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Fuck Catharsis
e a perspectiva da confusão
Entrevista com Carolina Bianchi
Concedida à Luísa Dalgalarrondo
Para citar este artigo:
DALGALARRONDO, Luísa, BIANCHI, Carolina.
Fuck
Catharsis e a perspectiva da confusão. [Entrevista com
Carolina Bianchi concedida à Luísa Dalgalarrondo].
Urdimento -
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v.1, n.50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0501
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Fuck Catharsis e a perspectiva da confusão
Entrevista com Carolina Bianchi concedida à Luísa Dalgalarrondo
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-19, abr. 2024
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Fuck Catharsis
e a perspectiva da confusão
Luísa Dalgalarrondo1
Carolina Bianchi2
Resumo
Entrevistamos a diretora, dramaturga e performer Carolina Bianchi. Nesta entrevista,
conversamos sobre seu último trabalho,
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa
Noite Cinderela,
e abordamos aspectos do processo criativo que debruça sobre a
temática da violência sexual. Também é incluído nessa discussão outros aspectos
dessa criação, como o desafio do trabalho coletivo à distância e diferentes formas
de produção no contexto brasileiro e no contexto europeu em que Bianchi se
encontra atualmente.
Palavras-chave:
Carolina Bianchi. Processo criativo. Performance. Violência sexual.
Fuck Catharsis
and the perspective of confusion
Abstract
We interviewed the director, playwright and performer Carolina Bianchi. In this
interview, we talked about her latest work,
Cadela Força - Chapter I: A Noiva e o Boa
Noite Cinderela
, and we discussed aspects of the creative process that focus on the
theme of sexual violence. Other aspects of this creation are also included in this
discussion, such as the challenge of collective work at a distance and different forms
of production in the Brazilian context and in the European context in which Bianchi
currently finds herself.
Keywords:
Carolina Bianchi. Creative process. Performance. Sexual violence.
Fuck Catharsis
Y La Perspectiva De La Confusión: Luísa Dalgalarrondo entrevista
Carolina Bianchi
Resumen
Entrevistamos a la directora, dramaturga e intérprete Carolina Bianchi. En esta
entrevista hablamos de su último trabajo,
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa
Noite Cinderela
, y discutimos aspectos del proceso creativo que se centran en el
tema de la violencia sexual. Otros aspectos de esta creación también son incluidos
en esta discusión, como el desafío del trabajo colectivo a la distancia y las diferentes
formas de producción en el contexto brasileño y en el contexto europeo en el que
se encuentra actualmente Bianchi.
Palabras-Clave:
Carolina Bianchi. Proceso creativo. Performance. Violencia sexual.
1 Doutorado em Artes da Cena pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Performance
and Culture em Goldsmiths College, UK, Inglaterra. Graduação em Artes Cênicas pela UNICAMP.
ludalga@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6514703138443359 https://orcid.org/0000-0002-6365-4584
2 Mestrado pela DAS Theatre (Holanda). Graduada pela Escola de Arte Dramática de São Paulo.
carolinaosoutros@gmail.com
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Figura 1- Carolina Bianchi. Foto: Mayra Azzi
Carolina Bianchi é dramaturga, performer e diretora do Coletivo Cara de
Cavalo, criado em 2017. Natural do Rio Grande do Sul, Bianchi se formou pela
Escola de Arte Dramática de São Paulo e viveu na capital do estado até 2020,
quando se mudou para Amsterdã, na Holanda, a fim de realizar seu mestrado na
DAS Theatre - Academy of Theatre and Dance, concluído em 2022. Desde 2015
vêm trabalhado em obras autorais, entre os quais se destacam
Quiero Hacer el
amor (2017)
,
LOBO (2018)
e
O Tremor Magnífico (2020)
, realizados junto ao Coletivo
Cara de Cavalo, formado por mais de 20 outros artistas. Seu último trabalho,
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela,
estreou em 2023 no
Festival de Avignon e seguiu em apresentações nos principais festivais de teatros
da Europa, como
Take me somewhere
, em Glasgow, na Escócia e o
Theater der
Welt
, em Hamburgo, na Alemanha.
