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Os paradoxos de uma pedagogia teatral
contracolonial
Raimundo Kleberson de Oliveira Benício
Para citar este artigo:
BENÍCIO, Raimundo Kleberson de Oliveira. Os paradoxos
de uma pedagogia teatral contracolonial.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1,
n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0112
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Os paradoxos de uma pedagogia teatral contracolonial
Raimundo Kleberson de Oliveira Benício
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-25, abr. 2024
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Os paradoxos de uma pedagogia teatral contracolonial1
Raimundo Kleberson de Oliveira Benício2
Resumo
Este trabalho apresenta algumas metodologias de ensino de teatro antirracistas
desenvolvidas e pensadas no diálogo entre docente e discentes de turma
universitária. Para tal, um apoio em epistemologias atuais para propor uma
pedagogia teatral contracolonial que centre nas subjetividades pedagógicas e
criativas da turma. Por fim, o trabalho apresenta contribuições para pensar numa
pedagogia do teatro e seus métodos de ensino de forma expandida e contracolonial.
Palavras-chave
: Contracolonial. Pedagogia do teatro. Pedagogia expandida.
The paradoxes of a countercolonial theatrical pedagogy
Abstract
This paper presents some anti-racist theater teaching methodologies developed and
thought in the dialogue between teachers and students of university classes. To this
end, there is a support in current epistemologies to propose a countercolonial
theatrical pedagogy that focuses on the pedagogical and creative subjectivities of
the class. Finally, the work presents contributions to think about a pedagogy of
theater and its teaching methods in an expanded and countercolonial way.
Keywords
: Countercolonial. Pedagogy of theatre. Expanded pedagogy.
Las paradojas de una pedagogía teatral contracolonial
Resumen
En este artículo se presentan algunas metodologías de enseñanza del teatro
antirracista desarrolladas y pensadas en el diálogo entre docentes y estudiantes
universitarios. Para ello, existe un apoyo en las epistemologías actuales para
proponer una pedagogía teatral contracolonial que se centre en las subjetividades
pedagógicas y creativas de la clase. Finalmente, el trabajo presenta aportes para
pensar una pedagogía del teatro y sus métodos de enseñanza de manera expandida
y contracolonial.
Palabras clave
: Contracolonial. Pedagogía del teatro. Pedagogía expandida.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Ariela Fernandes Sales é Graduada em
Letras - Português e Comunicação Social (Publicidade). Mestre em literatura na UFPB e Doutora em teoria
literária pela UfPe.
2 Doutorando e Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Licenciado em Teatro
(UFBA). Bolsista. (CNPq) Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Artista-professor-
pesquisador-místico. kleberbeniciop@gmail.com.
https://orcid.org/0000-0002-4284-8953 https://orcid.org/0000-0002-4284-8953
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Se você foi colonizado e isso te incomoda, você vai precisar
lutar para se descolonizar e descolonizar os seus.
Isso é a função da decolonialidade.
(Nêgo Bispo, 2023).
A proposta deste texto é a exposição e reflexão de metodologias antirracistas
[re]configuradas e desenvolvidas por mim enquanto professor universitário da
Universidade Regional do Cariri, oriunda de reflexões da disciplina Pedagogias do
Teatro II, que tem como ementa o teatro como prática político-pedagógica. Trata-
se de um estudo teórico e prático das metodologias de ensino de teatro: Peças
Didáticas (Brecht, 1992) e Teatro do Oprimido (Boal, 1982). Inicialmente tenho como
proposição dialogar com algumas epistemologias atuais, na tentativa de utilizá-las
como suporte reflexivo para as questões teórico-práticas. Por fim, o trabalho
apresenta contribuições para pensar numa pedagogia do teatro e seus métodos
de ensino de forma expandida e contra o colonial.
O estado de ensino atual nos exige uma [re]atualização de nossas práticas
artísticas e teóricas. As teorias, bibliografias de autoras e autores considerados
“intocáveis” - da episteme ocidental, eurocêntrica e colonial - parecem não dar
mais conta da imensa diversidade cultural das práticas educacionais e artísticas
que aparecem com maior força na atualidade brasileira com seu discurso de
valorização e descentralização do saber. Tenho me interessado como pesquisador
em um acentuamento de saberes em busca de uma
pedagogia teatral de si
.
Por isso, venho considerando a necessidade do registro e a importância da
vivência docente das minhas disciplinas. Neste trabalho, os aportes teóricos são
mais como suportes para serem questionadas, redimensionadas e descolonizadas,
que para haver uma “atualização” da prática de ensino, acredito que seja
necessária uma emergência pela valorização de nossos saberes filosóficos das
práticas artísticas-pedagógicas desenvolvidas em sala de aula, em consonância
com a turma discente, criando novas paragens e epistemes que dão conta dessas
produções.
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A expansão de temas atuais, os avanços tecnológicos, a corrida pela
preservação do planeta e meio ambiente, os processos de mediações virtuais e
presenciais, as discussões acerca do racismo estrutural, das questões de gênero
e sexualidade, da interseccionalidade, do lugar de fala, das pedagogias
negrorreferenciadas, da educação ecológica são cada vez mais presentes em
pesquisas atuais. Tais temáticas nos fazem questionar sobre a emergência de uma
educação pedagógica descentralizada dos eixos tradicionais de saberes, muitas
vezes europeizantes e, portanto, violentas, que invisibilizam questões de classe,
raça, gênero/sexualidade.
