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Performatividades trans no circo: confabulando sobre
estética, política e epistemologias dissidentes
Juno Nedel Mendes de Aguiar
Para citar este artigo:
AGUIAR, Juno Nedel Mendes de. Performatividades trans no
circo: confabulando sobre estética política e epistemologias
dissidentes.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0106
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Performatividades trans no circo: confabulando sobre estética, política e epistemologias dissidentes
Juno Nedel Mendes de Aguiar
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-19, abr. 2024
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Performatividades trans no circo1: confabulando sobre estética, política e
epistemologias dissidentes2
Juno Nedel Mendes de Aguiar3
Resumo
Por que, quando falamos de circo, lembramos tão rapidamente da figura da mulher barbada,
ao passo em que tão poucas referências históricas sobre a presença de artistas trans e
gênero-dissidentes na cena circense? Aqui, as performatividades trans atuam como
tensionamento dos pilares onto-epistemológicos do pensamento e do mundo moderno. A
partir de reflexões sobre estética, política e epistemologias dissidentes, este artigo analisa a
participação de artistas trans e gênero-dissidentes no circo brasileiro, a relação discursiva
entre virtuose e imaginário colonial, para então propor os possíveis contornos epistêmicos
de uma performatividade trans no circo.
Palavras-chave
: Circo. Transgeneridade. Performatividades trans. Freak show.
Trans performativities in the circus: confabulating about aesthetics, politics and
dissident epistemologies
Abstract
When we talk about the circus, why do we so quickly remember the figure of the bearded
woman, while there are so few historical references to the presence of trans and gender-
dissident artists in the circus scene? Here, trans performativities act as a tension to the onto-
epistemological pillars of thought and the modern world. Based on reflections on aesthetics,
politics and dissident epistemologies, this article analyzes the participation of trans and
gender-dissident artists in the Brazilian circus, the discursive relationship between virtuoso
and colonial imaginary, and then proposes the possible epistemic contours of a trans
performativity in the circus.
Keywords:
Circus. Transgenderity. Trans performativities. Freak show.
Performatividades trans en el circo: confabulando sobre estética, política y
epistemologías disidentes
Resumen
¿Por qué, cuando hablamos de circo, recordamos tan rápidamente la figura de la mujer
barbuda, mientras hay tan pocas referencias históricas a la presencia de artistas trans y
disidentes de género en la escena circense? Aquí, las performatividades trans actúan como
una tensión en los pilares ontoepistemológicos del pensamiento y del mundo moderno. A
partir de reflexiones sobre estética, política y epistemologías disidentes, este artículo analiza
la participación de artistas trans y disidentes de género en el circo brasileño, la relación
discursiva entre imaginario virtuoso e imaginario colonial, para luego proponer los posibles
contornos epistémicos de una performatividad trans en el circo.
Palabras clave
: Circo. Transgénero. Performatividades trans. Freak show.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Carolina Helena Pasta, graduada em Letras
Língua e Literatura Francesa pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Mestre em Estudos da
Tradução (PGET) pela UFSC.
2 Este artigo é resultado de uma pesquisa de doutorado, financiada pelo programa de apoio à pesquisa científica,
tecnológica e de inovação do CNPq.
3 Doutorando em Artes Cênicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina (PPGT/UDESC). Mestrado em
História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduação em Jornalismo pela UFSC.
junonedel@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5226148635352987 https://orcid.org/0000-0002-9834-3700
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Introdução
O que são essas figuras, tão murchas e claudicantes e tão fantásticas e
desvairadas em seus trajes a ponto de não parecerem habitantes da Terra
e, no entanto, podemos ver que estão sobre a terra? Vivem, vocês? Ou
seriam vocês alguma coisa que não admite perguntas humanas? [...]
Vocês têm toda a aparência de mulheres e, no entanto, suas barbas
proíbem-me de interpretar suas figuras como tal.
(Macbeth
, William Shakespeare, 2000, p.16)
É noite de um sábado qualquer em Meiembipe, terra indígena que veio a ser
conhecida como Florianópolis. O ano é 2023. Apesar de ser inverno, faz um clima
tão agradável que ainda se vê muita gente na Praça das Areias, mesmo sob o céu
estrelado e a luz vacilante dos postes. Eu também me encontro na praça, fazendo
circo. Circo, diz uma amiga, é a arte de fazer qualquer coisa com quase nada.
Nesta noite, estou particularmente concentrado em praticar manipulação e
malabarismo com fogo. Tenho duas tochas em minhas mãos. Com uma das
tochas, apagada, embebida em álcool líquido 92,8°, faço um rastro de combustível
pelo meu braço. Com a outra tocha, esta acesa, dou um leve toque no álcool e
vejo, instantaneamente, minha pele se converter em um caminho de fogo. Isso
parece fascinar as pessoas ao redor. Uma das crianças, que até então corria entre
as dezenas de pernas adultas, percebe o lampejo do fogo e aponta para mim:
“olha, mãe, é a mulher barbada!”
