1
A escrita de uma dança (trans)criativa:
articulações (im)possíveis na educação de
um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak
Erika Kraychete Alves
Helen de Aguiar
Para citar este artigo:
WOSNIAK, Cristiane; ALVES, Erika Kraychete; AGUIAR, Helen.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações
(im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0103
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
2
A escrita de uma dança (trans)criativa1: articulações (im)possíveis na
educação de um corpo ícone-cinético2
Cristiane Wosniak3
Erika Kraychete Alves4
Helen de Aguiar5
Resumo
Este artigo explora a perspectiva do corpo ícone-cinético em ação educacional e
(trans)criativa no processo de derivação ou prática hiperartística de uma linguagem
em outra. A metodologia expandida de análise semiótica, parte de uma leitura
crítico-reflexiva de excertos do espetáculo
Reticências
(2023) da
Téssera Companhia
de Dança da UFPR
, derivado da peça teatral
Vestido de Noiva
, de Nelson Rodrigues
(1941). Ancorando-nos, sobretudo, nas ideias de Charles S. Peirce, Gérard Genette e
Haroldo de Campos, as relações entre corpo e escrita na cena contemporânea são
exponenciadas para evidenciar as (im)possíveis articulações entre o texto teatral e a
palavra corporificada ou (trans)criada em cena dançante.
Palavras-chave
: Linguagem. Dança. Transcriação. Corpo ícone-cinético.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Luzia Araújo. Doutorado e Mestrado em Linguística
Aplicada - Tradução pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Graduação em Letras pela
UNICAMP.
2 A publicação deste trabalho tem apoio financeiro da CAPES, por meio do PROEX/PPGE-UFPR (Programa de
Excelência).
3 Doutora e Mestra em Comunicação e Linguagens / Estudos de Cinema e Audiovisual (UTP). Especialista em
Artes-Dança (FAP-PR). Bacharel e licenciada em Dança (Unespar/FAP). Bacharelado em Cinema e
Audiovisual. Professora adjunta da Universidade Estadual do Paraná (Unespar). Docente permanente do
Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Educação na Universidade Federal do Paraná
(UFPR). cristianewosniak@ufpr.br
http://lattes.cnpq.br/8707636250586166 https://orcid.org/0000-0002-7234-2638
4 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestra em Educação pela UFPR.
Especialista em Estética e Filosofia da Artes pela UFPR. Bacharel e licenciada em Dança pela Universidade
Estadual do Paraná (Unespar) - Faculdade de Artes do Paraná (FAP). Coreógrafa residente da Téssera
Companhia de Dança da UFPR. Bailarina e coreógrafa profissional. Técnica e diretora de produção.
erikaalves@ufpr.br
http://lattes.cnpq.br/2835238173646073 https://orcid.org/0000-0003-4060-3730
5 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com bolsa CAPES/PROEX. Mestra em
Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com bolsa CAPES/PROEX. Graduanda em Pedagogia
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e graduada em Licenciatura e Bacharelado em Dança pela
UNESPAR/FAP. helenaguiar@ufpr.br
http://lattes.cnpq.br/0636005813237130 https://orcid.org/0000-0001-7897-1497
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
3
Writing a (trans)creative dance: (im)possible articulations in the education of a
kinetic-icon body that writes a (trans)creative dance
Abstract
This article explores the perspective of the kinetic-icon body in educational and
(trans)creative action in the process of derivation or hyper-artistic practice from one
language into another. The expanded semiotic analysis methodology starts with a
critical reading of excerpts from the ballet
Reticências
(2023) performed by
UFPR´s
Téssera Companhia de Dança
, adapted from the play
Vestido de Noiva
written by
Nelson Rodrigues in 1941. Drawing mainly on the ideas of Charles S. Peirce, Gérard
Genette, and Haroldo de Campos, the relationships between the body and writing in
the contemporary scene are exponentiated to highlight the (im)possible articulations
between the theatrical text and the word embodied or (trans)created in a dance
scene.
Keywords:
Language. Dance. Transcreation. Kinetic-icon body.
Escribiendo una danza (trans)creativa: articulaciones (im)posibles en la educación
de un cuerpo ícono-cinético
Resumen
Este artículo explora la perspectiva del cuerpo icono-cinético en la acción educativa
y (trans)creativa en el proceso de derivación o práctica hiperartística de un lenguaje
hacia otra. Se inicia la metodología de análisis semiótico ampliado con un análisis de
extractos del espectáculo
Reticências
(2023) de
Téssera Companhia de Dança en la
UFPR
, inspirado en la obra
Vestido de Noiva
, de Nelson Rodrigues (1941). A partir de
los anclajes teóricos que sustentan el estudio en particular, Charles S. Peirce,
Gérard Genette y Haroldo de Campos se exponen las relaciones entre el cuerpo y
la escritura en la escena contemporánea para resaltar las (im)posibles articulaciones
entre el texto teatral y la palabra encarnada o (trans)creada en una escena de danza.
Palabras clave
: Lenguaje. Danza. Transcreación. Cuerpo icono-cinético.
Introdução
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
4
Dar significado ao mundo e às coisas do mundo não é suficiente
para compreender a experiência da presença, o ritmo que move
e anima corpos em ação durante uma performance.
(Gilberto Icle)
Pode um corpo em ação performática e dançante traduzir um texto literário,
a partir do entendimento de tradução como crítica e (trans)criação? De que forma
podemos empreender a análise reflexiva de um espetáculo de dança, sob a
perspectiva de um corpo ícone-cinético em ação educacional e (trans)criativa, no
processo de derivação ou prática hiperartística de uma linguagem em outra? O
que pode escrever ou reescrever um corpo que dança? A partir dessas questões
norteadoras trazemos como proposta investigativa a (im)possível e singular análise
de alguns excertos do espetáculo
Reticências
(2023),6 da
Téssera Companhia de
Dança da Universidade Federal do Paraná7
, inspirado na peça teatral
Vestido de
Noiva
, escrita por Nelson Rodrigues em 1941, e encenada pela primeira vez em
1943.
Charles Sanders Peirce, Gérard Genette e Haroldo de Campos servem-nos de
ancoragem teórica na tentativa de repensar de forma expandida –, a noção de
signo e a experiência de presença na cena, em conjugação com o que a semiótica
peirceana considera como um fenômeno pertinente à categoria da primeiridade,
vinculada às ideias de indeterminação, irrepetibilidade, frescor, espontaneidade,
potencialidade, qualidade e presentidade da ação.
Para Peirce (CP 8.328),8 a primeiridade trata do “modo ou modalidade de ser
daquilo que é tal como é, positivamente e sem qualquer referência a outra coisa”
e o signo é tudo aquilo que “sob um certo aspecto ou medida está para alguém
6 Ficha Técnica da obra: Roteiro e coreografia: Cristiane Wosniak; Direção teatral: Rafael Pacheco; Trilha sonora:
Cesar Sarti; Iluminação: Luis Tschannerl; Figurino: Cristiane Wosniak (concepção) / Terezinha de Lourdes
(Neca), Cisléa Maria dos Santos e Doralice Peron (confecção); Cenografia: Cristiane Wosniak e Rafael Pacheco;
Ensaiadora: Juliana Virtuoso; Produção: Helen de Aguiar; Design gráfico: Wilson Voitena e Fotografia: Christian
Alves.
7 Para maiores informações, consultar o site da Téssera Companhia de Dança da UFPR. Disponível em:
http://www.tessera.ufpr.br/links/sobre.html. Acesso em: 18 jan. 2024.
