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Não corre, menino!
Leandro de Silva Batista
Para citar este artigo:
BATISTA, Leandro de Silva.
Não corre, menino!
.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 53, dez. 2024.
DOI: 10.5965/1414573104532024e0602
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Não corre, menino!
Leandro de Silva Batista
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-16, dez. 2024
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Não corre, menino!
Leandro de Silva Batista1
Resumo
Não Corre, Menino! é um obra teatral da Cia Nosso Olhar, um coletivo negro da
cidade de Florianópolis - SC. A peça teve sua estreia na pandemia da covid 19 no
formato online. A dramaturgia e a peça se modificaram conforme suas
apresentações foram acontecendo. Ela conta a história de Eduardo da Silva Santos,
um menino negro e periférico, de 11 anos, que foi alvo uma bala perdida. O monólogo
denuncia a violência contra as crianças negras e periféricas e faz uma crítica ao
racismo e a violência desproporcional que é utilizada pelas forças armadas nas
periferias do Brasil, onde a cada 23 minutos uma pessoa negra é assassinada. No
momento atual a peça conta com quase 40 apresentações.
Palavras-chave
: Antirracismo. Teatro negro. Cia Nosso Olhar. Genocídio negro.
Racismo.
Don’t run, boy!
Abstract
Don't Run, Boy! is a theatrical work by Cia Nosso Olhar, a black collective from the
city of Florianópolis - SC. The play premiered during the Covid 19 pandemic in an
online format. The dramaturgy and the play changed as its presentations took place..
It tells the story of Eduardo da Silva Santos, an 11-year-old black and peripheral boy,
who was the target of a stray bullet. The monologue denounces violence against
black and peripheral children and criticizes racism and the disproportionate violence
used by the armed forces in the outskirts of Brazil, where every 23 minutes a black
person is murdered. Currently, the play has had almost 40 performances.
Keywords
: Anti-racism. Black theater. Cia Nosso Olhar. Black genocide. Racism.
No corras, niño!
Resumen
No corras, niño! es una obra teatral da Cia Nosso Olhar, colectivo negro de la ciudad
de Florianópolis - SC. La obra se estrenó durante la pandemia de Covid 19 en formato
en línea. La dramaturgia y la obra fueron cambiando a medida que se desarrollaban
sus presentaciones. La obra cuenta la historia de Eduardo da Silva Santos, un niño
negro y periférico de 11 años, que fue objetivo de una bala perdida. El monólogo
denuncia la violencia contra los niños negros y periféricos y critica el racismo y la
violencia desproporcionada utilizada por las fuerzas armadas en las afueras de
Brasil, donde cada 23 minutos es asesinado una persona negra. Actualmente, la obra
ha tenido casi 40 representaciones.
Palabras clave
: Antirracismo. Teatro negro. Cia Nosso Olhar. Genocidio negro.
Racismo.
1 Doutorando em Artes Cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestre em Artes
Cênicas pela UDESC. Graduado em Artes Cênicas na Universidade Federal de Santa Catarina. Cofundador
da Cia Nosso Olhar e integrante do Coletivo Inclassificáveis. Ator, diretor e professor (UFSC).
leandbatista@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3572251833856361 https://orcid.org/0009-0004-5347-1057
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Não corre, menino!
Introdução do autor
Não corre, menino!
é uma peça teatral em que uma criança de 11 anos narra
como uma “bala perdida” encontrou seu corpo. A criação dessa obra que se
encontra com a realidade de um país que mata um jovem negro a cada 23 minutos,
de acordo com a campanha “Vidas Negras”, lançada pelas Nações Unidas no Brasil
em 20172. Um país refém do que Achille Mbembe vai chamar de necropolítica, tão
constante nas periferias do Brasil, que se deparam com a presença naturalizada
da polícia em seu território, atuando de forma discriminatória. A dramaturgia da
peça teatral nasceu em 2020, durante a pandemia da Covid 19, em um exercício
realizado pela Cia Nosso Olhar. A proposta era escrever uma narrativa que
atravessasse nossas vidas em sua relação com a infância negra e periférica. Meu
processo foi de lembrar de um ato truculento que a polícia militar de Florianópolis
produziu com um dos meus irmãos, em que confundiram ele com um assaltante.
