgãos, tecidos e sistemas, com um sistema
nervoso central que regula o corpo todo é descomunalmente distante da minha
experiência de corpo e daquilo que eu ensino ou aprendo diariamente. Essa ideia
de que tu és um monte de peças que se ajuntam e que são energizadas por uma
força externa a ti, enquanto, por outro lado, eu continuo a sentir que o criar corpo,
o ser, o corpo que tu vai sendo, mesmo biologicamente em termos das lesões ou
dos desvios, mesmo em termos mais materiais (eu não estou nunca só a falar de
um corpo biológico material), mas o criar corpo é o que caracteriza, a meu ver, o
humano. Evidentemente que esse criar corpo está em relação com o mundo, pois
nunca se é corpo sozinho. Mas não faz sentido essa ideia de um estudo de um
corpo decomposto.
Quando comecei a dar aulas, tinha dezoito anos. Comecei a fazer aulas aos
catorze e aos dezoito estava a dar aula. Como eu adoro brincar, fui convidada para
dar aulas de dança a crianças. Isso durou seis meses porque o que eu fazia era
brincar. Agora chama-se Dança Criativa. Na altura chamava-se
selvageria total
. Os
pais e os Encarregados de Educação queriam que as crianças andassem de
tutu
a fazer aquilo que a gente os mandasse fazer. Eu achava que aprisionar um
corpo em um vocabulário um corpo de cinco anos, mas, como te disse,
nenhum corpo deveria alguma vez ser aprisionável então, o corpo de uma
criança que julga que tem de fazer aquilo, porque o adulto está a dizer, não dá.
E por acaso minha continuação foi logo diretamente com pessoas que tinham
a minha idade. Eu tinha dezoito anos e os meus alunos tinham vinte, vinte e cinco.
E uma coisa que me marcou profundamente foi que uma mestra de bailado, a
Madame Violette Quenolle, que era mestra de bailado na Companhia Nacional de
Bailado e com quem eu fazia aulas na altura, ela havia sido estrela da Ópera de
Paris, e um dia veio a ter comigo. Eu não devia ter muito mais do que dezoito,
dezenove ou vinte anos. Portanto, não tinha uma longa experiência em dar aulas.
E ela tinha me visto a fazer aulas com ela e com outros mestres, mas nunca
tinha me visto a dar aulas. Ela veio me pedir para eu dar aulas a uma rapariga,
uma miúda de quatorze anos, que estava na escola da Companhia Nacional de
Bailado e estava em fase terminal de vida. Eu fiquei:
what the fuck
? Eu sou
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
8
completamente a favor da vida e da energia e desde muito miúda que lido com
casos radicais de morte. Então essa intensificação das especificidades de
determinados desvios daquilo que chamamos de um corpo equilibrado, saudável,
ou seja, um estudo cada vez mais alargado das mais diversas áreas ligadas à
filosofia e outras áreas do conhecimento em relação à anatomia ou à fisiologia,
cada vez foi se intensificando mais. Passados dois anos essa rapariga morreu. Eu
nunca vou esquecer porque foi mesmo até o fim da vida dela. Fazíamos aula de
balé juntas. Eu a gerir energia, a poesia do sabor de estar a dançar, sabendo que
ela talvez tivesse menos capacidade física de executar, mas via-lhe a fazer as
coisas. Portanto, tem a ver com convivência.
Eu ainda hoje continuo a expressar nas minhas aulas e nos encontros que a
informação estritamente científica, ou aquilo que chamamos de fatos, não é o que
gera o nosso conhecimento. Eu acho que o que informa realmente o nosso
conhecimento, o conhecimento que nós podemos experienciar, é muito
infinitamente mais amplo do que os fatos que tu podes nomear ou ver escrito em
algum livro. A tua experiência, o não-saber eu falo muito sobre o não-saber, há
muitos anos – portanto o não-saber é tu estares realmente com a experiência do
movimento, da gestualidade, da respiração, mas também dos sonhos, da magia,
da invenção. Quando uma criança faz um desenho do corpo e aquilo não te parece
nada um desenho do corpo, eu agradeço imensamente que ela ainda não tenha
sido completamente aprisionada numa representação do corpo, que ela possa
trazer ao convívio, à convivência, à partilha, o traço, o rabisco de um corpo que ela
sente.
Na altura chamava anatomia experiencial porque vem da experimentação e
da experienciação das descobertas que vêm principalmente dos encontros,
daquilo que se chama dar aulas, mas que eu posso dizer: eu danço. Cada dia danço
comigo própria. Sinto também que se não estás contigo não pode estar com
outros. Não é possível. Mas os encontros com as pessoas – que vem ao encontro
com os corpos como a luz, o vento, a sala – o encontro que se gera é um grande
ensinador. Portanto, eu continuo a estudar a neurociência, embriologia, sistema
imune, articulações... é um fascínio que tenho. Porém, quando a coisa fica a meu
ver muito desidratada, tem sempre que saltar. Eu tenho grande dificuldade em me
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
9
relacionar com fórmulas, quando a coisa começa a ser tipo fórmulas químicas, eu
quero ver movimento. Portanto, estou sempre a ouvir aquela informação que vai
nos livros ou nas conversas ou nas aulas, na partilha com outros estudiosos de
outras áreas e me pergunto: como é que eu ouço isso em movimento? O que seria
isso em movimento?