O alargamento de temas não se inicia apenas na prática docente, mas na
necessidade de desconstruir o pensamento e saber hierárquico colonial dentro da
própria universidade. Na medida em que haja uma revisão das referências
clássicas-básicas das ementas do currículo, a expansão pode acontecer com mais
afinco. Tais teorias clássicas parecem não dar mais conta da atual realidade que
vivenciamos. Precisamente porque o grande desafio para repensar o ato político
da descolonização sugere uma necessidade de pensar também as paragens das
poéticas e das estéticas cênicas, principalmente as práticas artísticas/pedagógicas
docentes, para que haja, então, um possível confronto ao silenciamento das
produções pedagógicas e artísticas, em seus diversos processos de apagamento
epistêmico e material.
Para pensarmos em poéticas e estéticas descoloniais seria preciso que
déssemos conta, desde nossas pedagogias e metodologias, de refletir
sobre apagamento espistêmico e material em cena das questões de
gênero, raça, etnia, classe, orientação sexual, etc. que permeiam o
entorno em que estamos inseridas. Não se trata simplesmente de termos
‘diversidade em cena’ nem de abordar esse apagamento como
‘conteúdo’. A colonialidade do poder, do saber e do ser, da raça e do
gênero os efeitos estruturantes do colonialismo em nossas
subjetividades têm sim a ver com como levamos o que levamos para
a cena (Leal; Alcure, et al, 2017, p. 27).
Não apenas o que levamos para a cena, nem a abordagem do conteúdo como
resposta ao possível processo de descolonização ou simplesmente apenas discutir
sobre esses processos tornará nossa prática docente descolonial. Precisamos
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proporcionar um processo de ensino-aprendizagem que interseccione diversas
dimensões subjetivas para vivências específicas, no intuito de romper os modos
de pesquisar-criar-ensinar baseados em modelos eurocêntricos, ocidentais e
coloniais.
Mas na prática é muito comum nos depararmos com a pretensão, muitas
vezes, de “encaixar” ou “enquadrar” nossas vivências, produções intelectuais-
filosóficas, artísticas em epistemologias hegemônicas do conhecimento ocidental,
eurocêntrico e colonial. Podemos perceber, assim, que é possível que exista um
pensamento internalizado do qual somos reféns, e que de alguma forma nos faz
disseminadores e disseminadoras da colonialidade que está implícito em
determinadas escolhas epistemológicas na docência. Para Adilson Florentino
(2022, p.5):
O fazer decolonial não implica o (
sic
) processo de destruição dos
conceitos chave da modernidade, mas sim, na reconfiguração de sua
colonialidade oculta. Nesse ponto de vista, o processo decolonial não
deve estar fundamentado em uma metodologia de investigação, pois
conceber uma metodologia decolonial torna-se um paradoxo na
propriedade de seus termos, principalmente, porque toda metodologia
pressupõe uma dimensão colonizadora.
Pensando nessa colonialidade oculta, o fazer e a prática do descolonizar
sugerem uma referência de uma dimensão colonizadora, justamente porque
utilizamos e tentamos aproximar nossas práticas com questões existentes,
desenvolvidas e defendidas; daí reside um paradoxo. Se por um lado temos uma
necessidade de conceber/criar uma metodologia autônoma, por outro, estamos
reféns de uma referencialidade difundida das epistemologias hegemônicas. Esse
processo também é fruto do desenvolvimento da modernidade que se reafirmou,
trouxe o registro e disseminação da produção intelectual, criando assim, uma
cultura que é seduzida por seus conceitos deslocados da realidade brasileira.
Desta forma, “os conhecimentos dos colonialistas aparecem de forma sedutora,
que se busca imitar” (Oliveira; Candau, 2010, p.21).
Podemos perceber, assim, que existe um incentivo implícito de
hierarquização dos saberes, ao nos depararmos com a rejeição/silenciamento,
subalternização ou enquadramento de nossas reflexões, práticas pedagógicas e
artísticas em uma taxonomia de dominação hegemônica epistêmica. O que ponho
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em evidência diante disso é a necessidade de não negar tais referências, mas
valorizar e recriar nossas próprias teorias para contextualizar a nossa prática de
ensino. Até quando existirá uma “fetichização epistêmica” da colonialidade? Será
que sempre teremos a necessária
poética do enquadramento
para registrar,
refletir, produzir conhecimento e enfatizar nossas produções-filosóficas, artísticas
e práticas docentes?
Antônio Bispo3 concebeu reflexões sobre a contracolonização, modos de
contrariar o colonialismo, partindo de suas cosmovisões e experiências. Para ele,
a decolonialidade e a contracolonização possuem dimensões que não se anulam.
Mas atuam de modo distintos; enquanto uma (a decolonialidade) critica e põe em
evidência os processos de colonização, a outra (a contracolonização) atua na
nomeação de narrativas de saberes, no intuito de confrontar e de não ser
dominado (Martins; Felipe;
et al
. 2019).
O contracolonialismo é um modo de vida diferente do colonialismo. [...]
Trouxemos a palavra contracolonialismo para enfraquecer o
colonialismo. que o referencial de um extremo é o outro, tomamos o
próprio colonialismo. Criamos um antídoto: estamos tirando o veneno do
colonialismo para transfor-lo em antídoto contra ele próprio (Bispo,
2023, p. 41-42).
A contracolonialidade vinda da cosmologia do saber, assim, pode ser um
dispositivo de confronto ao colonialismo epistêmico que nomeia tudo; de tal
modo, a disseminação de uma
poética do enquadramento
”, que também copia e
quer imitar tudo epistemologicamente. Isto não quer dizer que, a
contracolonialidade não nomeia, ao contrário, ela nomeia partindo de sua
cosmologia e experiência. Na medida em que colocamos em exercício nossos
saberes e recriamos/reinventamos nossas práticas docentes colocando-os como
centro, nomeando-os, nos aproximamos do dispositivo de confronto ao
colonialismo.