Aquilo me pega de surpresa. Pois existe, na afirmação da criança, um lastro
histórico: meu corpo dissidente,
freak
4,
ciborgue
5, que faz circo na praça, remete
imediatamente à figura da mulher barbada, personagem circense que ganhou
notoriedade nos
Freak Shows
, ou Circos de Horrores, do final do século XIX ao
início do século XX. Meu corpo e o meu fazer circense lembram Annie Jones, artista
que integrou o circo de P.T. Barnum, exibindo sua corporalidade lida como feminina
4 Tomo esta categoria emprestada do manifesto
freak
, da artista e modificadora corporal T. Angel. Inspirada na
teoria queer, no
body hacktivism e
na teoria crip, a autora esboça uma teoria
freak
, ou teoria dos anormais,
ressignificando os corpos dissidentes, abjetos, com deficiência e/ou biotecnologicamente modificados como
corpos belos e potentes.
5 Nas palavras de Donna Haraway (2009b, p. 36), “Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de
máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social
significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção
capaz de mudar o mundo”.
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e, ao mesmo tempo, sua barba vistosa, confundindo assim a expectativa
cisnormativa e binária sobre como os corpos de homens e mulheres deveriam se
parecer6. A ruptura promovida pelo corpo de Annie Jones fez com que ela fosse
exibida como atração, bizarrice ou criatura excêntrica nos Circos de Horrores.
Nesse ponto, eu e Annie, a mulher barbada, estamos conectados. Isso porque
a minha identidade de gênero não condiz com a categoria de gênero que me foi
atribuída quando nasci. Na ocasião do meu nascimento, declararam-me mulher,
mas essa declaração foi também uma prescrição (Preciado, 2017, p. 130), na
medida em que produziu, em mim, uma identidade de gênero que não estava
consolidada
a priori
. Quando me declarei dissidente do
apartheid
de gênero7, a
palavra “mulher” deixou de nomear a minha experiência de vida. E apesar de a
terapia hormonal com testosterona ter proporcionado o crescimento de barba no
meu rosto, também não me enquadro naquilo que chamam de “homem”.
Portanto, a afirmação da criança é muito perspicaz. Ao me comparar à mulher
barbada, a criança identifica e nomeia a minha dissidência de gênero. Ela me
percebe trans. E, à sua maneira, me associa ao imaginário circense dos
Freak
Shows
, entendendo a minha própria corporalidade trans e meu fazer circense
como
freaks
8.
Essa experiência me provocou algumas reflexões. Por que, quando falamos
de circo, lembramos tão rapidamente da figura da mulher barbada, ao passo em
que tão poucas referências sobre a presença de artistas trans e gênero-
6 A isso, Viviane Vergueiro chama de “pré-discursividade do sexo”, isto é, o entendimento sociocultural
historicamente normativo e produzido, consideravelmente, por projetos coloniais de que seja possível definir
sexos-gêneros de seres a partir de critérios objetivos e de certas características corporais,
independentemente de como sejam suas autopercepções ou das posições e contextos interseccionais e
socioculturais em que elas estejam localizadas.” (Vergueiro, 2015, p.61)
7 Aqui, faço referência à Jaqueline Gomes de Jesus, que utiliza o conceito de
apartheid
de gênero para se referir
à divisão cisnormativa e binária de gênero entre “homens” e “mulheres”. Nesse sentido, todos os corpos que
não correspondem às expectativas sobre um determinado gênero são subalternizados, patologizados e postos
à margem. Gomes de Jesus define o apartheid de gênero como uma “prática social que tem servido como
justificativa para a opressão sobre quaisquer pessoas cujos corpos não estão conformes à norma binária
homem/pênis e mulher/vagina, incluindo-se aí: homens e mulheres transgênero; mulheres cisgênero
histerectomizadas e/ou mastectomizadas; homens cisgênero orquiectomizados e/ou emasculados; e casais
heterossexuais com práticas e papéis afetivossexuais divergentes dos tradicionalmente atribuídos, entre
outras pessoas” (Gomes de Jesus, 2014, p.243). Neste ponto, a autora inspirou-se no conceito de
apartheid
do
sexo, originalmente cunhado por Martine Rothblatt.
8 Faço alusão aos artistas que se apresentavam nos
Freak Shows
, mas utilizo
freak
a partir de um lugar
sociopolítico de orgulho pela dissidência, mais do que de denúncia de uma subalternidade colonial, dialogando
com a já mencionada teoria
freak.
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dissidentes no circo9? Quem foram as mulheres barbadas que exibiram seus
corpos como atrações espantosas, excêntricas, horrorosas, e por que tenho a
sensação de que causo um efeito semelhante quando faço circo em uma praça
pública, em outro território, centenas de anos depois? Seria possível pensar uma
espécie de performatividade trans no circo? Se sim, quais os seus contornos
epistêmicos?
