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O grupo Ponto de Partida: teatro e música
unem comunidades em fábrica de seda
restaurada em Barbacena
Evelyn Furquim Werneck Lima
Cláudio Guilarduci
Para citar este artigo:
LIMA, Evelyn Furquim Werneck e GUILARDUCI, Cláudio. O
grupo Ponto de Partida: teatro e música unem
comunidades em fábrica de seda restaurada em
Barbacena.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0202
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O grupo Ponto de Partida1: teatro e música unem comunidades em
fábrica de seda restaurada em Barbacena2
Evelyn Furquim Werneck Lima3
Cláudio Guilarduci4
Resumo
Fundamentado em conceitos de Nogueira e de Cruz, Bezelga & Menezes, o
artigo examina as práticas do grupo teatral que ocupou a antiga Sericícola de
Barbacena, proporcionando sustentabilidade ao patrimônio. Assim que as
atividades fabris foram encerradas, as agências governamentais ocuparam os
edifícios. Porém, na década de 1990, os casarões permaneceram
desocupados até a apropriação pelo Grupo Teatral Ponto de Partida em 1998.
Para restaurar o patrimônio industrial desativado, o grupo envolveu a
comunidade de Barbacena em doações e concursos e, em 2004, ocupou o
Pavilhão 1. Após a restauração do Pavilhão 2, ali foi inaugurada a Bituca
Universidade de Música Popular, uma homenagem a Milton Nascimento, e,
por fim, o grupo instalou a biblioteca comunitária no Pavilhão 3.
Palavras-chave
: Práticas artísticas. Patrimônio industrial. Sustentabilidade.
Comunidade.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Elton Mendes Francelino, Licenciado e
Mestre em Letras (UFSJ), Doutor em Artes Cênicas (UFBa).
2 Este artigo é um dos resultados de uma pesquisa financiada pela FAPERJ Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro (Processo: E-26/200.874/2021).
3 Pós-doutorado pela Université Paris X (CAPES) e Estágio Sênior no Collège de France (CNPq) além de períodos
como Visiting Scholar em universidades europeias. Doutora em História Social pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Artes Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ-1988).
Pós-graduada em Urbanismo (UFRJ). Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ-1968). Docente concursada em 1989 e aposentada em 2020 como Prof. Titular do
Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Docente permanente
do PPGAC/UNIRIO. Coordenadora-adjunta do Laboratório de Estudos do Espaço Teatral e Memória Urbana,
que criou e dirigiu por 26 anos. Pesquisadora 1-A do CNPq. Cientista do Nosso Estado.
evelynfwlima.unirio@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7357324433079681 https://orcid.org/0000-0002-2578-6180
4 Pós-Doutorado em Educação (PUC/RJ). Pós-Doutorado em Artes Cênicas (UNIRIO-CNPq/PDJ). Doutorado
(UNIRIO-Fapemig/PCRH). Mestrado em Teatro (UNIRIO). Graduação em Filosofia pela Universidade Federal
de São João del-Rei (UFSJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da
Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). guilarduci@ufsj.edu.br
http://lattes.cnpq.br/4825606089955911 https://orcid.org/0000-0001-5165-5937
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The Ponto de Partida Group: theatre and music unite communities
in a restored silk factory in Barbacena
Abstract
Based on concepts from Nogueira and Cruz, Bezelga & Menezes, the article
examines the practices of the theatre group that occupied an antique former
Silk Factory in Barbacena, providing sustainability to the heritage. Once
manufacturing activities were closed, government agencies occupied the
buildings. However, in the 1990s, the mansions remained unoccupied until
appropriation by the Ponto de Partida Theatre Group in 1998. To restore the
deactivated industrial heritage, the Group involved the community of
Barbacena in donations and competitions, and in 2004, it occupied Pavilion 1.
After Pavilion 2´s restoration, the Bituca University of Popular Music was
inaugurated, a tribute to Milton Nascimento, and, finally, the group installed
the community library in Pavilion 3.
Keywords:
Artistic Practices. Industrial Heritage. Sustainability. Community.