8 As citações da obra de Peirce seguem uma padronização de referência à edição Collected Papers of Charles
Sanders Peirce, Harvard University Press, 1931-1958, 8 v [CP]. Nas citações sobre os escritos coligidos de
Peirce, a primeira cifra reporta-se ao volume e a segunda ao parágrafo. Esta e demais traduções são nossas.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
5
em lugar de algo” (CP 2.228). Este algo a que o signo se reporta é o seu “objeto”.
Destacamos o fato de que os signos são sempre produzidos e lidos no
contexto de uma sociedade, sejam eles naturais ou convencionais. Nesse processo
explicativo a cognição do interpretante “supõe conhecimento do objeto [repertório]
enquanto lhe confere um conhecimento subsequente sobre este objeto” (CP
2.231). Em seu fundamento ou relação com o meio, o signo, na primeiridade,
apresenta-se como mera qualidade ou
quali-signo
e, em relação ao seu objeto,
relaciona-se como existente concreto ou ícone
.
Essa é a premissa que adotamos,
ao longo desta investigação, por considerarmos o corpo em ação dançante e
(trans)criativa como uma espécie de ícone cinético atuando na primeiridade da
re(a)presentação ou (trans)criação da palavra em gesto cinético.
É importante evidenciar que, na epígrafe que abre esta seção, encontramos
um desafio iminente. Gilberto Icle coloca em xeque a ênfase dos estudos que
procuram dar vazão ao significado das coisas em detrimento da dimensão da
presencialidade, destacando que os Estudos da Presença, por exemplo,
direcionados às práticas performativas, enfatizam a dimensão da “tangibilidade e
coisidade [...] na medida em que são práticas corporais por excelência” (Icle, 2011,
p. 19). A afirmativa ressoa no estudo de Rejane Arruda (2017), que, na esteira do
raciocínio de Icle, apresenta a performatividade como a instalação de um espaço
indeterminado – do silêncio e da opacidade significante – e que, talvez, entre em
colisão com as tentativas de imposição de uma significação e leitura
a priori
.
Arruda sublinha que essa espécie de “
práxis do silêncio
vem em resposta à utopia
semiótica: uma palavra ou gesto significam” (Arruda, 2017, p. 188, grifo da autora),
sendo que a denominação
utopia semiótica
é usada por entender que a linguagem
não está fundamentada unicamente na relação direta entre significantes e
significados.
E aqui encontramos um ponto crucial para o desenvolvimento de nossa
análise, por nos posicionarmos em relação à questão do gesto em dança não a
partir de uma relação semiótica dual restritiva, como mencionado anteriormente,
mas por apregoarmos uma semiótica triádica que baliza sua ação ou semiose
numa relação contextual mediada. Aludimos aos pressupostos da semiótica
peirceana especificamente à noção de ícone cinético –, associada à operação de
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
6
derivação ou prática hiperartística proveniente de Genette (1982) e reincidente em
Campos (2006; 2011, p. 33), ao se referir à tradução como “recriação de informação
estética”. Estamos cientes de que essa espécie de (trans)criação exige, de nossa
parte, muito mais do que a simples decifração de códigos anteriores que regulam
e constituem a linguagem de partida (Campos, 2006) ou texto original/hipertextual
(Genette, 1982) neste caso, leia-se a peça teatral
Vestido de Noiva
[1941], de
Nelson Rodrigues. Exige também a capacidade de transcriação destes mesmos
códigos para os novos códigos da linguagem de chegada neste caso, a obra
Reticência(s)
[2023], da
Téssera Companhia de Dança da UFPR.
Dessa forma, acreditamos que as relações entre corpo e escrita na cena
contemporânea poderão ser exponenciadas e não limitadas às verificações ou
cotejamentos duais entre significantes e significados, visto que intencionamos
evidenciar as articulações entre o texto teatral e a palavra corporificada ou
(trans)criada em cena dançante, para que a tradução criativa não opere
meramente com a compreensão/decodificação da mensagem, mas com um ato
ou processo de criação de nova informação e, neste sentido, possa se configurar
como uma ação semiósica transgressora que possibilite uma “leitura aberta”.9
Ao comentar sobre esse processo de relação mediada do signo, Décio
Pignatari (2004) atesta que Peirce introduz um terceiro elemento, vital para a
compreensão da cadeia semiósica na busca de prováveis significados. A esse
elemento, Peirce deu o nome de interpretante; uma espécie de supersigno que
está sempre se refazendo ao refazer a suposta relação entre o signo e o objeto a
que se refere (Pignatari, 2004). Na inclusão de um terceiro elemento, a lei de
relação diádica entre signo/objeto, significante/significado é rompida, pois é com
esse terceiro elemento que se dará início à atividade cognitiva, ou seja, é na relação
com o interpretante que se elabora o conhecimento. Para Peirce, é esse especial
9 Reportamo-nos a essa expressão no mesmo sentido atribuído no manifesto dos fundadores do Movimento
da Poesia Concreta (Concretismo) no Brasil, no decorrer da década de 1950: Décio Pignatari e os irmãos
Augusto e Haroldo de Campos. Em suas pesquisas e produções artísticas, além das traduções de autores
mundialmente consagrados, os estudiosos se depararam com um desafio intrigante: se a sua proposta
colocava em relevo os aspectos formais materialidade linguística do texto/das poesias concretas, por
exemplo , como poderiam traduzir obras sem ferir os aspectos fônicos e a disposição gráfica do texto na
página? “Se a significação do texto é um aspecto secundário, ou melhor, se a significação ou os efeitos de
sentido estão na própria forma do texto, como traduzir esses efeitos para outra língua?” (Gessner, 2016, p.
143). O resultado dessa necessidade de “leitura aberta” foi a renomeação, no Brasil, da prática tradutória
como “transcriação”.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
7
encadeamento relacional de três termos signo, objeto e interpretante que
origem ao signo.
Em um processo tradutório a passagem de uma linguagem para a outra
o corpo performático dançante acaba por se tornar, ele também, uma espécie de
dispositivo de elaboração de linguagens, o que o qualifica como um “vetor de
produção de arte e informação, de modo a assumir uma
função educativa
(Santos, 2013, p. 167 – grifo nosso). Tal função educativa e estética, segundo John
Dewey (2010), dá-se pela experiência desse corpo em ações de produção de
informação ou (trans)criação de modos, textos e possíveis significados aprendidos
com e no corpo. Tal noção é defendida por Carlos Alberto Pereira dos Santos
(2013), ao afirmar que o corpo performático ampliamos aqui a perspectiva da
performance (trans)criativa em dança –, dá-se a ver como objeto, suporte ou
sujeito da experiência mediada: “A corporeidade articula informações, que na
associação desses dados, instaura uma troca constante de referências
organizadoras de contextos articulados entre
corpo performático, dança e
educação
” (Santos, 2013, p. 167 – grifo nosso).
No caminho de nossa abordagem metodológica optamos pelo suporte
material do documento de registro fotográfico (imagens de ensaios no estúdio de
dança e da temporada do espetáculo no palco do Teatro da Reitoria da UFPR) por
entender que a performance, em si
,
não pode ser considerada documento de
arquivo.
