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A transfobia como trauma e critério curatorial
da cisnormatividade
Oliver Olívia Lagua de Oliveira Bellas Fernandes
Para citar este artigo:
FERNADES, Oliver Olívia Lagua de Oliveira Bellas A
transfobia como trauma e critério curatorial da
cisnormatividade.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0110
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A transfobia como trauma e critério curatorial da cisnormatividade
Oliver Olívia Lagua de Oliveira Bellas Fernandes
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-17, abr. 2024
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A transfobia como trauma e critério curatorial da cisnormatividade1
Oliver Olívia Lagua de Oliveira Bellas Fernandes2
Resumo
O presente artigo foca no fenômeno da transfobia para analisar o comportamento da
cisnormatividade como paradigma hegemônico de organização sociocultural. Em diálogo
com pensadores e pensadoras da teoria
cuír
, se defende que a transfobia não é um
mecanismo de opressão que se mediante a demonstração de força, mas sim uma
resposta traumática da cisnormatividade ao vislumbrar seu próprio fim. Também é feita
uma reflexão acerca do domínio cisgênero dos espaços de poder do cenário teatral,
como a produção, a curadoria e a crítica, de modo a identificar um discurso
supostamente progressista de “inclusão” como uma versão sofisticada do
funcionamento da transfobia como trauma.
Palavras-chave
: Transgeneridade. Transfobia. Cisnormatividade. Teoria
cuír
. Curadoria.
Transphobia as trauma and curatorial criterion of cisnormativity
Abstract
This article focuses on the phenomenon of transphobia to analyze the behavior of
cisnormativity as a hegemonic paradigm of socio-cultural organization. In dialogue with
thinkers of the cuír theory, it is argued that transphobia is not a mechanism of oppression
that occurs through the demonstration of force, but rather a traumatic response of
cisnormativity when envisioning its own end. A reflection is also made on the cisgender
dominance of spaces of power in the theater scene, such as production, curation and
criticism, in order to identify a supposedly progressive discourse of “inclusion” as a
sophisticated version of the functioning of transphobia as trauma.
Keywords
: Transgenderity. Transphobia. Cisnormativity. Cuír theory. Curation.
La transfobia como trauma y criterio curatorial de cisnormatividad
Resumen
Este artículo se centra en el fenómeno de la transfobia para analizar el comportamiento
de la cisnormatividad como paradigma hegemónico de organización sociocultural. En
diálogo con pensadores de la teoría cuír, se sostiene que la transfobia no es un
mecanismo de opresión que se da a través de la demostración de fuerza, sino una
respuesta trautica de cisnormatividad al vislumbrar su propio fin. También se
reflexiona sobre el predominio cisgénero de espacios de poder en la escena teatral, como
la producción, la curaduría y la crítica, para identificar un discurso supuestamente
progresista de “inclusión como una versión sofisticada del funcionamiento de la
transfobia como trauma.
Palabras clave
: Transgeneridad. Transfobia. Cisnormatividad. Teoría cuír. Curación.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Lucas Miyazaki Brancucci, mestrando em
Letras pela Universidade de São Paulo (USP).
2 Mestrando em Artes Cênicas na Universidade de São Paulo (ECA/USP). Graduação Bacharelado em Filosofia
pela USP. Ator, diretor, performer e pesquisador trans não binário. laguaolivia@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3239954620301898 https://orcid.org/0000-0001-6173-0435
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A cisnormatividade como mito que se autoperpetua
As sociedades ocidentais colonizadas, tais como o Brasil, são regidas por uma
episteme hegemônica que organiza as pessoas em duas macrocategorias
“homem” e “mulher” – cuja constituição se pauta nos formatos dos corpos – com
pênis e com vulva, respectivamente. O sucesso milenar da perpetuação desse
sistema consiste no seu mecanismo de ocultação de sua própria origem (Butler,
2003), que culmina no seu disfarce como “natureza” termo este que, por sua
vez, apesar de também se tratar de uma invenção cultural humana, goza de uma
supremacia ontológica incontestável. A essa formatação cognitiva damos o nome
de “cisnormatividade”3.
A cisnormatividade é um modelo relacional, cognitivo, subjetivo e cultural que
pressupõe a genitália como causa originária de uma certa corporalidade específica
e de um certo registro comportamental afetivo específico. Por exemplo: um
indivíduo, ao nascer com um órgão genital identificado sob o nome
– e ideia
– de
vagina, é instantaneamente catalogado como pertencente ao escopo identitário
intransferível e invariável “mulher”. Por meio do enunciado “é menina!”, proferido
por parte da figura de autoridade representada dentro desse modelo por um
médico ou médica é instaurada a primeira mesa de operação abstrata (Preciado,
2017) de designação sexual por qual todos indivíduos de uma sociedade
cisheteroterrorista passam. A partir desse momento, são postos em jogo diversos
mecanismos moduladores estético comportamentais que, por meio de estímulos
positivos e negativos, fabricam um exemplar de carne e osso do ideário platônico
“mulher”. Na verdade, contemporaneamente, podemos falar inclusive do
acionamento do aparato de produção e incorporação normativa de identidades
generificadas mesmo antes da visualização a olho nu da genitália do bebê, se
considerada a cultura do ultrassom, que convoca tecnologias coercitivas,
determinantes e binárias de gênero como, por exemplo, o ritual cisnormativo do
“chá de revelação” reunião social que usa de subterfúgios estéticos
3 Aqui é importante ressaltar que o uso do termo “cisnormatividade” ou do prefixo “cis” ao longo desse texto
não se referem aos indivíduos
em si
que se encontram um espectro cis de expressão de gênero, mas sim
à mentalidade hegemônica, binária e excludente que produz sistemas de poder e violência para/com as
pessoas e as epistemes trans.