Você comentou que denominou esse trabalho como anatomia experiencial
naquela época, mas que se fosse hoje daria outro nome. Como você
denomina o seu trabalho atualmente?
Em relação a embriosofia ou embriologia costumo denominar de
Estudos do
nascer do gesto
:
a partir da experiência da dança e do estudo da embriosofia
. Com
isso eu espero que aquele que for a esse encontro também tenha a percepção de
que existe um fundamento científico para o que eu estou propondo, ou seja,
existem descobertas da ciência, nomeadamente da biologia ou da embriologia. Por
exemplo, esta semana, eu ia dar um curso de três dias sobre a experiência da
gestualidade. O que eu faço nunca se restringe a pessoas sentadas com uma
caneta e um papel, embora a caneta e o papel façam sempre parte. Toda a gente
escreve e eu gosto muito da escrita, acho que é uma grande fonte de dança. Mas
não se reduz a pessoas paradas sentadas numa mesa. sempre muita
gestualidade, muita espacialização. Mas ia dar esse curso sobre a experiência de
algumas paisagens específicas da fisicalidade humana, como por exemplo, o
esqueleto, o sistema digestivo, as articulações, o estudo do movimento em dança
e da experiência do dia a dia sob um olhar da fenomenologia. E desde que
começaram os confinamentos [advindos do Covid19], eu tenho feito os trabalhos
de dança de forma híbrida. Mas este curso, por acaso, queria que fosse muito tátil.
Porém, agora nesse momento, o toque é um bicho muito complexo.
Eu trabalho toque muitos anos, mais de trinta anos. Nunca quis chamar
de nada, sempre disse: “mãos para nada”. pessoas que perguntam se tem a
ver com
Reiki
ou se tem a ver com outras técnicas de toque. Mas não. Tem a ver
com “mãos para nada”. Mas é muito importante o acompanhamento próximo de
quem está a praticar o toque como eu o convido, para não se transformar em algo
que vai à procura de qualquer coisa no corpo do outro. Isso seria causar muita
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
10
confusão: aproximar-se do outro a procura de algo está na raiz de coisas terríveis.
Portanto, sempre que pratico – ou de alguma forma ensino ou partilho –, as mãos
que vão ao encontro do outro, tem sempre que exercitar essa “limpidez”. Quando
eu vou ao trabalho com o toque, com a escuta do toque ou com a proposta de
algumas práticas de dança, faço sempre esse exercício de não ir à procura de fazer
qualquer coisa ao corpo do outro. Porque o corpo traz essa experiência, esse
desejo de se sentir, de ir ao encontro de si próprio. Se um corpo está torto, tem
um osso partido, ele tem o desejo de realinhar esse osso, ele tem esse desejo de
se reencontrar numa forma móvel – que não é fixa – mas se reencontrar nas tuas
linhas de movimentação. O que eu faço com o toque é ampliar, amplificar essa
movimentação própria. Portanto, é o próprio corpo que vai fazer isso. Não posso
ser eu a fazer essa manipulação. Tem outros tipos de trabalhos que fazem isso e
têm resultados. Mas eu não consigo, não quero me aproximar de um corpo
forçando-o a um determinado final. Por exemplo: vamos fazer um exercício para
tu levantares mais as pernas. Vamos fazer esse exercício pra tu fazeres mais
piruetas. Vamos fazer esta prática pra tu recuperares o tecido ósseo do teu dedo.
Para mim, isso não pode ser.
Eu li que você fala sobre um sistema aberto de ensino, que eu acredito
que tenha a ver com sua abordagem sobre o nascer do gesto. Você poderia
falar um pouco sobre essa ideia de sistema aberto para o nascer do gesto?
Voltando a embriologia, o movimento que faz emergir os braços já envolvem
uma movimentação que conecta as mãos ao coração. No embrião, na medida em
que se ganha mobilidade na coluna, vai desenvolvendo-se um eixo e o queixo se
afasta do coração e o coração desce. São muitos movimentos, mas nesse
momento, os cotovelos descem, as mãos avançam e abrem-se. É uma espécie de
abraço. É ir rumo ao mundo, abrir o coração, um abrir pronto para um abraço. Esse
é um gesto, a meu ver, que está na raiz daquilo que chamamos de
comportamento. Tem mesmo a ver com uma especificidade do corpo de se
escutar, abrir e ir rumo ao mundo. Esta é uma das especificidades do corpo.
Porém, muitos gestos que acabam por ser codificados culturalmente. E
muitas gestualidades e muitas formas como cada uma, cada um, habita o seu
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
11
corpo. Todas essas formas de habitar o corpo têm raízes mais poéticas do que
aquilo que a gente se lembra.
E, se uma coisa que eu não gosto nada, é de me restringir a códigos,
portanto, quando eu vejo as linguagens, mesmo gestuais, muito codificadas,
continuo a me perguntar: onde é o nascer disto? O que é esta extensão do braço
rumo ao mundo? Mesmo as gestualidades que consideramos mais banais. Eu
costumo dizer que nunca digo bom dia a alguém, sem desejar mesmo um bom
dia a essa pessoa. Eu não gosto desses automatismos. Portanto, se o outro tiver
esse desejo de se dedicar à escuta do nascer do gesto (ou eventualmente à dança
no sentido da poesia do gesto), eu tenho o imenso prazer em estar com essa
escuta. No fundo é como um toque que amplia a própria percepção, a sensação
de si próprio enquanto criador, enquanto
gestador do gesto
.