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Em
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela
, que representa
o primeiro capítulo de uma trilogia, Bianchi se debruça sobre a temática da
violência sexual, temática recorrente em seus trabalhos, mas tratada de maneira
radicalmente mais explícita neste último espetáculo. A artista inicia o trabalho
fazendo uma exposição em formato de palestra, apresentando diversas artistas
da performance e narrando a relação dessas artistas com a violência sexual. Logo
neste início da peça, Bianchi nomeia uma prática de violência recorrente, que
envolve uma bebida misturada a medicamentos sedativos, chamada “Boa Noite
Cinderela”, oferecida a uma pessoa sem que ela saiba o seu conteúdo, de modo
que ela fique inconsciente, e em seguida, sofra violência sexual e não tenha a
possibilidade de se recordar precisamente dos fatos. Bianchi então toma ela
mesma um “Boa Noite Cinderela” diante do público e vai se tornando sonolenta
enquanto segue com a palestra. O ato faz referência a performance
La Siesta
, de
Regina José Galindo, em que a artista também toma um sedativo, se coloca em
um colchão diante do público e torna-se lentamente inconsciente enquanto as
pessoas presentes podem tentar despertá-la com baldes de água. Essa
performance, bem como outras feitas por mulheres e que relacionam o risco, a
confiança e a violência sexual em suas temáticas e ações, compõe parte da
palestra lida por Bianchi. A artista o extenso texto até que em determinado
momento não tem mais condições de seguir desperta, dorme diante do público e
permanece inconsciente durante toda a segunda parte da peça, que segue com
um grupo de performers, parte do Coletivo Cara de Cavalo.
Bianchi afirma no início de sua palestra que ela parte da “perspectiva da
confusão”, em que não uma conclusão nem uma tese clara a ser afirmada. A
impossibilidade de um discurso coeso é dada pelo uso do sedativo e,
principalmente, pelo acesso às memórias negado às vítimas desse tipo de crime.
Encarar o trauma e lidar com uma violência que é estruturante da nossa sociedade
não é um processo linear e conclusivo. A segunda parte da peça desenvolve-se
nessa “confusão”, em uma festa guiada por um
mash-up
de materiais diversos e
sem relação evidente entre eles. Os performers em cena parecem mover-se com
uma imprecisão esquisita, e cria-se uma atmosfera onírica, porém violenta, como
se estivéssemos dentro de um pesadelo de Bianchi, como
flashbacks
de uma
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pessoa que sofreu violência sexual e não consegue lembrar-se do que realmente
aconteceu. A confusão relaciona-se também aos desafios de tematizar a violência
em cena, em uma recusa das narrativas de superação e de encenações
esquemáticas da violência.
Em cena, além dos performers, também um carro, como um elemento
também ameaçador e que remete a crimes de feminicídio citados por Bianchi
na primeira parte. Na chapa do carro lê-se
fuck catharsis3
”, em uma clara alusão
a essa recusa do arco narrativo clássico, o que é reafirmado em texto projetado
ao fundo da peça. Nesse texto, que se projeta por toda a segunda parte da peça,
como uma continuação da palestra inicial, Bianchi nega máximas ligadas a
sobreviventes de violência sexual como “a nossa maior vingança é estar vivas” e
outras frases de efeito, em uma afirmação de que não vingança possível, não
há ação possível capaz de solucionar de fato a questão da violência sofrida.
Acompanho o trabalho de Bianchi como participante do coletivo Cara de
Cavalo desde 2019, e tenho analisado e contribuído com o seu trabalho desde
então. Nessa entrevista, conversamos sobre o processo de criação de
Cadela Força
- Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela,
dos desafios de tematizar a violência
e de como Bianchi organiza uma grande diversidade de materiais em cena, em
uma relação de justaposição que compõe também a sua “perspectiva da
confusão”. Bianchi reafirma a todo momento o seu interesse em investigar a
criação de uma linguagem para falar sobre a violência.
3 “Foda-se a catarse”
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Figura 2 - Carolina Bianchi em cena de
Trilogia Cadela Força
.
Foto: Christophe Raynaud de Lage
Luísa Dalgalarrondo - O seu último trabalho, o primeiro capítulo de uma
trilogia,
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela
, navega
sobre a violência de gênero, mais especificamente sobre o estupro e o
feminicídio. É um mergulho do qual é bastante difícil sair sem se ferir.
Como você avalia o processo de criação centrado neste tema e como você
vê a contribuição do trabalho para a discussão da violência de gênero?
Carolina Bianchi -
pouco tempo li algo que a Angélica Liddell4 falou sobre
a questão da escrita, do ato de escrever, onde ela diz que o ato de escrever é uma
vingança contra a ferida. Então, às vezes quem escreve é a ferida. Ferida é uma
palavra que eu também usei muito em outros trabalhos, principalmente em
O
Tremor Magnífico
(2020), em que fiz um prólogo que chamava
O Lugar da Ferida
.
Acho que hoje entendo muito melhor do que eu estava falando ali.
Eu sou lenta, demoro um tempo para entender as coisas das quais estou
falando, às vezes as coisas parecem mais inconscientes do que elas de fato são.