Com este artigo, pretendo me debruçar sobre essas questões. Trata-se de
um esboço teórico, articulando o conceito de performatividade trans, a minha
própria experiência como artista circense e as interlocuções promovidas pela
disciplina “Dizer-se público: transbordamentos entre produções cênicas e vida
social”, ministrada pelo professor Flávio Desgranges no Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas da Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC).
A seguir, discutirei brevemente sobre a presença de artistas gênero-
dissidentes na história do circo e sobre a relação discursiva com a técnica e a
virtuose no meio circense, para então propor os contornos epistêmicos de uma
performatividade trans no circo, a partir de reflexões sobre estética, política e
epistemologias dissidentes. Ainda que este artigo seja um ensaio preliminar em
um campo com referências escassas, espero contribuir com a pavimentação de
caminhos para pesquisas futuras sobre este tema.
Do que falo quando falo de circo?
Não começo esta história do princípio. Não o faço, mesmo que reconheça a
força persuasiva de certas operações historiográficas, muito batidas e criticadas,
que nos estimulam a situar os acontecimentos em uma ordem cronológica, causal
e, de preferência, coerente. Não começo a história do circo do princípio por dois
motivos.
9 No Brasil há, atualmente, apenas dois livros que tratam sobre essa questão. O primeiro é “Circo em Transição”
(2023), organizado por mim e de autoria da Cia Fundo Mundo. Ele traz uma compilação de entrevistas com
diversos artistas da cena brasileira, com foco na presença de pessoas LGBTIA+ no circo. O segundo livro é de
Samira Lemes e se chama “O Sagrado Circo” (2022). Contudo, este livro prioriza o mapeamento dos coletivos
de mulheres cisgêneras no circo brasileiro, com uma breve observação sobre a Cia Fundo Mundo, companhia
circense formada apenas por pessoas trans.
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Primeiro motivo: porque, a rigor, não existem datas e nem locais precisos do
surgimento do circo como linguagem artística. O que se sabe é que as artes
compreendidas no universo circense como acrobacias, teatro, música,
adestramento, entre outras remontam a diferentes povos, tempos históricos e
demarcações geográficas. Contar essa história do princípio frequentemente
resulta em uma genealogia do circo moderno que atribui os créditos autorais à
Europa, particularmente à Inglaterra, tomando como referência exclusiva a
historiografia europeia e ignorando os saberes circenses que se construíam
tempos desde a oralidade e o nomadismo.
É comum que se credite a criação do circo moderno ao sargento inglês Philip
Astley, que, no século XVIII, reuniu artistas das feiras tradicionais, mas, em vez de
ocupar uma rua ou praça, organizou um espetáculo em um espaço fechado. O
espetáculo de Astley, voltado para a aristocracia, seguia uma estrutura marcial,
baseada na disciplina dos homens cisgêneros brancos e no adestramento dos
cavalos.
No entanto, esta genealogia carece de uma análise mais criteriosa. A partir
dessa análise, a pedra fundamental do circo moderno seria a existência de uma
lona ou telhado sobre o picadeiro. Atribuir a criação do circo moderno a Astley
implica desconsiderar a experiência artística dos saltimbancos, que vinham se
apresentando em feiras, praças e ruas desde o século XII, na Europa, combinando
técnicas típicas da linguagem circense, como acrobacia, música, dança e
adestramento de animais. Ignorar deliberadamente a participação dos
saltimbancos na construção disso que veio a ser o circo moderno é, na prática,
um apagamento com viés étnico-racial, visto que a ocupação de saltimbanco foi
historicamente associada com os povos ciganos.
O segundo motivo para não começar esta história do início é porque o circo
sempre se deixou permear pelos saberes e tecnologias de seu próprio tempo
histórico (Silva, 2007). O circo se constituiu como uma linguagem artística
inventiva, que se renova constantemente. Ou seja, tanto o circo do passado quanto
o circo do presente são contingentes às mudanças de seu tempo. Neste mundo
de sonhos construído pelo circo, o tempo não corre de maneira cronológica e
linear – senão para os lados, para fora, para dentro.
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Quando falo de “circo”, faço referência a um campo artístico que combina
todas as artes cênicas: acrobacia de solo, teatro, adestramento de animais,
acrobacia aérea, equilibrismo, ilusionismo e malabarismo, apresentadas em
conjunto com música, dança e artes plásticas (Tamaoki, 2017). Entende-se o circo
como um campo que reúne, ao mesmo tempo, elementos da cultura popular
tais como os cantos e danças populares –, da cultura de massa – como as atuais
inserções nas redes sociais e, anteriormente, no cinema, em programas de
televisão e rádio e daquilo que se convencionou chamar de cultura erudita
como a música clássica, por exemplo (Tamaoki, 2017). Não é possível traçar a
origem do circo porque esta é uma linguagem artística que se erigiu na
encruzilhada polivalente de vivências, saberes e técnicas.