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espetaculares para revelar “o sexo” do bebê, por meio da aparição ostentosa da
cor rosa (para vaginas) ou da cor azul (para pênis). No caso de genitálias
categorizadas pela cisnormatividade como “dúbias” por exemplo, genitálias de
pessoas intersexo –, aos seus portadores recém-nascidos são administradas
doses de testosterona que buscam metamorfosear sua conjuntura original em um
“pênis normal”, que corresponde ao aumento desse segmento do corpo até uma
quantidade preestabelecida e delimitada de centímetros. Caso o corpo não
responda dessa maneira esperada às aplicações de hormônio, o bebê de poucos
dias é submetido a uma segunda e “verdadeira mesa de operações” (Preciado,
2017, p. 131) de designação sexual, e nele é plasticamente modelada uma vagina.
Assim, os bebês intersexo são a evidência escancarada do apego e,
portanto, do
compromisso
da cisnormatividade com a perpetuação de si
mesma, por meio da perpetuação da genitália como pilar da narrativa de um Adão
cis e de uma Eva cis: o mito fundante da humanidade, da natureza, até mesmo do
real e, principalmente, da própria cisnormatividade. A dupla originária bíblica
nitidamente aponta para o projeto epistêmico da hegemonia do sistema sexo-
gênero (Preciado, 2017) de binarizar e polarizar os corpos mediante suas genitálias.
Nessa coerência mitológica, a presença da vagina é
idêntica
a “ser mulher”, e a
presença do pênis é idêntica a “ser homem”, em um nível tão fundamental e
essencialista que mesmo intervenções posteriores que desarranjem a coerência
cis-binária-normativa de organização de um corpo não são suficientes para
desatar o elo existencial, inicial e divino que instaura toda verdade sobre um ser:
nascer com vagina é nascer mulher, e vice-versa: nem mesmo uma eventual
faloplastia pode desfazer essa primeira verdade ontológica, eterna e imutável.
Os chamados corpos “intersexuais” comprometem o trabalho mecânico
da mesa de atribuição dos sexos, minam secretamente a sintaxe segundo
a qual a máquina sexual produz e reproduz corpos. Os bebês intersexuais
representam uma ameaça, alteram a fronteira para além da qual
diferença, e aquém da qual identidade. Põem em xeque o
automatismo performativo da mesa de operações. Evidenciam a
arbitrariedade das categorias (identidade e diferença, macho/fêmea) e a
cumplicidade que essa categorização estabelece com a
heterodesignação dos corpos (Preciado, 2017, p. 131).
É assim que a necessidade da genitália “coerente” ao nascimento se faz tão
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presente, pois sem uma vagina incontestável ou um pênis incontestável não é
possível declarar eterna uma correlação implícita e originária entre a episteme
cisnormativa e a humanidade como conceito existencial universal: não é possível
Eva, ou Adão, ou Éden, ou Deus, e, desse modo, em uma espécie de o-fim-justifica-
os-meios4 autopermitido e autoanistiado, recém-nascidos são hormonizados e
mutilados por profissionais da saúde quando necessário. Os bebês intersexo são
a prova do quão longe a cisnormatividade concorda em ir em sua brutalidade
física, simbólica e epistêmica
para fabricar a si mesma
e fazer manutenção de sua
suposta incontestabilidade orgânica. Esses então diversos mecanismos de
autoprodução de suas próprias premissas pressupõem, desse modo, a
autorregulamentação corporificada de um conjunto estético e performativo sobre
o qual se organiza e se manifesta, no tecido da experiência, a encarnação da ideia
de uma natureza primeira, expressa pela equação pênis = homem/vagina =
mulher.