Acho que preciso caminhar no meu inconsciente para chegar na realidade. Tem
4 Angelica Liddel é dramaturga, diretora e atriz espanhola.
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gente que começa escrever a partir da realidade e vai levando isso para outro viés,
e acho que faço um caminho contrário, começo no inconsciente, no sonho e volto
para realidade para voltar novamente ao sonho. Não acho que falo através da
realidade, acho que atravesso a realidade para chegar no sonho ou no inferno, no
caso do
Cadela Força
. Mas acho que essa ideia de se ferir, acho que gosto de
pensar que essa ferida talvez tenha sido uma possibilidade de ser um lugar de
onde se escreve. Estou falando isso porque para mim uma das maiores revelações
do processo da peça é a minha relação com a escritura, com escrever. Acho isso
apesar de ser o processo mais “cabuloso” que fiz, digamos assim, pois foi uma
grande jornada para o inferno que eu fiz. Quando falo “jornada para o inferno” não
significa que seja ruim, mas que tive que vagar em outro mundo, em uma viagem
vertical, da qual falo na própria peça. Sinto que ao fazer isso encontro muito a
escritura como uma rota possível, talvez a grande prática dessa trilogia. Saio de
um lugar de desespero e medo de me perder, e encontro a grande situação do
Cadela Força
, essa questão da escritura, que tem a ver com memória, que tem a
ver com narrar, com descobrir como é que esse processo de acessar memórias
nubladas aparece. Então acho que é uma combinação de coisas que faz esse
processo possível. A ideia também da pesquisa, a ideia de começar pela
lecture
,
pela palestra, se por sentir que precisava passar por um lugar absolutamente
intelectualizado dessa experiência e unir isso com a história da arte e da
performance. Acho que agora, nas próximas partes, irei tratar também da história
do teatro. Enfim, ir por esse caminho para conseguir fazer um exercício de
linguagem, que envolve especular sobre a violência, sobretudo sobre a violência
sexual. Então acho que o caminho da peça para mim está nessas camadas que
vão se juntando, entram em camadas pessoais, mas também um esforço o
tempo todo de que na peça não apareça essa linearidade, que não tenha um
“chegamos no ponto”, sabe? O ponto como o assunto principal, um centro claro
em que chegamos. O ponto não sou “eu e as minhas histórias” ou “a Pippa Bacca5”...
Para mim não tem “o” ponto. É uma confusão, é uma doideira, uma loucura, é
confuso demais, não tem um ponto que a gente chegue, um lugar que a gente
5 Performer italiana abordada por Bianchi na primeira parte da peça. Bacca foi estuprada e morta enquanto
realizava a performance
Sposa
in Viaggio (2008), que consistia em fazer um percurso do norte da Itália até
Jerusalém pegando carona com desconhecidos.
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chegue. Acho que nesse sentido para mim a ferida se borra, toma conta de tudo,
atinge outras formas. Sobretudo quando chega em outras coisas que não são a
ferida.
Figura 3 - Cena de Trilogia Cadela Força. Foto: Christophe Raynaud de Lage
Você comentou da confusão e você começa a peça anunciando que você
parte da “perspectiva da confusão”. Recentemente muitas pessoas têm
trazido perspectivas de pesquisa, formas metodológicas que desafiam
uma lógica mais tradicional da academia, como “metodologias
indisciplinares” (Greiner, 2005) ou “submetodologias indisciplinares”
(Mombaça, 2016), entre outras. Você pode falar um pouco sobre o que é
essa perspectiva da confusão para você?
Acho que a perspectiva da confusão é aceitar primeiramente que o trabalho
teatral dessa peça não contém nenhum tipo de resolução sobre nenhum dos
problemas apontados. O que acho que é muito esperado, hoje em dia sobretudo,
de muitas coisas. Espera-se que as conversas tenham uma conclusão, tenham
um “entrar em acordo”, que a gente almeje um entendimento entre as pessoas,
chegue em um ponto comum e entenda o que aconteceu. Acho que quando você
vai falar de estupro e feminicídio, uma parte do trabalho é aceitar que tem coisas
que você não sabe. Sobretudo se você pegar a história de um Boa Noite Cinderela6,
6 Boa Noite Cinderela é um nome ligado a uma prática de violência sexual bastante específica, que envolve
uma bebida misturada a medicamentos sedativos, chamada Boa Noite Cinderela, oferecida a uma pessoa
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você está dormindo, você não consegue acessar essa memória. Você pode fazer
hipnose, mas você não vai conseguir acessar plenamente essa memória. E, se você
acessar essa memória, se você lembrar de absolutamente tudo que aconteceu
com você, isso não vai resolver o problema. Você vai saber o que aconteceu, mas
isso não vai livrar você. Então isso é trazido
per se
, é uma perspectiva trágica, você
está presa no meio de uma grande confusão. Daí acho que entrar pela confusão
tem a ver com juntar esses pedaços que não se encaixam, de coisas que a
princípio não tem muito a ver. Se eu for pensar assim, para falar sobre
performance, perspectivas sobre a fantasmagoria no teatro e na performance e
relacionar isso com a questão de violência de gênero, violência sexual, a gente
precisa fazer uma viagem. Elas parecem conectáveis, mas isso depende muito
da perspectiva que você vai usar, qual foi a pesquisa, no que você está interessada
em trazer. Então sinto que o processo do
Cadela Força
foi aceitar pontos que
jamais serão solucionados. E quando digo solucionado é sobre as histórias mesmo,
não tem solução, não tem condenados, o culpado não aparece, ele não tem rosto,
eu não sei quem é. Tem essa parte de aceitar esse lugar que também está
presente na história da violência, do crime, ainda mais quando estamos falando
de uma sociedade extremamente violenta, patriarcal, que está em guerra, que
segue perpetuando o estupro como arma de guerra inclusive, aí há certos pontos
cegos dessa história que a gente não consegue acessar. Claro que isso produz uma
frustração muito grande. me pergunto também o que significa produzir uma
dramaturgia ou um espetáculo que contenha esses buracos, que são insolúveis. A
gente não tem resposta, porque a violência se apresenta de uma maneira que a
gente fica buscando uma linguagem para tentar dar conta de uma coisa que não
tem sentido.