Segundo Coelho, Fonseca e Souza (2019, p. 8 grifo dos autores), a
“performance é uma das atividades do
performer
. Os documentos produzidos
e/ou recebidos pelo
performer
e que se relacionam com a sua atividade é que
serão os documentos de arquivo.” Não obstante, também adotamos os postulados
do
Tratado de Documentação
de Paul Otlet, no que concerne à tipologia de
documentação de arquivo, por considerarmos que a documentação fotográfica da
performance, neste caso, servirá para “representar ou reproduzir determinado
pensamento, independentemente da forma como se apresente” (Otlet, 2018, p. 11).
Extrair o conteúdo e os elementos ou eixos específicos de análise a partir de
fotografias de um evento performático, segundo Patrice Pavis, é uma tarefa
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
8
essencial do/a analista que deverá empreender um esforço para “desestetizar as
fotos artísticas salientando a sua dimensão documentária e apreciar a estética
fotográfica para imaginar o que essa visão revela do objeto reproduzido” (Pavis,
2003, p. 37). Nesse sentido, a documentação fotográfica nos fornece pontos de
referência e fixação do gesto performático importantes para a descrição do
excerto que se quer analisar, a partir da performance de
Reticência(s)
em sua
presentidade efêmera. Tais registros de matriz documental e fotográfica,
realizados a partir da performance, todavia, nem sempre encontram legitimidade
em teorias ou práxis da performance.
Em
Unmarked: the politics of performance
(1993), por exemplo, Peggy Phelan
não acredita plenamente que uma performance a arte evanescente do “aqui e
agora” dependente do público e da presentificação possa ser salva ou sequer
discutida sob o aporte de outros documentos ou registros, que não aquele
investido da corporeidade em exercício cênico absoluto. Em seu manifesto
A
ontologia da performance: representação sem reprodução
(1997), a autora sugere
que a presentificação do corpo que performa a ação, fisicalizada no tempo-espaço
de re(a)presentação, deve ser considerada como a única forma de apreensão da
experiência de conteúdo cênico. Em contrapartida, Erika Fischer-Lichte em
The
transformative power of performance: a new aesthetics
(2008), parece admitir que
alguns tipos de documentações podem criar condições de analisar criticamente
desempenhos anteriores, uma vez que “somente com a ajuda de outras mídias a
materialidade da performance pode se tornar acessível” (Fischer-Lichte, 2008, p.
76)10.
A posição de Fischer-Lichte aparenta ser similar à de Regina Melin, no
contexto das artes visuais, ao discorrer sobre performance, admitindo-se que
essas “podem ocorrer sem audiência e sem documentação alguma, ou podem ser
registradas através de fotografias, vídeos e filmes, entre outros documentos”
(Melin, 2008, p. 38). Dentre essas variadas mídias documentais mencionadas por
Fischer-Lichte e Melin, consideramos que os registros11 fotográficos apresentam-
10 Only with the help of other media can the performance’s materiality be made accessible. (Tradução nossa)
11 O registro ou “regestum significa a retomada de algo que já aconteceu (re-gestum), se refere à transcrição
e à escrita de informações importantes” (Ribeiro, 2020, p. 3). É nesse sentido que o documento testemunho
se reporta às fotografias [de autoria de Christian Alves] com a finalidade de extrair daí alguns códigos que
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
9
se, aqui, como potência documental e processual da criação da obra
Reticência(s)
,
que faz parte do repertório coreográfico da Companhia.
Criada pelo diretor e coreógrafo Rafael Pacheco, a Companhia atua no cenário
da dança moderna há 43 anos (1981-2024), em uma instituição de ensino superior
pública e gratuita, e mantém seu elenco atuante por meio de uma bolsa-cultura
destinada aos integrantes dos grupos artísticos da UFPR. A pesquisa de
movimentos, conceitos e estética artística nesse coletivo, dá-se por acesso aos
pressupostos de uma dança de raiz germânica atualizada pelos elementos de
teatro que a contaminam, fazendo com que a sua identidade cênica seja
reconhecida pelo padrão coreográfico simbólico, ritualista e com alta carga
dramática acentuada pelo gesto performático e significativo (Laban, 1978). O
espetáculo
Reticências
aqui analisado, teve sua temporada de estreia nos meses
de junho e julho de 2023.
Conceitos e abordagens operacionais de (trans)criação corpo
ícone-cinético
Habitualmente, iniciamos uma nova seção em textos acadêmicos delineando
conceitos e/ou definições sobre termos e expressões elencados no estudo. Neste
caso, detectamos uma certa dificuldade quanto à definição exata do termo
(trans)criação, visto que, como aponta Ricardo Gessner, não uma delimitação
conceitual fixa ou normativa, justamente pelo fato de que (trans)criação, na
acepção de Haroldo de Campos, serve para designar “um processo de tradução,
que se caracteriza por ser criativo” (2016, p. 144), subjetivo e imprevisível.
Depreendemos, assim, que se trata de uma abordagem tradutória específica e não
um conceito
.
De acordo com Campos em
Da transcriação poética e semiótica da operação
tradutora
(2011), a tradução de textos/obras artísticas será sempre recriação,
transcriação ou criação paralela, com uma certa autonomia, porém conectada de
alguma forma à obra original:
Numa tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado,
se relacionem nas possíveis leituras contextualizadas para a análise de Reticência(s).
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
10
traduz-se o próprio signo
, ou seja, sua fisicalidade, sua materialidade
mesma (propriedades sonoras, de imagética visual, enfim tudo aquilo que
forma, [...], a
iconicidade
do signo estético, entendido por ‘signo icônico’
aquele que é de certa maneira similar àquilo que ele denota.’ (Campos,
2011, p. 34, grifo do autor).
Por seu caráter de transmutação de signo em signo, qualquer pensamento é,
necessariamente, tradução. Temos em conta que, ao tentarmos traduzir ou
(trans)criar a palavra por meio do gesto, não estaremos operando somente com o
significado, mas transcriando o próprio signo palavra sob a forma do signo dança,
e a função poética da operação, nesse jogo, se exponencia. Como afirma Júlio
Plaza, “um signo traduz o outro não para completá-lo, mas para
reverberá-lo, para
criar com ele uma ressonância”
(Plaza, 2003, p. 27, grifo nosso), o que se constitui
em um princípio fundamental para as operações de tradução estética ou
(trans)criação.
O discurso de Campos em
Da tradução como criação e como crítica
(2006,
p.34) admite a impossibilidade da tradução de textos criativos e, ao refletir sobre
a transcriação estética, propõe uma espécie de passagem do texto de partida para
a (re)criação do/no texto de chegada em sua nova reformulação ou ressonância
de linguagem. Por essa razão é que também aquiescemos ao raciocínio de Ana
Carolina Lopes Costa, quando ela afirma que a tradução estética – com lampejos
de um repertório semiótico contém traços de singularidades inegáveis, pois se
encontra impregnada da perspectiva crítica e criativa dos/as tradutores/as (cf.
Lopes Costa, 2019, p. 3-4).
Semelhante pensamento, mas com formulação teórica e terminológica
diferenciada, pode ser vislumbrado em
Palimpsestes la littérature au seconde
degré
(1982) de Gérard Genette.12 O autor admite que todo texto ou
objeto/fenômeno artístico pode ser transformado ou derivado por meio de
práticas hiperestéticas, o que nos confere a possibilidade de vislumbrar em
Reticência(s)
um texto dançante palimpséstico, ou seja, uma espécie de prática
(trans)artística derivada de texto verbal/peça teatral, mas que também opera com
qualidades e elementos codificados próprios à sua linguagem, a dança, no sentido
12 É a partir das teorias e obras seminais de Mikhail Bakhtin e Júlia Kristeva que Genette propõe o termo
transtextualidade com o propósito de transcender a noção de intertextualidade.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
11
de subverter ou transformar algumas equivalências linguísticas nesse percurso de
(in)fidelidade transtextual.
