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Sim, mulher brinca mamulengo: narrativas de
mulheres brincantes
Luanna Ferreira da Silva
Fabíola Resende
Rodrigo Matos-de-Souza
Para citar este artigo:
FERREIRA DA SILVA, Luanna; RESENDE, Fabíola;
MATOS-DE-SOUZA, Rodrigo. Sim, mulher brinca
mamulengo: narrativas de mulheres brincantes.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0206
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Sim, mulher brinca mamulengo: narrativas de mulheres brincantes
Luanna Ferreira da Silva | Fabíola Resende I Rodrigo Matos-de-Souza
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-25, abr. 2024
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Sim, mulher brinca mamulengo1: narrativas2 de mulheres brincantes3
Luanna Ferreira da Silva4
Fabíola Resende5
Rodrigo Matos-de-Souza6
Resumo
Este artigo apresenta duas narrativas (auto)biográficas de mulheres
brincantes do Distrito Federal do Teatro de Bonecos Popular, mais
especificamente o Mamulengo. Ancorado nas perspectivas decoloniais e
feministas, no contexto de periferia do Ocidente, o artigo se propõe a relatar
como mulheres artistas brincantes ocupam o centro da roda,
protagonizando brincadeiras.
Palavras-chave
: Mulheres. Cultura. Pesquisa (Auto)biográfica.
Decolonialidade. Educação.
1 Este trabalho resulta em 67% de reescrita da dissertação de Mestrado de Luanna Ferreira da Silva, defendida
na Universidade de Brasília (UnB), em 2022.
2 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Antonio Carlos Monteiro Teixeira
Sobrinho. Doutor em Literatura e Cultura (PPGLitCult/UFBA). Mestre em Estudo de Linguagens
(PPGEL/UNEB). Licenciado em Letras (UNEB).
3 Este artigo recebeu recursos do Edital DPI/DPG n. 02/2023 - Apoio à execução de projetos de pesquisas
científicas, tecnológicas e de inovação; e deriva da dissertação de mestrado “Narrativas da Casa Moringa:
uma coletiva de artistas brincantes do DF”, orientada pelo prof. Dr. Rodrigo Matos-de-Souza, desenvolvida
no Programa de Pós-Graduação em Educação Modalidade Profissional da Faculdade de Educação, da
Universidade de Brasília (UnB).
4 Mestrado em Educação pela Universidade de Brasília (UnB). Especialização em Gestão Universitária na UnB.
Graduação em Letras na UnB. Técnica em Assuntos Educacionais da Universidade de Brasília (UnB).
luannasilva@unb.br
http://lattes.cnpq.br/2099334061652266 https://orcid.org/0000-0002-6596-6151
5 Graduação em Artes Cênicas pela Universidade de Brasília (UnB). Atriz, brincante de mamulengo. Professora
da Secretaria de Educação do Distrito Federal (DF). fabiolaresende@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1837227359764800 https://orcid.org/0009-0007-8106-918X
6 Doutorado em Educação e Contemporaneidade. Mestrado em Estudo de Linguagens e Graduação em
Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Fez estágios de pós-doutoramento na Universidad
de Sevilla, Espanha e na Université de Tours, França. Professor da Faculdade de Educação da Universidade
de Brasília. rodrigomatos@unb.br
http://lattes.cnpq.br/9030544883937519 https://orcid.org/0000-0002-8788-4966
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Yes, women play mamulengo: narratives of women players
Abstract
This article presents two (auto)biographical narratives of female actors from
the Federal District of the Popular Puppet Theater, specifically the
Mamulengo. Anchored in decolonial perspectives and feminism, in the
context of the periphery of the West, the article proposes to report on how
women puppeteers occupy the center of the wheel, playing the leading
roles.
Keywords:
Women. Culture. (Auto)biographical research. Decoloniality.
Education.
Sí, las mujeres juegan mamulengo: narrativas de tiritereras
Resumen
Este artículo presenta dos narrativas (auto)biográficas de mujeres titiriteras
del Teatro Popular de Títeres del Distrito Federal, más específicamente del
Mamulengo. Anclado en perspectivas decoloniales y feministas, en el
contexto de la periferia de Occidente, el artículo propone dar cuenta de
cómo las mujeres artistas del teatro ocupan el centro de la rueda,
desempeñando los papeles protagónicos.
Palabras clave
: Mujeres. Cultura. Investigación (auto)biográfica.
Decolonialidad. Educación.
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Introdução
As manifestações do machismo estão em todos os espaços da sociedade
brasileira (Hintze, 2020), daí afirmar que machismos em um movimento
artístico de arte popular brasileira poderia significar a reprodução de um lugar-
comum. Porém, o senso comum reserva para a arte uma percepção de que,
nesse espaço, mesmo dentro de uma sociedade estruturalmente machista, as
disputas seriam arrefecidas ou diminuídas pelas ideias de liberdade e
horizontalidade que supostamente circundam os grupos de artistas. Ledo
engano. As mulheres, como em todos os outros espaços da sociedade, passaram
por um longo período de conquistas e avanços e, sempre com algum nível de
luta e dissabores, precisaram ocupar literalmente os espaços de representação
na arte.
Esta pesquisa aborda um movimento de ocupação de um território ao
mesmo tempo simbólico e físico, o centro da roda (Ferreira da Silva, 2022;
Ferreira da Silva, 2023). Discute, assim, como um espaço majoritariamente
feminino tem o centro ocupado por figuras masculinas e como um grupo de
mulheres decidiu ocupar o centro da roda para brincar.
Adotamos, como orientação teórico-metodológica, a pesquisa
(auto)biográfica, tomando as narrativas de si das entrevistadas como um
elemento de análise e problematização do mundo que as circunda. A “[...]
narrativa é o texto da experiência por excelência, não somente por guardar o
relato do acontecimento, mas também por permitir que uma nova experiência se
no ato da leitura” (Matos-de-Souza, 2022, p. 13). A experiência, como ato
irrepetível ao ser narrada, nos permite acessar os processos de reflexão do
sujeito sobre si e sobre o mundo que a circunda, sobre o tempo, as formas e os
modos de vida (Breton, 2023) e, nesse caso específico, as formas de representar
o ato de ocupação do centro da roda pelas artistas brincantes.