No
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela
, assim como
seus trabalhos anteriores, uma parte dedicada a referenciar artistas e
obras de arte do passado, nomeando suas trajetórias e inclusive fazendo
análise de trabalhos específicos, como a série de quadros do Botticelli ou
da Artemisia Gentileschi, em
LOBO
. Qual é o papel da História da Arte nas
suas criações?
sem que ela saiba o seu conteúdo, de modo que ela fique inconsciente, e em seguida, de modo geral, sofra
violência sexual e não tenha a possibilidade de se recordar precisamente dos fatos.
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Nossa, acho que é um papel protagonista, eu diria. Cada vez mais… Se
relaciona com o quanto de história da arte mesmo me apaixona, e a importância
de falar sobre outras pessoas. É como se fosse muito importante para mim borrar
qualquer pensamento ou sensação que eu tenha, como se precisasse encontrar
na história da arte pessoas com quem consigo identificar sinais, não estou dizendo
nem identificar histórias, mas identificar sinais, como se a história fosse deixando
pedacinhos de pão, como de João e Maria, sinais para rastrear isso. Então acredito
que quando encontro com um escritor, e sempre falo muito da Emily Dickinson,
mas quando encontro a Emily Dickinson, ou a Louise Gluck, ou a pintura da
Artemisia Gentileschi no
LOBO
, quando encontro a Regina Galindo e a Tania
Bruguera no capítulo 1 da
Cadela Força
, ou a escritura do Roberto Bolaño, tem essa
escritura dentro da peça super presente, ou o pensamento da Rita Segato, tem
uma coisa para mim que é essa possibilidade de ver, analisar, coisas que provocam
uma reação muito profunda de enamoramento, de mistério. São pessoas que
realmente acho que fizeram coisas que me assombram, mesmo que eu não
necessariamente entenda, mas que ocorre uma reação de completo espanto e
admiração, de loucura, de paixão. Sinto que isso é como se isso fosse o ponto com
o qual converso, como se a minha escritura fosse um diálogo com essa história,
como se ficasse procurando qual é o lugar que isso está inserido, sabe? É também
no sentido de situar um pouco, preciso da história para situar em que ponto nós
estamos das coisas. Tem uma parte de invenção também junto com isso, não é
como se eu trabalhasse uma coisa documental da história, é inventar a partir
dessas histórias.
Você trabalha com essas referências históricas e clássicas, mas também
há em seus trabalhos muitos materiais da cultura
pop
, principalmente na
música. Existe alguma hierarquia entre os materiais que você escolhe
trabalhar?
Para mim a questão da intelectualidade nunca foi algo central, porque às
vezes parece que a gente traça referências que acabam formando uma questão
de classe. Quem tem acesso a determinadas referências? No meu caso, tampouco
venho de uma família que tinha dinheiro para viajar ou ver essas coisas de perto,
mas estava inserida em um contexto em que tinha acesso a algumas coisas. A
partir dos recursos que eu tinha, buscava coisas que me ventilassem mesmo, me
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impressionassem a cabeça. No meio dessas coisas estão elementos de cultura
pop
porque no meu cotidiano eu era fascinada por essas coisas, ouvia muito rádio,
na minha casa se ouvia muito rádio, eu gravava programas com fita cassete, ia
escutar música na casa da minha tia que tinha muitos discos, essas eram as coisas
que gostava de fazer. A gente buscava o que tinha ao alcance. Acredito que tem
algo nesses elementos que constitui você, a maneira como você pensa, as coisas
que te arrebatam. Eu posso escutar uma música de Gigi D’Agostino7 e fazer uma
canção, mudar o tom, a melodia e fazer outra coisa, porque acho aquela letra
maravilhosa. Não são os grandes gênios e gênias da história da arte que tem
esse valor para mim dentro dos trabalhos. No
Cadela Força
tem o
mash up
que
o Miguel Caldas [diretor técnico e compositor da trilha original] trabalha, que para
mim é uma obra de arte muito maravilhosa, essa junção, essa capacidade de colar
um monte de música que faz parte da vida da gente, das memórias a gente,
expostas juntas no meio daquelas imagens, eu dou muito valor, para tudo, para
tudo que provoca esse arrebatamento, e isso não tem a ver com a
nacionalidades das coisas ou coisas que são associadas a uma arte mais
intelectual, acho que isso constitui a gente também.