A justificativa da polícia foi que meu irmão estava de amarelo e que estava
correndo na rua - cor da roupa que o assaltante estava. Meu irmão tinha apenas
11/12 anos3.
Essa lembrança, com o voltar para a casa de minha mãe e meu pai e com as
mortes de jovens negros acontencendo, como o caso do menino João Pedro4 de
14 anos, mesmo com a crise sanitária em todo o mundo, foram alguns dos
disparadores para a criação da dramaturgia de Não corre, menino!. Que era uma
das frases que tenho na memória que minha mãe falava para mim e meus irmãos.
No Brasil, as mães de crianças negras já entenderam há muito tempo que menino
negro correndo, deixa de ser menino para a polícia. Para ela, a polícia, menino
2 Coletivo Independente de Arte Negra Nosso Olhar, ou somente Cia Nosso Olhar, é um coletivo de arte de
pessoas negras da cidade de Florianópolis, criado em 2019.
3 Esse debate está mais aprofundado na minha dissertação de mestrado Negritude em cena: A presença negra
nas peças 5 minutos e Não corre, menino!
https://sistemabu.udesc.br/pergamumweb/vinculos/0000aa/0000aac8.pdf
4 João Pedro tinha 14 anos quando foi assassinado durante uma operação policial em São João Gonçalo, região
metropolitana do Rio de Janeiro, em 18 de maio de 2020. João Pedro estava dentro de casa e levou um tiro
de fuzil na barriga. Nessa matéria.
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negro correndo é bandido, pois, no mundo conceitual branco, o sujeito negro é
identificado como algo ruim, mesmo sendo uma criança o sujeito é considerado
perigoso, uma ameaça (Kilomba, 2020, p. 153)5.
Todas as personagens que estão no enredo da peça, com exceção da
personagem Eva, foram batizadas com o primeiro nome de pessoas negras reais
que foram assassinadas nos últimos anos. Sendo elas: Eduardo de Jesus6, de 10
anos, morto na porta de casa com um tiro da polícia no Complexo do Alemão, na
Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 2 de abril de 2015; Cláudia Silva Ferreira7, 38
anos, baleada com 2 tiros quando saiu de casa para comprar pão. A PM do Rio de
Janeiro jogou seu corpo no porta-malas do carro, que se abriu, e Cláudia foi
arrastada por 350 metros, em 16 de Março de 2014. O seu corpo foi filmado sendo
arrastado e o caso ficou conhecido como a mulher arrastada; Ágatha Félix,8 8 anos,
morta quando voltava para casa em uma Kombi. Ela estava com sua mãe, quando
foi baleada nas costas pela polícia, no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, no
dia 20 de Setembro de 2019; Evaldo Rosa dos Santos9, 51 anos, músico que durante
um passeio com a família, no dia 07 de Abril de 2019, foi alvejado por 257 tiros de
fuzil pelo Exército Brasileiro. Seu carro foi atingido por 62 disparos, Evaldo morreu
na hora, sua esposa, que estava grávida, e seu filho, menor de idade, assistiram
tudo. Esse fato ficou conhecido como o caso dos 80 tiros, em que o Exército
Brasileiro “confundiu” o carro de Evaldo com o de um traficante e “abriu fogo”.
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Memórias da Plantação
é um livro de Grada Kilomba, publicado no Brasil em 2019 pela editora Cobogó, que
entre tantas coisas que discute, vai trazer as questões dos racismos cotidianos que são naturalizados.