Em contraposição ao cânone hegemônico, quando pensamos “gênero” em
seu caráter performativo, e não
natural
, dialogamos principalmente com a análise
butleriana que identifica “gênero” como uma situação sociocultural relacional
interperceptiva, justamente de modo a desmontar a dicotomia supremacista entre
“natureza” e “artificialidade”: entre
normal
e “trans”, por exemplo. Butler tece
“gênero” como um esquema perceptível e moldável ao trazer a noção dos gêneros
inteligíveis e ininteligíveis (Butler, 2003). Ao invés de vingar o mito originário do Adão
cis e da Eva cis como constituição primeira, na chave performativa, a suposta
naturalidade do gênero é explicada pelo quanto o arranjo estético performativo
daquela pessoa se aproxima mais ou menos da leitura arbitrária do que é um
homem e o que é uma mulher. Não se trata, portanto, de um paradigma polarizado
e hierarquizado entre “natureza primeira” versus “intervenção artificial”, mas entre
as composições mais obviamente
reconhecíveis e cognitivamente palatáveis
dentro do aparato fenomênico cultural da cisnormatividade gêneros inteligíveis
e as menos gêneros ininteligíveis. Desse modo, o que se tem na lógica
cisnormativa é uma mitologia enviesada que se reivindica como e se disfarça de
4 Aqui se faz uma menção à versão popularizada no senso comum da máxima política atribuída a Nicolau
Maquiavel filósofo italiano do século XVI por conta de sua obra “O príncipe”.
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natureza sobre a manobra lógica questionável de que “um homem é um homem
porque é um homem”, sem que isso encontre a reciprocidade empírica pela qual
tal episteme hegemônica alega ser validada. Afinal, dentro do famigerado
argumento do senso comum de que “natural é como viemos ao mundo”, os
procedimentos médicos realizados em bebês intersexo se aproximam mais da
intervenção artificial do que da perpetuação dessa suposta e glorificada natureza
primeira. É por razão de sua contradição imanente e iminente que a
cisnormatividade precisa para si mesma fazer sua manutenção cirúrgica, cognitiva
e cultural como origem universal do ser ou de tudo. A cisnormatividade é,
portanto, uma episteme que embaralha as posições entre fenômeno e explicação
do fenômeno, pois alega – tal qual Deus – ser a ontologia pré-cultural –
natural
do gênero, quando na verdade produz esse mesmo gênero que depois descreve,
prescreve, explica e atesta como real único primeiro a todas as coisas. Às demais
composições performativas e prostéticas que fogem a essa norma aos
cuírs
5
se tem a patologização, ou a transfobia: a terceirização violenta do trauma cis
perante a insuficiência de sua conclamada natureza ideal.
O esforço da cisnormatividade em se alienar de sua própria
morte
Pois é justamente do ponto em que a cisnormatividade é incapaz de se
sustentar em seu próprio mito originário, que se produz a experiência de abjeção
(Kristeva, 1982) de tudo que escapa ao modelo inteligível descrito por “cis”: uma
relação de atração e aflição frente ao fim/começo ou começo/fim de sua fronteira
onto-epistêmica de si consigo e, portanto, com o mundo. Existe uma insistência
fundamental em crer no sistema sexo-gênero binário genitalista como plenamente
capaz de descrever o que se experiencia como real por conta da suposta
correspondência imediata e idêntica entre essa episteme hegemônica e a própria
noção de ser, ou de mundo. Assim, qualquer ameaça à sua invisibilidade
intencional tende a levar ao desmantelamento da sua plenitude como essência
5 Aqui se faz menção ao termo
cuír
, uma apropriação antropofágica latino-americana do termo
queer
, que
em inglês significa literalmente “estranho”, ou “esquisito”, e foi historicamente usado para designar
pejorativamente pessoas fora da cisheteronormatividade, até então ser apropriado por elas como símbolo
de resistência e contestação. “Cuír” tem como interesse a descentralização das referências e conceitos do
eixo Europa-Estados-Unidos, ou “norte” do mundo, e faz uma brincadeira com a palavra “cu”, que significa
“ânus”. As pessoas “cuír”, portanto, seriam as pessoas fora da cisheteronormatividade.
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absoluta, o que gera a experiência do choque entre o que se conhece como
totalidade das coisas e o seu aparente e eminente fim.
[…] o gênero, ao ser instituído pela estilização do corpo, deve ser
entendido como a maneira cotidiana por meio da qual gestos corporais,
movimentos e encenações de todos os tipos constituem a ilusão de um
“eu” generificado permanente. Essa formulação desloca o conceito de
gênero para além do domínio de um modelo substancial de identidade
para um modelo que exige uma concepção de temporalidade social
constituída. Significativamente, se o gênero é instituído por atos
internamente descontínuos, o aparecimento da substância é
precisamente isso: uma identidade construída, uma realização
performativa na qual a plateia social cotidiana, incluindo os próprios
atores, vem a acreditar, além de performar como uma crença (Butler,
2018, p. 3).
Desse modo, o ruir da cisnormatividade enquanto campo cognitivo
epistêmico não significa apenas ruir concepções cis-binárias de gênero, mas
o
próprio estatuto de realidade das coisas
, bem como o elo de unificação entre o
ser e si mesmo, o ser e o mundo, a então “natureza”. Em suma, dentro do campo
de compreensão criado e gestado pela hegemonia, dizer que “mulher” e “vagina”
não são concepções idênticas
é tão radical quanto sabotar a seguridade subjetiva
do ser como substância sólida: para a cisnormatividade, é o mesmo que dizer que
o ser, na verdade, não existe.