Então, se não podemos contar com a cronologia, por onde começar nossa
história? Proponho que comecemos do corpo, que é onde tudo acontece. Este
corpo circense, que habita os imaginários sobre o fantástico, o perigoso e o
anormal. A mulher barbada. Os irmãos siameses. O trapezista que, do alto, faz
o salto-mortal e paira, suspenso, naquilo que parece ser uma eternidade, apenas
para se agarrar à barra do trapézio no último milésimo de segundo antes de cair.
O palhaç
o
, que depois da década de 1970 passou a poder se dizer palhaç
a
no
Brasil10. A acróbata, em figurino etéreo, completamente livre de pelos ou qualquer
outro traço fisiológico que possa lembrar ao público que ela é, na verdade, um
bicho humano. Quem são esses corpos circenses que imaginamos quando
pensamos em circo?
Aqui, tomarei emprestadas as categorias disponíveis no tempo presente
desta pesquisa para situar esses corpos circenses. Quando pensamos em
acrobata, imaginamos corpos jovens ou velhos, magros ou gordos, altos ou baixos?
Imaginamos uma pessoa não-binária que é mestre de picadeiro? Pensamos em
uma palhaça travesti? Concebemos, nesse exercício criativo, um mágico que seja
cadeirante ou uma dançarina que tenha paralisia cerebral? Em todas as perguntas
anteriores, imaginamos pessoas brancas?
10 A historiadora Ermínia Silva explica: “O feminino de palhaço só vai existir após o surgimento das escolas de
circo, no final da década de 1970 e começo de 1980”. Em: Minha Avó Era Palhaço! (documentário), 2016.
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De que corpo falamos quando falamos sobre circo
Não se pode pensar sobre o corpo circense sem pensar sobre hegemonia
colonial. Sobre aquilo que se convencionou chamar de matriz de inteligibilidade
dos corpos (Butler, 2003). Ou, em outras palavras, sobre os processos sociais que
determinam que um ser humano deve se constituir a partir de uma determinada
racialidade, somada a uma coerência entre sua identidade de gênero e orientação
sexual. Agora, no tempo histórico que marca a escrita desta pesquisa, tal
“coerência” encontra seu lugar de conforto e privilégio na branquitude
(Schuchman, 2012), na cisgeneridade (Radi, 2019) e na heterossexualidade
(Mombaça, 2017; Preciado, 2018).
Apesar da origem imemorial das disciplinas circenses11, o imaginário
contemporâneo sobre o circo é fortemente povoado pelos Circos de Horrores
(
Freak Shows
), realizados principalmente na Europa e nos Estados Unidos, do final
do século XIX a meados do século XX. Estes espetáculos, de inegável influência
colonial, exibiam o que se entendiam à época como “anomalias humanas”, a partir
de uma premissa que subalternizava pessoas gênero-dissidentes, não-brancas,
com deficiência, entre outros exemplos.
É neste contexto de violência racial, pilar dos processos de expansão colonial,
que se desenrola a história de Sarah Baartman, nascida na África do Sul, detida e
traficada à Europa para exibir seu corpo em “feiras de horrores”. Também não
posso deixar de ressaltar a figura circense da mulher barbada, explorada não como
potência cênica das corporalidades não-binárias e travestis, mas como estereótipo
transfóbico daquelas que ousam escapar à matriz de inteligibilidade dos corpos
cisgêneros (Butler, 2003).
Se, por um lado, o circo foi historicamente associado com a presença de
pessoas subalternizadas, dissidentes, atípicas à sua maneira (Chemers, 2008), e
entendido como uma arte acessível ao povo (Pimenta, 2009), uma arte em
constante reinvenção (Silva, 1996), por outro, também foi espaço de exclusão,
normalização e apagamento de corpos fora da norma. Conforme relatou a
11 registros de domesticação de animais pelo menos 10 mil anos. Algumas formas de acrobacia e
malabarismo foram registradas do Egito à China, há 6 mil anos, assumindo funções religiosas, rituais, lúdicas
e festivas.
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escritora Carolina Maria de Jesus: “Eu escrevia peças e apresentava aos diretores
de circo. Eles diziam-me: — É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro
a minha pele negra, e o meu cabelo rústico” (1995).
O relato da escritora explicita ao menos dois pontos que discutirei neste
percurso. Em primeiro lugar, denuncia a materialidade do racismo na precarização
da vida de pessoas negras, na inferiorização de corporalidades e subjetividades de
pessoas não-brancas, na falta de oportunidades de trabalho, na necropolítica
(Mbembe, 2018) que atinge populações negras e indígenas no Brasil há, pelo
menos, cinco séculos, entre outras heranças da colonização. Em segundo lugar, a
escritora também evidencia sobre a outra face das artes circenses, que
frequentemente negligenciam a potência cênica das narrativas produzidas e
protagonizadas por pessoas trans, não-brancas, com deficiência, gordas e demais
corporalidades não-hegemônicas.