6 O caso de Eduardo de Jesus voltou às notícias por causa do teatro. A peça "Macacos” de Clayton Nascimento
trouxe o caso não resolvido outra vez para os assuntos, a ponto de reabrirem a investigação sobre a morte
de Eduardo. Pode-se ler mais cobre o caso aqui: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2023/08/31/caso-
eduardo-com-novas-provas-advogado-pede-ao-mp-para-desarquivar-processo-sobre-menino-morto-
em-2015-por-pms-no-alemao.ghtml
7 Como muitos casos, o de Cláudia Silva Ferreira é mais um no Brasil em que os policiais, responsáveis pela
morte da vítima, são inocentados. Pode-se ler mais sobre o caso aqui:
https://www.brasildefatorj.com.br/2024/03/22/caso-claudia-ferreira-mulher-foi-baleada-e-arrastada-por-
viatura-mas-pms-foram-absolvidos
8 No dia 20 de Setembro de 2024 a morte de Agatha completará 5 anos e, até o momento, encontra-se sem
resolução. Pode-se ler mais sobre o caso aqui: https://g1.globo.com/rj/rio-de-
janeiro/noticia/2019/09/23/entenda-como-foi-a-morte-da-menina-agatha-no-complexo-do-alemao-zona-
norte-do-rio.ghtml
9 Um dos casos mais emblemáticos dos assassinatos cometidos pelo Estado brasileiro, segue aberto. Pode-
se ler mais sobre o caso aqui:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2024/04/07/mulher-de-musico-metralhado-pelo-exercito-
relata-traumas-do-filho-5-anos-apos-crime-julgamento-nao-tem-previsao-para-acabar.ghtml
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A peça teatral busca trazer à tona a denúncia deste Estado que vem
aniquilando pessoas negras e também procura encontrar outras possibilidades e
perspectivas ao fugir da “bala perdida”.
Dossiê Temático: Teatralidades negras, africanas e afrodiaspóricas
A dramaturgia, “Não corre, menino!”, relata de forma cênica e lúdica um pouco
da realidade de muitos jovens negros no Brasil. No atlas da violência de 2024, com
dados de 2022, comprova-se que a cada 10 pessoas assassinadas no Brasil, 7 são
negras10. E as crianças negras também se enquadram enquanto alvo desses
homicídios, que grande parte da sociedade brasileira acaba naturalizando por não
ser algo atípico. No livro
Racismo Estrutural
, de 2019, entre s páginas 122 e 123
podemos ler:
O racismo, mais uma vez, permite a conformação das almas, mesmo as
mais nobres da sociedade, à extrema violência a que populações inteiras
são submetidas, que se naturalize a morte de crianças por “balas
perdidas”, que se conviva com áreas inteiras sem saneamento básico,
sem sistema educacional ou de saúde, que se exterminem milhares de
jovens negros por ano, algo denunciado tempos pelo movimento negro
como genocídio (Almeida, 2019).
Dessa forma, buscamos na obra teatral trazer um pouco da realidade que
muitos jovens negros passam, mas também tínhamos a intenção de propor
caminhos outros. Mas isso não estava acontecendo até outubro de 2023. A
dramaturgia teve a sua estreia como peça teatral em Fevereiro de 2021, em um
festival de São Paulo, Felino Preta, com a participação no formato
online
. Ao longo
de 2021 a peça se apresentou no formato online, tendo sua estreia com o público
presencial em novembro do mesmo ano, em formato híbrido em Florianópolis -
SC. Nessa primeira apresentação com público e nas apresentações que seguiram
todas no estado de Santa Catarina, até agosto de 2023, nós sentíamos que o final
da peça não estava informando o que queríamos. Assim como recebíamos muitos
retornos positivos, algumas pessoas, em sua maioria negras, nos falavam como a
peça não lhes fazia bem. Nós mesmos demoramos a entender o porquê da obra
nos machucar tanto. Após esse tempo, entre 2021 a 2023, nós encontramos outros
10 Pode-se acompanhar as informações do Atlas da violência nessa matéria:
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2024/06/18/homicidios-brasil-negros-vitimas-atlas.htm
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caminhos com a peça teatral, e alteramos ela. Na proposta inicial Eduardo nos
narra a história de forma póstuma, ou seja, ele havia morrido, iniciava no chão
sem vida e ao fim voltava ao lugar da morte. Na nova versão Eduardo não morre,
propondo assim um outro futuro possível para ele e para os jovens negros no
Brasil.