El grupo Ponto de Partida: teatro y música unen comunidades en
una fábrica de seda restaurada en Barbacena
Resumen
A partir de conceptos de Nogueira y de Cruz, Bezelga & Menezes, el artículo
analiza las prácticas del grupo de teatro que ocupó la ex Sericícola de
Barbacena, brindando sostenibilidad al patrimonio. Una vez que se cerraron
las actividades manufactureras, las agencias gubernamentales ocuparon los
edificios. Sin embargo, en la década de 1990, las mansiones permanecieron
desocupadas hasta su apropiación por parte del Grupo Teatral Ponto de
Partida en 1998. Para restaurar el patrimonio industrial desactivado, el grupo
involucró a la comunidad de Barbacena en donaciones y concursos, y en 2004
ocupó el Pabellón 1. Después tras la restauración del Pabellón 2, la Bituca
Universidade de Música Popular, en homenaje a Milton Nascimento, ocupó el
edificio y, finalmente, el grupo instaló la biblioteca comunitaria en el Pabellón
3.
Palabras clave
: Prácticas artísticas. Patrimonio industrial. Sostenibilidad.
Comunidad.
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Introdução
Com mais de quatro décadas de atividades, o Grupo Teatral Ponto de Partida
destaca-se como comunidade artística da cidade de Barbacena, cujas
apresentações se inspiram na cultura brasileira, na literatura nacional, na música
do Vale do Jequitinhonha, na música indígena e nas próprias tradições do Estado
de Minas Gerais. Propõe-se neste texto discutir o grupo formado por artistas que
ocupou o patrimônio industrial da antiga Sericícola de Barbacena com práticas
artísticas que envolvem teatro, música e dança, exibindo espetáculos e tendo
formado mais de 300 membros da comunidade local ao longo dos anos.
Em
Por uma outra globalização:
do pensamento único à consciência universal
(2003), o geógrafo Milton Santos procura explicar o processo de globalização,
indicando algumas alternativas e possibilidades de construção de um outro mundo
tornado possível. Santos define o espaço como
[...] algo dinâmico e unitário onde se reúnem materialidade e ação
humana. O espaço seria o conjunto indissociável de sistemas de objetos,
naturais ou fabricados, e de sistemas de ações, deliberadas ou não. A
cada época, novos objetos e novas ações vêm juntar-se às outras,
modificando o todo, tanto formal quanto substancialmente (Santos,
2003, p. 46).
Para este autor, os objetos aos quais se refere são cada vez mais produtos
da ação humana por meio do trabalho, e seu valor no modelo contemporâneo está
na sua eficácia, na sua contribuição para a produtividade.
Entendemos que o Grupo Teatral Ponto de Partida (mais adiante, Grupo
Estação Ponto de Partida), por meio de suas práticas artísticas e comunitárias, seu
árduo trabalho e as mudanças que operou no patrimônio industrial desativado,
vem representando este novo mundo tornado possível, fruto da soma de
materialidade e ação humana, tal como previsto por Milton Santos (2003).
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Paralelamente, a relação entre práticas artísticas comunitárias e a educação
“gera tensões significativas entre o valor artístico, a dimensão ética da participação
nos processos artísticos e seus potenciais impactos na vida das comunidades e
na participação cívica e política das pessoas envolvidas”, como afirmam Cruz,
Bezelga e Menezes (2020, p. 2), renomados estudiosos das práticas artísticas
comunitárias.
Outra estudiosa, a pesquisadora britânica Juliet Rufford, acredita que uma
experiência exitosa sobre o espaço é aquela que é marcada qualitativamente de
maneira diferente da “cidade do espetáculo” e que apresenta a habilidade para
nos transformar de espectadores-consumidores em participantes ativos e com
vontade própria (Rufford, 2017). Ela chama a atenção para o fato de que,
Em incontáveis lugares das avançadas economias do mundo, as
cidades apresentam uma nova visualidade delirante e os edifícios
aparecem como verdadeiras declarações ceno-culturais ou como
grandes telas na escala arquitetônica. Guy Débord previra isto nos
idos de 1967. Hoje, tal como temia Debord, nós alcançamos o ponto
em que as imagens vendáveis do e para o espaço urbano não
parecem suficientes para fazer face aos desejos político-
econômicos da classe capitalista e o teatro e a performance se
transformaram em novas oportunidades para participar de
experiências do espaço (Rufford, 2017, online).5
Assim, concordando com Rufford, entendemos que atividades artísticas
desenvolvidas em espaços desativados permitem ampliar o alcance do teatro, da
dança e das artes visuais envolvendo diferentes camadas da população,
beneficiando também os próprios artistas.