No entanto, pensar o circo apenas na condição de ferramenta de dominação
colonial é esquecer que as disciplinas circenses antecedem a criação do Circo
Moderno e ignorar a contribuição poética, artística e pedagógica dos povos
originários e afrodiaspóricos para as artes circenses, tal como visto na palhaçaria
preta e indígena12. Insistir na concepção do circo apenas como peça fundamental
do imaginário colonial também é ignorar a potência de artistas trans, travestis e
não-bináries, que têm disputado espaço e reconhecimento nas lonas de circo.
Com o aumento de visibilidade da comunidade trans no debate público a
partir dos anos 1990 e a conquista (ainda que frágil) de alguns direitos sociais13 no
século XXI, pessoas trans, travestis e não-binárias têm encontrado mais
ferramentas para contar histórias a partir de seus próprios lugares de fala (Ribeiro,
2017) e saber (Haraway, 2009a). Essa efervescência cultural atravessa o fazer
artístico circense, de modo que os temas de gênero e sexualidade ganham mais
destaque sob as lonas – nem sempre livres de polêmica e objeção, como se pôde
12 Sobre o assunto, ver Vanessa Rosa, 2021.
13 Em fevereiro de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que pessoas transgêneras podem alterar
nome e sexo no registro civil sem passar por acompanhamento psicológico e cirurgia de redesignação sexual
no Brasil.
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conferir na 20a Convenção Brasileira de Malabarismo e Circo14 –, festivais e
convenções de circo propõem critérios de curadoria fundamentados na
diversidade e despontam cada vez mais iniciativas voltadas para a pesquisa e a
proposição de outras formas de pensar comicidade e técnicas circenses15.
Atualmente podemos citar uma variedade de artistas trans, travestis e não-
bináries na cena circense: Maré Oliveira, Scher Dias, Kassandra Mágica, Chuck
Oliveira, Mica Ferraz, Isa Dor, Vulcanica Pokaropa, Lui Castanho, Noam Scapin,
Helen Maria, Roque Marciano, Muriel Cruz, Vi Marquez, Francine Veitenheimer, Gil
Porto Pirata, Luiza Rodrigues, Di Estradet Blanco, Perfuratrix Diamantada, Puri
Yaguarete, Dani Barros, Cia Fundo Mundo16, eu mesmo e muitos outros nomes.
Apesar da nossa presença crescente nas lonas, dedica-se pouca atenção às
potências da população trans nas artes circenses no Brasil, sobretudo nos espaços
de produção de saber – onde pessoas gênero-dissidentes ainda são notadamente
minoria. Esse processo de exclusão não pode ser analisado de maneira isolada,
visto que a população trans configura 0,02% dos estudantes do ensino superior e,
via de regra, raramente consegue ingressar e permanecer no mercado de trabalho
formal17. Este abismo econômico e social é ainda maior em se tratando de pessoas
trans não-brancas e periféricas. Mas há, ainda, um outro elemento que
fundamenta a exclusão e desqualificação de artistas trans na cena circense no
Brasil. Para tratar dele, precisarei elaborar a importância da virtuose para o
imaginário circense.
14 A 20a Convenção Brasileira de Malabarismo e Circo, realizada em Eusébio (CE) em 2020, foi a primeira da
história das convenções nacionais de circo a ocorrer no Nordeste, bem como a ter uma Noite Preta, Noite
Feminina e Noite LGBTQI+ em sua programação. Após a polêmica gerada pela apresentação do espetáculo
Erotic Circus Show, a Aliança Pró-Circo lançou uma carta aberta, solicitando que a Convenção retirasse a
palavra “circo” de seu nome, no entendimento de que o ocorrido em Eusébio poderia ser associado às
entidades do circo tradicional. O acontecido revela as tensões e diferenças entre as múltiplas formas de
pensar os espaços circenses na atualidade.
15 Apesar de os debates sobre “Palhaçaria Feminina” alargarem as concepções sobre riso e comicidade, a divisão
simples entre “circo dos homens” e “circo das mulheres” não conta da multiplicidade narrativa e estética
das artes circenses. Vemos ganhar força as discussões sobre comicidade preta e indígena, palhaçaria trans,
inclusão de pessoas gordas e/ou pessoas com deficiência nas técnicas acrobáticas, entre outros temas.
Alguns exemplos foram as palestras e rodas de conversa promovidos pelo Festival Internacional de Circo de
SP (2022), pelo II Encuentro Latinoamericano de Circo LGBTIA+ (2022), pela Circa Festivália (2021) e pelo
BRILHE: Festival Internacional de Circo Drag (2021).