Atualmente estamos beirando quase 50 apresentações, tendo ganhado
prêmios como Aldir Blanc, Elisabete Anderle e Paulo Gustavo, no estado de Santa
Catarina. E em setembro de 2024 fizemos uma temporada no Rio de Janeiro, com
16 apresentações no SESC Tijuca, após ganharmos o Prêmio SESC Pulsar de
2023/2024.
NÃO CORRE, MENINO!
PARTE I
Corpo estirado no chão.
A bala perdida costuma encontrar um corpo, e quase sempre esse corpo é negro.
Hoje, ela me encontrou.
Meu nome é Eduardo da Silva Santos, gosto que me chamem de Eduardo da Silva.
Tenho... tinha. 11 anos. Morava na Vila Piqui, com as minhas irmãs Claudia e Ágatha,
com meu pai Evaldo, e com a minha mãe, Eva.
A minha mãe, sempre falava que eu não devia ficar correndo por aí, porque
poderiam me confundir. Ela falava:
- Não corre, menino!
E eu, como sempre, nem dava bola… e sai correndo.
Minha irmã Claudia tinha 15 anos e era muito responsável. Ela cuidava de mim
e da Ágatha. Agora Ágatha era um problema pra mim. Ela era minha irmã gêmea
e a gente brigava por tudo. Era pra ir ao banheiro, pra ver TV, ou pra ter a atenção
de Claudia.
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O meu pai, o Evaldo. Ele era gari. Ele saía de casa às 6 da manhã e só voltava às 8
da noite. E sempre quando ele chegava, ele tava muito cansado pra brincar com a
gente. Isso durante a semana. Porque aos finais de semana ele sempre nos levava
pra sair. Às vezes nas feirinhas do centro, outras vezes nos parquinhos. Mas o que
eu mais gostava era quando ele nos levava pro samba. Ele tocava cavaquinho. A
verdade é que eu sempre falava pros meus amigos que meu pai era músico e não
gari.
O grupo dele se chamava samba com
swing
, eles eram muito bons. Tinha uma
música que eles tocavam no final de todo show que gostava muito. Era algo mais
ou menos assim:
-
Boa noite, boa noite, pra quem se encontrou no amor. Boa noite, boa noite,
pra quem não desencantou. Boa noite, boa noite, pra quem veio só sambar...
Bom, eu não vou ficar aqui cantando pra vocês, até porque o que quero contar é
uma outra coisa.
O que eu quero contar pra vocês, começou há exatamente uma semana.
Era um sábado de manhã, lembro que olhei no chevette velho do meu pai
marcavam 10:17h. Meu pai, Claudia e eu estávamos indo para um de seus Sambas.
Minha mãe e Ágatha haviam ficado em casa, porque Ágatha havia quebrado uma
perna e a mãe não queria que ela saísse com a gente.
Admito que fiquei feliz, assim eu não teria que dividir a atenção do pai e da Claudia
com a Ágatha.
No meio do caminho nós fomos parados por um caveirão.
Junto do caveirão tinham uns cinco carros de polícia. Não! Seis! Não… oito, ou mais,
não lembro. O que eu lembro foi que quando nosso pai parou o carro, eles vieram
correndo na nossa direção, abriram as portas e com toda força do mundo nos
obrigaram a sair.
Peguei na mão de Claudia. Eu tava com medo. Tudo aconteceu muito rápido.
Quando olhei pro meu pai ele tava com a cabeça coberta de sangue.
Gritei.
Nesse momento senti a terceira maior dor que sentiria em toda a minha vida. Eu
não via direito, via nuvens - pelo menos pareciam nuvens. Minha mão esquerda
agarrava com toda a força a mão direita de Claudia, minha outra mão dançava no
ar como se tivesse vida própria.