Os diretores e performers que em anos recentes abandonaram os
imponentes teatros ajudam a reforçar a dinâmica entre o teatro e a cidade.
Muitos desses grupos de atores e artistas desenvolvem um trabalho
site-specific
5 In countless places in the world's advanced economies, cities present a delirious new visuality, and buildings
appear as cultural statements or as large canvases on an architectural scale. Guy Débord had already
predicted this back in 1967. Today, as Debord feared, we have reached the point where the saleable images
of and for urban space do not seem sufficient to meet the political-economic desires of the capitalist class
and theatre and performance turned into new opportunities to participate in space experiences. (Tradução
nossa)
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que é criticamente antenado com questões de espaço e lugar, buscando espaços
alternativos para fazer arte. A questão de eliminar o ilusionismo e colocar em
discussão na cena com intensa participação dos espectadores as contradições
econômicas, dramas sociais e opressões típicas de uma sociedade estruturada
pela luta de classes, data do teatro moderno proposto por Bertolt Brecht.
Contudo, na contemporaneidade, outros espaços da cidade assumiram papel
fundamental para garantir a inter-relação palco-plateia e a fruição de obras de
arte em geral.
Para enfrentar a fragmentação da vida em comunidade – na qual existe hoje
a necessidade de autoafirmação do indivíduo em detrimento do coletivo em um
mundo cada vez mais voltado para o consumo entende-se que a arte nas
comunidades venha a ser uma das possibilidades de exercer a cidadania.
O teatro e a performance têm se mostrado um meio eficaz neste diálogo
com a cidade. O desafio para aqueles que estão preocupados com um
teatro socialmente engajado é abrir o caminho entre os impasses do
capitalismo contemporâneo por meio de práticas culturais no espaço da
cidade de maneira a garantir o exercício pleno de cidadania (Rufford, 2017,
online).6
Os conceitos sobre o que seria teatro na comunidade são bastante
diversificados, em especial na visão de Marcia Pompeu Nogueira, que se debruçou
intensamente sobre o tema, concluindo que, face à multiplicidade de contextos
em que vivem as pessoas no mundo urbano das sociedades contemporâneas,
muito diferentes do modelo de vida rural, pode-se até pensar que as comunidades
não poderiam sobreviver à industrialização (Nogueira, 2008).7
Entretanto, a autora entende, concordando com Baz Kershaw, que toda
comunidade é parecida no que diz respeito às diferenças internas que abriga e ao
papel de mediação que assume entre o indivíduo e a sociedade (Nogueira, 2007).
Recorrendo não a Kershaw, mas também a Anthony Cohen e Raymond
6 Theatre and performance have proven to be effective means in this dialogue with the city. The challenge for
those concerned with socially engaged theatre is to open the way between the impasses of contemporary
capitalism through cultural practices in the city space to guarantee the full exercise of citizenship (Tradução
nossa).
7 Esta autora alega ter definido o significado do
Teatro em Comunidade
desde que estreou um espetáculo em
1995 (Nogueira, 2008, p. 127).
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Williams, Marcia Nogueira formula algumas classificações diferenciadas para o
teatro na comunidade, alertando, contudo, que este percurso não é o único e
representa um olhar sobre as práticas que podem contribuir como um referencial
para análise das práticas de teatro na comunidade.
Das classificações por ela atribuídas, Nogueira discutiu a respeito de três em
reunião científica realizada em 2007 na Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Na primeira, ela se inspira em Augusto Boal e define Teatro para
Comunidades como o modelo que inclui o teatro feito por artistas para
comunidades periféricas, em uma abordagem de cima para baixo, desconhecendo
de antemão a realidade existente. Como apontou Boal:
Usávamos nossa arte para dizer verdades, para ensinar soluções:
ensinávamos os camponeses a lutarem por suas terras, porém nós
éramos gente da cidade grande; ensinávamos aos negros a lutarem
contra o preconceito racial, mas éramos quase todos alvíssimos;
ensinávamos às mulheres a lutarem contra os seus opressores. Quais?