Nesse sentido, também nos articulamos com os estudos feministas naquilo
que eles provocam a sociedade em termos formativos e de avanços em nosso
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arranjo societário (Rodrigues, 2022; hooks, 2019). Partindo desse pressuposto,
entendemos as artistas entrevistadas não somente como autoras de suas
narrativas, mas de elaborações teóricas sobre o campo que disputam. Portanto,
mesmo não estando publicadas, decidimos convocá-las como autoras, citando-
as, mencionando-as e não apenas utilizando-as como fonte. Entendemos esta
tomada de posição como um processo de desobediência às ordenações do que
se chama academia, mas também uma inversão da ordem e, por que não
dizer, da hierarquia – escolástica e da busca por outras fontes (Cusicanqui, 2018).
[…] desobedecer epistemologicamente pode significar um ato de
produção teórica e metodológica. Ou seja, de dar nome ao que estamos
fazendo ao significar nossos contextos, sem malabarismos para caber
em um desejo de adesão teórico-metodológica qualquer. Reconhecer
que o que fazemos pode ter um nome próprio, uma marca, que
apresente o que fazemos ao mundo. Talvez, precisemos negociar
geopoliticamente o que estamos produzindo localmente, mas
conseguiremos isso se tivermos antes um nome para o que fazemos
(Matos-de-Souza, 2023, p. 25-26).
E aqui, entendemos os atos de descolonização como um processo que não
é mera adesão conceitual, mas uma dimensão ética que identifica os atos de
colonialidade presentes na organização do cotidiano e da vida subjetiva das
sociedades que foram tomadas por objeto no arranjo da modernidade (Quijano,
2014, Clímaco, 2023). Considerando descolonizar como a criação e/ou também
reinvenção de outras formas de pensamento a partir da busca de um novo olhar,
da construção de epistemologias que não possuam sua estrutura na
colonialidade, buscamos utilizar ferramentas que promovam um movimento de
descolonização das formas como o conhecimento se apresenta em nosso
tempo. Optou-se por uma disposição do texto das entrevistadas que subverte o
formato “tradicional” das inserções dos textos dos “informantes” das pesquisas
realizadas em artigos científicos: no decorrer desta escrita, encontram-se
citações com falas das mulheres artistas brincantes interagindo o mais
horizontalmente possível com as elaborações dos teóricos, consagrados ou não,
da academia.
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Este artigo decorre da dissertação de mestrado (Ferreira da Silva, 2022) que
trouxe as narrativas (auto)biográficas de artistas brincantes de uma coletiva7 de
mulheres brincantes. Neste texto, somente duas das artistas foram convocadas
para o debate, tendo em vista a pertinência para a compreensão da ocupação do
centro da roda pelas artistas brincantes. O Apêndice da dissertação, no qual se
encontram transcritas as falas de todas as artistas entrevistadas, foi tomado
como repositório das narrativas às quais faremos referência ao longo do texto.
Realizamos as citações8 referenciando as falas de cada artista brincante dentro
daquele estudo maior.
Mulheres brincantes e sua (não)ocupação no centro da roda
As culturas populares originam terrenos de lutas onde memórias, tradições
e identidades são convocadas como força motriz que demarcará posições e
reverberações de vozes, buscando reconhecimento e autonomia diante da
cultura hegemônica (Abib, 2019).
O termo “culturas populares”, na contemporaneidade, tem se renovado,
provocado debates e produções, proporcionando diversas e contraditórias
interpretações. Todavia, queremos salientar o caráter político de atuação de
grupos e comunidades que “se empoderam ao reivindicar suas identidades e
direitos sociais a partir da afirmação de suas práticas tradicionais, regidas pela
ancestralidade que faz vigorar o passado e a memória desses povos” (Ferreira da
Silva, 2022, p. 42).
Muitos exemplos poderiam ser estudados no âmbito das culturas populares
de expressões, manifestações ou celebrações que foram criadas como
forma de se afirmar, de resistir ou de se contrapor às normas e padrões das
7 Optou-se por manter a nomenclatura adotada pelas artistas para a identificação de seu grupo: Coletiva,
em detrimento do masculino coletivo.
8 As citações referentes às falas das artistas durante este artigo acontecerão da seguinte forma: (nome da
autora, data, Apêndice 5, p. xx). A saber, a padronização com os nomes das artistas aconteceu de acordo
com a identidade em que elas se reconhecem culturalmente no DF. Descrevo-as aqui para conhecimento:
Terezinha Alcandida Borges Brito (Mestra Tetê Alcândida); Luciana Meireles Cardoso (Luciana Meireles);
Fabíola Resende (Fabíola Resende). As referências encontram-se na lista final em conjunto com os demais
autores citados.
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sociedades a que pertencem. Neste artigo, apresentamos as manifestações
artísticas de brincantes de culturas populares que “criam e recriam sua arte com
expressões significativas de nossas culturas populares brasileiras, que carregam
em suas origens nossos ancestrais indígenas e africanos” (Ferreira da Silva, 2022,
p. 43).
Quando abordamos as manifestações das culturas populares, tais como o
coco, o jongo, a ciranda, o cavalo marinho, a capoeira, o mamulengo, entre
outras, podemos perceber que as pessoas que participam dessas manifestações
se identificam como
brincantes
. São adultos brincantes que brincam durante as
“feituras” dessas manifestações. “A cultura popular é o
brinquedo
do adulto e
isto se evidencia na própria autodenominação dos artistas populares [...] eles se
dizem brincantes” (Forain, 2019, p. 2).
Se a/o brincante é aquela/aquele adulta/o que brinca nas manifestações de
culturas populares, o que seria adicionar a palavra “mulher” antes da palavra
“brincante”? O que seria a
mulher brincante
?
Então, que é a mulher brincante?
[...] ela é uma trabalhadora, porque a
gente falando da classe trabalhadora, quando a gente falando de
cultura popular, e ela brinca na vida pra que a vida tenha sentido, pra
que a vida tenha graça, pra que a vida tenha alegria, pra que a vida
tenha beleza
.
Então, ela inventa, ela faz roda, ela conta história, ela junta
a molecada na rua pra brincar, ela junta as mulheres pra dançar, ela
canta, ela costura, ela borda, ela se diverte inventando boneca,
inventando algum brinquedo [...]. Então a mulher brincante ela vai fazer
isso. Ela vai trabalhar porque ela é uma adulta [...] muitas vezes ela vai
ter uma família para sustentar [...]. Ela vai buscar espaços, ela vai buscar
criar espaços onde ela possa alimentar esse fogo interno, essas águas,
esse vento, onde ela possa criar, inventar, brincar, se divertir (Luciana
Meireles, 2022, Apêndice 5, p. 61)9.
A mulher brincante é aquela que irá brincar seu brinquedo ou algum
brinquedo que queira brincar. “São mulheres que brincam a capoeira, o
maracatu, o jongo, a ciranda, o coco, o mamulengo, o cordel, a poesia, entre
tantas outras manifestações, ofícios e tradições” (Ferreira da Silva, 2022, p. 165).