Eu também costumo brincar dizendo que, em dança, se tu, em um solo de
vinte minutos, trouxeres quatro ou cinco gestos realmente poéticos, está cheio de
sorte. Porque muitas vezes as pessoas acabam por codificar todos os gestos. Mas
a dança é, ou deveria ser, ela própria, o estudo e a escuta do movimento e do
movimento que se faz do gesto. Se eu não gosto dos gestos banalizados pelo
humano comum, você deve imaginar o quanto eu odeio quando uma pessoa que
se dedica à escuta do corpo esteja a replicar gestualidades. Você pode enrolar a
coluna, rebolar no chão, mas faça isso em “Marinês”. Não tem que vir com a
técnica de não sei o quê para rebolar no chão. Tem que haver uma contínua
descoberta dessas formas como o corpo vai sendo Sofia ou vai sendo Pedro. O
corpo vai sendo, vai deixando aparecer essa gestualidade na relação com o mundo.
Eu sinto que é muito interessante ouvir o nascer do gesto, mas eu não tenho
uma metodologia fixa, com cálculos, portanto, pra mim interessa o encontro. E o
encontro dá-se sempre ao meio do caminho. Se tu não te mexes no teu lugar, eu
também não mexo do meu, eu deixo e ficamos assim. Mas tenho “co-estudado” o
nascer do gesto a partir da escuta, do toque e, depois, através da dança e da
movimentação, ouvindo essa ampliação dos fluxos, dos encaracolamentos e
também daquilo que poderíamos chamar de movimentações que criam gestos
mais internos.
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
12
Embrionariamente isso também é muito evidente. Gestos impressos no
acontecer do corpo, em si próprio, nos tecidos, nos ritmos e por aí afora. Como é
que o gesto ou essas movimentações querem se expressar? Como é que tu
entendes esses movimentos que estão impressos, imprimidos, flutuando no
constante desenhar da forma do osso? Como é que essas movimentações querem
expressar-se, querem vir ao mundo? Isso pode ser uma das formas de estudar
esse nascer do gesto.
Outra forma pode ser a partir da migração dos corpos no espaço, sendo que
para mim não existe um espaço à partida. O espaço onde tu estás, como esse teu
quarto, esta sala, também está pulsando e aparecendo e sendo-se a si próprio. O
espaço não é uma coisa fixa. Tem a ver com a forma como nós habitamos e
escutamos as coabitações da luz, dos outros corpos e por aí afora.
Uma das coisas que eu também experiencio em dança e reconheço nos
estudos das biologias, das embriologias e embriosofias é que a migração, o trânsito
ou a deslocação é uma das características recorrentes da vida, da existência. Eu
trabalho muito na rua, migrando, caminhando, caminhando para nada e percebo
que aqui, se calhar, está com mais luz, é mais frio ou está mais claro. O corpo
começa a relacionar-se mais, como poderíamos dizer, virado mais para o norte,
como as plantas por exemplo. Hoje estou um bocadinho mais para o sul. Um
bocadinho mais para o oeste ou para o rio. Essa bússola interna, que também nos
vai orientando e convidando a
ser
outras relações com o mundo e com aquilo que
a gente chama de espaço. Esta é outra forma de ouvir, escutar, escrever, dançar.
É, portanto, uma ampliação do tal nascer do gesto enquanto sensação e
percepção.
Então, podemos falar do nascer do gesto a partir da escuta, do toque, de uma
continuação a partir da dança; mas também o nascer do gesto a partir da
migração, ou seja, da geração de espaço no qual o próprio espaço vai se
reconfigurando. Existe ainda uma outra possibilidade de escutar o nascer do gesto,
por mais estranho que pareça, que pode se dar a partir de uma prática de
determinadas fisicalidades. Eu tenho uma série de exercícios, de práticas, (todos
os anos descubro outras), mas são práticas nas quais eu convido e reconvido,
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
13
infinitamente, e estou sempre a recomeçar. Isto é, não tem a ver com fazer aquilo
melhor. É mesmo uma prática de escuta que vem a partir do movimento. São
gestualidades que me apareceram a partir do estudo do movimento e que depois
vou ouvindo o que elas me querem dizer. Por exemplo, uma delas eu chamo
A
Harpa
. Vou demostrar para tu veres que não é abstrato. Faz de conta que eu estou
de pé com os dois braços abertos na altura dos ombros, em uma posição que eu
chamo
A Águia
. Então, cada dedo da mão me conta histórias dos dedos-costelas,
dos dedos que aos poucos foram mexendo e envolvendo o nascer dos pulmões.
Se calhar sabes isso, mas as costelas vão nascendo cada uma do nascer de cada
vértebra e vão envolvendo os pulmões em formação. Estou falando de um
embrião, portanto não pulmão, não ossos, está tudo em formação. E cada
dedo, cada longo dedo continua por afora. Não estou a falar analiticamente da
composição óssea, mas da experiência quase de um pássaro. Cada dedo se
relaciona com a sua continuação em termos desse nascer das costelas. E me
parece uma coisa muito sonora. Eu vou fazer
A
Harpa
então. Estou de pé, faz de
conta que os dois braços estão abertos ao lado em
águia
e vou curvar. Talvez tu
possas observar que a medida que cada dedo vai “tocando”, eu convido cada
dedo-costela a uma ondulação que, vista de longe, tu dizes: “olha, ela está a
arquear as costas”. E uma rotação do braço, para dentro e para fora. E essa
movimentação para mim chama-se
A Harpa
porque ela é muito sonora e eu estou
a ouvir música enquanto estou a fazer isso [Sofia cantarola].