A transtextualidade genettiana encontra-se definida no primeiro capítulo,
onde se esclarece qual seria o objeto da escrita de seu livro: “este objeto é a
transtextualidade, ou transcendência textual do texto, que definiria já, a grosso
modo, como ‘tudo que o coloca em relação, manifesta ou secreta, com outros
textos’”13 (Genette, 1982, p. 7).
Ressaltamos que, nas equivalências de raciocínio, associamos o texto de
partida e de chegada (Campos, 2006; 2011), respectivamente, ao hipotexto e o
hipertexto genettianos. À vista disso, Genette define aquela obra ‘A’ [leia-se a
coreografia
Reticência(s)
(2023)] como possivelmente derivada de outra(s) obra(s)
preexistente(s) hipotexto(s) ‘B, C, D …’ [leia-se aqui a peça teatral
Vestido de
Noiva
escrita por Nelson Rodrigues (1941), entre outras alusões, citações e
referenciais repertoriais presentes na coreografia/texto dançante de forma
explícita ou implícita], por transformação ou imitação, ou ainda, um conglomerado
das duas possibilidades. Dessa “literatura de(em) segundo grau” subtítulo da obra
Palimpsestes
– a escrita acontece
pelo
e
no
processo de leitura aberta.
Para Genette, os textos qualquer texto verbal ou não verbal podem ser
transformados ou imitados, visto que, “nenhuma arte, por natureza escapa a esses
dois modos de derivação que definem a hipertextualidade na literatura e que, mais
genericamente, definem todas as práticas artísticas de segunda-mão” (Genette,
1982, p. 536),14 ou práticas hiperartísticas.
Por conseguinte, após o panorama teórico delineado nesta seção introdutória,
partimos para o exercício analítico com a hipótese de que o corpo dançante pode
escrever traços, gestos e significados icônico-cinéticos, mediante a experiência
performática, ativando, em consequência, novas elaborações estéticas e
operações tradutórias, replicando-as e promovendo outros sentidos.
13 cet objet est la ‘transtextualité’, ou transcendence textuelle du texte, que je définissais déjà, grossièrement,
par ‘tout ce qui le met en relation, manifeste ou secrete, avec d’autres textes.’
14 [...] il n’est donc pas d’art qui échappe par nature à ces deux modes de dérivation qui, en littérature,
définissent l’hypertextualité, et qui, d’une manière plus générale, définissent toutes les pratiques d’art au
second degré, ou hyperartistiques. (Tradução nossa)
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
12
Reticência(s)
e o
Vestido de Noiva
: o corpo ícone-cinético em
(trans)criação
A primeira temporada, ou estreia nacional, do espetáculo
Reticência(s)
com
a
Téssera Companhia de Dança da UFPR,
aconteceu entre junho e julho de 2023,
conforme dados do cartaz do evento (Figura 1).
Figura 1 Cartaz do espetáculo Reticência(s)
Fonte: imagem extraída da internet/site da Companhia15
Em consulta ao Programa do espetáculo, temos acesso à sinopse da obra:
A COREOGRAFIA
Na produção textual, reticências significa ‘três pontos, dispostos
paralelamente à linha e ao lado de alguma palavra para marcar uma
pausa no enunciado, podendo indicar omissão de alguma coisa que não
se quer revelar, insinuação...’ Insinuar e não revelar parece ser o mote
da obra de Nelson Rodrigues, Vestido de Noiva que foi aos palcos em
1943, sob a direção de Ziembinski. A peça marca uma espécie de
renovação do teatro brasileiro ao se voltar para a realidade de cunho
psicológico, dividindo as cenas em 3 planos: da realidade, da memória e
da alucinação (Reticência(s), 2023, p. 2).
Da mesma forma, em consulta ao referido Programa, temos acesso a mais
15 Para maiores detalhes consultar o site: http://www.tessera.ufpr.br/links/repertorio/2023.html. Acesso em:
21 jan. 2024.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
13
um trecho da sinopse que o termo “transcriação” surge como pressuposto
estrutural:
A obra coreográfica,
transcriação
da peça teatral
Vestido de Noiva,
se
refere às regiões mais confusas da mente/corpo e da memória da
personagem acidentada (e em coma) que, ao se envolver/interagir com
diferentes personagens nos planos da REALIDADE, MEMÓRIA e
ALUCINAÇÃO, vai traçando, aos poucos uma linha de raciocínio
fragmentado não linear sobre os eventos que aconteceram ou se
pensa que tenham acontecido. As personagens [tipificadas ou ecos
dançantes], envolvidos na trama dançante, narram as diferentes versões
e impressões individualizadas, para explicar o acidente/crime (?)
envolvendo a personagem protagonista, Alaíde. Como testemunhas
psicológicas do ocorrido no presente/DIA DO ACIDENTE e no passado/DIA
DO CASAMENTO DE ALAÍDE com seu vestido de noiva, cada personagem
envolvido ou cada cena coreográfica aponta uma pista para se tentar
elucidar os possíveis motivos pelos quais o/a assassino/a chegou ao
extremo de seu ato violento o atropelamento e a fuga (Reticência(s),
2023, p. 3, grifo nosso).
Reticência(s)
é uma obra estruturada em 20 cenas dançantes com 60
minutos de duração e, de acordo com o Programa (Figura 2), reporta-se ao texto
de partida de Nelson Rodrigues,
Vestido de Noiva
(1941)16:
Figura 2 Páginas centrais (miolo) do Programa do espetáculo
Reticência(s)
Fonte: imagem fotográfica do programa impresso acervo das autoras
Pela leitura do Programa da estreia de
Vestido de Noiva
(1943), reparamos que
a peça inicia
Primeiro Ato
com um cenário dividido em três planos: “primeiro
16 Não se pode deixar de mencionar a existência de um dossiê da
Urdimento
(2023, v. 4, 49), denominado
Nelson Rodrigues no chão do palco
. Dentre os textos publicados, destacamos especialmente dois trabalhos
que nos interessaram para consulta: 1) Fabrício Trindade Pereira.
Vestir-se de palavra, noivar-se de Nelson
- Teatro multimeios de Ione de Medeiros para texto rodriguiano
; 2) Henrique Brener Vertchenko.
Vestido de
Noiva (re)estreia: encenar a modernização do teatro brasileiro (1943-1976).
Em ambos os casos, a obra
Vestido de Noiva
foi tratada sob perspectivas diversas no campo das artes cênicas.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
14
plano: alucinação; segundo plano: memória; terceiro plano: realidade. Quatro arcos
no plano da memória; duas escadas laterais. Trevas” (Rodrigues, 2022/1941, p. 13)17.
Nessa cena introdutória ouve-se, ao microfone, buzina de automóvel, rumor
de derrapagem, vidros partidos e, a seguir, a voz da personagem Alaíde,
visivelmente nervosa e confusa, chamando por madame Clessi. Dois personagens
femininos iniciam, portanto, a obra em questão. E, neste momento da reflexão,
torna-se necessário contextualizar o enredo da peça teatral.