9 diferentes perspectivas sobre as transcrições das entrevistas concedidas em pesquisas. Algumas
realizam a correção gramatical das falas, outras escolhem a transcrição pela oralidade. Nós, que
trabalhamos dentro da perspectiva das narrativas, autobiografias e histórias de vida, optamos por
manter as transcrições tal como as recebemos, sem tratamento.
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Para que a brincadeira aconteça, vale uma reflexão sobre os lugares que
têm sido ocupados pelas mulheres nas culturas populares.
A mulher tem ocupado espaços de sustentação e manutenção dentro das
culturas populares. Ou seja, para que uma brincadeira de mamulengo aconteça,
é necessária, por exemplo, a confecção dos bonecos, das roupas desses
bonecos, da tolda do mamulengo. Esse trabalho ainda tem sido feito
predominantemente pelas mulheres:
Eu vejo muito ainda a mulher é aquela que costura a roupinha do
boneco, a que borda, que faz o pano da tolda, ainda muito no lado da
costureira, não reconhecida como a mulher que faz, a mulher brincante
(Mestra Tetê Alcândida, 2022, Apêndice 5, p. 27).
Mais do que serviços ainda predominantemente realizados por mulheres,
como a confecção e a produção de cenários, os figurinos, entre outros, “a mulher
brincante é a mulher que irá protagonizar a brincadeira, é a mulher que irá
ocupar o centro da roda” (Ferreira da Silva, 2022, p. 166). A mulher brincante
brinca sua brincadeira, seja ela qual for, ocupando espaços de protagonismo
dentro desse universo do machismo estrutural, também reinante nas culturas
populares:
Criamos um espetáculo que se chamava Mulheres Brincantes. Que
depois deu o nome à oficina que eu segui dando, essa oficina de criação
e investigação desse lugar da mulher que brinca,
da mulher que ocupa
o centro da roda
[...]. Porque a maioria das mulheres que a gente
conheceu como brincante, em algum momento pra elas seguirem
fazendo, trabalhando com cultura, elas tiveram que ir para os
bastidores, elas tiveram que virar produtoras culturais, que davam
suporte à sustentação e a manutenção para que homens recebessem o
título de mestres e de brincantes. Então, a gente como essa nova
geração, a gente começou a perceber essa incoerência... por que as
mulheres não estão? Por que existem mestres reconhecidos?
(Luciana Meireles, 2022, Apêndice 5, p. 54, grifo nosso).
A mestra Tetê Alcândida nos fala da pouca visibilidade das mulheres como
brincantes nas culturas populares. Ela entende que houve algum avanço;
porém, também alerta que ainda é preciso muita luta para uma equidade de
gênero nas manifestações de culturas populares, de modo que a mulher ocupe
mais vezes o centro da roda como brincante:
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Hoje eu acho que a gente tem uma conquista muito boa, no Catálogo
do IPHAN que acabou de lançar, eu sou uma das brincantes que
neste Catálogo [...]. Acho que somos três mulheres que estamos neste
Catálogo, como patrimônio cultural do Brasil. [...] Então a gente
conquista esse espaço, pequeno, né, três para dez, mas enfim
estamos indo (Mestra Tetê Alcândida, 2022, Apêndice 5, p. 19).
O Catálogo do IPHAN relatado pela mestra se chama
Mamulengos do
Distrito Federal
: Patrimônio cultural do Brasil. Trata-se de um catálogo
desenvolvido coletivamente pelos bonequeiros e pelas bonequeiras,
apresentando as histórias e os elementos identificados no Teatro de Bonecos
Popular do Nordeste brasileiro (IPHAN, 2020).
De um universo de dezoito Mamulengos apresentados nesse catálogo,
apenas três são protagonizados por mulheres, restando alguns outros em que
também mulheres mamulengueiras, porém inseridas em algum grupo ou
dupla. Ou seja, o mamulengo ainda é predominantemente protagonizado por
brincantes homens.
Vale ressaltar que as duas protagonistas brincantes desse catálogo são
mulheres brincantes da Casa Moringa10 a Mestra Tetê Alcândida e a
mamulengueira Fabíola Resende, mulheres brincantes mamulengueiras que
iremos abordar neste artigo.
O Teatro de Bonecos Popular do Nordeste é uma manifestação marcante
das culturas populares em estados como Pernambuco, Ceará, Rio Grande do
Norte, Paraíba e o Distrito Federal. “Em 2015, o Teatro de Bonecos Popular do
Nordeste que abrange o Mamulengo, o Babau, o João Redondo e o Cassimiro
Coco – foi reconhecido pelo IPHAN como Patrimônio Cultural do Brasil, passando
a ter proteção institucional” (Benatti; Brochado, 2020, p. 46). No processo de
registro, com duração de aproximadamente dez anos, foi realizado um inventário
dos brincantes de diversos lugares do Nordeste, resultando em dois trabalhos,
intitulados
Dossiê interpretativo
e
Dossiê videográfico
, de autoria das professoras
Izabela Brochado e Adriana Alcure (Ministério da Cultura, 2014).
10 A Casa Moringa é uma coletiva de mulheres artistas, ativistas culturais, educadoras, pesquisadoras,
brincantes populares, comunicadoras que desenvolvem projetos, trabalhos e ações no Distrito Federal
desde 2011.
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A partir desse levantamento materializado no
Dossiê Interpretativo
, Benatti
e Brochado nos dizem:
O Dossiê Interpretativo chama a nossa atenção sobre o pequeno
número de mamulengueiras. Esse dado nos despertou inquietações não
quanto à participação das mulheres, mas também sobre a forma
como as personagens femininas são retratadas, considerando que o
Mamulengo se em um contexto bastante masculino (Benatti;
Brochado, 2020, p. 46).
Barbara Benatti (2021, p. 5) nos conta que chamou sua atenção o fato de
terem “centenas de bonequeiros homens nos estados pesquisados incluídos na
pesquisa e pouquíssimas mulheres”. É neste contexto que conheceremos um
pouco mais da Mestra Tetê Alcândida e da mamulengueira Fabíola Resende,
mulheres brincantes de Teatro de Bonecos Popular do Nordeste no Distrito
Federal.