Nós mesmos, pois éramos feministas-homens, quase todos. Valia a
intenção (Boal
apud
Nogueira, 2007, p. 2).
Ao definir o Teatro com Comunidades, segunda classificação, Nogueira
considera que o trabalho teatral parte de “uma investigação de uma determinada
comunidade para a criação de um espetáculo. Tanto a linguagem, o conteúdo
assuntos específicos que se quer questionar ou a forma manifestações
populares típicas são incorporados no espetáculo” (Nogueira, 2007, p. 2). A autora
defende, ainda, que a vinculação a uma comunidade específica estaria ligada à
ampliação da eficácia política do trabalho. Ela recorre a Kershaw para definir o
teatro com comunidades, quando ele explica que
Os anos de contato com públicos específicos e comunidades específicas
ensinaram uma importante lição aos trabalhadores do teatro radical:
cada tipo de comunidade, cada tipo de grupo requer uma abordagem sob
medida de forma a se tornar eficaz culturalmente e, talvez, social e
politicamente (Kershaw, 1992, p. 165).
No terceiro modelo,
que ela denomina
Teatro por Comunidades, a autora se
inspira novamente em Augusto Boal, pois inclui a própria comunidade no processo
de criação teatral, inquirindo as pessoas sobre qual seria o conteúdo das peças e
conferindo ao povo os meios de produção teatral. Nesse sentido, ganhou forma
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um novo Teatro na Comunidade, cuja função seria fortalecer as questões de
identidade das comunidades por meio da improvisação e do jogo teatral, podendo
contribuir para expressão de vozes silenciosas ou silenciadas da comunidade
(Nogueira, 2007, p. 3).
A partir das três classificações propostas por Nogueira, decidimos analisar
qual seria o processo do Grupo Ponto de Partida e que tipo de prática comunitária
estaria sendo aplicada. Entendemos que o Grupo Ponto de Partida, por investir na
cultura não somente de seus vinte e dois membros, mas de toda a comunidade
de Barbacena, e pelo fato de estar constantemente recomeçando, assume
diferentes posturas, como afirmou uma das mentoras do grupo, porém, buscando
exercer sempre um teatro na comunidade.
Segundo a encenadora Regina Bertola (2015), uma das fundadoras, os
integrantes decidiram que, mesmo com o crescimento do grupo, eles
permaneceriam em Barbacena porque queriam contribuir para a vida cultural da
cidade que antes era bastante escassa.
A gente se recusava a ter que se mudar para outro estado para fazer
sucesso. A gente queria obrigar as pessoas a olharem para dentro, para
aquela cidade lá no alto
da serra, mas que fazia um teatro de mexer com o coração das pessoas
(Bertola, 2015).8
Um movimento cultural na histórica cidade de Barbacena
O Grupo de Teatro
Ponto de Partida
foi idealizado
em 1980 por um grupo de
pessoas que, naquele momento, queria apenas criar um movimento cultural numa
cidade do interior de Minas Gerais. Situada, na encosta da Serra da Mantiqueira,
com pouco mais de 100 mil habitantes, a cidade de Barbacena ficou conhecida
desde a década de 1970 como a cidade dos loucos devido aos inúmeros
nosocômios existentes e, também, ao elevado número de “loucos” que naquela
década foram mortos em seus hospícios e tiveram seus corpos e/ou ossos
vendidos para as universidades brasileiras como peças para auxiliar na formação
dos novos médicos.
8 Entrevista concedida pela diretora Regina Bertola à TV EBC. Para assistir a entrevista na íntegra, acesse o
endereço: https://tvbrasil.ebc.com.br/artedoartista/post/a-cidade-de-barbacena-e-o-ponto-de-partida.