Vestido de Noiva
(1941) possui um argumento que é ambientado no Brasil dos
anos 1940 e gira em torno da vida de Alaíde, que morre tragicamente em um
acidente de trânsito. Na peça teatral, existem três planos de acontecimentos: o
plano da realidade (onde acontece o atropelamento), o plano da alucinação
(confusão mental) e o plano da memória (lembranças da vida de Alaíde). Neste
contexto [coma], Alaíde protagoniza um tipo muito peculiar de viagem pelas
lacunas de sua mente; uma jornada que intenta resgatar seu suposto passado e
as personagens que exerceram papeis decisivos em sua existência.
Alaíde é uma mulher voluntariosa e arrogante que conquistou Pedro, o
namorado de sua irmã, Lúcia, além de ter uma admiração exótica e obsessiva por
madame Clessi, antiga cafetina do Rio de Janeiro e proprietária de um bordel.
Alaíde via na figura de madame uma espécie de modelo de liberdade e de
transgressão dos valores sociais. Enquanto está casada com Pedro, este
protagoniza um caso adúltero com Lúcia, personagem com quem primeiro ia se
casar. Após a morte de Alaíde, Pedro e Lúcia se casam, sem o menor remorso,
diante do espanto da sociedade.18
É na cena de abertura da peça teatral que Alaíde, busca por Madame Clessi.
De acordo com a descrição literal da cena, temos o seguinte trecho:
(Luz em resistência no plano da alucinação. Três mesas, três mulheres
escandalosamente pintadas, com vestidos berrantes e compridos.
Decotes. Duas delas dançam ao som de um vitrola invisível, dando uma
vaga sugestão lésbica. Alaíde, uma jovem senhora, vestida com
17 Seguimos como fonte de consulta a edição especial e impressa da Editora Nova Fronteira (2022), que traz
o Programa de estreia da obra, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 28 de dezembro de 2043. Para
mais detalhes, consultar a obra na íntegra: Rodrigues, 2022.
18 Para maiores informações consultar os sites: https://www.passeiweb.com/vestido_de_noiva/ e
http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/vestidodenoiva1.htm. Acesso em: 10 jan. 2023.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
15
sobriedade e bom gosto, aparece no centro da cena.
Vestido cinzento e
uma bolsa vermelha
) (Rodrigues, 2022/1941, p. 13, grifo nosso).
A cena inicial intenta posicionar o/a espectador/a no plano da realidade,
aludindo ao suposto atropelamento de Alaíde, mediante o recurso dos sons de
buzina, derrapagem violenta e vidro quebrado. Não se apresenta o episódio em si.
Alude-se a ele por meio da sonoplastia, enquanto a personagem protagonista
trajando um vestido cinzento e portando uma bolsa vermelha
–, após um instante
de silêncio e fazendo uso de uma iluminação que surge a seguir, (re)coloca-se em
um plano da alucinação sem acesso à memória –, procurando por um ícone
feminino transgressor dos “bons costumes”: Madame Clessi.
Com a leitura integral do texto, temos consciência de que, em determinado
ponto de sua juventude, Alaíde encontrou o diário de madame em uma mala antiga
no sótão da casa em que seus pais compraram, localizada num bairro famoso no
Rio de Janeiro. O encontro de tal relíquia memorial imprime em Alaíde a fantasia
desejante dos relatos ali contidos, em que a cafetina descrevia em pormenores os
seus jogos de sedução e relações com os homens da sociedade, especialmente
sua relação com um jovem que viria a assassiná-la, com uma navalhada no rosto.
Esse fato, inclusive, teria repercutido na imprensa e é mencionado nas duas cenas
em que os pais de Alaíde se reportam à antiga proprietária daquela casa que, agora,
lhes pertencia.
Destacamos um trecho específico do diálogo travado entre os pais de Alaíde
e Lúcia, logo nas primeiras páginas do texto teatral:
MÃE E tudo isso aqui?
PAI Aqui, então?!
MÃE Alaíde e Lúcia morando em casa de madame Clessi. Com certeza,
é no quarto de Alaíde que dormia. O melhor da casa!
PAI Deixa a mulher! Já morreu!
MÃE Assassinada. O jornal não deu?
PAI Deu. Eu ainda não sonhava conhecer você. Foi um crime muito
falado. Saiu fotografia.
MÃE No sótão tem retratos dela, uma mala cheia de roupas. Vou
mandar botar fogo em tudo.
PAI Manda.
(Rodrigues, 2022/1941, p. 24-25).
Em síntese, nesses momentos iniciais da obra de partida a peça teatral
Vestido de Noiva –
, temos como pontos sígnicos da cena os seguintes motes: i) o
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
16
acidente de trânsito em si; ii) Alaíde, confusa e sem memória do acidente, à
procura de madame Clessi nesse ambiente; iii) o encontro de Alaíde com Madame
Clessi. Como nos reportamos à organização estrutural das cenas que se sucedem,
tanto na peça teatral quanto posteriormente, nas cenas da obra coreográfica,
vamos agora observar a estrutura (trans)criativa dos corpos e dos gestos que
reescrevem o texto de partida.
De acordo com a figura 2 (excerto do Programa), a cena 2 da coreografia
denomina-se:
“Eu morri? Alaíde se desdobra em 3 planos de existência.”
Percebemos que a coreógrafa, nessa dimensão estética e criativa, optou por
materializar os três planos como uma espécie de ressonância sígnica espaço-
temporal da personagem Alaíde, fragmentando a sua persona em três
intérpretes/bailarinas distintas. A Alaíde do plano da realidade performada pela
bailarina Helen de Aguiar traja o referido
“vestido cinzento e uma bolsa vermelha”
(Rodrigues, 2022/1941, p. 13, grifo nosso), enquanto as performers dos planos da
alucinação e da memória Bruna Póvoa e Dani Durães trajam diáfanas camisolas
brancas sendo majoritariamente focalizadas em seus reflexos nos três espelhos
dispostos estrategicamente em cena. Notam-se, também, os detalhes dos botões
vermelhos nos três figurinos supracitados aludindo, possivelmente, ao elemento
sangue [acidente fatal envolvendo Alaíde].
O fato de a coreógrafa preferir manter a exata descrição da indumentária de
Alaíde no momento do atropelamento, portando a bolsa vermelha, pode se referir
a um processo explícito de alusão transtextual, apontando para o potencial
palimpséstico de localizar em um texto elementos estruturados anteriormente
a ele.
Tal opção não é essencial para a compreensão do texto. Mas, o/a leitor/a ou
espectador/a, dotado/a de noções repertoriais condizentes, pode apelar para o
jogo da descoberta das diversas camadas palimpsésticas/relacionais, o que
certamente adensa a profundidade de significados ordenados no texto de
chegada. Dessa forma, relembramos Genette, ao admitir que, para a compreensão
plena do enunciado, supõe-se a percepção de uma relação entre um texto e outro,
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
17
ao qual, necessariamente, “uma de suas inflexões remete”19 (Genette, 1982, p. 8).
Ao longo da obra coreográfica, as três performers se encontram em relação
espacial (des)ordenada, protagonizando ações corporais repetidas ou espelhadas,
ou seja, todas executam os mesmos movimentos, mas em temporalidades
distintas e conduzindo a narrativa cinética de acordo com a ordem encadeada na
descrição das cenas no Programa. O foco de atenção da bailarina Helen de Aguiar,
que interpreta/dança Alaíde, para as demais bailarinas, é evidente. O olhar de cada
intérprete sempre é direcionado para uma busca como uma complementação do
jogo cênico em trio: movimentos curtos, quebrados, angulosos, em nível médio e
baixo fazem com o que os corpos “aterrem” os seus pés descalços, incertos e em
busca vacilante de seus lugares no espaço.