Mestra Tetê Alcândida: mulher brincante e educadora popular
A Mestra Tetê Alcândida11 possui uma multiplicidade de ofícios, artes e
saberes em sua jornada. Nasceu em família cigana, no município de Novo Brasil
(GO), e foi criada nesse mesmo interior de Goiás até se mudar para Brasília,
quando tinha 17 anos de idade. Morou em Planaltina e se encontrou com
pessoas que também estavam produzindo cultura e educação. Em 1989, mudou-
se para Taguatinga para exercer o ofício de sapateira que havia herdado de seu
tio:
Eu tinha um tio que era sapateiro [...] e eu queria muito fazer sapatos. E
quando eu cheguei aqui em Taguatinga eu fui fazer sapatos, e ficava
na frente de uma área de circo... eu tinha um relacionamento bom
com o pessoal do circo, eu comecei a fazer sapatos artísticos para eles;
e a partir dos sapatos artísticos eu comecei a ir para a cenografia
também além dos bonecos, para o figurino e tal (Mestra Tete Alcândida,
2022, Apêndice 5, p. 18).
“Menina, você é uma artista!” (ACTB, 2020), ouviu de um palhaço de circo
que lhe encomendara o conserto de um par de sapatos, surpreso com o
resultado. “Eu acreditei no que ele me disse e não parei mais” (ACTB, 2020).
11 Tetê Alcândida é artesã, bonequeira, educadora popular e mulher brincante, uma griô de tradição oral.
Disponível em: https://pareiacomunicacao.com.br/1o-encontro-de-mestras-e-grios-do-df/. Acesso em:
10 de janeiro de 2024.
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11
Eu abri uma associação de mulheres, fazia recreação com orientação de
resgate de brincadeiras com as crianças trazendo de dentro do meu
universo. E depois mais tarde, quando eu cheguei aqui em
Taguatinga, com os meus bonecos, com as minhas coisas, e com a
convivência com o pessoal da arte que estava despontando,
carroça de mamulengos
, pouco contato, mas tinha um contato.
tive contato com o Mestre Zezito12, ele tinha acabado de chegar do
Ceará; eu fui morar no P Sul e por um acaso ele foi morar vizinho de um
amigo meu, do Aroldo que era militante comigo no partido, e olha...
tem um homem com uns troços aqui que você precisa ver, precisa
chegar... e cheguei no Mestre Zezito e ele disse: olha, mas como
assim, isso é arte! [...]. o mestre viu meus bonecos, minhas criações,
ele disse ‘nossa, que bacana’. Ele tava num processo de resgatar as
brincadeiras dele [...]. ele disse: Nossa, Tetê, que bonitos os seus
bonecos! [...] eu disse, mestre deixa eu ficar perto de você para
mim viver essas coisas e tal e eu fiquei perto do mestre e fiquei
discípula (Mestra Tetê Alcândida, 2022, Apêndice 5, p. 17).
Deste encontro com Mestre Zezito, com o reconhecimento da produção de
sua arte na criação de bonecos, eles passam a fazer teatro-escola e, a partir
disso, a conviverem com outras pessoas das artes. A mestra nos conta que eles
resolveram participar de um evento popular chamado “Temporadas populares”, o
qual era financiado pela Secretaria de Cultura do DF. Montaram o espetáculo
Romance do pavão misterioso
, uma história de cordel. Com a participação deste
espetáculo, a mestra Tetê Alcândida amplia seus contatos ainda mais, tais como
Aguinaldo Algodão, Chico Simões e Izabela Brochado:
A gente montou o espetáculo do
Romance do pavão misterioso,
que eu
comecei fazendo o teatro de sombras, que era uma coisa que me
encantava muito. [...] Eu fazia sombra, então assim, eu tenho a Isabela
Brochado, mulher, mestra, doutora, fez doutorado neste segmento, né...
é uma referência muito forte para mim, que até então não tinham
mulheres; eram poucas mulheres, atrizes, poucas mulheres brincantes,
e neste universo das bonecas eram pouquíssimas, tinha a Zete que era
anterior a gente, a Bela e as esposas dos mestres, mas essas não eram
nem citadas, né. O machismo deles não permitia. Agora, hoje tem
mestres que agora reconhece isso, ‘ah era o machismo da gente que
não deixava vocês despontarem’ (Mestra Tetê Alcândida, 2022, Apêndice
5, p. 18).
Quase não existiam mulheres brincantes no Distrito Federal. Segundo
12 Mestre Zezito foi o fundador do “Circo Boneco e Riso”, o mestre foi um dos primeiros brincantes do DF.
Transformou a vida de crianças e adolescentes em situação de risco e se tornou figura inesquecível para
o circo e para a cultura popular do DF. (Cultura Candanga, 2023).
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12
Barbara Benatti (2021, p. 5-6), nos dados levantados entre 2008 e 2013, no
Distrito Federal, entre oito bonequeiros, havia sete homens e uma única mulher,
Neide Nazaré, viúva do mestre Zezito. ali, naquele momento, a mestra Tetê
protagonizava seu espaço junto à professora Isabela Brochado como brincantes
em um universo predominantemente masculino.
A mestra Tetê Alcândida teve seu trabalho voltado para a arte-educação,
sempre desenvolvendo ações dentro e fora das escolas. Também teve vários
contratos com a Secretaria de Educação como arte-educadora:
Eu tava na CNB 14 (Taguatinga) e fazia a coisa da perna de pau,
fazia o Carnaval, fazia os bonecos... e pensei preciso mostrar mais
isso. E aí, coloquei as pernas de pau fora do prédio e pensei deixa ver
o que vai acontecer... e a meninada: tia, o que é isso? [...] mostrar
como era... a meninada: tia, como é que anda nisso? E tal, tal, tal...
quando eu vi, eu fiquei lá por sei lá, 10 anos brincando na rua com essas
crianças [...] juntava 200 crianças, 50 crianças, e era bem bacana... [...] e
eu me dei conta que isso fazia parte da educação quando uma pessoa
da televisão me procurou, o Marcelo Canellas, ele estava na Rede Globo,
e fez um programa inteiro comigo, uma reportagem sobre
a arte de
brincar na rua
. E eu me dei conta que eu criava regras com os meninos,
que era não falar palavrão, obedecer o pai e a mãe, respeitar os mais
velhos, não jogar lixo na rua e ser amigos de todos. [...] quer mais
educação que isso, amiga? [...] fui educadora de rua, amiga! Não
neste projeto, mas fui educadora de rua em um Projeto que se chamava
Casa aberta,
que trabalhava com crianças em situação de risco [...].
Então, a minha arte é uma forma de educar (Mestra Tetê Alcândida,
2022, Apêndice 5, p. 27-28).