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Depois de algum tempo, que não saberia dizer quanto… até porque lembro da
professora de história falando pra gente mais ou menos assim na sala de aula:
- Crianças, o tempo é relativo.
Mas eu acho que foram dois minutos. Quando olhei pra minha irmã Claudia ela
falava:
- A polícia levou o pai. Entra no carro!
Entrei.
A minha surpresa ao entrar no carro foi olhar pra minha irmã, Claudia, e perceber
como ela dirigia bem. Ela entrou no carro, colocou o cinto em mim, colocou o cinto
nela, ajeitou os espelhos, trocou de marcha, colocou o banco pra frente, girou a
chave e acelerou.
Eu reconhecia o caminho que ela tava fazendo. A feirinha… o parquinho. A gente
tava indo pra casa. Quando a gente chegou ela falou:
- Fica no carro.
E saiu.
Eu não saberia dizer quanto tempo ela levou pra voltar - até porque eu já falei pra
vocês que o tempo é relativo, né?
Mas acho que foram três minutos.
Quando ela voltou, ela vinha com minha irmã Ágatha e com minha mãe, Eva. A
minha mãe me tirou do carro e me perguntou como é que eu tava, e eu respondi:
- Bem.
E ela me abraçou.
Fazia tanto tempo que eu não sentia um abraço tão gostoso.
Quando ela me soltou ela falou:
- Entra em casa e não briga com Ágatha, ela está com a perna quebrada.
Claudia e eu já voltamos .
E foi pro carro.
Mas não no lugar da motorista, a minha mãe não sabia dirigir. Agora, a Claudia
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podia ter 15 anos, mas ela sabia dirigir e muito bem. As duas entraram no carro e
foram.
Eu, ali na rua parado, ainda tomando consciência, olhei pra minha gêmea e falei:
- A polícia levou o pai, Ágatha
Ela me abraçou. Entramos.
PARTE II
Centro do palco, cadeira invertida
O dia passou e não recebemos nenhuma notícia do nosso pai, da nossa mãe e
nem de Claudia. Não tínhamos telefone na casa, então não tinha como ligar pra
alguém. Ágatha ligou a TV e foi no noticiário da noite que eu entendi tudo.
Âncora do Jornal - projeção
- Na operação 'tráfico zero' a polícia fez um belíssimo trabalho e prendeu
um grupo de samba responsável pelo contrabando de maconha na cidade.
Os vagabundos se denominavam Samba com Swing. No momento da
operação os fios desencapados reagiram, e na trocação de tiros dois deles
foram mortos, graças ao bom trabalho da polícia. Um deles com 2 tiros,
Jair Franco da Rosa, e outro com 11 tiros - que ainda foi pouco, ein - Evaldo
da Silva Santos. De acordo com a polícia os vagabundos - tem que deixar
isso bem dito aqui, ein. VA-GA-BUN-DOS, assim tem que chamar. Eles
estavam armados e dispararam tiros contra a polícia que revidou...
Eduardo levanta da cadeira
O resto eu não vi. Parecia que meu cérebro tinha saído para dar uma volta. Eu tava
ali, parado, olhando pra TV.
Quando dei por mim, vi que na TV passava alguma coisa sobre um siri que bebia
cerveja. Olhei pro lado para falar com Ágatha, não vi ela, me preocupei.
Fui até o quarto e a encontrei.
Nosso quarto era pequeno, tinha uma cama de solteiro e um beliche. Ágatha e eu
dividimos o beliche, Ágatha embaixo e eu em cima. Só que agora ela tava na cama
do lado, cama de Claudia. E chorava, muito.
Mais que a notícia dos 11 tiros que meu pai levou, o que mais me doía era ver minha
irmã desse jeito.
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E essa foi a segunda maior dor que sentiria em toda minha vida. Eu deitei do seu
lado, a abracei, dormimos.
Deita na cadeira. Tempo
Lembro que acordei com gritos. Ágatha estava ao meu lado também se assustou.