Sendo assim, precisamos romper com as hierarquias dos saberes. Fortalecer
nossas produções intelectuais, artísticas, pedagógicas, sem a pretensão de
inferioriza-las ou encaixá-las nas epistemologias coloniais. Reconstruir nossas
3 Disponível em: O que é contracolonial e qual a diferença em relação ao pensamento decolonial?
(institutoclaro.org.br). Acesso em: 24 out. 2023.
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práticas e nomeá-las pode ser uma paragem de uma pedagogia contracolonial,
que atue no desvelamento e ato político de reinvenção e existência da valorização
do saber empírico de determinado contexto. Afinal, somos o futuro epistêmico das
próximas gerações.
O efeito da colonialidade está imbricado nas subjetividades pessoais
implicitamente, à medida que podemos perceber nas narrativas verbais a
necessidade de negação, inferiorização, enfraquecimento de qualquer grupo que
fuja de uma referência universal normativa. O pensamento contracolonial pode ser
constituído por meio de experiências vivenciadas pela prática docente ao
descentralizar o pensamento hegemônico da norma acadêmica científica, propor
outras construções de saberes e fuga da normatização epistêmica do
enquadramento. Tudo isso ocorreria de modo a redimensionar e proporcionar uma
busca e um incentivo do desenvolvimento da poética discente e artística.
Têm crescido fortemente no Brasil movimentos que ganham força ao
enaltecer suas práticas e poéticas artísticas, ao desconstruir a hegemonia do
pensamento privilegiado eurocêntrico, como principal lócus central epistêmico,
descortinando suas experiências e lugar de fala no desenvolvimento de saberes
culturais. O lugar de fala tem se tornado um dispositivo pedagógico potencializador
para enxergar um lócus cultural-social de determinado grupo ou pessoa, capaz de
produzir um processo reflexivo-crítico de atravessamento, que ressignifica as
lógicas de opressões e as relações do ser oprimido na sociedade.
Lugar de Fala como Lócus de Uma Pedagogia Contracolonial
Para Djamila Ribeiro, pensar o lugar de fala é “como refutar a historiografia
tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social.
Quando falamos de direito à existência digna, à voz, estamos falando de
lócus
(
sic
)
social, de como esse lugar imposto dificulta a possibilidade de transcendência”
(Ribeiro, 2017, p.21). Desse modo, o lugar de fala parte do pressuposto de uma
localização social, advinda da experiência pessoal ou de determinado grupo.
Porém, isso não equivale a negar uma série de fatores e problemas sociais que
determinado grupo ou pessoa sofre naquele contexto.
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Mais do que expor tais experiências advindas de um ambiente de opressão,
é compreender o lócus social em que, aquele grupo ou pessoa vive, na tentativa
de romper, com uma relação de poder implícita que atua massacrando o corpo
social. “O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar.
Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas e
outras perspectivas” (Ribeiro, 2017, p. 39-40). É neste ínterim que o lugar de fala
pode ser confundido com a representatividade. Djamila Ribeiro (2017) exemplifica
que uma pessoa travesti pode não se sentir representada por um homem branco
cis, mas tal homem pode expor suas opiniões a partir do seu lugar social, mesmo
que ele tenha uma visão opressora. A partir do lugar de fala, os processos
mediativos podem acontecer, na medida em que é possível enxergar o lócus social
e romper com a hierarquia e a hegemonia opressora.
Todas as pessoas possuem lugares de fala, pois estamos falando de
localização social. E, a partir disso, é possível debater e refletir
criticamente sobre os mais variados temas presentes na sociedade. O
fundamental é que indivíduos pertencentes ao grupo social privilegiado
em termos de
locus
social consigam enxergar as hierarquias produzidas
a partir desse lugar e como esse lugar impacta diretamente na
constituição dos lugares de grupos subalternizados (Ribeiro, 2017, p. 47).
O compartilhamento de experiências não isenta os atos de violências, uma
pessoa pode não se sentir representada por tal comentário, mas tal comentário
advém de um lugar de formação pedagógica opressora que contribuiu para sua
construção enquanto sujeito. Enxergar esse
lócus
ou tentar compreender a
formação cultural é tentar criar um diálogo através dos processos mediativos, para
que, possivelmente, o sujeito tente romper com as hierarquias da opressão
narrativa em seus discursos. Por isso, precisamos entender como cada experiência
pode combater as lógicas de opressão de determinado lugar, ao invés de
reproduzir narrativas que oprimam. Com isso, é necessário também repensar o
modelo das estratégias educacionais para o ensino em qualquer nível, para que se
torne relevante o descortinamento de uma gama de possibilidades que incitem o
diálogo, com a diversidade e interculturalidade dos sujeitos.
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Para pôr em prática uma educação pedagógica contracolonial, torna-se
fundamental compreender as lógicas da hegemonia científica dominante, as
discussões em torno da utilização de tais epistemologias como
lócus
principal, a
descentralização dos conhecimentos, e inferioridade das produções
científicas/artísticas discentes e docentes, o confronto e a reformulação da
curricularização e das práticas pedagógicas, mas:
O que temos na prática são currículos ainda tradicionalistas, positivistas,
lineares e com perspectivas colonialistas (sumariamente
embranquecidas) em seus conteúdos, abordagens metodológicas e
propostas pedagógicas. Ou seja, uma dificuldade em atender
plenamente a proposta apresentada pela legislação nacional, seja no
atendimento do desenvolvimento da diversidade e pluralidade de saberes
e conhecimentos étnico-raciais, seja na construção de práticas
pedagógicas menos, que venham a propor a construção de currículos
mais enegrecidos e decoloniais, tanto na educação básica quanto no
ensino superior (Ramos; Siqueira, 2022, p.82-83).