16 Companhia circense formada integralmente por artistas trans, travestis e não-binários.
17 Pessoas trans representam apenas 0,02% dos universitários no Brasil. O número é ainda menor nos espaços
restritos da pós-graduação. Ver mais em: Benevides, Bruna Benevides; Sayonara Nogueira, 2021ª.
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De que falamos quando falamos sobre virtuose
Não se pode falar de circo sem comentarmos sobre a sua íntima relação com
a ideia de virtuose. Aqui, a virtuose representa a virtude do artista circense que
atingiu um altíssimo grau de domínio técnico na execução da sua arte. Nesse
sentido, um artista virtuoso supera os limites do corpo humano e passa a ser algo
como uma entidade mais-que-humana. Tal é o fascínio gerado por números de
acrobacia aérea de alto risco ou esquetes de palhaçaria que envolvem virtuosismo
em equilíbrio, música ou ilusionismo. Em seu livro
Palhaços
(2003), o pesquisador
e circense Mário Fernando Bolognesi diz o seguinte:
O circo é a exposição do corpo humano em seus limites biológico e social.
O espetáculo fundamenta-se na relação do homem com a natureza,
expondo a dominação e a superação humanas. O adestramento de feras
é demonstração do controle do homem sobre o mundo natural,
confirmando, assim, a sua superioridade sobre as demais espécies
animais. Acrobacias, malabarismos, equilibrismos e ilusionismos diversos
deixam evidente a capacidade humana de superação de seus próprios
limites. Mas, ao apresentar espetacularmente a superação, terminam por
confirmar a contingência natural da existência, expressa na sublimidade
do corpo altivo, distante do cotidiano (Bolognesi, 2003, s/p).
Isto é, a noção de virtuose, quando entendida em seu contexto circense, traça
uma hierarquia entre o humano e os demais seres do mundo natural. Representa,
simultaneamente, a dominação do bicho humano sobre todos os outros bichos e,
ainda, a superação do bicho humano, que transcende todos os limites de sua
humanidade. Aqui, a superioridade humana é entendida como um fato natural,
inquestionável, até belo, visto que expressa “a sublimidade de um corpo altivo,
distante do cotidiano”. Nesse sentido, quanto mais distante do bicho for o corpo
circense, mais altivo e sublime ele será. Ainda nas palavras de Bolognesi (2002,
p.2), “A transgressão do natural e a realização do impossível terminam sendo as
características básicas do espetáculo circense”.
No entanto, a hierarquização entre corpos humanos e não-humanos, alinhada
com a perspectiva de dominação como fato natural, é um dos pilares
estruturantes da epistemologia colonial. Como aponta Ailton Krenak (2019, p.8):
Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção
de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma
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concepção de verdade, que guiou muitas das escolhas feitas em
diferentes períodos da história.
Ou seja, a abstração civilizatória colonial se estruturou a partir da ideia de
conquista e domínio sobre o mundo natural, apartando o bicho humano dos
demais seres. A dominação humana sobre as criaturas não-humanas representa,
assim, o sucesso do projeto civilizatório europeu. E dentro do processo de
dominação colonial de Abya Yala, erigido sobre discursos de supremacia branca,
os povos originários foram entendidos como “animais sem alma”.
Portanto, se a virtuose circense representa a superação e o domínio do
humano sobre o mundo natural, não podemos pensá-la sem indagar a quem nos
referimos quando falamos de “humano”. Quais são os corpos circenses que são
classificados como bichos humanos, sendo, assim, capazes de transcender a
própria humanidade? E quais são os corpos que nunca chegaram a ser
classificados como humanos?
Sobre esta relação entre hegemonia e a figura do Outro, a pesquisadora Sueli
Carneiro (2005) aproveita as categorias de ôntico e ontológico, apresentadas pelo
filósofo Martin Heidegger, para analisar o discurso de supremacia racial branca. A
autora afirma (Carneiro, 2005, p.27):
O ôntico se refere aos entes particulares, ou às determinações do ser.
Ontológico diz respeito ao ser enquanto tal. Então, raça, cor, cultura,
religião e etnia seriam da ordem do ôntico, das particularidades do ser.
Ser, e especificamente Ser Humano, inscreve-se na dimensão ontológica.
O que nos permite supor que o racismo reduz o ser a sua dimensão
ôntica, negando-lhe a condição ontológica, o que lhe atribui incompletude
humana.
Noto um procedimento hierárquico semelhante na cisnormatividade, que
reduz pessoas trans à nossa particularidade ôntica (ser trans), privando-nos da
dimensão ontológica (humanidade).
