A
práxis
teatral e suas raízes visuais: Kane, Maeterlinck e o pós-dramático
Eduardo Tudella
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-27, dez. 2023
numa peça. A extensão da imagem criada por Maeterlinck, da qual Szondi
menciona fragmentos, está repleta de provocações que remetem à luz:
Uma floresta do norte, muito antiga, de aparência eterna, sob um céu
brilhantemente estrelado. No centro, e de frente para as profundezas da
noite, está sentado um padre muito velho, envolto numa grande capa
preta. Suas costas e cabeça, ligeiramente voltadas para cima e
mortalmente imóveis, repousam no tronco de um enorme e imenso
carvalho. O rosto tem uma lividez imutável de cera, onde os lábios roxos
estão entreabertos. Olhos mudos e fixos não olham mais para o lado
visível da eternidade e parecem ensanguentados sob um grande volume
de dores e lágrimas antigas. Os cabelos, de uma brancura grave, caem
em mechas duras e raras no rosto mais iluminado e mais cansado que
tudo ao seu redor, no silêncio atento da mesma floresta. Mãos finas estão
rigidamente presas às coxas. À direita, seis velhos cegos estão sentados
em pedras, tocos mortos e folhas. À esquerda e separadas deles por uma
árvore arrancada e pedaços de pedra, seis mulheres, também cegas,
estão sentadas diante dos velhos. Três delas oram e lamentam com voz
surda e quebrada. Outra é muito idosa. A quinta, numa atitude de
demência muda, tem uma criança adormecida sobre os joelhos. A sexta
é uma jovem luminosa, cujos cabelos inundam todo o seu ser. Elas, como
os velhos, usam roupas largas, escuras e uniformes. A maioria espera,
cotovelos apoiados nos joelhos, rosto entre as mãos; e parecem ter
perdido o hábito do gesto inútil e já não voltam a cabeça para os
murmúrios abafados da ilha. Grandes árvores sepulcrais, teixos,
salgueiros, ciprestes, cobrem-nos com as suas sombras fiéis. Um tufo de
asfódelo longo e doente floresce perto do padre durante a noite. Há uma
escuridão profunda, apesar do brilho da lua, que aqui e ali, tenta tirar, por
um momento, a escuridão da folhagem (Maeterlinck, 1890, p. 75-76).
Ewald Hackler, em seu artigo não publicado que trata de tangências entre
Maeterlinck e Samuel Beckett (1906-1989), enfatiza a especificidade dramatúrgica
da qual o texto
Os cegos
está impregnado. Segundo Hackler (1983, p. 25), a peça
não inclui um “enredo”: “[...] o guia de um grupo de cegos, um padre, havia morrido
durante uma excursão pela floresta; os cegos sentam-se ao redor do padre morto
e aguardam seu retorno” Hackler (1983) estabelece uma primeira comparação
entre Maeterlinck e Beckett apontando a semelhança com
Waiting for Godot
(1948/1949): “[...] a categoria da ação, no drama, é substituída pela categoria da
situação, pela descrição da condição” (Hackler,1983, p. 25). E complementa a
observação: “O drama como espaço tradicional de ação perdeu sua função original.
Les aveugles
não é mais drama, no sentido grego de dran (δρᾶ
μ
α - se é verdade
que esta palavra é de fato a origem do substantivo 'ação')" (Hackler, 1983, p. 25).
Há uma sugestão implícita da raiz daquilo que seria chamado
teatro do absurdo
.