A decolonialidade nasce dentro das instituições de ensino e dos Movimentos
Sociais, concebe epistemologias outras, pluraliza as vozes e afirma práticas de
existências. A decolonialidade é parte de um pensamento epistemológico, mas ela
é, sobretudo, uma prática política de existência. O compromisso a partir da
epistemologia é conceber uma transformação do conhecimento para que
possamos afirmar a posição dos sujeitos colonizados como produtores de saberes
e modo de vida. É transformar a ideia de universalização do sujeito branco em
pluralização dos sujeitos, sujeitas e sujeites. Com isso, a decolonialidade é mais do
que uma atitude crítica que expõe uma revisão da centralização dos saberes
epistêmicos, funciona como aparecimento e valorização epistêmica de
determinado grupo.
Podemos pensar no desenvolvimento de uma prática pedagógica teatral
contracolonial como dispositivo que sugere reconhecer os saberes e cosmovisões
dos sujeitos como centro, na mesma dimensão de igualdade como um ato político
de [re]existência. Ao problematizar e pôr em defesa o reconhecimento de
epistemes que vão na contramão da hegemonia, do silenciamento e apagamento,
podemos contrariar e questionar os processos pedagógicos colonialistas. Assim,
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podemos colocar em prática uma criação e valorização de outras perspectivas
educacionais emergentes, sejam artísticas, narrativas e oralidades oriundas do
contexto e das localizações vindas da práxis docente/discente.
Para Reinaldo Fleuri e Juliana Okawati (2021), é necessário pensar novas
pedagogias metodológicas em qualquer modalidade de ensino, “da mesma forma
que a colonialidade tem suas nuances e facetas para se impor aos sujeitos
tradicionalmente subalternizados, é necessário que se entenda a capacidade de
articulação da concepção de decolonialidade no enfrentamento dessa estrutura
hegemônica” (Fleuri; Okawati, 2021, p.53).
Desse modo, a proposta de uma Pedagogia Teatral Contracolonial tem como
objetivo produzir práticas pedagógicas e artísticas que centram nas subjetividades,
produções pessoais, valorização dos saberes e diversidade cultural do sujeito
dentro e fora da sala de aula. Combater a poética do silenciamento, da
inferioridade epistêmica, é pôr em jogo um reconhecimento da prática do
pensamento crítico, onde possivelmente a transformação da realidade do
contexto de ensino, através do registro das experiências dos processos educativos,
pode acontecer.
Propostas Pedagógicas Textuais Contracoloniais
A seguir, compartilho algumas propostas pedagógicas desenvolvidas na
esfera do teatro como práticas político-pedagógicas, a partir das metodologias de
ensino de teatro: Peças Didáticas e Teatro do Oprimido, como parte do ementário
da disciplina Pedagogias do Teatro II. Que ocorreu da seguinte forma: momentos
de discussão sobre os gêneros citados, através de seminários, Discussão sobre a
criação de uma Pedagogia Teatral Contracolonial dos próprios discentes e
Experimento Cênico apresentado em Mostra Didática no final do semestre letivo
do curso de licenciatura em Teatro da Universidade Regional do Cariri.
Como a ementa da disciplina sugere que sejam trabalhadas peças Didáticas,
partimos de uma leitura de
Dansen
e o
Julgamento de Luculos
de Bertolt Brecht
(1992), escolhidas por serem curtas, na tentativa de aproximação do
desenvolvimento de uma aula para o Ensino Médio, com duração de 50 minutos.
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Durante a leitura, propus que a turma selecionasse frases dos respectivos textos
e em seguida fizesse um resumo das cenas. Ao final, criamos uma roda de
conversa sobre o exercício proposto.
Estrutura do Exercício Pedagógico:
Objetivo
: criação textual.
momento 1:
seleção de frases do texto.
momento 2:
realização de resumos e criação de desenhos.
momento 3:
criação de narrativas verbais.
Minha proposta de exercício foi: por meio da seleção de frases da dramaturgia
escolhida, cada pessoa escolheu uma que mais chamou a atenção. Em círculo,
foram distribuídas folhas em branco nas quais anotamos apenas uma frase
escolhida dentre muitas anotadas. Escrevemos e repassamos cada folha para a
pessoa do lado. A ação seguinte consistiu no acréscimo de outra frase abaixo da
primeira e assim por diante. Após isso, a folha foi repassada novamente para outra
pessoa. O jogo terminou quando todas as folhas estavam completas pelas frases
de cada pessoa do círculo. Ao término, lemos toda a textualidade que foi escrita.
Por fim, propus que pensassem em uma metodologia partindo da textualidade
criada. A seguir apresento algumas destas textualidades e metodologias pensadas
pela turma.
Soldados: Glória não vale nada, o que vale é viver! (1ª- Frase escolhida da peça
didática
-
O Julgamento de Luculos
)
Frases criadas
: Mas de que forma viver? Como saber viver se sempre passamos a
vida esperando comandos?