O seu trabalho é feito junto ao Coletivo Cara de Cavalo e, até então, tinha
a criação de práticas performativas bastante imersivas como algo central
no seu processo. Desde 2020 você vive em Amsterdã e as artistas do
coletivo vivem em grande parte no Brasil ou em outros países da Europa.
Como você a participação do coletivo em uma dinâmica a distância?
Acho que a participação do coletivo é muito diferente a cada obra, sem
dúvida. Inclusive o coletivo mudou muito de uma obra para a outra. Claro que a
questão da distância mudou muita coisa. Inclusive o meu papel dentro desse
coletivo. A partir desse momento, a minha questão de direção ficou mais forte, de
coordenação, de direcionamento do projeto. O meu papel enquanto performer
dentro da obra muda também, uma vez que essa trilogia implica coisas mais
diretas, mais denominadas, mais nomeadas da minha própria história de maneira
inédita em relação aos outros trabalhos. Isso muda e trata-se de buscar como
é que se traz esse coletivo para dentro disso. Acho que o convite foi ficando mais
claro ao longo dos anos, ao longo do mestrado, dessa trajetória também que tinha
7 Gigi D’Agostino é um cantor, DJ e produtor musical italiano.
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que percorrer. A questão de como esse coletivo se insere dentro dessa memória,
dentro desse primeiro capítulo, nesse caso, dentro dessas experiências de
confabulação, de invenção, de dar imagem para isso que está dentro da minha
cabeça, dentro desse sonho, qual é o cuidado, como é que é a relação dessas
pessoas comigo. Não poderia ser diferente, não poderiam ser outras pessoas a
fazer isso, sobretudo nesse primeiro capítulo. Não poderia ser feito um
casting
,
porque uma relação que está nominada como uma relação de amizade, uma
relação de conhecimento desse coletivo comigo, com o meu corpo, com certas
estratégias e necessidades que precisavam acontecer. Então sinto que sobretudo
uma responsabilidade do coletivo de como seguir nessa peça uma vez que a
pessoa que começa essa peça, que sou eu, vai perdendo a consciência. Como você
corpo para esse mundo interior? É claro que essa pesquisa foi compartilhada
com esse coletivo. É diferente do que dizer para essas pessoas "a gente vai fazer
isso aqui e ir para cá, para e para lá", sem contexto nenhum. Houve seminários,
toda essa parte teórica do trabalho foi muito compartilhada, e houve trabalhos de
imersão nas residências [foram feitas, entre 2021 e 2023, 5 residências de duração
média de 4 semanas]. Foi se ampliando essa conversa nesses últimos anos, esse
foi o trabalho. O grande trabalho dos performers dentro do
Cadela Força
foi
entender essas perguntas sobre performar, essa é a grande coisa, o que significa
estar em cena nesse contexto, menos do que um trabalho de criação de cena que
acho que estava mais presente no
O Tremor Magnífico
, por exemplo. Acredito que
aqui era um outro trabalho, um trabalho de escuta, de como se performa, o que
se performa, como atravessar esse espaço e fazer o que precisa ser feito, que é
um trabalho de muita responsabilidade nesse caso, de muita escuta, muita
precisão, muita coisa. Houve também um trabalho muito importante de
construção da equipe técnica, que é um diálogo também muito ativo agora no
Cadela
, uma experiência muito constante de pensar nessas adaptações, de pensar
constantemente, tem uma textura constante de movimento, de ação técnica, que
é muito forte nesse trabalho também, de uma maneira também inédita, como não
tinha trabalhado antes.
Ao mesmo tempo que esse ineditismo e singularidade em cada obra,
acompanhando o trabalho desde
LOBO (2018)
,
O Tremor Magnífico (2020)
e ainda incluindo aqui outras peças anteriores como
Quiero hacer el amor
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(2017)
e
Matame de prazer (2015),
sinto que de alguma forma há um certo
acúmulo de práticas, de relações que vão viabilizando cada trabalho
seguinte. São estabelecidas relações singulares, mas não me parecem
obras desarticuladas entre si. Você compartilha essa sensação de
encadeamento de uma peça para a outra?