Levantamos da cama, saímos correndo do quarto, passamos pela sala/cozinha -
que era a mesma coisa - chegamos na rua…
E lá estava... a nossa mãe. E junto dela tinha um monte de vizinhos. A nossa mãe
chorava, berrava, se debatia. Tentavam segurar ela, mas não conseguiam - parecia
que estava em uma roda de terreiro, sabe?
Ela girava e falava tão rápido, que por um momento achei que minha mãe era
fluente em alemão… ou russo. Eu não saberia dizer qual. Ela seguiu falando e
girando quando ela nos viu, parou.
Olhou nos olhos de Ágatha, depois nos meus e disse:
- Crianças, não acreditem em nada do que irão falar pra vocês. O pai de
vocês era a pessoa mais honesta e trabalhadora que existia nesse mundo.
O pai de vocês...
Ela seguiu falando, mas o choro a agarrou tão forte que eu não conseguia entender.
Era como uma mãe, sabe? Que agarra seu bebê tão forte contra o peito, que a
mãe e o bebê se tornam um só.
Então eu perguntei:
- E Claudia?
A minha mãe parou de falar, parou de chorar e tive a sensação que parou de
respirar:
- A sua irmã, ela teve que fugir, meu filho.
Eduardo sem reação. Transição de tempo.
Boa noite, boa noite. Pra quem se encontrou no amor…
Então passou um.
Boa noite, pra quem não desencantou…
Dois.
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Boa noite, pra quem veio só sambar…
Três.
Boa noite, pra quem diz no pé e na palma da mão…
Quatro.
Pra quem só sentiu saudade, afinal…
Cinco.
Obrigado do fundo do nosso quintal.
Seis dias e nada de Claudia. Nossa vida já não era mais a mesma, nossa mãe não
saia de casa e a gente não ia mais pra aula. Toda a comida que a gente tinha
era dos vizinhos que nos traziam.
Eu sempre achei a minha mãe a mulher mais linda do mundo. Ela era alta, tinha
os olhos grandes, cabelos curtos que se mantinham bem pretos pelo Henê que
ela usava, pele macia, cor de azeviche.
Ah, eu tinha aprendido sobre essa gema fóssil fazia um mês, e toda vez que minha
mãe ficava assim meio triste eu chamava ela de:
- Mamis cor de azeviche.
que agora ela parecia outra mulher, não passava mais seu pente quente, não
colocava seus bobes antes de dormir. A única coisa que ela fazia, era passar o dia
inteiro no telefone - que havia comprado que antes a gente não tinha. Ela
buscava alguma coisa num livro grande chamado lista telefônica.
Pausa
Numa manhã parece que ela encontrou o que ela procurava:
- Eu preciso que você fique em casa e cuide da sua irmã, ela tá com a perna
quebrado.
- Onde você vai, mãe?
E pela primeira vez senti que ela não via uma criança naquele corpinho magro e
escuro de 1,50m.
- Eu vou trazer Claudia pra casa, devo voltar à noite. Agora, você é o homem
da casa, meu filho.
Não tive reação, mas sentia que esse beijo molhado na minha bochecha esquerda
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não iria se repetir - não que eu fosse mago ou algum vidente - mas eu sabia que
era um beijo de adeus.
E essa foi a maior dor que sentiria em toda minha vida.
PARTE III
Projeção fogos
A noite chegou e, com ela, os fogos de artifício tomaram conta como uma trilha
sonora. Eu tava na janela, olhando pra lua. Parecia que ela sorria pra mim.
Os fogos seguiam.
Ágatha estava deitada no sofá olhando pra TV com sua roupa da power ranger
rosa.
Os fogos seguiam.
Fui até a porta da geladeira onde existia um calendário, pra ver se tinha alguma
data comemorativa, mas não tinha nada.
Os fogos seguiam.
Fui até Ágatha e falei que deveríamos usar o telefone pra achar nossa mãe e
Claudia.
Os fogos param.
Ágatha gostou da ideia e saiu correndo:
- Eu ligo.