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Alguns dos fundadores do grupo tiveram uma escola de educação infantil
chamada Vila Marquês de Rabicó
e foi com a peça
A Arca de Noé peça infantil
montada com doze crianças
criada e encenada dentro do ano letivo escolar, que
a trajetória do grupo começa. Foi com essa peça que o grupo iniciou suas viagens
se apresentando inclusive na capital mineira. Somente a partir do segundo
espetáculo foi que o grupo começou a lidar realmente com elementos teatrais,
tais como afinar a iluminação, criar cenário etc. Naquele processo, as questões
teatrais eram resolvidas com a própria comunidade, conforme a demanda ia
crescendo.
A formação técnica e artística dos integrantes do grupo foi sendo realizada
aos poucos a partir de trabalhos de profissionais que eram convidados para
realizar ações de curto e longo prazo com todos do grupo. O grande salto que o
grupo realizou ocorreu com o espetáculo
Drummond
no ano de 1987, cujos textos
foram baseados exclusivamente na poesia de Carlos Drummond de Andrade
(Frederick; Mariuzzo, 2015,
online
). Segundo esclarece Regina Bertola, “queríamos
contar a história dele desde a infância até a velhice e fomos costurando isso por
meio dos poemas” (Bertola, 2015). O sucesso do espetáculo com as inúmeras
viagens permitiu aos integrantes do grupo definirem se iam viver de teatro ou não.
Para um dos principais fundadores e encenadores do grupo Ivanée Bertola,
falecido em 2003, o Grupo Teatral Ponto de Partida poderia ser pensado a partir
da ideia de que todos os trabalhos necessários deveriam ser realizados pelos
próprios membros do grupo e, para isso, tornava-se cada vez mais necessário que
cada membro se especializasse nas atividades artísticas, técnicas e de produção
.
Portanto, ao especializar seus próprios membros, o Grupo reforça sua ideia
inicial: a de que sua criação estava pautada na transformação cultural da cidade e
de seus membros. É justamente esse espírito que auxilia o grupo a existir e resistir
como um grupo permanente e itinerante, pois ao se localizar numa cidade do
interior e ter como objetivo a transformação local, sempre fora exigido ao grupo a
realização de longos deslocamentos. Para isso, Ivanée Bertola sempre afirmava
que era importante que o grupo fosse forte, inclusive economicamente (Bertola
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10
apud
Valle, 2005, p. 47).
Ao decidir que seria também um grupo itinerante, o Ponto de Partida criou
dois projetos: O projeto de Consolidação e o de Ampliação de Mercado. O projeto
de Consolidação consistia em voltar às cidades em que o grupo se apresentou
para consolidação de sua imagem para o público. Por sua vez, o projeto de
Ampliação acontece de duas formas: ocasional (por convites) e proposital (pela
escolha do local que interessa ao grupo). Normalmente, quando acontecia um
convite aproveitava-se para fazer também um avanço proposital e o grupo
necessitava de dispor sempre de repertório para fazer os avanços (Valle, 2005).
Além dessas ações de produção pensadas a partir dos projetos de
Consolidação e os de Ampliação, para manter o grupo de modo sustentável, os
próprios artistas criaram uma rede de apoio, o Clube dos Amigos do Ponto de
Partida (CAPP) ainda nos anos de 1980, quando os membros do grupo saíam de
porta em porta vendendo ingressos. Em um primeiro momento, comercializavam
ingressos de outros artistas e/ou grupos e depois passaram a vender os ingressos
dos próprios espetáculos do grupo. Hoje em dia os “captados” contribuem
anualmente com o grupo e podem lançar esses valores no seu imposto de renda.
Ao se tornarem “captados”, os amigos do CAPP recebem em troca convites e
ingressos de espetáculos e ações que o grupo realiza.
Como se fossem sócias do grupo, centenas de pessoas da comunidade
contribuem anualmente para as atividades do Ponto de Partida. As contribuições
acontecem no mesmo formato que uma empresa, ou seja, quem decide ajudar
pode fazer deduções no imposto de renda. Afora o apoio financeiro, o objetivo
inicial era, segundo informa o
site
do grupo, despertar a consciência da importância
de fazer parcerias com a sociedade, de modo que as pessoas percebessem que
podem contribuir efetivamente para que mudanças impulsionadas pela arte, pelo
teatro e pela música possam acontecer. Portanto, é mais uma vez, a parceria entre
o Grupo Teatral e a comunidade que auxilia a manutenção de parte das atividades
artísticas do grupo.