A Mestra Tetê nos relatou diversas outras experiências que viveu com
crianças e adolescentes em projetos nas escolas onde ela passou e deixou
plantado o amor e a paixão pela arte, promovendo educação em periferias do
DF. Para além de sua missão como arte-educadora, “a mestra, durante sua
jornada, lidou com vários enfrentamentos e desafios por ter sempre se colocado
como mulher atuante e brincante no centro da roda. A mestra não ficou
somente nos bastidores” (Ferreira da Silva, 2022, p. 195).
Fabíola Resende nos traz para reflexão o motivo de a Mestra Tetê Alcândida
não ser reconhecida devidamente como mestra de culturas populares aqui, no
Distrito Federal:
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A Tetê é uma mestra fundamental na nossa jornada, sabe. E a Tetê
não é mais do que ela é hoje, enquanto artista, porque ela foi oprimida
pelos homens. [...]. Por ela ser uma mulher que fala, uma mulher que se
coloca e que sempre se colocou. Ela foi excluída, sabe? De processos
criativos artísticos, eu não tenho dúvida disso. A arte e a criação da Tetê,
ela tinha que em um outro patamar hoje, de reconhecimento
nacional. [...] A Tetê é um patrimônio material de Taguatinga, da
Ceilândia. [..]. Ela é uma líder comunitária, ela é uma artista, ela é uma
mulher que precisa ser colocada no lugar que ela merece, sabe? E eu
tenho certeza absoluta que ela não foi pelo patriarcado. (Fabíola
Resende, 2022, Apêndice 5, p. 84).
Dando continuidade à história das brincantes de bonecas e bonecos do
Distrito Federal, vamos abordar, no próximo item, a trajetória da artista brincante
Fabíola Resende, também protagonista de sua brincadeira dentro do Teatro de
Bonecos Popular no Distrito Federal.
Fabíola Resende: mulher brincante mamulengueira
Fabíola Resende é arte-educadora, brincante, mamulengueira, mãe de Tainã
e professora da rede pública do Distrito Federal. Graduada em artes cênicas pela
Universidade de Brasília (UnB). “O encantamento da artista brincante com as/os
bonecas/os começou bem muito cedo, em sua primeira infância” (Ferreira da
Silva, 2022, p. 196). Em São João Del Rei (MG), aos quatro anos, em uma escola
pública, Fabíola inicia sua vida escolar e seu encantamento com a arte por meio
das apresentações de teatro de bonecos que aconteciam ali: “toda sexta-feira a
gente ia pra uma salinha e tinham as professoras fazendo teatro de fantoches,
eu amava, amava essa escola” (Fabíola Resende, 2022, Apêndice 5, p. 69).
Fabíola foi criada em Nazareno, Minas Gerais, uma cidade do interior onde
ela não deixou de ser uma verdadeira criança:
Tive uma infância, sempre falo, muito privilegiada, porque eu brinquei
muito. [...] chegava da escola, tirava a mochila e ia pra rua, brincar de
bete, pique esconde, pique bandeira... ai, tudo, cai no poço, mês castigo
(Fabíola Resende, 2022, Apêndice 5, p. 69).
Fabíola explica que, em Nazareno, não existia o Ensino Médio. Logo, para
continuar a estudar, era preciso ir para as cidades mais próximas. Ela nos conta
que seus irmãos, quando chegaram neste momento, saíram de casa e foram
fazer o ensino médio em outras cidades. Fabíola, por ser a caçula, ficou sozinha
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com seus pais durante os anos em que esperava para ir ao ensino médio. Para
onde ela iria quando chegasse sua vez?
Em 2002, Fabíola veio para Brasília. Fez o ensino médio no colégio Objetivo
com bolsa de estudos e se preparava para a prova específica do vestibular em
Artes Cênicas da UnB:
Em 2003, eu trouxe umas bijuterias pra vender, com o dinheiro da
bijuteria eu vou pagar um curso de teatro, porque eu sabia que na UnB
tinha prova específica. um dia eu comprei um jornalzinho e tava lá,
curso de teatro no Sesi, 45 reais por mês. [...] chego no teatro do
Sesi e o Chico Simões, Walter Cedro e Rose Nugoli13. Eles iam ser os
professores de teatro. E eu começo a entrar na Cultura Popular e
muito me identificar, né. Porque é isso, quem é do interior se identifica
com a cultura popular, não tem jeito. Quem não é do erudito vai se
identificar, porque vai sentir a cultura popular (Fabíola Resende, 2022,
Apêndice 5, p. 71).
Em 2005, Fabíola é aprovada na UnB e inicia o curso de Artes Cênicas. Ela
nos conta que, naquela época, frequentava duas faculdades ao mesmo tempo e
o “chamado” para as culturas populares falava alto:
Comecei a frequentar a UnB. As pessoas falam, você conhece fulano da
UnB? E eu falo, não. Porque eu fazia duas faculdades ao mesmo tempo,
porque eu fazia a UnB e o Mercado Sul. Então, eu ia pra e falava, vou
voltar pro Beco, né, porque era no Beco que eu sentia que tinha que
tá (Fabiola Resende, 2022, Apêndice 5, p. 72).
Ainda em 2005, com o lançamento do Programa Cultura Viva pelo Governo
Lula, o grupo de teatro Mamulengo Presepada14, de Taguatinga (DF), desenvolveu
suas atividades no Mercado Sul15, em sua sede no Ponto de Cultura Invenção
Brasileira, com aulas de teatro, percussão, mamulengo e cultura digital. Ali,
Fabíola16 também se encontra com Luciana Meireles, aprendendo a arte e o
13 Chico Simões, Walter Cedro e Rose Nugoli são artistas e produtores das culturas populares do DF.
14 “O Mamulengo Presepada nasce da convivência de Chico Simões, seu criador, com o trabalho do amigo
Carlinhos do Babau (Carroça de Mamulengos). [...] A instalação da sede do grupo no Mercado Sul, marcou
profundamente esta trajetória, permitindo o desenvolvimento de inúmeros projetos com viés social e
educativo” (MAMULENGO PRESEPADA, s. d.).
15 O Mercado Sul é um território de uma ocupação cultural em Taguatinga Sul - DF que acolhe diferentes
propostas e experiências, constituindo uma comunidade.
16 Fabíola Resende, Luciana Meireles e Nara Oliveira são três amigas que, juntamente a Mestra Tetê
Alcândida, deram origem a Casa Moringa.
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ofício de teatro de bonecos com a Mestra Tetê Alcândida e outras manifestações
das culturas populares, com a convivência entre artistas e comunidade.