O jogo coreográfico especular entre Alaíde e suas duas outras personas é
amplificado pela posição estratégica de três espelhos verticais no campo
cenográfico. Antes de analisarmos o movimento dançante icônico, cabe nos
reportarmos à questão do figurino que, aqui, “se integra ao trinômio fundamental
da representação (espaço-tempo-ação) iluminando assim seu movimento” (Pavis,
2003, p. 169).
O vestido cinza e a bolsa vermelha tornam-se índices sistemáticos da palavra
escrita no corpo da performer Helen de Aguiar, com a finalidade de se (re)conhecer
ou garantir a identificação da sua função/protagonista. as camisolas brancas
das duas Alaídes especulares se revestem de uma trama de signos (trans)criativos
(Figura 3).
19 l'une de ses inflexions se réfère. (Tradução nossa)
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
18
Figura 3 Fragmentação espelhada de 3 personas/planos de existência de Alaíde
Fonte: mosaico de fotografias do espetáculo
Reticência(s)
. Foto: Christian Alves
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
19
Tais personagens, duplos especulares de Alaíde, sequer são mencionados no
texto de partida/hipotexto; entretanto, sua função poética e estética na obra de
chegada/hipertexto a coreografia torna-se pretexto para a convergência das
supostas transições coreográficas aos distintos planos de existência postulados
por Rodrigues. A bolsa vermelha, nesse caso, longe de se manifestar como um
mero adereço cênico, “se coloca no centro e no coração da representação” (Pavis,
2003, p.174), atestando, ao mesmo tempo, a sua nomeação ou alusão no texto de
partida e a sua transformação ao longo da obra de chegada, quando evocada para
cumprir distintas funções.
Vale mencionar que os pés descalços dos integrantes da Companhia
pressupostos técnico, estético e filosófico da dança moderna coloca-se aqui
como um ajuste adaptado à função do performer bailarino na relação com a
caracterização de suas personagens. Nesse ajuste entre palavra e corpo se
evidencia a clareza da relação da dança e sua execução técnica e expressiva com
a interpretação e caracterização teatralizada.
Em determinado momento da coreografia, na cena 5
O sótão, a mala e o
diário de Madame Clessi
(Figura 2) –, a bolsa vermelha exerce o papel de um “baú
de memórias” de Alaíde que, sentada à frente do palco em um espaço forrado de
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
20
branco, consegue abri-la e daí extrair o famoso “diário de madame Clessi”, dando
início à cena da aparição da personagem, mencionada nas cenas 6 e 7 do referido
Programa. Tanto a bolsa vermelha, quanto o leque branco [de Madame Clessi] não
se configuram unicamente como objetos concretos criados para o espetáculo,
mas tomam traços de objetos reais e se transformam às necessidades da cena,
com novos significados (Figura 4). No texto de partida, a menção aos objetos
supracitados ocorre da seguinte maneira:
Apaga-se o plano da memória. Luz no plano da alucinação.
ALAÍDE (preocupada) Mamãe falou em Lúcia. Mas quem é Lúcia? Não
sei. Não me lembro.
MADAME CLESSI Então vocês foram morar lá? (nostálgica) A casa deve
estar muito velha.
ALAÍDE Estava, mas Pedro... (excitada) Agora me lembrei: Pedro. É meu
marido! Sou casada. (noutro tom) Mas essa Lúcia, meu Deus! (noutro tom)
Eu acho que estou ameaçada de morte! (assustada) Ele vem pra cá.
CLESSI Deixa.
ALAÍDE (animada) Pedro mandou reformar tudo, pintar. Ficou nova, a
casa. (noutro tom) Ah! Eu corri ao sótão, antes que mamãe mandasse
queimar tudo!
CLESSI Então?
ALAÍDE
vi a mala com as roupas, as ligas, o espartilho cor-de-rosa.
E encontrei o diário.
(arrebatada) Tão lindo, ele!
CLESSI (forte) Quer ser como eu, quer?
ALAÍDE (veemente) Quero, sim. Quero.
(Rodrigues, 2022/1941, p. 25, grifo nosso).
Pavis atenta para o fato de que os objetos reais [leia-se a bolsa vermelha, o
leque, a piteira de madame, o buquê, as flores brancas e vermelhas e o véu de
tule transparente, por exemplo] podem estar até nomeados no texto de partida,
mas na cena texto de chegada podemos “percebê-lo concretamente e
concebê-lo abstratamente” (Pavis, 2003, p. 176).
Nos laboratórios de criação dos gestos e movimentos das personagens, a
ideia de instabilidade e quedas foi um mote constante. As passagens instáveis
entre os planos de existência deveriam promover movimentos descentralizados
do elenco, tanto na busca de movimentos locomotores quanto naqueles
realizados no eixo axial.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
21
Figura 4 O objeto bolsa vermelha de Alaíde em (trans)posição funcional
Fonte: mosaico de fotografias do espetáculo
Reticência(s)
. Foto: Christian Alves
Na composição de movimentos, posturas e atitudes de Madame Clessi, por
exemplo, o bailarino performer Fernando Vidal que recebeu a incumbência de
performar Madame Clessi –, encontrou nas linhas assimétricas, longilíneas e
angulares de torção de tronco, a potência latente para o seu corpo dançante, em
resposta às instruções da coreógrafa. O uso dos sapatos de salto alto propiciou,
desde os ensaios, a descoberta dos elementos cinéticos e icônicos adequados
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
22
para a (trans)criação corporalizada da partitura verbal (Figura 5).
Figura 5 A construção das instabilidades do gesto icônico torções e assimetrias
Fonte: mosaico fotográfico de ensaios e estreia de
Reticência(s)
. Foto: Christian Alves
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
23
A hipertextualidade transcriada pelo corpo de um performer na
caracterização de modo dançante de Madame Clessi, aqui, parece ter “em si
mesma, o mérito específico de relançar constantemente as obras antigas em um
novo circuito de sentido” (Genette, 1982, p. 558, tradução nossa).20 Esta espécie de
arte de fazer o novo a partir do velho, proclamada com a relação transtextual,
proposta por Genette, insere
Reticência(s)
como um “texto de segunda mão” ou
como um texto de chegada, que vai ao encontro de novos sentidos a partir do
texto anteriormente escrito.
Como fazer Madame Clessi se mover para dizer o que deve dizer?
O fazer-dizer do corpo se pelo acesso ao signo/corpo icônico-cinético.
Escrever os gestos em desequilíbrio de formas, oposições, torções bilaterais do
tronco, olhar de forma oblíqua, apontar e recuar, contrair e expandir o tórax,
mantendo os membros inferiores em flexão, trouxe para a personagem, na cena
dançante, o sentido do texto e os diálogos da personagem como potência
mimética do corpo.
20 a pour elle ce mérite spécifique de relancer constamment les oeuvres anciennes dans un noveau circuit de
sens.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
24
E qual seria o sentido desse corpo em ação motora expressiva?
De acordo com José Gil (2004), ao se dançar, o corpo consegue traduzir em
movimentos a lógica interna à produção de sentido. Quando em ação coreográfica,
como no caso presente, o conjunto de movimentos executados “possui um nexo
próprio, quer dizer, uma lógica de movimentos” (Gil, 2004, p. 67). E, neste mover
ou escrever dança, o sentido torna-se ação. Nas palavras de Gil “porque a dança
cria um plano de imanência, o sentido desposa imediatamente o movimento. A
dança não exprime, portanto, o sentido, ela é o sentido” (Gil, 2004, p. 79).