Em uma das montagens, intitulada
Presente de
(2013-2014), o grupo iniciou
uma extensa pesquisa sobre músicas tradicionais brasileiras, passando pela
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memória indígena, africana e pelas cantigas das lavadeiras na beira do rio com
vistas a trabalhar em parceria com o coro dos Meninos de Araçuaí, formado por
crianças entre 7 e 16 anos (Figura 1).
Figura 1 A peça
Presente de Vô
,
montada com a comunidade de Meninos de Araçuaí, do Vale do
rio Jequitinhonha. Foto: Waldir Damasceno, 2013. Cortesia do Grupo Estação Ponto de Partida.
Todo o processo de pesquisa resultou no espetáculo de 80 minutos.
Durante um ano e meio, o Grupo fez pesquisa com os avôs e avós dos meninos e
meninas de Araçuaí, pegando histórias e canções que vão sendo reveladas a partir
de um baú de memórias, ao longo do espetáculo, no ritmo dos tradicionais
“causos” mineiros. A mensagem é que as músicas, assim como as memórias, têm
que ser contadas e recontadas para não morrerem. “A construção do espetáculo
é um trabalho no qual todo o grupo participa, ninguém recebe um texto pronto.
Todo o processo depende de muita improvisação até chegar ao formato final”,
como informou a encenadora (Bertola
apud
Frederick; Mariuzzo, 2015). É relevante
ressaltar que esse espetáculo, de certa forma, corrobora com as ideias de diálogo
e transformação da comunidade local (Figura 2).
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Figura 2 Cena de
Presente de Vô
, com a comunidade de meninos do Araçuaí do Vale do
Jequitinhonha. Foto: Guto Muniz, 2013. Cortesia do Grupo Estação Ponto de Partida.
As crianças que participaram do espetáculo são oriundas da cidade mineira
de Araçuaí. Essas crianças passaram a morar na cidade de Barbacena para estudar
e para participar de uma formação artística proporcionada pelo Grupo Teatral
Ponto de Partida e acabaram sendo integradas à comunidade local e aos espaços
artísticos do grupo.
O Ponto de Partida atualmente utiliza dois espaços distintos para
administração e atividades de formação e artísticas. No prédio da Biblioteca
Municipal da cidade uma sala na qual funciona a parte administrativa desde
2004 e fica localizada no centro da cidade. O outro espaço, cedido ao grupo em
1999, é a antiga Sericícola a Fábrica de Seda, na qual funcionam a escola de
música, os espaços para ensaios e apresentações, o estúdio de música e os jardins.
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Sobre o patrimônio industrial da antiga Sericícola
O encerramento das atividades fabris da Estação Sericícola, em 1973, ocorreu
devido à concorrência do mercado nacional, principal consumidor da seda
produzida na Estação, com a seda sintética vinda da China. Desde então, o
conjunto industrial teve outras ocupações efêmeras até ser tombado em 2004
pelo município de Barbacena e foi, aos poucos, sendo ocupado pelo Ponto de
Partida.
Em 1998, o Grupo assumiu o primeiro casarão como sede de suas criações
teatrais e, aos poucos, foi ficando responsável pela preservação daquele
patrimônio. Graças à aliança, à determinação, ao compromisso e ao trabalho do
grupo de artistas da comunidade, das empresas que patrocinam o grupo e ao
poder público, o projeto de restauração foi muito bem conduzido. Conforme
entrevistas realizadas com os três arquitetos-cenógrafos Tereza Bruzzi, Alexandre
Rosset e Luciana Damasceno, as intervenções duraram dezessete anos. Tereza
Bruzzi enfatiza como foi a decisão de realizar as obras de reabilitação da antiga
Sericícola.