Aqui farei uso da dialética hegeliana de constituição do ser - em um
movimento metalinguístico de usar um dos cânones consagrados da história da
filosofia cis ocidental como imagem - para aprofundar minha análise sobre as
relações da cisnormatividade com seu fim, tomando principalmente o conceito de
experiência de morte
(Hegel, 1974) das passagens da consciência: ao estabelecer
com algo fora de si uma relação de
reconhecimento
, o sujeito experiencia uma
difusão dos seus contornos, do que seguramente podia antes entender como
si
;
esse movimento será descrito como “morte”, pois dele faz parte o luto em relação
a um estado prévio de si que
não pode mais ser
perante o ato de
se reconhecer
em algo fora de si
o que pressupõe o fim do mundo como ele era até então.
Entretanto, é justamente essa colisão com esse
reconhecimento do externo como
agora parte de si
que
atualiza
o sujeito para si mesmo e, assim, processualmente
o constitui como um ser imbuído de história, por meio da assimilação de um novo
conjunto paradigmático possível. Se aproximarmos esse modelo à
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cisnormatividade como uma consciência, a presença de alguma corporalidade que
transgrida seus limites cognitivos bebês intersexo, homens trans com barba e
vagina, mulheres trans com barba e pênis, etc. seria então
suficiente
para
destituir sua supremacia ontológica: ao reconhecer no outro uma existência que
incorpora em si signos “masculinos” e “femininos”
simultaneamente
, a premissa
binarista e genitalista da cisnormatividade cairia por terra enquanto lei
fundamental e universal de funcionamento da experiência humana. Os gêneros
ininteligíveis, desse modo, seriam o
externo reconhecido
como
também
arranjo
composicional humano
possível
, o que instantaneamente minaria a validade da
cisnormatividade em anunciar a si mesma como modelo único de ser, e, assim
seria ela os contornos desfeitos frente ao reconhecimento e à morte – o que, por
sua vez, levaria ao surgimento de outros paradigmas mais inclusivos e plurais de
experiência humana: menos transfóbicos, exclusivamente binários e genitalistas.
Entretanto, podemos ver que a processualidade entre reconhecimento-
morte-reconstituição-de-si
não acontece
, pois, caso contrário, bastaria a
existência e a percepção de um corpo não-cisnormativo para que a transfobia
fosse uma questão superada, ou mesmo inexistente, tal qual seria a própria
episteme hegemônica. Assim, se continuarmos com a dialética hegeliana como
base imagética para nossa reflexão sobre o comportamento da cisnormatividade,
podemos pensar que é como se, frente ao vislumbre da experiência da morte, ela
refreasse
o processo, como quem busca resguardar a si em um estágio
pré-
reconhecimento, pré-possibilidade-trans, pré-cis
: um estágio delirante em que o
que a cisnormatividade delimita como o real é idêntico a um
real absoluto
do
mundo de maneira tão radical que essas duas instâncias nem existem como duas,
como separadas; de modo que não exista nem trans, nem cis, apenas o mito da
criação como refúgio epistêmico, subjetivo, dominante e generalizado. O seu
movimento, portanto, perante o vislumbre da eminente experiência de morte de
si, é o da
autoalienaçã
o em seu
disfarce de natureza
, para que o disfarce se torne
sua própria carne, numa tentativa desesperada de restaurar a ordem homogênea
das coisas que ela mesma instituiu.
A genitália como placebo da cisnormatividade
É indubitável que a instauração segura dessa alienação é uma tarefa
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desafiadora frente aos fenômenos da vida, pois é difícil sustentar a condição
originária divina da equação homem = pênis/mulher = vagina perante a
materialidade de um bebê que nasce com uma genitália que
não se enquadra
nos
modelos construídos e preestabelecidos pênis/vagina, ou perante a materialidade
de um homem trans cuja genitália “original”
foi lida
como vagina ao nascer, e que
portanto foi dito “é menina!”, mas que, mediante sua barba e músculos, é
percebido como
um homem de fato
no tecido sociocultural compartilhado. Para
além dos citados mecanismos bioprostéticos (Preciado, 2017) de criação e
reafirmação da cisnormatividade como verdade original como no caso da
operação de bebês intersexo –, para que o mecanismo de autopreservação por
meio da alienação seja efetivo, é necessário um
artifício epistêmico
que garanta a
supremacia da “natureza” perante sua morte: a eleição da genitália como
manifestação indubitável do mito da criação.