No ano seguinte de seu ingresso na UnB e das vivências no Mercado Sul,
Fabíola conhece a Pedagogia Griô17. Um encontro com sua ancestralidade e o
reconhecimento da importância da oralidade e das tradições orais irão traçar os
novos caminhos da artista:
Em 2006, eu conheci a Pedagogia Gr[...] me conectando com a minha
mãe, com a minha avó, minha bisavó [...]. Nesse evento eles lançaram o
edital da Ação Griô nacional. Que era um edital pra pontos de cultura
escreverem mestres e mestras de tradição oral e um griô aprendiz
(Fabíola Resende, 2022, Apêndice 5, p. 72).
Fabíola conta que os criadores da Pedagogia Griô olharam para ela e
Luciana Meireles como potência para dar continuidade às ações griôs, porque
eles estavam sempre as provocando, sempre sugerindo e incentivando novas
ações: “Tudo o que eu fiz fui provocada pela Lillian Pacheco [...] você vai viajar
agora Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás e eu preciso que você arrume um
brinquedo pra você viajar. [....]
eu montei o mamulengo
, em 2007” (Fabiola
Resende, 2022, Apêndice 5, p. 73).
Os bonequeiros e artistas que atuam no teatro de bonecos são também
chamados de brincantes. O Mamulengo é um teatro de bonecos
popular de Pernambuco. Esse gênero se estabeleceu em torno de uma
tradição oral com a especificidade de se adaptar ao tempo, pois
trabalha com elementos capazes de se fixarem e de se mesclarem a
outros, porém, conservando códigos próprios e particularidades comuns
(Benatti; Brochado, 2020, p. 47).
Antes de criar seu próprio brinquedo, Fabíola viajou pelo Nordeste em um
projeto com o Mamulengo Presepada do DF, no qual conheceu outros mestres
em Glória do Goitá, Pernambuco, o berço do mamulengo no Brasil. A artista nos
conta que foi uma experiência muito importante, porém não se sentia
reconhecida, sentindo-se à sombra dos parceiros mamulengueiros.
17 “A Pedagogia Griô é uma pedagogia da vivência de rituais afetivos e culturais [...] interagindo e mediando
saberes ancestrais de tradição oral e as ciências formais, por meio do reconhecimento do lugar social,
político e econômico dos mestres Griôs na educação, para a elaboração do conhecimento e de um
projeto de vida que tem como foco a expressão da identidade, o vínculo com a ancestralidade e a
celebração da vida” (Pacheco, 2015, p. 66).
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Além dessas viagens no Brasil, Fabíola foi para Argentina, em 2007,
participar de festivais, convivendo e aprendendo com o Mamulengo Presepada.
Foi nesta viagem que a artista se inspirou e nomeou seu espetáculo,
Vereda dos
Mamulengos
:
E eu tava lendo Grande Sertões Veredas. [...] eu lembro dessa cena,
lendo esse trechinho “um boneco, vestido com paletó velho, os braços
abertos em cruz no arrozal, não é mamulengo? O pássaro preto e
não vem, um homem é”. [...] nossa, Guimarães Rosa cita mamulengo
aqui. Guimarães Rosa é mineiro. eu tinha uns caderninhos, anotei e
comecei a criar o roteiro do meu mamulengo a partir dessa fala (Fabiola
Resende, 2022, Apêndice 5, p. 74).
O espetáculo
Vereda dos Mamulengos
, criado por Fabíola Resende, é
apresentado em vários estados do Brasil e, até hoje, a brincante é reconhecida
como uma das detentoras do Teatro Popular do Nordeste pelo IPHAN-DF.
Naquele mesmo ano, Fabíola materializou sua brincadeira. Ela nos narra
como foi a montagem de sua tolda18 e como seus bonecos ganharam vida com a
ajuda de seus amigos e suas amigas artistas:
Criamos o mamulengo, fiz a minha tolda. O Rauni e o Chico me
ajudaram montando a estrutura de alumínio. a Bela, fazia artes
plásticas na UnB [...] ela costurou a minha tolda toda, ela fez todas as
roupinhas dos meus bonecos, quase todas, teve uma que foi a Nara fez.
a gente fez os meus bonecos, fez oficinas. Teve a oficina do Moises,
que era um grande artista de construção dos mamulengos. Aí a Bela fez
uma cabeça, a Nara fez uma, eu fiz outra. Olha essa, essa cabeça
mais redonda, vai ser no
Benedito
, olha essa, vai ser da
Conceição
, aí foi
juntando, né. (Fabiola Resende, 2022, Apêndice 5, p. 74).
E assim, em setembro de 2007, nasceu o espetáculo
Vereda dos
Mamulengos
19, que narra a história de uma família de agricultores. Conceição e
Benedito transformam desafios em vida, caminhando entre veredas e interiores
do Brasil. Aonde o casal chega, eles estão dispostos a plantar sementes e
18 Tolda é uma armação de tecido, é o palco do mamulengo. Pode ser chamada de empanada, barraca ou
tenda. Geralmente são construídas com uma estrutura de alumínio ou madeira e revestidas com tecidos
de chita. É comum no mamulengo a/o atriz/ator manipular as/os bonecas/os por trás da tolda,
aparecendo para o público apenas as/os bonecas/os, ou seja, a/o mamulengueira/mamulengueiro fica
escondida/escondido do público.
19 Texto do Espetáculo Vereda dos Mamulengos está disponível em:
https://www.facebook.com/casamoringa/posts/4648196005201216/
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alegrias, superando surpresas naturais e peripécias humanas.
Fabíola nos relata “que sua primeira apresentação de mamulengo foi uma
experiência um tanto inusitada” (Ferreira da Silva, 2022, p. 200). Ela viajou para o
Espírito Santo com Luciana Meireles, que, na época, brincava a Palhaça Carona,
e, juntas, viveram as intempéries e as contingências da atuação na arte popular:
eu começo a minha brincadeira, faço e vou para o Espírito Santo e a
Luciana de Carona, porque ela era a palhaça Carona. nós vamos
menina, a primeira apresentação da vida, a gente cai numa quadra de
escola com mais de 200 crianças e a Luciana ainda me inventa de fazer
uma roda com essas 200 crianças, e uma roda, uma roda gigante assim,
e eu, misericórdia! Quando começo a fazer o mamulengo a tolda cai,
tinha faltado um pedaço da tolda [risos]. a Lu tocando a caixa e tal, o
microfone não funcionava, não entendiam que tinha que ser um
microfone [...] auricular. Enfim, a primeira apresentação rolou, mas eu
lembro como uma catástrofe [risos] (Fabíola Resende, 2022, Apêndice 5,
p. 74-75).