Tomemos o exemplo de Annie Jones, a mulher barbada. Sua presença, nos
Freak Shows, não se justificava pela virtuose ou pela primazia de alguma técnica
artística específica, ainda que Annie exibisse um grande talento musical com o
bandolim. Do contrário, sua presença se justificava no próprio corpo uma
corporalidade dissidente de todo o conjunto estético e político associado com a
divisão binária de gênero. Se a mulher barbada era exibida como atração exótica,
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talvez até monstruosa, isso ocorria porque não era vista como humana. Era
reduzida à sua particularidade ôntica, uma mulher com barba, e despida de sua
dimensão ontológica, a humanidade. Assim, Annie Jones era entendida como
menos-que-humana, um bicho indomado do mundo natural.
Se trago esse exemplo, é para argumentar que não podemos ignorar a
semelhança do ideal de virtuose com os projetos civilizacionais, fundados na
supremacia branca europeia, que pretendiam a dominação e o controle do mundo
não-humano, incluindo aqui os territórios originários. Nesse sentido, pode
transcender a categoria de humanidade quem, um dia, já foi validado como bicho
humano. Só pode ser virtuoso quem é considerado gente, para começar.
Na prática, a virtuose e a transgressão do natural seguem sendo um dos
princípios fundantes dos espetáculos circenses (Bolognesi, 2002, p.2). O fato de
que os espaços de formação nas artes circenses são majoritariamente ocupados
por pessoas cisgêneras, brancas e sem deficiência, instauram uma via de mão-
dupla: não acessamos os espaços de formação e a ausência de formação é usada
como critério para nos desqualificar em nossa prática artística.
Arrisco dizer que não é possível redistribuir recursos culturais para a
população dissidente no circo sem que repensemos a própria relação do fazer
circense com a técnica e a virtuose. Mas isso nos leva ao próximo ponto.
Esboçando performatividades trans no circo
Talvez uma das principais chaves heurísticas das performatividades trans seja
esta: “ainda que eu atribua sentidos em relação a mim mesma, terei de negociar
o tempo todo com as leituras que fazem sobre mim” (Leal, 2021, p.22). Se o sentido
de uma cena não se constitui como dado prévio, estabelecido antes da leitura,
atribuído pelo artista, mas se realiza apenas na relação do espectador com o texto
cênico (Desgranges, 2012, p.17), podemos dizer o mesmo sobre nossas
corporalidades trans e gênero-dissidentes.
Um corpo trans no picadeiro circense ou no espaço imprevisível da rua
carrega consigo o aparato imaginário de um teatro de sombras. Isso porque, no
processo de leitura, mesmo as respostas que foram deixadas de lado integram o
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percurso, permanecendo como sombras despertadas, mas não escolhidas para a
seleção (Desgranges, 2017, p.30). A artista trans mais hábil ainda lidará com a
sombra da virtuose circense, que separa os corpos mais-que-humanos dos corpos
nem-tão-humanos-assim. Até mesmo o artista trans mais passável18 lidará com o
repertório cultural de discursos cis-supremacistas que posicionam corpos trans
como incorretos, falsos, imorais.
Eu carrego, em meu corpo, a sombra da mulher barbada, ainda que eu
mesmo não me entenda como mulher. Tal é a nossa relação: estamos conectados
por um aparato de sombras que posiciona as nossas corporalidades em um lugar
de subalternidade artística e humana. Neste corpo estão imbricadas as tensões
entre a possibilidade de ser gente (ontológico) e os discursos cisnormativos que o
reduzem o corpo gênero-dissidente à sua particularidade (ser trans), fixando nesta
particularidade a sua única possibilidade de existência. Nas palavras da
pesquisadora Dodi Leal (2021, p.60):
colocar-se na cena social para nós, pessoas trans, nesse sentido, contém
mais chances de que o ponto de partida configure um lugar em razoável
desvantagem que, em raras circunstâncias, pode se reverter para as
condições justas de jogo […] de fato, a detecção de que uma pessoa é
trans provoca a atenção da cisgeneridade para o fato de que tal pessoa
passa a ser representante do rompimento de uma ordem de
performance de gênero hegemônica.
Em outras palavras, pessoas trans habitamos as brechas do mundo. E,
mesmo a contragosto, na condição de artistas, representamos as brechas abertas
na ordem de gênero hegemônica, que se passa como ordem fixa e natural em
toda dramaturgia circense que não questiona a lógica cisnormativa. Em cena, não
existe corpo neutro e não existe gênero original (Butler, 2003).
Se eu puder esboçar uma cartografia das brechas promovida pela
performatividade trans no circo, elenco ao menos três pontos estruturantes:
(a)
ruptura da pré-discursividade do gênero; (b) contra-binariedade; (c)
impermanência
19. Vejamos o que isso quer dizer.
18 Chama-se de “passável” a pessoa trans que consegue ser lida como uma pessoa cisgênera. No entanto, a
passabilidade não é um atributo permanente: em determinados contextos, a partir de uma determinada
performatividade, uma pessoa trans pode ser passável, deixando de-lo num momento seguinte.