A genitália então é consagrada como o subterfúgio lógico que sustenta o mito
cis-binarista por ser a única que parece não se desmantelar frente à concretude
gritante do corpo que escapa aos mandamentos da cisnormatividade. Para isso, é
feita uma manobra conceitual que instaura a dicotomia hierarquizada “natureza”
e “artificialidade”, na qual o interesse está na sua correspondência com as
instâncias também arbitrárias e dicotômicas de “biologia” e “cultura”. Essa
distinção, por fim, culmina na instauração dos binômios “sexo” e “gênero”: a
instância “sexo” idêntica à genitália seria biológica e, portanto,
natural
,
enquanto a instância “gênero” seria
cultural
, e, desse modo,
efêmera
e
situacional
a forma como o indivíduo se apresenta na vida por ter nascido “homem” ou
“mulher”, ou apesar de mas, não obstante, inegavelmente ter nascido “homem”
ou “mulher”. Em suma, o decreto da genitália como prova de que a natureza é a
verdade e
é a própria cisgeneridade
e vice-versa cria o paradigma platônico em
que “gênero” é
contingente e moldável
, enquanto “sexo” é a essência
ideal e
imutável
. Butler analisa tal movimento epistêmico de modo crítico, ao apontar sua
fragilidade na maneira como tal argumentação isenta “sexo” de ser ele mesmo
também
um constructo sociocultural carregado de signos de poder, negociação e
interesse:
Se o sexo é, ele próprio, uma categoria tomada em seu gênero, não faz
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sentido definir o gênero como a interpretação cultural do sexo. O gênero
não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural de
significado num sexo previamente dado (uma concepção jurídica); tem
de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os
próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que o gênero não está para
a cultura como o sexo para a natureza; ele também é o meio
discursivo/cultural pelo qual “a natureza sexuada" ou “um sexo natural" é
produzido e estabelecido como “pré-discursivo", anterior à cultura, uma
superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura (Butler, 2003,
p. 27).
Por conta dessa não garantia absoluta no conceito de “sexo” como “âncora
original da existência” que a argumentação de Butler aponta, é estritamente
necessário para a perpetuação da supremacia cisnormativa que ela se esquive e
se aliene da sua própria autoria do constructo sexo/genitália. Desse modo, todos
os desvios da norma, capazes de confrontá-la com seu próprio fim – como vimos
na comparação com a dialética hegeliana da constituição do sujeito podem ser
neutralizados - em seu poder de perturbação estrutural do império sociocultural
cisnormativo - através de suas realocações como marginalidades pejorativas,
agrupadas em diferentes graus de perversão, deformidade ou loucura. Assim, o
constructo natureza/biologia/sexo termina por operar como um
mecanismo de
defesa
da episteme hegemônica uma ferramenta de subjugação ontológica de
tudo que não é cisnormativo nas categorias: 1) pessoas enganadoras que fingem
ser mulheres ou homens, mas
não são
; 2) pessoas iludidas, que têm a audácia
ingênua de se dizerem
outra coisa
perante a supremacia indubitável de seu sexo;
3) aberrações, cujas deformidades nasceram com elas e são passíveis de
correção por meio da medicina e/ou psicanálise ocidental normativa ou que
infligiram tais deformidades em seus corpos por nenhuma razão aparente além
de uma audácia prepotente de
ir contra a natureza
– definitivamente um caso de
complexo de Deus.
Desse modo, a alienação da cisnormatividade perante seu próprio fim ocorre
a partir de uma modulação discursiva da experiência perceptiva por meio da
instauração do constructo natureza/biologia/sexo. Frente à materialidade inegável
do corpo que se apresenta fora dos limites prescritos pela cisnormatividade
corpo cuja presença tem o potencial de revelar a suposta “natureza” como uma
ficção cultural (Butler, 2003) –, o sistema sexo-gênero tenta ou
finge
para si
conseguir amenizar os impactos daquela presença disruptiva por meio de
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manobras narrativas, cujo interesse é desmantelar esse poder, de modo que a
hegemonia cis não seja ela mesma desmantelada por ele.
Eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não
sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras.
Sim, eles nos despedaçarão, porque não sabem que, uma vez aos
pedaços, nós nos espalharemos. Não como povo, mas como peste: no
cerne mesmo do mundo, e contra ele (Mombaça, 2021, p.28).
A premissa em voga consciente ou não por trás desse gesto discursivo
parece ser: que é impossível de fato destruir
toda
manifestação não-
cisnormativa e
cessar de vez
suas aparições, é necessário então a criação de um
paradigma no qual essas manifestações sejam catalogadas e justificadas
sob a
ótica da cisnormatividade
. Assim, a genitália é esse salva-vidas-âncora-garantia de
que o mundo cisnormativo ainda reina e triunfa sobre qualquer devir epistêmico,
pois, perante todos eles, é possível reestabelecer “o normal” com as máximas
transfóbicas “homem não tem vagina” e “mulher não tem pênis” ou mesmo
“homem tem pênis” e “mulher tem vagina”.