Totalmente, vejo de uma maneira totalmente cumulativa. E acho que por isso
para mim era muito importante fazer a coisa acontecer dessa maneira, com essas
pessoas, por isso que o trabalho também tem um grau quase de loucura mesmo,
de viajar com essa estrutura de 16 pessoas, sendo que 10 dessas pessoas moram
no Brasil e seis na Europa. Isso torna a estrutura do trabalho muito grande e
também algo que faz com que o trabalho seja visto como um trabalho
internacional. Não somos criadores europeus. As pessoas se sentam por duas
horas e meia para ver um trabalho em que todas as pessoas falam português. Elas
têm que ler duas horas e meia de legendas e é muito texto. Então tem um aspecto
para mim que é um trabalho cumulativo, que tem a ver com não abrir concessão
sobre isso. É uma turma grande, eu escrevo e falo essa língua, é assim que quero
apresentar essa reflexão, essa peça e acho que o fato disso vir com o trabalho de
pesquisa continuada, junto a maioria dessas pessoas, muita força para isso,
sustenta essa estrutura, sustenta o tempo desse trabalho também.
Antes de
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela,
todos
os seus trabalhos foram feitos de maneira independente, com uma
produção própria e com grande dificuldade no sentido de viabilização
material. Essa é infelizmente a realidade da maioria das artistas que criam
teatro no Brasil, uma forma de produção recorrente.
Cadela Força -
Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela
parece trazer outra possibilidade
de produção, é um espetáculo que estreou no Festival de Avignon e segue
se apresentando por grandes festivais de teatro europeus. Como você
enxerga essa diferença entre o aspecto de produção no cenário teatral
europeu e no cenário brasileiro a partir da sua experiência?
Acredito que quase nem tem comparação, essa questão da precariedade
realmente é o jeito que a gente está acostumado a trabalhar. E acho que as
diferenças não estão na precariedade, mas também no jeito que a gente
trabalha, no jeito que a gente pensa. Vejo isso em conversas que a gente tem
quando está fazendo a montagem do trabalho, a nossa aproximação com as
coisas, o nível de envolvimento que estabelecemos. Acho que há todo um diálogo
que precisa acontecer aqui na Europa e é em uma língua que você vai aprendendo
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a falar, o que não significa que você vai falar realmente a mesma língua dos
europeus. Isso é bem doido e ainda estou aprendendo sobre isso, ainda não
consigo dar muito contorno para isso. Mas sinto que é importante dizer que
inclusive o
Cadela Força
foi um espetáculo que não foi feito com uma real
estrutura de grana. O
Cadela Força
foi feito na grande maioria do seu tempo sem
financiamento. Fiz o mestrado na Holanda sem financiamento. A gente conseguiu
coproduções para estrear a peça, o que é diferente. Esse financiamento foi
destinado principalmente para pagar o cenário e para pagar a gente enquanto
estávamos fazendo as últimas residências. A gente fez muitas residências
anteriores em que a gente não ganhou nada. O trabalho conseguiu financiamento
para fazer a última etapa de estreia do trabalho e trazer as pessoas, pagar as
coisas, as passagens, que é a demanda mais cara de tudo, mover essa estrutura,
essa logística e fazer o trabalho existir e acontecer. As produtoras foram chegando
já em uma etapa final do projeto, quando se confirma a estreia em Avignon. Sinto
inclusive que foi uma grande aposta dos nossos coprodutores, pois ninguém
poderia prever o que ia acontecer, e foi uma aposta muito linda. Quando o Tiago
Rodrigues [curador do Festival de Avignon em 2023] nos coloca na programação
de um festival tão importante quanto o de Avignon, voltando à pergunta que você
fez antes, também tem a ver com esse tempo e essa pesquisa cumulativa e
contínua que ele sabia. Sinto que, de uns anos para cá, tem festivais que trazem
pessoas, programadores e maneiras da gente se conectar com os trabalhos, se
escutar de outra forma… O Tiago acompanhou todos os meus últimos trabalhos,
de uma maneira ou de outra, desde a Companhia dos Outros [companhia criada
por Bianchi em 2006]. Sinceramente, em
O Tremor Magnífico
(2020), a forma como
aconteceu a produção, em uma situação em houve uma previsão de
financiamento por parte de uma instituição e, um mês antes de estrearmos essa
instituição desistiu, criou-se uma situação que se continuasse nesse modo de
produção, com a estrutura que se movia daquele jeito, iria esgotar. Então também
foi necessário, para mim, sair, fazer o mestrado, tomar essa decisão, fazer esse
gesto de mudar completamente, deslocar as coisas e ver o que acontecia. Nesse
caso tem muito a ver com o tempo do trabalho e tem muito a ver com a peça,
acho que teve uma coisa que as pessoas viam no que a peça discutia, no potencial
dela que fez com que ela produzisse algo nas pessoas. Isso é muito difícil de dizer,
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mas ainda é muito instável para mim o mundo do teatro, tenho idade para saber
disso. Então tampouco fico deslumbrada, tudo continua, tenho que trabalhar,
tenho que escrever, estudar, correr com as coisas, acho que o que muda agora é
a perspectiva de que é possível ter financiamento em diferentes etapas do
trabalho. Só isso é uma coisa muito linda e importante, vejo uma diferença muito
grande. É difícil de admitir isso, mas houve um espaço que foi aberto aqui. Havia
toda uma cena independente muito aberta para mim no Brasil e isso era muito
lindo, mas também foi uma cena que ajudei a fazer, que ajudei a fortalecer durante
muitos anos, a movimentar. Mas sinto que parte da estrutura que a gente precisava
para seguir, a gente não conseguia avançar, não se avançava, e isso é muito triste,
porque sinto muita saudade de estar perto, de trabalhar aí, acho que a forma que
a gente trabalha no Brasil é muito bonita, a forma de performar as coisas, de olhar,
tem uma profundidade, um lugar de pesquisa que é muito admirável. O tempo, o
dinheiro, a estrutura muda tudo, para o bem e para o mal. Talvez nem faça sentido
comparar, é outra coisa. Não sou uma artista local, moro aqui, e estou tendo a
sorte e a vertigem de me situar nesses teatros e festivais maravilhosos, mas isso
não faz de mim uma artista que pertence a este lugar, a alguém que fala essa
língua desde sempre.