Para nós é fumaça, que só serve para indicar onde houve um incêndio
Faça a chama da vontade queimar em seu peito
Mas nunca deixe que apague
A luz desta chama é mística
Me prende a essa magia
São as incertezas que me foram trazidas
Continuam aqui, como se livrar delas?
Que as deixaram partir
A despedida é sempre um novo recomeço
Sempre um ciclo encerrado
Cada novo ciclo é contingente
Ciclos não duram para sempre
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Justamente por isso, são ciclos, começam e terminam, mas não necessariamente
entendemos isso!
Por isso é tão necessário o luto. Passamos a entender cada coisa em cada fase
dele
Não há ninguém para me receber?
Já não me importo com qualquer um...
Já sei como me tratam em frente aos outros.
Mas nada serei nada!
(2023)
Figura 1 Turma da disciplina de Pedagogias do Teatro II,
realizando exercício de construção textual. Foto: autor
Os escravos estão só com o pé na vida. (Frase escolhida da peça didática -
O
Julgamento de Luculos
)
Frases criadas: Sua vida é quase uma morte
Os pós da vida para a morte é um passo tão pequeno
Não assustam ninguém: as frases deles
Um guerreiro que não teme é um guerreiro morto
As forças acabam durante a guerra essa é a questão
Eu não aguento mais tanto caos
Minha mente não aguenta tal solidão
Assusta saber que sou só, mesmo rodeado de outras mentes, na minha, só eu
habito
E como pode, se só eu habito nela, não consigo organizar ou até mesmo controlar
meus próprios pensamentos
Ao nada com ele, ao infinito e além
O sol a terra e o universo
Que ilumina minha vela
F
i
g
u
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a
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Qual chama eu quero acesa?
O que me fará mantê-la, em meio a tantas incertezas? Talvez falhe
E se falhando ainda estiver disposto, acho que falhei mais vezes
Sob a presidência do juiz dos mortos. (2022)
Metodologia Pensada
: Usar essas frases sem criar uma conexão direta entre
elas, desenvolver um pouco cada frase e achar um sentido que possa conectar
uma a outra; criar várias narrativas em um mesmo contexto de acordo com a frase
escolhida; desenvolver uma história com 3 frases. Improviso, com tema de uma
das frases. (Alunx)
Da vida para a morte (Frase escolhida da peça didática -
O Julgamento de
Luculos)
Frases criadas: Levamos esse fardo, sem recusa
Há muito tempo o nosso tempo não é nosso
Ignoto é o fim do nosso caminhar
Obedecemos a voz nova assim
Como as velhas: pra que perguntar?
Os nomes potentados
Não causam nenhum temor aqui embaixo
Não temo nem temerei os Deuses
Nunca faça isso é desumano
Faço sim porque sou teimoso
O medo não é um problema para mim
Existe em mim, mas não é o meu eu por completo
Pois sentimos no banco
Aguardando apenas os comandos para saber o que fazer
Senti vontade de olhar novamente
O olhar revela mais coisas do que se imagina
Com toda certeza, diz o mundo sobre você
O que diz sobre mim?
Não acredite em algo que não saiu da minha boca
E mesmo que saia, ainda duvido às vezes
Como confiar?
Chorar de luto por mim, e aqui
E se o mar for uma piscina de lágrimas? (2022).
Metodologia Pensada
: A ideia inicial é trazer atores/atrizes em “desespero”
como se estivessem presos dentro de pensamentos sombrios. Se inicia com um
“caminhar” da personagem principal em conversação consigo própria. Enquanto
os personagens que simbolizam os pensamentos realizam danças, que
representam desespero; dançam em compasso com a textualidade narrada por
ela. Caso se encontre em um pensamento pessoal, as danças ficam mais amenas,
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caso a personagem se perca em sua oralidade, as danças ficam mais grosseiras e
ferozes. (alunX).
Estão chamando por mim (Frase escolhida da peça didática -
O Julgamento de
Luculos
)
Frases criadas: Para responder meu julgamento
Será que tantas glórias valerão aqui?
Talvez não, mas como querer uma vida sem glória, sem ganhos e sem
reconhecimento, sendo que tudo na Vida nos faz querer desejar isso?
São uma espécie de morte
Eu não sou um rei, eu não sou um Deus, eu sou pior que isso.
Suas histórias são reais, mas nunca são leais.
Suas histórias são mentiras
Não seja a realidade
Aceite, mesmo que a mude em algum momento (entenda)
E que caso mude, tente também entender o que mudou
Como na vida esperamos
A espera sempre poderá parecer interminável
Mas quando chega é inesperada
E eu me vejo naquele lugar
Eu mereço tudo o que desejo
E busco o que mereço na mesma força que desejo!
Mas se falhar, vai continuar?
Um passo, apenas.
(2023)
Como na vida esperam pela sorte (Frase escolhida da peça didática -
O
Julgamento de Luculos
)
Frases criadas: A vida só tem sentido para quem gosta dela.
Mas como gostar da vida, se ela é do jeito que é?
Como viver em um lugar cercado de dor?
Isso é a vida, se você não tá disposta...
É melhor não ficar revivendo!
Esqueça do problema alheio como os outros esquecem da sua existência.
E eu farei o que com minha vivência?
Veja como você cresceu através dela.
Será que estou certa?
Não sei...
Você precisa saber, se esforce para isso.
Eu tenho medo de ir a fundo no meu ser!
O que você tem medo de descobrir se você fizer isso?
O que eu realmente sou, o que há guardado em mim?
O que há no meu coração que tanto dói?
Talvez a mesma coisa que há no meu...
Será que somos tão parecidos assim?