Um exemplo de como essa necessidade da genitália localizada como
documento de identidade ontológica do ser é gritante é o de que uma transição
de gênero apenas é aceita e validada em sua realidade mediante uma operação
plástica da genitália não surpreendentemente, chamada de cirurgia de
“redesignação
sexual
”. Entretanto, essa pessoa de genitália operada – aquela que,
aos olhos do sistema sexo-gênero, agora preenche os requisitos para receber o
visto que permite sua entrada no campo do sexo oposto –, ainda assim não tem
o mesmo estatuto existencial que uma pessoa cuja corporalidade é coerente com
a norma: não é
completamente mulher como as mulheres de verdade
, ou
completamente homem
como os homens de verdade
, pois
ela nasceu homem e
ele nasceu mulher
. Em suma, mesmo
adquirindo
a genitália requerida para
pertencer ao campo de inteligibilidade cognitiva absoluta daquele gênero, ainda se
trata de uma
genitália subalterna
, pois ela não é
natural
ou seja, “não é como
você veio ao mundo”. Esse é, enfim, o movimento discursivo que condiciona a
irremediável presença de corpos trans em um mundo dominado pela
cisnormatividade de modo que ela possa perpetuar sua supremacia: uma
episteme hegemônica na qual a transgeneridade é uma subcategoria da
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cisgeneridade e
ontologicamente inferior
a ela – como Eva, que, mesmo também
sendo humana no Éden, no fundo não passa de uma costela de Adão. Assim, o
golpe da cisnormatividade para garantir sua sobrevivência e perpetuação de seu
império colonizatório é através da violência onto-epistêmica de dizer o que a
transgeneridade é, mas sob seus próprios termos
.
Esse pequeno capítulo tem no título o jogo comparativo da genitália como
placebo da cisnormatividade porque, mesmo que a eleição do esquema
biologia/sexo/genitália como subterfúgio basal de imposição de sua supremacia
tenha diversas falhas argumentativas
passíveis de serem contestadas, é ainda
nesse mesmo conceito de “genitália” que a cisnormatividade se agarra
desesperadamente para adiar, ignorar, e/ou se iludir de que não acontecerá sua
auto experiência de morte. O conceito hegemônico de “genitália”, portanto, é um
placebo, pois ele conforta e parece funcionar para a cisnormatividade como
manutenção de sua vigorosidade, apesar do conceito em si
não significar nada
do
que se pressupõe a significar de fato,
ser vazio em sua potência substancial
.
Também, tal como um placebo, ele funciona mediante a crença e insistência
invariável do paciente em sua eficácia, e daqui voltamos ao trauma: quanto mais
a cisnormatividade se dissolve pela expansão de
presenças e epistemologias trans
,
mais ela, em estado de negação regressiva, insiste em seus placebos para adiar o
seu fim.
Se a marca cisgênera do capitalismo (capitaliCISmo), poderíamos
inferir que, da mesma forma que seria notadamente mais fácil imaginar
o fim do mundo do que o fim do capitalismo, seria também mais fácil
imaginar e comercializar o fim do mundo do que conceber e
fabular o fim da cisgeneridade? Não estaria a ideia de "fim de mundo”
tentando camuflar os verdadeiros fracassos coloniais? Assinalamos aqui
que, o tal de "fim de mundo” refere-se, antes, ao fim de um mundo: o
mundo da branquitude, o mundo da cisgeneridade, o mundo
adultocêntrico, o mundo capacitista, etc. (Leal, 2021, p. 5).
A conclusão, portanto, é de que a transfobia não é fruto de uma incapacidade
da cisnormatividade de
reconhecer de fato
um corpo trans o que muito se
observa em discursos de pessoas cisgêneras como “é difícil para mim” ou “eu não
consigo entender” –, mas de uma necessidade traumática de
negar o momento
do reconhecimento
que como coloca Hegel é sucedido pela experiência da
morte, de sua dissolução. Os corpos não-cisnormativos, trans, enfim, talvez não
A transfobia como trauma e critério curatorial da cisnormatividade
Oliver Olívia Lagua de Oliveira Bellas Fernandes
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-17, abr. 2024
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sejam
ininteligíveis
, como provoca Butler, mas sim
intragáveis.
A transfobia como critério-placebo curatorial da
cisnormatividade
Posta essa análise sobre o fenômeno da transfobia, é possível que a
impressão que fique seja de que as
pessoas reais
que se encaixam no que foi
exposto, são aquelas de um cenário excessivamente conservador e/ou
deliberadamente fascista, de modo que também fique, talvez, uma impressão
consequente de que, por contraposição,
existem boas pessoas cis
: pessoas cuja
performatividade de gênero e autoidentificação estão dentro do escopo cis, mas
que a elas
não interessa compactuar
com a transfobia
de forma alguma
; a elas
interessa serem aliadas e darem espaço para pessoas trans, pois elas
acham
importante dar
voz para pessoas trans. Pode ser que se esse texto tivesse acabado
no capítulo anterior, essas boas pessoas cisgêneras aliadas iriam dormir em paz
sabendo que elas não fazem parte de nenhuma cadeia de reação traumática que
se manifesta transfobicamente sob as frases “mulher não tem pênis”, etc., pois
elas
não pensam isso
, tampouco
diriam isso, muito menos
para uma mulher trans.