Nessa fala, Fabíola nos traz características de como acontece a dinâmica
em uma apresentação de mamulengo. Ao apresentarem seus espetáculos, as
artistas possuem um roteiro para a história. Na maioria das vezes, o diálogo com
a plateia é improvisado: “são inventados na hora, ao sabor das circunstâncias e
de acordo com a reação do público” (Borba Filho, 1966, p. 99).
Nesse tipo de apresentação, denominado por eles como brincadeira,
ocorre a participação do público, com o qual o espetáculo dialoga,
estabelecendo uma relação dinâmica, que também fortalece a
identidade das comunidades produtoras e receptoras. Por meio da
brincadeira, explicitam, expressam e denunciam valores, informando
suas visões de mundo, seus desejos, suas experiências individuais e
coletivas (Benatti, 2021, p. 7).
Nas criações de seus espetáculos e personagens, Fabíola reforça sua
identidade e origem mineira, além de influências de mestras e mestres das
culturas populares, professoras e educadores.
De 2007 até hoje foram várias apresentações, caravanas, espetáculos,
vivências e ações realizadas por Fabíola Resende em carreira solo e em conjunto
com a Casa Moringa. “Investimos no mamulengo, fizemos caravanas griô, junto
com a Lu e a Thábata, tocando no mamulengo, acompanhando com percussão,
música, né? Sempre relacionando as brincadeiras com a ação griô” (Fabiola
Resende, 2022, Apêndice 5, p. 77).
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O aprendizado pela observação, a relação estabelecida entre
mestre/aprendiz, as tipologias de personagens, a dramaturgia composta
de diálogos e falas diversificadas e também sobre cenas que dizem
respeito a questões ligadas às comunidades: o cotidiano e o imaginário.
O Mamulengo é o teatro do riso e do improviso como a tradição oral, é
permanentemente ressignificado por seus produtores (Benatti, 2021,
p.7).
Para Benatti (2017, p. 96), os personagens do mamulengo são
“representações simbólicas de papéis sociais, expressos por imagens e nas falas
representadas”. Sendo assim, a autora nos traz, em seu estudo sobre a
invisibilidade das mulheres dentro do mamulengo, a percepção de como estas
mulheres lidam com o preconceito e buscam, por meio da brincadeira, subverter
o machismo e o racismo.
Durante a elaboração de seus roteiros, ainda em julho de 2007, Fabíola
Resende nos conta que não parava de ouvir que as mulheres não brincavam
mamulengo:
tinha essa história né, mulher não brinca mamulengo
. [...] e eu
ouvindo o tempo todo isso, mulher não brinca mamulengo. Não tem
mulher brincando. eu disse: ah, mas eu vou brincar! Por que mulher
não brinca? Essa minha voz aqui vai funcionar pra alguma coisa (risos).
Eu lembro dessa determinação assim, sabe. Não me fala que não vai,
porque vai! E foi, né. a gente começou a brincar (Fabíola Resende,
2022, Apêndice 5, p. 73).
Barbara Benatti nos provoca sobre a questão de gênero no movimento
mamulengueiro. A pesquisadora nos traz o cenário da quantidade de mulheres
bonequeiras, as quais aparecem sempre em menor número e, a depender do
contexto, nem existem:
Entre os anos de 2008 e 2013, foram realizadas pesquisas de campo e
documentais nas capitais e em municípios do interior dos estados de
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará e no Distrito Federal.
No Ceará, foram identificados treze bonequeiros, todos homens. Na
Paraíba, foram identificados quinze bonequeiros, também todos
homens. No Rio Grande do Norte, foram identificados quarenta
bonequeiros, dentre os quais uma única mulher, Maria Ieda da Silva,
conhecida como Dona Dadi, da cidade de Carnaúba dos Dantas. No
estado de Pernambuco, dos vinte e sete bonequeiros identificados, três
são mulheres, todas brincantes da nova geração e residentes na cidade
de Glória do Goitá. São elas: Tamires Silva, do grupo Teatro História do
Mamulengo; Edjane Maria, a Titinha, do grupo Mamulengo Nova Geração;
e Cida Lopes a filha do Mestre Lopes , do grupo Mamulengando
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Alegria. No Distrito Federal, entre os oito bonequeiros, há sete homens e
uma única mulher, Neide de Nazaré, viúva do mestre Zezito (Benatti,
2017, p. 49).
Embora exista um esforço em subverter as relações de classes nas estórias
do mamulengo, as apresentações continuam muito conservadoras em relação às
questões de gênero. No mamulengo tradicional, as personagens femininas
geralmente aparecem sob os arquétipos da mãe e da esposa. Também é
reforçado o estereótipo de uma mulher frágil, emotiva e doce (Benatti, 2017;
Benatti; Brochado, 2018), que acabam por reproduzir três enredos típicos dos
mamulengos: a jovem solteira, a mãe e a velha viúva. Essas personagens irão se
definir a partir de sua vinculação ao masculino, inclusive, muitas delas sequer
possuem falas (Brochado, 2001).
É curioso observar como a falta de autonomia que caracteriza essas
personagens no plano narrativo é reforçada pela sua representação
visual: o corpo das bonecas de pano não é articulado, de modo que a
cabeça e os braços não executam movimentos independentes (Benatti,
2017, p. 68).
As personagens femininas “não realizam ações que evidenciem desejo ou
vontade própria, sendo sua principal função no espetáculo dançar” (Brochado,
2001, p. 100). O mamulengo ainda é predominantemente masculino, “mas isso
não intimidou Fabíola a seguir nesta jornada, apesar dos desafios” (Ferreira da
Silva, 2022, p. 204), trazendo novas perspectivas de olhares para a brincadeira:
Eu montei o mamulengo em 2007. [...].
Tinha que ter uma mulher
protagonista de luva
. Porque todos os mamulengos até então, as
mulheres eram de pano. E a boneca de pano, você faz assim com
ela, a manipulação é muito simples. Não tinha a boneca de luva que
você põe no dedo e a boneca tem autonomia para pegar, para tirar
alguma coisa, entendeu? Então, eu quero uma mulher, que vai ser uma
mulher forte. Que vai ser uma mulher que vai ter pegada e vai saber
fazer as coisas. Então eu boto a enxada na mão da mulher, eu tento
trazer a mulher como protagonista. Talvez ainda no início eu não tenha
conseguido (Fabiola Resende, 2022, Apêndice 5, p. 74. Grifo nosso).