Em 1998, quando montávamos o espetáculo A
Roca - História de
Mulheres
, o terceiro edifício, de um conjunto de quatro, foi emprestado
ao grupo Ponto de Partida para montarmos a cenografia e ensaiar. A partir
daí o grupo não saiu mais de lá, virando a sede artística. Foi o início da
saga de cuidar daquele patrimônio. Na época, havia uma invasão no
segundo edifício (que hoje é a Bituca - Universidade de Música Popular);
o primeiro era a Secretaria de Agricultura (do Ministério da Agricultura,
que é a dona do conjunto) e no último prédio funcionava o DETRAN da
cidade. Depois, quando o Ponto de Partida conseguiu a cessão de uso do
edifício invadido, começamos a executar a restauração do imóvel. Em
2015, terminamos a restauração do último prédio que se tornou a Casa
Palavra, que é a sede administrativa do grupo no andar térreo, um
restaurante e uma biblioteca, no andar superior, abertos ao público
(Bruzzi, 2022).
A partir daquela época, o grupo assumiu o conjunto de pavilhões como um
equipamento cultural que inclui a Sede Artística (Figura 3), a escola Bituca9 (Figura
9 O nome da
Bituca Universidade de Música Popular
é uma homenagem a Milton Nascimento o
Bituca
padrinho do projeto. Os alunos trabalham com o processo de formação integral, com opção de aprender
entre 11 instrumentos, além de canto, engenharia de som & produção, afinação & restauração de piano.
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4), e a Casa Palavra (Biblioteca), inclusive utilizando a mão de obra da comunidade
para recuperar os jardins da antiga Fábrica de Seda.
Figura 3 Pavilhão da fábrica com arquitetura restaurada e sede do Grupo Estação Ponto de
Partida, Barbacena, MG. Foto: Gabriel Castro, 2015.
Figura 4 Outro pavilhão da fábrica com arquitetura restaurada e sede da Bituca Universidade de
Música formada pela comunidade de Barbacena, MG. Foto: Gabriel Castro, 2015.
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Conforme explicou Tereza Bruzzi, a comunidade trabalha com amor para
preservar a área, atuando não nas atividades artísticas, mas também na
sustentabilidade do antigo complexo industrial.
Precisamos falar que o Grupo não para, atualmente cuida da área verde
no entorno, que se transformou numa área de preservação das espécies
locais, com forte envolvimento da comunidade. Importante falar que eles
possuem uma cessão de uso dos imóveis, mas a propriedade continua
sendo do Ministério da Agricultura (Bruzzi, 2022).
No processo empregado nas obras de conservação dos edifícios, os
arquitetos-cenógrafos explicaram:
Procuramos preservar as características e qualidades originais dos
prédios, as que estavam reconhecíveis ou em bom estado foram
reconstituídas; esquadrias, madeiramento aparente do telhado, foram
refeitos; onde não existiam vestígios ou os novos usos pediam nova
intervenção, usamos das referências estéticas e as soluções de desenho
existentes no conjunto e propusemos as soluções com novos
materiais.[...] Por exemplo, um empresário, dono de pedreira que
exporta seus produtos, ofereceu seu material ao Ponto de Partida.
Usamos os mármores respeitando a geometria original dos ladrilhos e,
também, a composição em formato de “doce de leite”, típica da época
(Bruzzi, 2022).
Os entrevistados participam formalmente do grupo desde 1998, trabalhando
nos projetos que envolvem patrimônio, arquitetura, cenografia e figurinos.
Relataram que, desde sua criação, o Ponto de Partida sempre trouxe a cidade para
perto das suas ações, estimulando a participação da comunidade em seus
projetos.
Segundo relato dos mesmos arquitetos-cenógrafos pertencentes ao Grupo,
participantes da comunidade barbacenense integram uma “ação formativa
gratuita” e ajudam o Ponto de Partida a promover o patrimônio cultural e
ambiental, desenvolvendo uma política cultural expressiva. “Num certo sentido, o
grupo assume a tarefa dupla de exercer impacto nas comunidades locais, mas
também no Estado e no País” (Bruzzi, 2022).
Além do aspecto positivo da sustentabilidade de um lindo conjunto de
prédios que estiveram desativados e agora são uma verdadeira estação de várias
O grupo Ponto de Partida: teatro e música unem comunidades em
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artes reunidas e construídas com a comunidade –, a antiga fábrica revela também
a história da imigração italiana em Minas Gerais e o desenvolvimento industrial do
início do século XX, com o início da incorporação do trabalho feminino no Brasil.