Essa experiência relaciona-me com aquilo que também são ondas e
vibrações. Relaciona-me com aquilo que podemos chamar de som. Sinto que a
partir da sorte que nós temos de experimentar a gestualidade, podemos nos
relacionar com todas as poesias do universo. Então, na
Harpa
é como se os dedos-
costelas ressoassem nos dedos-mãos, os dedos-mãos ressoassem nos dedos-
costelas e cada uma dessas cordas longas me trouxesse uma sonoridade
[continua a cantarolar]. Depois vem um bocadinho mais para baixo, um bocadinho
mais para cima. Não é uma coisa como: esse é o som dessa costela. Essa prática
apareceu por acaso dois anos. Algumas das práticas têm trinta e cinco anos.
Eu continuo a adaptá-las e elas nunca aparecem como sequências físicas. Em
cada encontro vão aparecendo essas movimentações, portanto está no desejo
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
14
daquele encontro específico, tanto que hoje
A Harpa
apareceu aqui entre a Sofia
e tu. Era o que estava no ar, algo estava no ar que chamou
A Harpa
, poderia ser
O
Pardal
, poderia ser qualquer outro movimento.
No percurso das práticas de dança que faço, elas não te dizem: olha, eu sou
isto e tu tens que saber tal coisa, ou: se fizeres muitas vezes isso vai ter muita
movimentação na coluna torácica.
É uma pergunta de movimento, em que a
própria pergunta é movimento.
De fato, na minha experiência, ao longo dos anos,
a experimentação da gestualidade e da movimentação poética realmente
desbloqueia cristalizações ou desidratações, ajuda a fazer, passar movimento por
onde o movimento podia estar mais incapacitado. Portanto, em algum sentido, ela
aproxima o corpo da sua energia vital, da sua potência.
Muito interessante. Fiquei pensando na complexidade do que você coloca
(complexidade esta que outrora você denominou como uma “selvageria”)
em comparação com o que acontece, muitas vezes, na formação em
dança: que é uma tentativa de enquadrar o corpo, como se o corpo ou a
gestualidade devessem estar em uma única forma. Também em relação
ao estudo da anatomia, que ainda se caracteriza como o estudo do corpo
morto, enquanto deveríamos experimentar o estudo do corpo vivo, do
movimento e do gesto. Eu acredito que o lugar do corpo nos cursos de
formação em dança, especialmente na universidade, precisa ser
repensado. Nesse sentido, eu gostaria que você falasse sobre o c.e.m e o
contexto em que ele surgiu.
Pelo que eu tenho acompanhado e pelas pessoas com quem tenho
trabalhado, mesmo a anatomia dita experiencial que vem da experimentação do
sentir, escutar e mover o corpo –, também tende a cristalizar-se em lugares, em
metodologias ou práticas: “Prática número 1”, “Prática número 2”,
Tracing the
bones
”... Eu fico doente com isso porque não realmente aquele amor pela
descoberta. Acabam por replicar fórmulas as quais tivestes oportunidade de
experienciar com grandes mestres, grandes amigos ou com alunos, mas acabas
por replicar. Não acho que as coisas têm que estar diferentes, acho que tem que
estar sempre a mexer.
Não sei se tu conheces a Eva Karczag, ela integrou aquele
boom
dos anos
[19]60 em que esteve também o Steve Paxton. Ela fazia parte da
Judson Church
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
15
desse conjunto de criaturas que se juntavam em um pavilhão enorme, que era
o átrio da igreja, para experimentar coisas e depois foram se constituindo como
Companhias. Muitos deles, enquanto estavam a fazer essas experimentações,
estavam também dentro de linhas coreográficas de grandes coreógrafos da época.
Eva Karczag por exemplo foi trabalhar com a Trisha Brown, outro grande nome da
dança. Eva, porém, é muito
low profile
e continuou a experimentar. Engraçado que
ela depois acabou por sair da Trisha Brown exatamente porque, sendo uma
coreógrafa incrível, começou a sentir uma coisa que Steve Paxton disse numa
conversa que teve no c.e.m. O Steve comentou sobre essa coisa de estares numa
companhia (ele estava com o Merce Cunninham) e replicar as coreografias, replicar
o repertório e ir perdendo a alegria da descoberta, da invenção e da
experimentação. Eva acabou saindo da Trisha Brown também por conta disso.
Estava um grande
boom
, iam ser todos muito célebres, mas isso não é tudo,
faltava essa parte de poder experimentar. Ela saiu, portanto, dos
highlights
e virou-
se para uma zona, que eu desconfio que é também a zona onde eu habito, mais
low profile
, onde não estamos a pedir as luzes da ribalta. Eu não quero fazer parte
do mercado da dança, não quero fazer parte dos nomes que têm estátuas em
praças públicas, nem nomes de teatros, não quero fazer parte de nada disso.
Mas é muito engraçado porque eu trabalhei com ela quando estive na
European Dance Development Center
(EDDC). Isso por que vamos falar do c.e.m
e assim te ajuda a ver o que isso seria. Quando eu fui para a EDDC, era em
Arnhem, na altura havia uma outra também em Düsseldorf, mas essa de Arnhem
era mesmo uma potência de experimentação. Foi onde grandes nomes na
experimentação da dança, como Steve Paxton e Simone Forti, foram experimentar.