Fabíola diz que hoje grupos de homens e mulheres brincando juntos
mamulengo, e explica que os dois estão dentro da tolda. Ela faz um apelo às
mulheres brincantes de mamulengo para que não deixem de ser protagonistas:
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Que a gente não reproduza mais, no mamulengo, por exemplo, a mulher
frágil e omissa. A gente precisa produzir outra coisa. Quando eu te falei
assim, eu achava que tinha colocado a Conceição como protagonista.
em 2014, quando eu fui pedir ao Regino20 uma ajuda [...] e ele
falou assim: você colocou o discurso do homem na boca da mulher
.
eu hum... então eu preciso mudar esse discurso dela. Preciso não
deixar isso acontecer. E é isso assim, tentar ampliar mesmo os
discursos. eu lembro que o José Regino também criticou, não é
porque é mulher que não precisa usar a força física, tem essa coisa de
matar a cobra, no mamulengo tem essa tendência da violência
também, né. E eu acho que a gente pode repensar isso também, sabe?
Eu tenho feito a cena da cobra de uma outra forma, de usar um outro
ser para matar a cobra, mas eu também não quero colocar a Conceição
com violência, sabe. Então, não quero reproduzir violência. Eu também
não quero reproduzir machismo (Fabiola Resende, 2022, Apêndice 5,
p.78).
Fabíola usa da ancestralidade para recriar, em seu espetáculo
Vereda dos
Mamulengos
, uma personagem com criatividade, astúcia e resistência aos
regimes opressores de nossa sociedade. A mamulengueira, que segue fazendo
sua arte com protagonismo e descolonizando olhares, sabe o poder de sua
missão:
A gente diz muito com os bonecos na mão e parece que a voz deles e
delas tem mais valia que a nossa. Aprendi muito colocando bonecos
nas mãos de estudantes. Dar aulas com bonecos me fez crescer e
entender muito sobre brincar! [...] Minhas bonecas e meus bonecos
alimentam minha alma! Sou uma brincante de mamulengo, se precisar
é só chamar que eu vou, porque nessa vida a gente não é uma coisa só,
a gente é muita gente dentro da gente mesmo (IPHAN, 2020, p. 30).
Atualmente, a artista brincante é professora de uma escola pública no
Itapoã, no DF, onde também atuou como vice-diretora:
Em 2014 eu passei na Secretaria de Educação no concurso, eu me
tornei professora e eu mais dedicada hoje à função de ser
professora. Menos encantamento [risos] e mais burocracias [risos]. Mas
no desafio, né, de levar a arte pra dentro das escolas, de fazer alguma
coisa diferente dentro da comunidade onde eu atuando. Acho que é
isso aí, minha história (Fabíola Resende, 2022, Apêndice 5, p. 76).
Fabíola segue como arte-educadora em sua missão na escola onde
trabalha, fortalecendo sua ginga como mulher brincante, mesmo depois de se
tornar mãe. Apenas respeita seus ritmos e continua brincando, nos ensinando
20 José Regino de Oliveira (MG, 1962) palhaço, arte-educador, bonequeiro, diretor, ator,
cenógrafo e figurinista veio para Brasília em 1969 (Brasília Memória Invenção, 2018).
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muito do que é viver nessa sociedade e driblando os machismos estruturais
existentes:
Eu não me sinto dentro do grupo de mamulengueiros que existe dentro
do DF. Existe um grupo, existe um clã do patriarcado. E eu acho que
continuar brincando, seja onde for, é uma resistência. O meu
mamulengo não é muito reconhecido, mas eu onde eu tenho que
com ele. Muitas vezes é um mamulengo de resistência em ações
sindicais, em eventos interiores, em escolas, eu acho que isso é
uma resistência por eu conseguindo de alguma maneira brincando
com ele, sabe? [...] É difícil as pessoas entenderem que existem tempos.
Tem essa coisa... como uma mulher de nove meses vai brincar
mamulengo? Como uma mulher parida vai brincar mamulengo?
Homem não, cara, homem pode brincar mamulengo todo dia, ou fazer
filho, né? Eles conseguem. Mulher, não. A gente tem outro tempo. Tem
outro ritmo. E eu acho que isso é uma resistência (Fabíola Resende,
2022, Apêndice 5, p. 82).
Em 2007, foi a primeira vez que Fabíola brincou mamulengo, seguindo na
brincadeira até hoje. Ou seja, são 17 anos de resistência. A mamulengueira segue
no seu tempo, no seu ritmo, em seus ciclos.
Considerações Finais
Nas narrativas e elaborações desenvolvidas pela Mestra Tetê Alcândida e
por Fabíola Resende, ficam evidenciadas as formas através das quais o
patriarcado se corporifica no interior do Teatro Popular de Bonecos, operando na
invisibilidade e na subalternização das personagens e das artistas. É o reflexo de
como a dimensão estrutural do machismo se encontra manifestada não em
processos abertamente discriminatórios, mas numa zona cinzenta que é mais
bem percebida quando narrada pelas artistas brincantes, nas interdições –, na
colonialidade dos corpos e no colonialismo de submissão (Santos, 2023), que faz
a mulher ir para o bastidor sem nem se perguntar o motivo de não ocupar tolda
com uma personagem que não só faça dançar.
Naquilo que temos aprendido num lento processo enquanto sociedade, as
negociações dos grupos subalternos, tanto no que concerne à linguagem quanto
à elaboração de conquistas materiais, se dá, em muitos níveis, em um processo
de romper limites (Spivak, 2010). Estas bordas podem significar desde uma
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expressão de linguagem até um movimento de manutenção dos costumes ou de
preservação dos limites e das posições. Na ruptura, e talvez resida a
dificuldade de quem procura conservar o
status quo
, produz-se outra linguagem,
outro costume e outro modo de se ocupar o espaço, isso quando não se
inventam lugares, costumes e linguagens novas.
Dito isso, num movimento cultural, ou de cultura popular, ao serem
inseridas novas personagens, é preciso criar identidades que deem conta da
narrativa que agora será contada, no mínimo, com maior complexidade; uma
nova linguagem que expresse as dinâmicas, os pluralismos e as formas dessa
inclusão. Assim, é fundamental que sejam repensados os papéis estruturais da
sociedade, os quais mantiveram determinado grupo ocupando certos espaços de
prestígio enquanto outros grupos não o podiam fazer.
Os corpos menores, os corpos indesejados, os corpos subalternizados e que
sempre estiveram na dimensão do fora começaram a dizer de seu espaço e a
elaborar a linguagem de quem antes via de fora e, agora, consegue ocupar o
centro com a percepção das estruturas que lhes negavam acesso. Isso tem
provocado muitas celeumas na sociedade brasileira, muitos conflitos, mas
também a potência de ver outro mundo possível, um mundo no qual as
mulheres também podem brincar no centro da roda.
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Recebido em: 12/01/2024
Aprovado em: 27/04/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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