Será que somos do mesmo ventre?
Será que não seria o contrário?
Tua culpa deve estar deteriorando.
Minha culpa é meu cúmplice
Pelo menos você sabe o que fez. (2023)
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Nosso tempo se esgota (Frase escolhida da peça didática -
O Julgamento de
Luculos
)
Frases criadas: Pelo simples fato de querer.
Agir por impulso, sem pensar.
É o que eu mais sei fazer.
Por que não sabe?
Todos querem que você saiba o que não te ensinaram.
E a culpa de quem seria?
Não quero acreditar que é minha.
Talvez assim, tiro um pouco do exausto peso que me culpa.
A curva da vida nunca será reta.
Seria muito mais fácil se a vida não fosse assim.
O fácil traria paz ou tristeza.
Lógico que a tristeza!
Sinto o que preciso sentir, em seguida supero.
Buscando autoconhecimento.
A vida tem mistérios que não podemos entender
O que a torna maravilhosa é isso!
E que me torna egoísta e cruel também.
Por isso, você precisa rezar e pedir forças.
Isso pode me libertar e me deixar louca.
Não terei nada que me possa tirar da insanidade.
Apenas mergulharei no vazio do mundo.
Eu fiz a mesma coisa ao mergulhar em mim mesma.
Seres humanos, outrora, já não mais seres humanos sem perceber no que se
transformara
(Frase escolhida da peça didática -
O Julgamento de Luculos
)
Frases criadas: Ela olhou para si com cautela.
Buscando entender o que era.
Mas desisti no meio do processo.
Porque eu era fraca.
Você era realmente fraca ou o mundo te fez acreditar nisso?
Fui mais fraca que o mundo, hoje pago o preço.
O que resta de mim senhor?
Só você poderá dizer
Quem te machuca merece o bem, você deseja bem para ele?
Não! Eu desejo tudo que ele me fez passar em dobro!
Sua mágoa talvez seja compreendida, mas talvez não seja certa.
Procure se livrar do que te faz mal.
Procure Deus, ele é o único que salvará todes nós déssemos inferno.
Eu duvido.
Duvidar não é uma certeza, procure saber mais.
Mais? Você está sendo rasa.
Muito para mim é pouco.
Trabalhei para ter mais, até que meus ossos virem pó.
Do pó me resta a vida...
(2023)
Outra etapa que realizamos foi desenhar a frase escolhida. Através do
desenho iniciamos uma narrativa verbal, essa narrativa foi construída e continuada
com o passar para outra pessoa. Ou seja, em círculo passamos o desenho para a
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pessoa ao lado, que propôs uma narrativa para o desenho. Nesta etapa, não
delimitamos tempo ao exercício, deixamos livre até que alguém decidiu dar um
fim à narrativa desenvolvida.
Seminários Performativos
Outra etapa da disciplina consiste na realização de seminários performativos,
que têm como intuito a criação de um jogo contracolonial a partir de um livro. Os
livros escolhidos foram: “O Que é Lugar de Fala” (2017) de Djamila Ribeiro,
“Interseccionalidade” (2019) de Carla Akotirene e “Racismo Estrutural” (2019) de
Silvio de Almeida, escolhidos por terem temáticas atuais para pensar em políticas
e pedagogias educacionais. Desse modo, os grupos apresentaram suas reflexões
contidas nas referências, que foram debatidas pela turma após suas
apresentações, bem como expostas suas propostas pedagógicas através de um
jogo contracolonial. Destaco a seguir dois deles:
Jogo
: O Que os Olhos Não Veem a Interseccionalidade Explica.
Descrição
: As e os participantes devem atravessar um percurso pelo espaço
preenchido com copos descartáveis (ou algum outro objeto), escritos com diversas
palavras como racismo, homofobia, transfobia, machismo, dentre outras. A
professora ou o professor dará indicações questionando quem vivenciou ou
presenciou alguma situação das referidas palavras. Ao vivenciar/presenciar, a
pessoa deve pegar o copo e contar quantos conseguiu adquirir ao longo do
percurso. O jogo termina com uma mediação dialógica sobre o conceito de
interseccionalidade e acerca das vivências compartilhadas.
Intuito
: Demonstrar na prática que quanto mais houver obstáculos no nosso
trajeto, mais difícil será atravessá-lo, e que existem pessoas que por serem
atravessadas por raça/gênero/classe social/sexualidade, terão mais obstáculos em
seu percurso de vida. Por isso, é necessário entender a Interseccionalidade como
lócus
pedagógico
, pois ela pode ser capaz de pôr em evidência uma encruzilhada
de experiências opressoras unificadas em um único sujeito. Segundo Carla
Akotirene (2019, p. 23), a “interseccionalidade sugere que raça traga subsídios de
classe-gênero e esteja em um patamar de igualdade analítica”, assim como é uma
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proposta de articulação metodológica, que tem como objetivo o resgate da
ancestralidade perdida de mulheres negras, para serem observados como o
racismo, o heteropatriarcado e o capitalismo atuam de modo interseccional como
força de opressão. “A interseccionalidade nos instrumentaliza a enxergar a matriz
colonial moderna contra os grupos tratados como oprimidos” (Akotirene, 2019, p.
42). Entender sobre essas questões é entender o “como”, o corpus social negro é
atravessado por diversas paragens raciais.
Jogo:
Balões de Falas
Preparação
: Jogadores na plateia
Material:
Balões (bolas de assopro, bexigas) e pincel para escrever.
Sugestão
: A professora ou o professor pode começar o jogo falando temas
atuais que fazem parte da sociedade opressora.