Havia esse curso longo da
European Dance Development Center
que tinha a ver
exatamente com a experimentação e a investigação. Na altura, a palavra
investigação não era muito utilizada. Mas não era um curso de coreografia, não era
um curso de anatomia, não era um curso daquelas coisas que vêm em um
pacote. Era um curso para desenvolveres as tuas
skills
[habilidades] de inventar
dança, movimentos e espacialização. Eu fui para lá no final de [19]80, princípio de
[19]90, fazer um estágio como aluna. Primeira vez na vida em que estava a
estudar porque, como te contei, dou aulas desde os 17-18 anos, tendo começado
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
16
a fazer aulas mais qualificadas aos 14. Por isso, fiquei pouco tempo como
estudante. Mas aconteceu que a Mary O’Donnell Fulkerson, que morreu há pouco
tempo uma mulher incrível que está na raiz da
Release Technique
, era
codiretora da EDDC e naquele momento, quando eu cheguei e fiz 15 dias de
aula, ela teve que dar aulas de repente em Düsseldorf e perguntou-me se eu ficava
com as aulas dela. Eu era uma miúda! [semelhante a dizer: “eu era uma garota!”].
Isso foi muito engraçado porque, pelos vistos, as experimentações que eu
estava a fazer aqui em Portugal sobre o toque, a escuta e a partilha do movimento
estar dois a dois, três a três, estar um a observar e outro a dançar –, isso tudo
estava já a ser codificado e chamava-se
Release Technique
. Tinha nome e eu não
sabia. Eu estava juntamente com essas pessoas a sentir essa urgência de
experimentar. Uma das pessoas que me pôs em contato com o toque de que
falamos foi Eva Karczag. Ela chama
hands on
e eu chamo “mãos”. Um dia, em
uma aula que eu estava a fazer com ela, ela nos convidou para pousar as mãos
sobre as costelas, ou qualquer zona, e ouvir. Eu percebi então que aquilo que eu
estava a fazer já era uma prática. Eu estava fazendo isso em Lisboa, mas no fundo
isso também já estava a acontecer [em outros lugares]. Ela tinha era muitos anos
a mais de experiência do que eu. É muito interessante porque Eva veio dar aulas
no c.e.m e disse assim: “
You don’t need me to come, what you are doing is side by
side with what I am discovering
[em tradução livre: “Você não precisa que eu
venha, o que você está fazendo está lado a lado com o que estou descobrindo”].
A questão não é
need
no sentido de alguém ter que vir me dizer ou trazer
uma coisa que eu nunca tinha visto. Eu desconfio que tudo aquilo que está a
acontecer, já estava a acontecer. É próprio da embriologia ou embriosofia de que
eu falo tanto. te contei isso: não nada que aconteça, que não esteja a
acontecer e, portanto, a experiência daquilo que o c.e.m foi sendo, estava a
acontecer. A experiência daquilo que o toque foi sendo, estava a acontecer. A
experiência das práticas de gestualidade estavam a acontecer. Eu acho que o
“lado a lado”, a ressonância, o entre-corpos, o estar com outras pessoas, com
outras perguntadoras, com outras selvagens, gente que pergunta, que mexe, que
não fica sentada a procura de resultados, essa vibração do entre-corpos amplia
de tal forma a tua confiança naquilo que tu estás a fazer que te abre uma
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
17
imensidão de possibilidades. Tanto que para mim nunca foi a Eva vir a fazer ao
c.e.m algo que eu não estivesse a fazer. Ela está aí no seu acesso, como a Marina
está aqui no seu acesso. Tu podes perguntar, por exemplo, “membrana” e estar
mais ouvindo as fáscias, ou a epiderme, ou o contato entre, ou a liquidez, a dobra
do Deleuze, ou a própria rugosidade. Depende do teu acesso. Por isso se a Sofia
convidar “Marina, vamos dobra?”. pode ser uma coisa: uma grande aventura.
Porque dobra em “Sofianês” não é o mesmo que dobra em “Marinês” e essa
ressonância não sou eu fazer tu ver o meu caminho ou tu fazeres-me ver o seu.
Eu percorro o meu caminho, tu percorres o teu. É neste lado a lado que nós
vamos discutindo, trocando, descobrindo. Eu tenho alguns anos a acompanhar
pessoas em formação, em experimentação, e tenho tanta pena quando sinto que
a pessoa não consegue sair da ansiedade de ter um mapa, de ter uma fórmula, de
ter uma bússola que lhe diga “vai por ali”.
Então o c.e.m é um organismo. A gente chama mesmo de organismo e não
estrutura e isso não é indiferente. É um organismo no sentido de uma pulsação
entre fluxos e desejos. Então, por exemplo, desde 1993 que, no c.e.m, começamos
a fazer uma coisa que chamamos de
Espaço Experimental
. O c.e.m na realidade
se constituiu enquanto Associação Cultural em 1997, portanto, mais uma vez,
existíamos antes. Esse
Espaço Experimental
, esse encontro tornou-se regular,
chegou a ser quinzenal, depois passou a ser mensal e agora tem sido semanal. É
um encontro de partilha, de
feedbacks,
de experimentações em qualquer área,
naquilo em que tu estiveres a criar: pode ser dança, escrita, vídeo, áudio, pode ser
na experimentação de um exercício que tu queres partilhar com alguém, na
descoberta de qualquer coisa que tu ainda não sabes nem verbalizar.