- Não, eu ligo.
- Eu ligo...
Os fogos voltaram.
- Não, eu ligo.
- Eu...
Não!
Não eram fogos, eram tiros. E pareciam estar tão pertos que tive a sensação que
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se escutava de dentro de casa. Comecei a falar:
- Vamos pro quarto Ágatha, isso são tiros, Ágatha se abaixa…
Silêncio
- Ágatha?
Ela estava no chão com o telefone fora do gancho em sua mão esquerda. E bem
no centro da roupa onde tinha um pterodáctilo saia um sangue, sangue cor
vermelha. Olhei pra parede, vi que tinha três buracos ali. Fui até a janela, não vi
ninguém.
Voltei até Ágatha.
Chorava baixinho.
Gritei.
Mas não chorei.
Eu não chorei.
Eu não chorei.
Levantei e sai correndo pra fora de casa.
Eu queria buscar ajuda
Eu queria ir pra fora de Vila Piqui.
E não olhava pra trás.
Não olhava pra trás.
Não olhava pra trás.
Não olhava pra trás.
Não olhava pra trás…
Foi quando eu vi.
Lá, estava o Chevette velho do meu pai e ao lado dele minha mãe, Eva, e minha
irmã, Claudia. Junto delas tinham uns cinco policiais…
Não!
Seis.
Não corre, menino!
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Não.
Oito.
Talvez mais, não lembro.
O que eu lembro é que os policiais não me viram, estavam de costas para mim.
Mas a minha mãe e minha irmã elas me viram.
Elas me viram!
E no impulso de ver as duas eu comecei a correr mais rápido na direção delas.
Corri com toda a minha velocidade.
E eu lembro de escutar minha mãe gritando:
- Não corre, menino!
- Não corre, menino!
- Não corre, menino!
- Não corre, menino!
- Não corre, menino!
- Não corre, menino!
- Não corre, menino!
- Menino, corre não!
E eu, como sempre, nem dei bola e saí correndo.
Os policiais se viraram, um deles ou mais, sacaram as armas.
Eu não sei se porque me assustei, ou porque sempre tive medo de polícia, eu me
virei e comecei a correr no sentido contrário.
Escutei o primeiro tiro, mas não senti nada.
Escutei o segundo tiro e também não senti nada.
O terceiro eu não escutei.
Cai no chão
Não corre, menino!
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Sentia muita dor, não sabia dizer onde. Eu lembro que escutei a voz da minha mãe
e da minha irmã, gritando o meu nome:
- Eduardo.
- Eduardo.
- Eduardo!
- Eduaaardo!
- Eduardo.
- Eduaaardo!
- Eduardo!
- Eduardoooooooooo!
Desconstrução - ator fala
Nesse momento o Eduardo morre.
Aliás, morria.
A gente está cansado de morrer. A gente ta cansado dessa porra de morrer!
Volta a ser Eduardo
Eu não sei se porque me assustei, ou porque sempre tive medo de polícia, eu me
virei e comecei a correr no sentido contrário.
Se vira de frente
Repete
Eu não sei se porque me assustei, ou porque sempre tive medo de polícia, eu me
virei e comecei a correr no sentido contrário.
Repete
Eu não sei se porque me assustei, ou porque sempre tive medo de polícia, eu me
virei e comecei a correr no sentido contrário.
Repete
Eu não sei se porque me assustei, ou porque sempre tive medo de polícia, eu me
Não corre, menino!
Leandro de Silva Batista
Florianópolis, v.4, n.53, p.1-16, dez. 2024
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virei e comecei a correr no sentido contrário.
Repete
Sempre tive medo de polícia…
Medo de polícia…
Medo de polícia…
Medo de polícia…
Não!
Pausa
A bala perdida costuma encontrar um corpo, e quase sempre esse corpo é negro.
Hoje, ela não me encontrou.
Projeção final com música “Fundo do nosso quintal” de Jorge Aragão.
NÃO CORRE, MENINO!
VOA!
FIM
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br