O dentro, o fora e o vão no meio: epistemologias libertárias e práticas cênicas abolicionistas
Murilo Moraes Gaulês | Maria Galindo Neder | Lia Garcia | Sayak Valencia
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-23, abr. 2024
penso é que nossos corpos, na prisão, são como os vestígios, é como o que resta
da feminilidade. Obviamente, os homens têm práticas homoeróticas também,
claro, entre homens, mas as mulheres trans e travestis somos quem seguramos
a prisão do lado emocional, sexual, econômico, doméstico e, por isso, elas têm
que estar lá e não querem sair de lá.
Sayak Valência:
Eu também considero que o necropoder é outra coisa que,
além de ser exercido e eliminar áreas e gerir a morte destas pessoas, obtém
resultados econômicos, políticos e simbólicos e benefícios culturais. Mas também
acredito que o necropoder se torna uma sensibilidade que constrói um imaginário
simbólico onde a violência que leva à morte é normalizada. Chamei isso de
necroscopia. Uma necroscopia é um imaginário simbólico que faz pactos visuais,
que faz pacto com a realidade, que faz pacto com o regime de visualidade,
poderíamos dizer, a partir dos estudos visuais, onde a violência é normalizada e
onde os sujeitos vulneráveis são quase sempre os mesmos e têm as mesmas
características ou intersecções que fazem com que seu assassinato valha a pena,
a favor da padronização e da normalização desse tipo de violência. É normalizar a
violência em contextos em que talvez a violência não seja uma economia direta,
não como o tráfico de drogas, que tem a violência como uma ferramenta para se
capacitar, mas talvez em outras economias, incluindo o entretenimento ou o
consumo, que não trabalham diretamente com a violência, mas que a sua
nacionalização é rentabilizada por estes. Neste caso, penso e cito aqui o trabalho
da Mariana Berlanga Gayon (2020), que fez alguns trabalhos sobre feminicídio e foi
rever como o feminicídio era retratado (literalmente), ou seja, o
frame
onde
aparece o corpo das mulheres assassinadas. Como ele foi reproduzido tanto na
nota roja6, com essas perspectivas super
trash
que colocam nas mulheres trans,
que as mostram em campos abertos, em latas de lixo, que mostram pedaços de
corpos. Tudo muito grotesco, muito sangrento, muito mórbido. Gayon analisa
como era o olhar de quem estava lidando com isso, não somente pela
nota
roja
,
mas ela percebeu isso também pelos laudos policiais e periciais e pela forma
como os peritos masculinos retrataram as mulheres assassinadas. Era o mesmo
6 Nota roja é um gênero jornalístico popular no México. Embora semelhante ao jornalismo sensacionalista ou
amarelo mais geral, a nota roja concentra-se quase exclusivamente em matérias relacionadas à violência
física relacionada ao crime, acidentes e desastres naturais.