Curiosamente, na EDDC onde eu estive em [19]90, tinha uma coisa que eram
os
Friday’s Show
”, ou algo assim, que eram encontros experimentais todas as
sextas-feiras. Isso é fundamental. Não tem a ver com algo que exija uma
burocracia muito grande, que a pessoa tenha que preencher um formulário,
demonstrar que fez muita coisa. Nesses espaços experimentais, normalmente
por uma questão do tempo que tu consegues de atenção (porque exige imensa
atenção estar com a experimentação do outro), nós tentamos fazer o exercício de
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
18
convidar por duas horas de relógio: uma hora para as experimentações e uma hora
para o retorno, para os
feedbacks
. Aceitamos três ou quatro perguntas [trabalhos],
mais ou menos de quinze minutos cada. Portanto, não é a tua peça toda, é uma
questão do teu percurso. Mas também é sempre possível alguém saltar e fazer
qualquer coisa espontânea a qualquer momento.
Depois também foram acontecendo no c.e.m aquilo que nós fomos
chamando de
Espaços Experimentais Especiais
em que essas duas horas eram só
para o trabalho da Marina, por exemplo. Então a Marina tem uma questão, em vez
de partilhar com outras três ou quatro questões, traz ela sozinha, de maneira que
uma hora para exposição, para brincar, e uma hora para o
feedback
. Essa forma
de experimentar, de partilhar, de estar com o retorno do mundo estão na raiz do
c.e.m. São paisagens de uma mesma via de criação: experimentar e comunicar a
experimentação. E a questão da comunicação é muito complexa. Embora haja
tanto percurso na semiótica, a comunicação continua, a meu ver, ou ao meu sentir,
bastante presa na passagem de um lado para o outro. Bastante presa na fórmula
de um emissor e um receptor. Eu sei que já não se fala assim, mas eu continuo a
ver que toda a presença, a generosidade do dar e receber, a profunda
transformação do corpo enquanto comunica é muito negligenciada e muitas vezes
essa coisa que a gente chama comunicação ou partilha é confundida com a
“amostra” – que é pôr uma coisa ali e dizer: “está aqui”. Por exemplo, tu tens um
filho, alguém muito especial, uma vida muito vibrante atravessou a tua fisicalidade
e continua a atravessar e atravessará o teu amor. Tu tens a sorte e a honra de
acompanhar o crescimento e a caminhada dessa criatura. É muito diferente tu
estares com... como é que se chama?
Nuno
Estou a criar uma metáfora. Portanto, é muito diferente estares com o Nuno,
lado a lado, sabendo que a tia Lala ou o senhor Manuel querem conhecer o Nuno
mas ele estará em um lugar muito formal e não vai se sentir tão à vontade. Tu vais
com ele pela mão, todo penteadinho, dizendo: “Nuno, ficas quieto, vai conhecer a
tia Lala”. Então tu vais mostrar o Nuno à tia Lala e o Nuno deixa de ser o Nuno,
desaparece completamente, faz uma birra ou tentar fingir que aceita aquele jogo,
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
19
mas de fato, o próprio Nuno muito dificilmente vai aparecer. Ao contrário de
quando esse encontro se sem expectativa do que deveria vir, sem o peso de
que “Ai, desculpe, o Nuno hoje está muito não sei o quê”.
As pessoas estão vivas, as experienciações estão vivas. Mas perceba, quando
tu vais à uma conferência, já reparastes com certeza, na maior parte das vezes, os
comunicadores chegam lá mas não estão lá. Está o PowerPoint e uma seca que
só dá vontade de ir embora ou bater com as mesas. Isso é uma coisa que eu e o
c.e.m temos abanado a cada dia. Vem o Steve Paxton ao c.e.m falar e toda gente
descalça os sapatos. Não é o Steve Paxton que não descalça, porque não tem a
ver com uma formalidade, tem a ver com partirmos de um lado a lado.
Não existem deuses e um medo horroroso de falhar, o medo horroroso de
errar, como se as coisas mais belas não tivessem aparecido de erros. Não consigo
entender porque as pessoas perguntam a um corpo e não são um corpo. O c.e.m
é, portanto, um organismo de estudo do corpo, do movimento e do comum. É um
espaço experimental que funciona com laboratórios de improvisação e de
experimentação, cuja escuta do corpo busca deixar aparecer uma dança que não
está codificada à partida, uma experimentação que busca algo criado, gerado pelo
desejo do seu corpo ao encontro com outros corpos.
Começaram a existir em 1990 uma série de formações,
workshops
atravessados
, por exemplo: fotografia e dança ou literatura e música, porque
sempre senti que era uma pena que o estudo do corpo fosse aprisionado à dança,
quando ainda por cima essa dança é, ela própria, aprisionada em uma codificação
qualquer. Como se a dança cênica fosse filha da dança que criou o balé. se
dançava um bocado antes do balé ser a raiz da dança. Eu sinto que os estudos do
corpo, do movimento e do comum não estão fixados em uma determinada forma
de conhecimento.