Avaliação
: Perceber e refletir como as/os jogadores começaram o jogo e
como concluíram. Observar se a turma entendeu sobre o lócus social do
“lugar de fala”.
Figura 2 - Exercício balões de fala. Foto: autor.
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Descrição/Instrução
: O jogo será dividido em dois momentos. No primeiro
momento, jogadores devem pensar em temas, assuntos que eles veem como “não
lugar de fala” para eles e em seguida são distribuídos balões que a serem
preenchidos e com temas escritos. Após isso, cada jogadora/jogador põe seus
balões em círculo ou local que permita que fiquem juntos. O segundo momento
será vivenciado após uma conversa e discussão do que é o “lugar de fala”. Após
conferir que todas, todos e todes entenderam o assunto, pede-se para que cada
um até o local onde deixou os balões e estoure, dando, assim, um fim ao que
ele julgava não ser seu local de fala.
“Picnic” Filosófico Experimento Cênico Pedagógico
Para a montagem do experimento cênico denominado “Picnic Filosófico”
(2023), utilizamos como referência o filme
Soft & Quiet
4 (2022), da diretora
brasileira Beth de Araújo, que trata de uma reunião de mulheres brancas para
discutir aspectos do multiculturalismo, de forma racista, heteropatriarcal e
xenofóbica. O filme apresenta diálogos violentos e jogos de cenas que entregam,
aos poucos, suas intenções absurdas do preconceito racial e xenofóbico de
mulheres brancas fascistas. Ao término da apreciação fílmica, discutimos sobre o
racismo estrutural e sobre a hegemonia do poder-branco-cis-feminino-
extremista.
Para Silvio de Almeida “O racismo é uma decorrência da própria estrutura
social, ou seja, do modo ‘normal’ com que se constituem as relações políticas,
econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um
desarranjo institucional” (Almeida, 2019, p. 33). A discriminação direta tratada no
filme põe em evidência o repúdio motivado pelo ódio gratuito e uso da violência
para o apagamento e exclusão social de pessoas pretas e subalternas articuladas
em uma segregação racial. As situações exemplificadas nas cenas do filme entram
em consonância ao que Silvio de Almeida entende por Racismo Estrutural.
4 Disponível em: SOFT & QUIET - Trailer Legendado | Novo filme da @Blumhouse da diretora Beth de Araújo |
BH Brasil - YouTube. Acesso em: 14 mar. 2024.
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Para Silvio de Almeida (2019), existem três critérios de relação com o racismo;
um relacionado à subjetividade/concepção individualista, um ao Estado e outro, à
economia. Em relação à individualista, o racismo é concebido como anormalidade,
ou seja, como patologia, que é tratado apenas como preconceito, manifestado
através da discriminação das narrativas orais. Em suas palavras, “É uma concepção
que insiste em flutuar sobre uma fraseologia moralista inconsequente ‘racismo
é errado’, ‘somos todos humanos’, ‘como se pode ser racista em pleno século
XXI?’, ‘tenho amigos negros’” (Almeida, 2019, p. 25). O autor ainda avança na
discussão, ao esclarecer que o racismo é também o resultado da materialização
institucional do Estado numa dinâmica de desvantagens e privilégios atrelados à
raça.
Assim, a desigualdade racial é uma característica da sociedade não
apenas por causa da ação isolada de grupos ou de indivíduos racistas,
mas fundamentalmente porque as instituições são hegemonizadas por
determinados grupos raciais que utilizam mecanismos institucionais para
impor seus interesses políticos e econômicos (Almeida, 2019, p. 27).
Entender o papel do Estado materializado em instituições é entender a
hegemonia política por trás da centralidade do grupo dominante no poder, que
determina padrões de exclusões racionais com base em parâmetros
discriminatórios ou que dificultem as discussões de gênero, racial e desigualdade
econômica com discursos meritocráticos e naturalização do domínio patriarcal e
branco de grupos que produzem consensos a respeito de sua dominação. Diante
de todas essas altercações em sala de aula através dos seminários performativos,
das criações dos jogos e da recepção do filme, selecionamos frases e construímos
uma textualidade inspirada e encenada em
Soft & Quiet
:
“PICNIC” FILOSÓFICO
Um grupo decide realizar um encontro para discutir filosoficamente suas ideias
“inspiradoras”.
PERSONAGENS:
MARINA
DÁRIO
LEVI
Pessoas bem vestidas e brancas.
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Todo mundo convida pessoas espalhadas pela universidade para sentarem no chão
coberto com panos, junto com um banquete de comida. (esse espaço pode ser na
própria grama do campus ou espaços alternativos) Simpatia e sorrisos são
fundamentais para o convite. É necessário perguntar - como foi seu dia? Como está
se sentindo? Tem passado bem? “Vamos nos reunir com a gente ali debaixo da
árvore para a gente pensar sobre muitas coisas”... A última pessoa chega segurando
um bolo decorativo com um símbolo nazista oculto coberto com papel alumínio. As
pessoas comem, riem, com um tempo depois, é retirado o papel alumínio e
oferecido o bolo ao público.
Figura 3 - Experimento Cênico -
PICNIC Filosófico
. Foto: autor
MARINA
- É sério isso? (se olham e sorriem)
LEVI
Por quê? Não tem nada de mais. Comam gente, essa será nossa nova rotina
semanal.
DÁRIO
hmmhhh que delicioso!
LEVI
Pessoal esse daqui é o Dário, ele está nos ajudando muito com nossas causas
e ideias.