Pois bem, desejo terminar esse texto investigando, a partir de nossas reflexões
tecidas até então sobre a cisnormatividade sua auto criação e perpetuação, seus
traumas, seus placebos e suas transfobias –, as boas pessoas
cisgêneras aliadas
– principalmente aquelas que são brancas, e que estão nas posições de poder de
curadoria, produção e crítica do cenário teatral.
Antes de irmos para nossa última análise do comportamento da
cisnormatividade e da sua prática de transfobia – agora em um estudo de caso -,
é importante ressaltar que não partiremos do pressuposto contrário: de que
todas
as pessoas cuja performatividade de gênero e autoidentificação está dentro do
escopo cis
são más
. Na verdade, essa dualidade binária ocidentalizada entre “bom”
e “mau” não nos interessa o “trans bom”
versus
o “cis mau” pois isso é também
um constructo colonialista que opera como mecanismo epistêmico cognitivo para
um poder supremacista genocida cisnormativo. Esse texto não é sobre criar um
tribunal trans
que, sob o crivo da autoridade do lugar de fala, julga e separa os
“bons indivíduos cis” dos “maus indivíduos cis”. Ao longo do texto inteiro, o termo
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recorrentemente empregado foi “cisnormatividade” e não “cisgeneridade”,
justamente por um interesse em desviar a discussão de possíveis contestações
supérfluas como “nem toda pessoa cis é assim”, etc. Isso porque o que interessa
para
mim
, como uma entre muitas pessoas trans, afinal tampouco sou eu, como
às vezes a cisnormatividade instantaneamente pressupõe, porta-voz de uma
suposta entidade homogênea trans é analisar cenários, fenômenos, dinâmicas,
para que se possa compartilhar, trocar e gerar reflexões que contribuam para o
fim de uma mentalidade que opera nos nossos modos de ser, se relacionar, etc.,
e que é violenta, excludente, discriminatória e assassina. Usei então o termo “boas
pessoas cisgêneras aliadas” como mote dessa reflexão final pois é exatamente
esse conceito que vamos investigar o
mito
das boas pessoas cisgêneras aliadas:
quem faz uso desse discurso de “bondade” e “aliança”, quais seus efeitos, e como
o fenômeno das “boas pessoas cisgêneras aliadas” como curadoras, produtoras e
críticas da cena teatral se relaciona com o fenômeno da transfobia como trauma
da cisnormatividade perante seu fim.
É interessante desenvolver essa análise com foco no âmbito da produção
teatral principalmente a que se pressupõe mais “contemporânea” e
“experimental” – pois é um ambiente em que a moralidade valorizada e requerida
para os indivíduos que dela fazem parte – principalmente os cisgêneros e brancos
é o da postura antirracista, antitransfobica, antimisógina, antigordofóbica,
anticapacitista, etc. Entretanto, essa premissa compartilhada e consciente de ser
anti-conjunturas-discriminatórias, antes de ser um requisito necessário para um
projeto político de criação de um ambiente desierarquizado, acessível e plural, se
torna principalmente e veladamente uma
trend
, uma
hasthtag
em algum post do
Instagram ou
Tik-tok
: se você é curador/a (cis) e está trabalhando com pessoas
trans, por exemplo, significa que a programação teatral do espaço que você está
gestando é
moderna, atualizada e importante
; produzir obras de pessoas trans
significa que você (cis) está fazendo parte da propagação de um assunto
necessário e político
; escrever e publicar críticas sobre obras de pessoas trans
significa que você (cis) está a par dos assuntos mais relevantes e ainda faz o papel
de dividi-los com o mundo; por fim, a premiação para pessoas trans por trabalhos
que falam sobre coisas trans, sobre como se é sofrido e belo ser trans, mediante
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uma coragem trans, significa que os jurados (cis) estão
incluindo
essas obras em
espaço de destaque e prestígio.
Enfim, o que essa lógica aparentemente positiva afinal, as pessoas trans
estão
ganhando
cada vez mais espaço esconde como perversa é o contínuo
funcionamento dos mesmos circuitos da angústia da cisnormatividade em manter
sua supremacia onto-epistemica por meio da transfobia como mecanismo
estabilizador da situação cis-binária como o homogêneo “normal”, bem como da
perpetuação de seus espaços privilegiados de enunciação. Os “ganhos” que
artistas trans obtêm não são indícios do sucesso de um projeto de dissolução das
hierarquias materiais, epistêmicas, de classe, etc., mas efeitos colaterais dos
ganhos reais em foco: a perpetuação dos representantes majoritariamente
cisgêneros que detém o poder dos espaços das artes e suas celebrações
honorárias enquanto indivíduos conscientes e preocupados com “as causas
importantes”, ou as “pautas identitárias”, ou ainda “os grupos minoritários”. Dodi
Leal (2021), em seu texto
Fabulações travestis sobre o fim
, elabora o conceito de
travecoins
para analisar esse cenário no qual as pessoas trans não são o produto,
mas a
própria moeda de troca
por meio da qual a cisgeneridade pode acessar
experiências, apostar em seu valor agregado, observar sua inflação e deflação etc.