Então, desde 1990, aquilo que viria depois a chamar-se c.e.m-centro em
movimento, convidava para esses
workshops
atravessados e havia várias
conversas com pessoas como o Peter Michael Dietz, Amélia Bentes e outras que
iam cruzando a minha experiência cotidiana – alunos e professores, ambos entre
aspas porque sempre fomos de partilhar experiências e não propriamente de criar
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
20
hierarquias. Havia, portanto, vários encontros e discussões sobre o que é que
poderia ser uma não-escola, um centro móvel.
Há uma pessoa que se chama Thomas Mayer, filósofo e professor nas Belas
Artes em Lisboa, que um dia nos trouxe uma coisa muito interessante que acabou
por trazer a nós, que criamos o c.e.m, uma perspectiva muito ressonante com o
que sentíamos. Ele falou que o centro de um furacão é um centro imóvel, é um
centro de silêncio. Toda a tua volta está a voar: prédios, árvores, vacas, autocarros,
tudo, mas no centro do furação é silêncio. Então se julgas que encontrastes o
ponto de silêncio ou, metaforicamente, o teu ponto de equilíbrio, o lugar onde tu
queres estar, mas se o tornas fixo poderá, depois, ser arrebatada pelas vacas e
pelos prédios que andam à volta. O c.e.m é, por outro lado, móvel. O silêncio no
centro do furacão também é móvel. E é essa a grande partilha, a grande alegria
que o c.e.m traz, porque é um centro em movimento. Embora, muitas vezes a
Helena Katz que é uma crítica de dança que acompanha bastante o c.e.m mas
que quando se refere ao c.e.m diz: “centro de estudos em movimento”. Eu não
corrijo, mas é o próprio centro que é móvel. É isso que nós tentamos fazer desde
o final dos anos [19]80, princípio dos anos [19]90.
Para finalizar, você poderia falar um pouco sobre o que seria uma
“formação elástica”?
Não palavra no c.e.m sobre a qual nós não discutimos constantemente,
uma vez que o centro está sempre em movimento.
A palavra “formação”, portanto, só foi abraçada pela selvageria do c.e.m mais
ou menos em 2004. Sei que foi por porque foi quando mudámos da Praça da
Alegria para a Rua dos Fanqueiros. Fizemos inclusive a maior parte dessa mudança
a pé, chamamos de
mudormance
[o equivalente a uma mistura entre mudança e
performance]. É uma distância de cerca de um quilômetro e meio, mas éramos
muitos e cada um levava alguma coisa. Isso tem a ver com a migração que nós já
falamos antes, uma das possibilidades que poderia ser os corpos em migração, o
andar pelo espaço, o
gerar espaço
. Tivemos que sair porque, apesar do espaço ser
muito maior, uma parte do teto caiu. Andamos à procura de um lugar que tivesse
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
21
luz natural, que não fosse debaixo da terra e encontramos a casa onde agora o
c.e.m habita mas que é muito mais pequenina.
Por exemplo, as aulas que eu e o Peter Michael Dietz dávamos na Praça da
Alegria chegavam a ter 50 pessoas, embora nós sempre tivéssemos essa coisa do
um a um. Não era uma amálgama de gente, eram pessoas que iam regularmente
e que tu conhecias uma a uma, mas realmente a sala era tão ampla que
estávamos perfeitamente à vontade.
Quando fomos para a rua dos Fanqueiros, esse um a um teve muito mais
protagonismo. Por acaso um dia, em um
workshop
da Lisa Nelson, nós fomos
trabalhando isso de gerar espaço e de não nos submetermos a uma ideia material
das condicionantes e fomos
elasticando
as presenças do corpo. As portas estão
sempre abertas, às vezes estão pessoas na sala branca e outras já estão fora e
é tudo a mesma aula.
No
workshop
da Lisa Nelson aceitamos 22 pessoas que estiveram na sala
dentro e fora. Isso é possível se a questão não for como é que cabemos. Mas
realmente não é comum estarem 22 pessoas na sala do c.e.m. O conjunto, o
número de pessoas que coabitam determinada pergunta, determinada aula,
determinado laboratório ficou mais reduzido por causa do tamanho e do formato
da sala.
E uma das coisas que estávamos exatamente a questionar era o que seria
formação
. Eu estava sempre a dizer: “não quero essa palavra em nenhuma coisa
onde eu esteja envolvida” porque, a meu ver, a palavra formação estava muito
presa à
formatação
e eu sentia mesmo que a pergunta do que era
forma
estava
ainda por se fazer. Era como se a forma fosse algo que tu já soubesses o que era.
Mas, como a Sofia e Marina poderiam estar lado a lado a descer uma rua e
experimentarem as mesmas “formas”, entre aspas, se elas não veem a mesma
coisa, não sentem a mesma coisa? A forma é aquilo que aparece, que se dá a ver
em cada acesso, em cada particularidade, aquilo que vem ao encontro da tua
apreciação, do teu toque, do teu sentir, e é do teu Sofia ou do teu Marina. Aquilo
que estás a ver são ínfimas linhas da forma proposta.
Essa combinação, essa coexistência de fluxos, de vibrações, de
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
22
movimentações internas, a que tu chamas forma e até pode chamar mão, osso
ou cadeira, é um movimento, não está feito. E isso já se diz há muitos anos e nós
continuamos presos. Fomos então sacudindo a palavra
forma
mais e mais e nos
afastando dessa prisão
forma-formação-formatação
que era uma coisa que para
nós não era possível.