Figura 4 - Cena de Trilogia
Cadela Força
. Foto: Christophe Raynaud de Lage
Fuck Catharsis e a perspectiva da confusão
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Você exerce, de modo geral, pelo menos três funções centrais na criação:
escrita, direção e performance. Como se dá a articulação dessas funções
no
Cadela Força - Capítulo I: A Noiva e o Boa Noite Cinderela
especificamente?
Acho que isso é muito complexo, sobretudo no
Cadela Força
. Eu precisei
improvisar muito e entender a cada momento como fazer isso. Uma das questões
centrais no meu mestrado era investigar o que é que faço dentro das peças, o que
eu performo, o que é performar? Por que preciso desse espaço de “destaque”
dentro das peças, o que isso é, o que isso revela, o que está em jogo? Eu estabeleci
uma relação de coralidade super forte, e uma questão importante é a
responsabilidade desse grupo. O primeiro capítulo de
Cadela Força
então vem em
um processo que precisava ser muito radical da minha presença, da minha
presença em balanço com a minha ausência. Porque é isso que acontece, há essa
presença e depois a presença de alguém que está, mas não está lá. Então
precisava orbitar isso para entender o que isso é e o que estou fazendo em relação
ao teatro. Acho que com isso surgem dinâmicas que foram muito interessantes
para pensar, por exemplo, o texto. O texto foi a primeira matéria de tudo, e agora
estou entendendo que esse é um jeito que gosto muito de trabalhar. Eu começo
escrevendo o texto e depois vou encontrar as pessoas e encenar. Talvez o que
esteja acontecendo comigo é que, na medida que estou ficando mais velha, estou
ficando mais tradicional na maneira de trabalhar e acho isso super interessante.
Começar pelo texto, por essas pontas todas que preciso amarrar, e encontrar,
durante o processo criativo, com a equipe técnica e com os performers, como isso
vai se dar em cena. Nesse sentido, eu sinto que na questão da direção no
Cadela
Força
tem algo que acho muito lindo que é a relação com a Carolina Mendonça
[dramaturgista da peça]. Durante os ensaios a gente se alternava, porque precisava
ver a segunda parte da peça em que eu estou dormindo. Então nos ensaios a gente
fazia isso. Também durante a turnê, nos ensaios nas montagens no teatro ainda
fazemos isso, para que nos ensaios gerais eu possa ver a peça, porque não vejo a
peça na segunda parte, não sei como a peça foi. Então tem uma coisa mesmo de
perder a peça. Mas continuo dirigindo a peça, porque conheço as entranhas
daquilo. Ao mesmo tempo uma confiança nova que se estende a outras
pessoas. Então se a Carolina Mendonça fala sobre uma percepção dela da peça,
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na maioria das vezes eu concordo com ela. A gente vai pensar junto, tem uma
coisa bonita nessa experiência do
Capítulo I
da trilogia, que é muito única, que não
vai se repetir em nenhum outro capítulo, porque durante a peça essa
performance que produz essa ausência. Essa ausência e o mecanismo disso, tanto
nos ensaios quanto nas apresentações, que é o momento que a Carolina assiste
à peça e depois me os
feedbacks
, essa posição encontrou essa maneira de
acontecer, para dirigir esse trabalho assim. Eu precisava ver a trajetória dessa
segunda parte com um corpo ali.