Desse modo, a suposta
bondade
das pessoas cisgêneras que detém os espaços
de poder do teatro curadoria, premiação, crítica, produção –, dão o nome de “ser
aliado/a” para sua inserção como investidor no mercado especulativo cênico-
monetário sob artistas trans, que podem se tornar mais ou menos lucrativos
mediante o valor que podem agregar consigo principalmente mediante
intersecções de raça, classe, ancestralidade, etc. Jota Mombaça, em seu texto
A
plantação cognitiva
(2021), analisa o discurso do “empoderamento” como
mecanismo contemporâneo e atualizado de perpetuação das estruturas racistas
colonizatórias nos circuitos artístico-culturais:
Recentemente, após a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de
2019, uma manchete se repetiu diversas vezes pelas redes sociais
brasileiras: “Dos cinco autores mais vendidos, quatro são negros e um é
indígena”. O sentido atribuído a essa narrativa era um atado às Políticas
da Representatividade, no qual esse fato aparecia como um sinal de
“empoderamento” coletivo das gentes negras e indígenas no marco dos
sistemas contemporâneos de produção de conhecimento. Para mim, tal
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manchete não deixou de evocar, a cada aparição, o fantasma do valor
como dispositivo profundamente implicado no arsenal da Racialidade. A
conjunção de “mais vendidos” com “dos cinco, quatro são negros e um é
indígena” funciona, portanto, como uma das curvas espaço-temporais na
qual Dana se enredada: sinto o mundo girar à minha volta e sou
tomada por uma tontura, a paisagem que me cerca vai perdendo forma
e me vejo lançada numa espiral... O corpo negro é uma máquina do
tempo. Sempre que somos as mais vendidas, retornamos à mesma
situação-problema. Em outra posição (Mombaça, 2020, p. 7).
Do mesmo modo, podemos ver esse movimento no cenário curadoria-
produção-crítica cis em relação a artistas trans: a narrativa da “inclusão” e do “dar
espaço” traz ganhos de diversas ordens
para essas mesmas pessoas cis
que
“incluem” e “dão espaço”, e não o contrário: a cisnormatividade ainda ganha porque
o jogo jogado ainda é o dela. São elas que decidem o quê, o como, o quando, o
porquê e com qual leitura obras trans vão entrar no circuito artístico teatral, cujo
parâmetro é sempre o da cisnormatividade: o que
ela
está interessada em
consumir, vender, experienciar e especular sobre a transgeneridade. Assim,
trazendo uma frase sempre reiterada por Dodi Leal, existir como artista trans no
cenário hegemônico é sempre uma situação de “ganhar perdendo e perder
ganhando”.
Voltando à imagem hegeliana da dialética da constituição do sujeito em
paralelo à transfobia como trauma, é importante que a hegemonia cisgênera
detentora de poder nos circuitos do teatro
inclua mediante seus termos
para que
ela não perca o controle do crivo por excelência que decide qualidade, interesse,
relevância, urgência temática e discursiva. Se as epistemes transcentradas são o
externo reconhecido que culmina na experiência de morte da cisnormatividade
como paradigma definitivo e imutável, a eminente constatação do critério
curatorial cisnormativo como
falho, datado e antiquado
tem como resultado a
irrelevânci
a de uma curadoria-produção-crítica que se paute insistentemente no
mito sexo-gênero como verdade originária. Isso então denota a necessidade do
sistema curadoria-produção-crítica cis de uma “tutela cisgênera das existências
trans” (Leal, 2021, p.11) como resposta traumática ao reconhecimento de sua
desimportância epistêmica. Assim, tal como o constructo sexo/biologia/natureza,
a
inclusão
praticada pelas “boas pessoas cisgêneras” é o seu placebo de
perpetuação hierárquica no circuito teatral. Afinal, a real destituição dos sistemas
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de poder os quais subjugam perspectivas, produções artísticas e epistêmicas
trans, e que são responsáveis por uma distribuição desigual de lugares de
enunciação e poderio econômico –, nunca foi parte do projeto contemporâneo-
jesuíta cis de “dar espaço” para pessoas trans no restrito cenário de criação e
circulação teatral, e nós
sabemos
disso.
Referencias
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Problemas de gênero
: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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KRISTEVA, J.
Powers of horror. An Essay on Abjection
. Nova York: Columbia
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. São Paulo: Ed. Abril, Col. Os Pensadores,
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MOMBAÇA, J.
Não vão nos matar agora
. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
PRECIADO, P.
Manifesto contrassexual
: práticas subversivas de identidade sexual.
São Paulo: N-1 Edições, 2017.
Recebido em: 15/02/2024
Aprovado em: 01/04/2024
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