Em 2004, essa passagem de um espaço para o outro coincidiu, exatamente
com a redução do espaço do c.e.m, com uma intensificação do estar com a cidade,
do estar com a rua. Nós passamos a estar muito tempo a caminhar, a escrever, a
observar, a dançar com a rua. E não vou esquecer que, nessa altura, eu estava
deitada numa rua que tinha prédios muito altos de um lado e do outro, onde
se via uma brecha de céu e eu fiquei deitada naquela rua por quatro, cinco horas
a olhar, a ver, rever. Eu levantava, dançava, mas estava convidada a demorar, a
não ter que fazer outra coisa. Aquilo era importante. Fui observando como as
nuvens têm esta coragem de estar continuamente a alterar a forma. E o que
acontece? Acontece o movimento. A forma como as partículas (pode-se dizer de
água, poeira, o que for) se combinam internamente, a forma como essas partículas
migram naquilo que a gente chama céu, e encontra com outras nuvens, tudo isso
é formação.
Passei a dizer então
furmação
, como se viesse da palavra fumo. Então a
furmação
tem a ver com o acompanhamento do fumo que se vai fazendo cada
gesto, dessa movimentação interna e que não é nunca interna porque se
deforma, porque conversa com o mundo e com o que vai encontrando. É a isso
ao que o c.e.m se dedica: a
furmação
. É o acompanhamento intenso, lado a lado,
diário, da contínua descoberta de cada um. Desse fumo que gera dança, que gera
gesto, que gera pensamento, que gera escrita. É isso que nós chamamos de
formação. Não é a imposição de um modelo para tu passares a ser um chapéu ou
uma mão. Tu tens mesmo que te mexer, ouvir o fumo que tu és, e é no lado a
lado, na escuta com outros que se dedicam a isso na vida.
Nesse lado a lado, com essa selvageria, tu vais sintonizando, afinando.
Afinar
,
por exemplo, é uma palavra que também mora conosco uns anos. Afinar
mesmo, como se faz com o instrumento. Por exemplo, não sei se tivestes a
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
23
experiência de trabalhar com rádio, como antigamente, em que tu tinhas que pôr
o botão naquela frequência específica porque se fosse um pouco mais ao lado ele
apanhava aquilo que chamam de interferência [entrevistada faz sons de
interferência e depois de melodia]. Esse
shift
que o corpo Sofia, que o corpo
Marina, vai fazendo para entrar em encontro com a frequência que o compõe que
eu acho que é a grande coisa da
furmação
: é tu estares alinhado, afinado contigo
próprio. Essa afinação contigo próprio é móvel, não parte da fixação de uma nota
com a qual tu te afinas. Tu afinas com o teu próprio ser e tens que estar a ouvir o
que isso é. Para sempre estás a mexer. Não nenhum dia que tu podes dizer:
“Estou afinada, pronto”.
Muito obrigada, Sofia. É uma pena que não tenhamos mais tempo, porque
sua fala é uma aula. Queria te agradecer novamente e te dar um
feedback
rápido de que a sua frequência é um convite muito potente para o
movimento e não o movimento do corpo, mas outros tipos de
movimento. O exercício acadêmico pode ser muito duro: a teoria por vezes
ignora o corpo, mas de estar na sua presença, de alguma forma, meu
corpo foi convidado para se mover em conjunto com o pensamento. Então
eu queria te agradecer por isso. Espero em breve entrar em contato para
te ver presencialmente. Você me lembra muito a Angel Vianna, que eu
imagino que você tenha ouvido falar. Inclusive ela também faz uma
metáfora com a nuvem, ela diz que “gente é como nuvem: sempre se
transforma”. Você me lembra muito ela. Eu me formei na Escola Angel
Vianna e a metodologia dela está muito presente em mim, que é uma
metodologia que também não almeja encontrar uma forma, mas deseja
que cada um encontre o seu próprio caminho.
Nunca esqueças disso, Marina. A Angel eu não conheço em pessoa, mas
tenho muita gente que vem da Angel. Portanto, de alguma forma eu a conheço. E
tenho acompanhado várias caminhadas de doutoramento e mestrado. O último
foi de uma pessoa que esteve a fazer a investigação no c.e.m e me convidou para
acompanhar o processo. Uma das coisas que nós fizemos muito foi dançar juntas
todos os escritos, para ela ouvir se aquilo era mesmo daquela forma.
Sei que o doutoramento tem uma série de coisas, mas tu não te esqueças
de quem tu és. Tu não te esqueças de dançar, de caminhar, de olhar para o céu.
De dar banho ao Nuno, de encharcar a casa de banho, porque esses escritos, essa
cristalização, essa desidratação da existência não podem vencer. Tu escreves
"Nunca se é corpo sozinho"
Entrevista com Sofia Neuparth concedida à Marina Magalhães
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-24, abr. 2024
24
líquidos, escreves ar, danças o que escreves, perguntas escrevendo, escreves e
alto. Se não podes vir ter comigo, alto sua gravação, ouve-te a voz para ver onde
é que a fala entope, onde é que tu sentes que aquilo que estavas a ler tão
fluidamente de repente faz
crack
. Não estou a dizer para sermos muitos originais.
Estou a dizer para sermos existentes e lutar na vida, pela vida. E não por parecer
e pertencer. Isso é muito importante. Eu estou aqui quando precisares, está bem?.
Novamente: muito obrigada, Sofia, por toda essa partilha
Recebido em: 16/02/2024
Aprovado em: 09/03/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br