Acaba a peça e pergunto para Carol como foi a segunda parte de forma geral
e no dia seguinte pela manhã ela me alguns retornos e
feedbacks
mais
específicos, e me diz o que aconteceu e me pergunta como eu me sinto em
relação a isso. Tem uma confiança muito profunda nessa relação, e na maioria das
vezes o que ela diz faz completo sentido para mim. A gente sempre faz um ensaio
geral nos teatros e nesses momentos assisto a segunda parte e ela entra, ela faz
e eu vejo.
Muitas outras artistas, principalmente mulheres, pessoas racializadas e
trans, pessoas que de alguma forma estão à margem, optam por essa
forma de autoria “total”. Você acredita que isso pode ser considerado uma
estratégia de resistência? Você se identifica e relaciona seu trabalho com
de outras artistas que trabalham de formas similares?
Acho que para mim foi bem importante quando comecei a ver escritoras e
diretoras que estavam em cena, isso é inegável. Quando vi pela primeira vez a
Grace Passô, por exemplo, quando entrei em contato com o trabalho dela, ou com
o trabalho de Angelica Liddel, foi super forte. É uma coisa muito importante para
quem está estudando, começando uma trajetória, mesmo quando não
diferença de idade, não é sobre isso, mas se trata de ver alguém que está
fazendo um trabalho um tempo, que se entende e se apresenta dessa
maneira. Mas também acho que é importante que cada uma saiba como precisa
fazer aquilo que tem que fazer, como precisa narrar o que é preciso narrar.
Acredito que o meu interesse sempre esteve em buscar construir linguagem para
isso. Acho que estou menos na história de trabalhar sobre o depoimento, de
construir um depoimento, e pensar como esse depoimento vai chegar nas
pessoas, porque acho que o depoimento também demanda uma espécie de
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conclusão, uma espécie de catarse. Não estou muito interessada nesse lugar,
estou mais interessada em como é que uso as ferramentas do teatro e da
performance para criar linguagem para essa arquitetura das coisas. Faz mais
sentido para mim pensar nelas como figuras que me impactam muito, do que
pensar em como estamos correndo em paralelo, relacionadas, agora. Acho
inclusive que a gente não precisa correr em paralelo, quero que todos os trabalhos
existam e cada uma encontre sua maneira de dizer as coisas. E acredito que cada
vez menos isso deveria implicar uma resistência, que sejam somente peças de
teatro. Mas sei que estamos ainda longe desse momento.
Nos seus processos o título da obra sempre é uma das primeiras
informações a surgir. Como surgem esses títulos? Qual é a importância
que isso tem em seus trabalhos?
Acho que talvez sejam mesmo as primeiras coisas que apareçam. Tem uma
coisa para mim das palavras, das sonoridades das palavras, das imagens que elas
carregam, que levo muito a sério. É quase como se eu precisasse evocar o
trabalho antes dele aparecer, eu faço quase uma invocação, preciso chamar
aquela coisa, que não tem forma ainda. Essa coisa do nome tem a ver com isso.
O
LOBO
era
LOBO
antes de existir, assim como o
Mata-me
,
O Tremor Magnífico
, o
Cadela Força
. Sinto que passa por essa junção de palavras,
Cadela Força
são duas
palavras que não necessariamente se relacionam, elas não estão adjetivando nada,
elas não são adjetivos nesse caso, elas são duas palavras que estão postas juntas,
e elas abrem janelas de um monte de coisas, incluso, claro, para o significado que
elas têm, e para outras imagens. Acho que para mim isso é interessante, que o
nome seja uma invocação mesmo da estrutura da coisa.
Como está a invocação dos próximos capítulos da trilogia?
Essa invocação está começando, ainda está bem difícil de falar sobre isso.
Claro, eles não começam do mesmo jeito que o primeiro capítulo começou. O
primeiro capítulo teve que juntar muitas coisas, em muito tempo, muita coisa teve
que ser feita, porque o primeiro capítulo precisava trazer a estrutura de uma
trilogia. O primeiro capítulo o chão da trilogia inteira, ele abre os trabalhos e a
gente sabe que para isso é preciso de muita coisa. Precisei percorrer muitas coisas
para abrir esse trabalho, e as próximas peças vêm sobre esse solo, então elas
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veem mais fluidas, elas vêm em menos tempo. Sinto que uma coisa está grávida
da outra, então acho que agora estou baixando a poeira aqui, porque preciso seguir
as pistas aqui que aparecem na própria peça, na primeira peça. Na minha
percepção sobre os encaminhamentos da trilogia, acho que posso dizer que
não acredito que o final dessa trilogia conclua qualquer coisa.
Referências
GREINER, Christine.
O corpo
: pistas para estudos indisciplinares
.
São Paulo:
Annablume, 2005.
MOMBAÇA, Jota. Rastros de uma submetodologia indisciplinada.
Revista
Concinnitas
, Rio de Janeiro, ano 17, v. 01, n. 28, set. 2016.
Recebido em: 05/02/2024
Aprovado em: 05/03/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br