Na construção dos movimentos ícones cinéticos desta personagem em
particular, o uso do adereço ou cenário móvel espelho – foi fundamental. Desde
a sua entrada em cena, debaixo de duas escadas estrategicamente colocadas na
cena, aludindo ao sótão de madame Clessi e, ao mesmo tempo, a uma espécie de
portal temporal ou dimensional, o performer deveria se relacionar com o elenco
mantendo sua partitura corporal sinuosa, angular e distanciada (Figura 6).
Figura 6 A construção das instabilidades do gesto icônico de Madame Clessi
Fonte: mosaico de fotografias de ensaios de
Reticência(s)
. Foto: Christian Alves
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
25
Em duas diferentes ocasiões da narrativa coreográfica é possível observar a
relação de Fernando Vidal/Clessi com seu algoz, amante e assassino, performado
pelo bailarino Rodrigo Rhenan Domingues, no plano unicamente especular, tendo
a sua piteira transformada de objeto concreto/funcional para arma branca
navalha que lhe corta a face e a mata (Figura 7).
Figura 7 A construção das instabilidades do gesto icônico de Madame Clessi
Fonte: mosaico de fotografias de ensaios de
Reticência(s)
. Foto: Christian Alves
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
26
Na (incorpor)ação de movimentos em duplo especular, cabe mencionar que
os referidos espelhos não são descritos ou problematizados no texto de partida.
Trata-se, aqui, de uma invenção, uma tradução crítica e (trans)criadora, visto que
nasce de uma insuficiência de dados na linguagem para valer por si mesma.
De acordo com Campos (2011, p. 31), “não se traduz o que é linguagem num
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
27
texto, mas o que é não linguagem.” A informação estética – espelhos ou imagens
especulares aludindo aos três níveis de realidade é hipertextual nesse caso e
comporta uma significação autônoma e suficiente, visto que tais planos,
mencionados na peça teatral e convertidos em espelhos móveis na cena de
Reticência(s)
, permitem que os espelhos e os gestos icônicos performados e
escritos corporalmente com e para eles possam ser lidos por si mesmos e na
relação com seu hipotexto ou texto de partida.
No primeiro ato da peça teatral no plano da alucinação observamos um
diálogo entre Alaíde e Madame Clessi, no concernente aos signos “véu” e “flores”:
ALAÍDE (num tom sinistro e inesperado) Tem alguém querendo me
matar.
CLESSI Isso sei. O que eu quero saber é como matou Pedro. Como
foi?
ALAÍDE
Interessante. Estou-me lembrando de uma mulher, mas não
consigo ver o rosto.
Tem um véu.
Se eu a reconhecesse!...
CLESSI
Deixa a mulher de véu
. Como foi que você matou?
ALAÍDE (atormentada)
Estou sentindo um cheiro de flores,
de muitas
flores. Estou até enjoada... (Rodrigues, 2022/1941, p. 32, grifo nosso).
O buquê de flores da noiva supostamente do casamento de Lúcia
performada pela bailarina Ana Pellegrini Costa, como a misteriosa mulher de véu
mencionada na obra de partida, é ressignificado e transformado de objeto
concreto a abstrato, formulado e manuseado por Madame Clessi/Fernando Vidal,
a partir de véus de tule branco (Figura 8).
Assim, por vezes, os véus podem significar a noiva misteriosa, o casamento,
as identidades veladas e/ou o cair do véu da morte e, outras vezes, pode estar no
lugar do buquê, como signo icônico. Madame Clessi, em seu plano de existência,
na coreografia, manipula os variados pedaços de véu de tule branco,
transformando-os em buquês metafóricos por conexão, ou seja, “a conexão se
estabelece a cada vez que uma nova utilização do objeto intervém, remetendo o
uso anterior a uma reserva de sentido e a um uso agora
deslocado
do objeto”
(Pavis, 2003, p. 178).
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
28
Figura 8 Uso deslocado (por conexão) do objeto véu (trans)criado em buquê
Fonte: mosaico de fotografias - ensaios e estreia - de
Reticência(s)
. Foto: Christian Alves
As flores, presentes na dramaturgia da obra coreográfica também aludem a
significados diversos a depender do momento da consecução do trecho da obra:
tanto podem se revelar como componentes de um buquê, quanto como as flores
do funeral de Alaíde, que falece na mesa de cirurgia após o acidente de trânsito.
O mesmo se aplica aos véus (Figura 8), associados tanto ao casamento quanto ao
recolhimento no espaço fúnebre do luto pela morta.
Considerações finais
Ao término deste percurso analítico, cuja intenção foi a de explorar a
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
29
perspectiva expandida do corpo ícone-cinético, em ação educacional e
(trans)criativa no processo de derivação ou prática hiperartística de uma linguagem
em outra, foi possível atestar que o movimento, no processo de criação das
personagens que escrevem dança encarnando a palavra, começa a ser elaborado
com a interferência do acaso, uma vez que esse, como princípio, é primeiridade
nos fatos e, como propriedade, é um fato geral, que não implica necessidade de
lógica.
Os gestos performados iconicamente na obra
Reticência(s)
configuraram-se
como mera possibilidade a partir da criação espontânea, logo, um signo icônico,
ou seja, o fundamento ou propriedade interna ao signo que sustenta a sua relação
com o objeto, está posto em uma mera qualidade.
A proeminência das características qualitativas que impregnam o gesto
icônico cinético desenhado, testado, ensaiado e gestado durante o processo de
(trans)criação da obra coreográfica está visível durante a sua execução
performativa.
Ao assistirmos à obra no Teatro da Reitoria, percebemos o gesto em sua
tridimensionalidade presentificada; a dança ligeira e fugaz no espaço-tempo de
sua re(a)presentação. Constatamos que, na primeiridade, a velocidade com que
percebíamos a dança não permitiria uma análise consciente de seus efeitos. Seria
necessária uma construção reflexiva e crítica do processo sobretudo pelo acesso
aos documentos de registro fotográfico, nossa opção metodológica para
podermos construir nexos e convocar nossas memórias de espectatorialidade.
Ao considerarmos a dança como um sistema aberto, cujos signos serão os
movimentos e gestos ícones cinéticos –, é possível supor que o
sentido/significado a ser apreendido, a partir da sua ação no tempo e no espaço,
se manifestará também no contexto da linguagem. No caso da dança moderna
com elementos de teatro campo de atuação e escolha estética da
Téssera
Companhia de Dança da UFPR
–, o referido contexto é escrito com e no próprio
corpo dos/as dançarinos/as e se presentifica como espaço de construção e
concretização do sentido motor em dança.
Este foi o caminho de entendimento e acesso ao processo de (trans)criação
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
30
e escrita coreográfica dos corpos moventes da companhia como o arcabouço de
um sistema icônico e aberto, destacando que “cada ícone participa de algum
caráter mais ou menos aberto de seu objeto [...] Um ícone não está
inequivocamente para esta ou aquela coisa existente como um índice está. Seu
objeto pode ser uma pura ficção” (CP 4.531).