Nesse sentido, tendo restaurado as instalações da antiga Fábrica de Seda da
cidade10, o Grupo de teatro instituiu a Estação Ponto de Partida e é nesse complexo
industrial que funciona “o Centro de Formação e Produção Cultural” da Associação
Ponto de Partida. Como defende Fernanda Fernandes,
Em três décadas de pesquisa da cultura brasileira, o grupo ultrapassa os
limites de uma companhia teatral, devido à opção por criar uma estrutura
que fosse capaz de intervir no contexto de seu tempo histórico, forjando
uma configuração única que torna a Associação Cultural Ponto de Partida
responsável direta pela formação ou trabalho de mais de 200 pessoas,
entre atores, técnicos e jovens envolvidos em projetos como Meninos de
Araçuaí, Casa de Arte & Ofício e Bituca: Universidade de Música Popular
(Fernandes, 2009, p. 2).
Por fim, é importante ressaltar que foi graças à aliança estabelecida entre a
comunidade local, os empresários da cidade e do estado de Minas Gerais (com
seus patrocínios), o poder público e o Ponto de Partida, que ações como a
restauração dos edifícios da Sericícola e seu entorno, dando-lhes outras
funcionalidades vinculadas ao teatro, à música, à dança é às artes visuais, puderam
e ainda podem ser realizadas na cidade de Barbacena. O trabalho na Sericícola é,
portanto, a materialização efetiva da transformação local que o grupo Ponto de
Partida foi capaz de realizar na sua comunidade.
Conclusões
A análise aqui apresentada é parte de uma pesquisa mais abrangente sobre
as práticas artísticas, em especial o teatro e o patrimônio industrial apropriado.
Comprovou-se que a experiência introduzida pelo Grupo Estação Ponto de Partida
se destaca pela possibilidade da intensa participação da comunidade de
10 Em 1915, a infraestrutura da Estação permitia a fabricação de vestidos de seda, coletes, echarpes e meias.
Os principais prédios da fábrica, que permanecem erguidos, eram destinados à Sessão Experimental, à
Escola de Sericicultura, à Secretaria e ao Departamento de Fiação e Tecelagem (Romano, 2019, p. 20).
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Barbacena e pela promoção da coesão social com base na experiência coletiva,
tal como preconizado por Cruz, Bezelga e Menezes (2020). Utilizando as artes
como motor para a mudança cultural e social, o Grupo prepara jovens e adultos
para o exercício do teatro, da música, da dança e da cidadania.
Além da relevante contribuição para a cultura da cidade de Barbacena, o
trabalho para preservar as instalações industriais da antiga Fábrica de Seda da
cidade e ali instalar a Casa do Ponto, a Bituca - Universidade de Música Popular, e
a Casa Palavra, foram experiências comunitárias inéditas. Neste estudo sobre a
relevância das práticas artísticas para a comunidade, entende-se que a
materialidade das estruturas industriais que tiveram um significado expressivo
para o mundo do trabalho por meio de ações humanas contemporâneas,
obtiveram um resultado benéfico para a memória e para o patrimônio industrial,
tanto material quanto imaterial.
Diante do exposto, acreditamos que o grupo permanente e itinerante Estação
Ponto de Partida seja um grupo de teatro na comunidade
,
segundo a classificação
de Nogueira
(2007 e 2008),
pois um dos interesses é a transformação dos
membros do grupo e da cidade em que ele nasceu. O Grupo Estação Ponto de
Partida realmente cumpre seu objetivo de transformação cultural local não
somente com seus espetáculos, mas também com as Residências Artísticas que
cria, com os espetáculos de outros artistas ou companhias, sempre com a
participação intensa da comunidade da cidade de Barbacena.
Agradecimentos
Agradecemos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo fomento, assim como aos membros do
Grupo Estação Ponto de Partida e demais integrantes que concederam entrevistas
e aos quais também agradecemos a cessão de uso das figuras, em especial à
arquiteta-cenógrafa Tereza Bruzzi e ao ator e cantor Pablo Bertola.
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Referências
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Recebido em: 30/12/2023
Aprovado em: 06/01/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br