19 Aqui, tomo base o aparato teórico da pesquisadora Viviane Vergueiro, proposto em sua dissertação “Por
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Chamo de pré-discursividade de gênero20 a ideia de que é possível descobrir
a identidade de gênero de uma pessoa unicamente a partir de características
corporais, discursivamente produzidas como fatos naturais. Observamos uma
pessoa e, a partir de um conjunto de marcadores fisiológicos e estéticos, definimos
se esta pessoa é um homem ou uma mulher. Esse movimento de análise e
categorização de gênero a partir de atributos corporais desconsidera o fato de que
a própria divisão binária de gênero como fato natural é historicamente contingente
(Nedel, 2020a). Dentro da medicina, diversas pesquisas apontando que a divisão
de gênero entre “homens” e “mulheres” não condiz com o que se pode aferir sobre
a diferenciação sexual humana (Ainsworth, 2015). Gênero, na nossa espécie, é um
espectro amplo de possibilidades para além do binário homem/mulher.
Assim, a pré-discursividade de gênero é um dos pilares da cisnormatividade.
Isso porque a cisgeneridade depende da existência de uma coerência artificial
entre órgão genital, identidade de gênero e expressão de gênero (Vergueiro, 2015)
para se fabricar como a forma mais verdadeira, natural e civilizada de estar no
mundo.
No entanto, um corpo trans rompe com esta coerência artificial. por existir,
pessoas trans desvelamos os mecanismos fictícios que engendram a produção de
todos os gêneros, não apenas dos nossos. por existir, estamos em constante
negociação com as leituras que se fazem sobre nossos corpos, bem como com
as sombras históricas, sociais e culturais que se projetam sobre nossos corpos.
Vem daí a afirmação de que não existe corpo trans que não esteja em cena o
tempo todo (Leal, 2021).
Indo mais além, esta suposta coerência entre órgão genital, identidade e
expressão de gênero, reiterada pela cisnormatividade, só existe no âmago de uma
lógica binarista estanque: aqui, os únicos gêneros verdadeiros são “homem” e
“mulher”. Nesse sentido, qualquer identidade de gênero para além do binário
homem/mulher é entendida como falsa, menos natural, menos civilizada.
inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da
cisgeneridade como normatividade” (2015, p.60-68).
20 Prefiro usar “pré-discursividade de gênero” em vez de “pré-discursividade de sexo”, como utilizado por Viviane
Vergueiro, em concordância com a tese de Judith Butler (2003) sobre como o próprio sexo não existe como
fato natural isolado da cultura ele é parte integrante das tecnologias de gênero.
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Portanto, a performatividade trans também se articula dentro de uma lógica
contra-binária, pois os nossos corpos materializam a possibilidade de ser
simultaneamente homem
e
mulher, nenhum dos dois ou algo para além dos dois.
Finalmente, a coerência artificial entre corpo, identidade e expressão de
gênero, dentro do discurso cisnormativo, é diretamente dependente da noção de
permanência. Isto é, um gênero, para que seja verdadeiro, deve também ser
permanente (Vergueiro, 2015). Nos dizem “você nasceu mulher, então é mulher”,
ou “você nasceu homem, então é homem”, como se a permanência de um gênero
fosse a própria garantia de sua validade. Um corpo que ousa romper com a
narrativa da permanência de gênero e fabricar, para si, uma nova identidade,
ameaça diretamente o projeto cisnormativo de mundo. Assim, a performatividade
trans instaura uma outra temporalidade que fala menos sobre permanência e mais
sobre (des)continuidade. Como aponta jota mombaça (2021, p.14): “à revelia do
mundo, eu as convoco a viver apesar de tudo. Na radicalidade do impossível. Aqui,
onde todas as portas estão fechadas, e por isso mesmo somos levadas a conhecer
o mapa das brechas”.
Performatividades trans proporcionam o desenho de um novo mapa de
brechas. Pois as artes do circo, na condição de máquina de produção de ficções,
não escapam ao dilema de ser ora o cimento do mundo que conhecemos, ora a
sua própria bola de demolição. E que “não podemos construir o que não
podemos imaginar'', tudo o que está construído no mundo “precisou, antes, ser
imaginado” (Mombaça, 2017, p.5). Reside aqui o poder revolucionário ou
reacionário – da arte como ferramenta de produção de ficções de mundo.
Argumento que as performatividades trans no circo representam a derrubada
dos pilares onto-epistemológicos do pensamento e do mundo moderno (Ferreira
da Silva, 2019), visto que a única possibilidade de mudança reside na nossa
capacidade de fazer emergir refúgios em outros mundos (im)possíveis (Haraway,
2016a, 2016b). Também tenho pressa. pressa em mapear os caminhos para
descolonizar falando a língua que nos coloniza (Ravena & Dilacerda, 2020, s/p).
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Universidade do Estado de Santa Catarina
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PPGT
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