Os gestos dançantes escritos, ou melhor, transcritos e aqui mencionados, ao
se reportarem a ideias de instabilidades motoras, mudanças de eixos, assimetrias
e torções corporais, portando flores, bolsas, véus, leques e piteiras, deslocando-
se por entre espelhos colocados em cena, ora levantando, deslizando pelo chão,
sentando ou caindo, são lógica e artisticamente possíveis em sua existência
concreta, como um
ícone
, e, por essa razão, podem ser compreendidos como
frutos de um potencial da mente criadora da roteirista e coreógrafa. Tais gestos
dançantes, escritos por corpos tradutores de palavras
a priori
, transformam-se
cineticamente, pois, como uma ideia que se pensa para produzir configurações
originais, espontâneas, que não são copiadas de algo prévio, mas brotam de
associações em conexões.
Nessa situação, de acordo com Genette (1982), a transformação evoca
parâmetros do texto original, mas sem a necessidade de citá-lo de forma
exatamente derivativa. “Para transformá-lo basta que [...] modifique, não importa
como, qualquer um de seus componentes”21 (Genette, 1982, p. 15).
Em
Reticência(s)
, os gestos icônicos cinéticos não têm compromisso com o
real, não necessitando provar nada. A escrita corporal de cada personagem, em
cada cena, torna-se uma manifestação sígnica, ou utilizando a expressão
peirceana, um “fenômeno”, que pode se apresentar de forma privilegiada como
mera qualidade
feeling
de presença pura no espaço-tempo de
re(a)presentação, de forma cinética e efêmera e como manifestação singular.
A semiótica do signo triádico peirceano comprovou o fato de a linguagem ser
cognitivamente motivada, por intermédio da categoria do signo ou corpo-icônico
cinético na dança, como em qualquer outra forma de arte, visto que, os
21 Pour le transformer, il suffit que je modifie, n’importe comment, l’um quelconque de ses composants.
(Tradução nossa)
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
31
movimentos organizados pela estrutura corpórea não têm compromisso com o
real, podendo ser meramente frutos da imaginação criadora, permeados
intrinsecamente pela forma e pelo sentimento da experiência e da presença.
Referências
ARRUDA Rejane. Performando a Teatralidade no Jogo de Enquadramentos:
repensando a tessitura do dramático.
Revista Brasileira de Estudos da
Presença,
Porto Alegre
,
v. 7, n. 1, p. 184-204, 2017. Acesso em: 22 jan. 2024. DOI:
10.1590/2237-266061171.
CAMPOS, Haroldo de. “Da tradução como criação e como crítica”. In:
Metalinguagem e outras metas
. São Paulo: Perspectiva, 2006, p. 31-48.
CAMPOS, Haroldo de
.
Da transcriação poética e semiótica da operação tradutora.
Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2011.
COELHO, Ana Cláudia Lara dos Santos; FONSECA, Vitor Manoel Marques de;
SOUZA, Elisabete Gonçalves de. A performance na sociedade de História: relações
com o documento, com a informação e com a memória.
Encontros Bibli: revista
eletrônica de biblioteconomia e ciência da informação
,
[S. l.]
, v. 24, n. 56, p. 01-17,
2019. Acesso em: 22 jan. 2024. DOI: 10.5007/1518-2924.2019.e65042.
DEWEY, John.
Experiência e educação
. São Paulo: Petrópolis: Vozes, 2010.
FISCHER-LICHTE, Erika.
The transformative power of performance
: a new
aesthetics. New York: Taylor and Francis, 2008.
GENETTE, Gérard.
Palimpsestes
: la littérature au second degré. Paris: Éditions du
Seuil, 1982.
GESSNER, Ricardo. Transcriação, transconceituação e poesia.
Cadernos de
Tradução
,
[S. l.]
, v. 36, n. 2, p. 142–162, 2016. Acesso em: 10 jan. 2024. DOI:
10.5007/2175-7968.2016v36n2p142.
GIL, José.
Movimento total – o corpo e a dança
. São Paulo: Iluminuras, 2004.
ICLE, Gilberto. Estudos da Presença: prolegômenos para a pesquisa das práticas
performativas.
Revista Brasileira de Estudos da Presença
, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p.
09–27, 2011. Acesso em: 22 jan. 2024. DOI: 10.1590/2237-266023682.
LABAN, Rudolf von.
Domínio do movimento
. São Paulo: Summus, 1978.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
32
LOPES COSTA, Ana Carolina. Pelas redes da tradução: um estudo do conceito de
transcriação, de Haroldo de Campos, no poema “Quisera no meu canto ser tão
áspero”, de Dante Alighieri.
Letrônica,
[S. l.], v. 12, n. 1, p. e32201, 2019. Acesso em:
10 dez. 2023. DOI: 10.15448/1984-4301.2019.1.3220.
MELIN, Regina.
Performance nas artes visuais
. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
OTLET, Paul.
Tratado de Documentação
. Otlet, Paul (1868–1944). Tratado de
documentação: o livro sobre o livro teoria e prática. Brasília: Briquet de Lemos,
2018.
PAVIS, Patrice.
A análise dos espetáculos
. São Paulo: Perspectiva, 2003
PEREIRA, Fabrício Trindade. Vestir-se de palavra, noivar-se de Nelson - Teatro
multimeios de Ione de Medeiros para texto rodriguiano.
Urdimento
- Revista de
Estudos em Artes Cênicas
,
Florianópolis, v. 4, n. 49, 2023. Acesso em: 9 Jan. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0109.
PEIRCE, Charles Sanders.
Collected Papers of Charles Sanders Peirce
. 8 volumes.
Cambridge, Massachusetts: The Belknap Press of Harvard University, 1978.
PHELAN, Peggy.
Unmarked
: the politics of performance, London and New York:
Routledge, 1993.
PHELAN, Peggy. A ontologia da Performance: representação sem reprodução.
Revista de Comunicação e Linguagens
, Lisboa, n. 24, p. 171-191, 1997.
PIGNATARI, Décio.
Semiótica & literatura
. São Paulo: Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2004.
PLAZA, Julio.
Tradução intersemiótica
. São Paulo: Perspectiva, 2003.
RETICÊNCIA(S). Téssera Companhia de Dança da UFPR. Teatro da Reitoria
Curitiba, jun./ago., 2023. 1 programa: color.
RIBEIRO, Mônica Medeiros. De registros a reflexões sobre o corpo em processo de
criação.
Revista Brasileira de Estudos da Presença
, Porto Alegre, v. 10, n.
4, e100061, 2020. Acesso em: 15 set. 2020. DOI: 10.1590/2237-2660100061.
RODRIGUES, Nelson.
Vestido de noiva.
Ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2022.
SANTOS, Carlos Alberto Pereira dos. Corpo que performa, corpo que educa.
In
:
IINSTITUTO Festival de Dança de Joinville (Org.).
E por falar em corpo performático
– fazeres e dizeres da dança
. Joinville: Nova Letra, 2013, p. 165-171.
A escrita de uma dança (trans)criativa: articulações (im)possíveis na educação de um corpo ícone-cinético
Cristiane Wosniak | Erika Kraychete Alves | Helen de Aguiar
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-33, dez. 2024
33
TÉSSERA Companhia de Dança da UFPR. Site disponível em:
http://www.tessera.ufpr.br/links/sobre.html. Acesso em: 18 jan. 2024.
VERTCHENKO, Henrique Brener. Vestido de Noiva (re)estreia: encenar a
modernização do teatro brasileiro (1943-1976).
Urdimento -
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 4, n. 49, p. 1–23, 2023. Acesso em: 9 jan. 2024. DOI:
10.5965/1414573104492023e0102.
Recebido em: 15/02/2024
Aprovado em: 22/10/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br