TODO MUNDO
Seja bem-vindo, Dário.
DÁRIO
Estou muito feliz de estarmos finalmente fazendo isso, esperei muito por
esse momento... Vamos nos apresentar né, para nossas convidadas, precisamos nos
conhecer melhor. Quero dizer primeiramente que estamos aqui para nos apoiar,
através desta guerra do politicamente correto, do multiculturalismo e das lutas de
gênero, das lutas raciais, das lutas capacitistas, da retomada indígena...
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MARINA
Eu posso começar, então. Me chamo Marina e eu não tenho certeza de
estar no lugar certo, sabe.
LEVI
Não precisa ter medo de falar Marina, estamos aqui para te escutar. Por que
você veio para esse encontro?
MARINA
Assim, eu queria um conselho, sabe, algo me incomodando muito
atualmente... Recentemente uma garota no meu trabalho, sabe... Longe de mim, eu
não a odeio, mas já faz 5 anos que trabalhando nessa empresa, e recentemente
uma mulher negra novata chegou, num está nem com um ano, e foi promovida.
TODO MUNDO
: Mas isso não é justo...
MARINA
Foi assim que eu me senti.
DÁRIO
Então, a "mulata" te defendeu pelo menos? Dizendo algo do tipo, “não, mas
ela chegou aqui primeiro que eu, ela merece”...
MARINA
Não.
LEVI
Gente, ninguém vai postar nas redes sociais sobre isso, certo? Marina,
podemos recorrer. Nossa constituição foi construída e pensada para proteger gente
como você, sabia disso?
DÁRIO
Ei, levanta essa cabeça meu anjo, você é um ser humano, esses
sentimentos não são errados tá bom, não fique triste.
MARINA
Eu fiquei muita puta, então fui perguntar ao meu chefe por que ela foi
promovida e não eu. E sabe o que foi que ele me disse? que é porque ela tem um
perfil de liderança melhor que eu. Fiquei paralisada, me sentindo injustiçada, e meus
colegas de trabalho não me apoiaram, ninguém!
TODO MUNDO
: que foda isso!
DÁRIO
Cara isso é como, tipo, a diversidade cultural que na moda né. Ou a
inclusão... ou a retomada indígena, ou as pessoas se reconhecendo como “índios”!
Sem nem mesmo morar em aldeia! Vocês sabem o que quero dizer né? Tá em todo
lugar, em todo formulário, em todo concurso fudido, em quase toda página na
internet. Cada governo, cada emprego, cada país. Essas pessoas estão roubando
nosso lugar.
L
EVI
Nossa! Eu também penso assim e me sinto contemplado com suas palavras
Marina... Muito obrigado pelo seu desabafo. Eu queria acrescentar também... Vocês
sabem né, gays, lésbicas, trans, deficientes, negros, “índios”, podem se safar dizendo
coisas do tipo como: HAAA, PESSOAS BRANCAS SÃO TÃO PRIVILEGIADAS E TÃO
HORRÍVEIS, O TEMPO TODO, Gente é tanto “mimimi”!
TODO MUNDO:
ave maria, demais! Chega a cansar só de escutar e ver isso o tempo
todo, uma chatice!
MARINA
Ou “Branco...” Esse é meu favorito... “Os brancos, héteros, são os piores e
ninguém diz nada”. Mas no minuto em que falamos qualquer tipo de crítica... As
pessoas gritam logo seu “Racista, homofóbico”!
TODO MUNDO
: Sim!
DÁRIO
Marina, saiba que você está acolhida aqui. Todos nós meio que sentimos o
que você sente, sabe. E qualquer coisa que você nos diga, você segura com a
gente.
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LEVI
- Sabe, é como... Os nordestinos saem daqueles fins do mundo e vêm pra
roubar nossos empregos. Trazem suas doenças, deixam a gente doente e
ninguém diz nada sobre isso. Tipo também... tem os POBRES, que não sabem nem
soletrar e entram nas universidades melhores que eu. E aí tudo bem né, ninguém
diz nada, ninguém questiona.
MARINA
Agora toda cadela parda merece tratamento especial né. Porque ela
convenceu as pessoas a sentirem pena dela. E ela é como eu, é como você. Então
eu sou racista? De pensar desse jeito? Eu sinto que não mais nada pra mim nesse
país. Eu trabalho duro como você, como você, como você...
DÁRIO
Estou muito feliz de tá aqui e escutando as ideias inspiradoras de vocês. É
por isso que precisamos recrutar mais pessoas, precisamos ainda mais difundir e
questionar sobre essas desigualdades neste país... Todas as vidas importam. Eu não
tinha certeza do que esperar desse
picnic
. aqui pra falar de bom senso, o
multiculturalismo não funciona mesmo, o gênero neutro não funciona, o
antirracismo não funciona, nunca funcionou e nunca funcionará. “ELES” com certeza
não gostam da gente, nem a gente gosta “DELES”. Nós descobrimos o Brasil, o
que, 524 anos, e agora estamos vendo uma onda de politicamente correto, de
retomada indígena, de respeito à diversidade, de defesa de gênero... recebemos
lamentações e blábláblás... “ELES” simplesmente vêm e invadem, tomam nosso
lugar, tomam nossas terras, tomam nossos empregos, tomam nossas universidades.
Eu tenho um diploma de direito e minha proposta é a gente recrutar novas pessoas
e começar a publicar nossas ideias...
Todo mundo realiza o símbolo da supremacia Branca. Fim.
Considerações Finais
Como é possível fugir de uma colonialidade epistêmica se nossa formação
enquanto artistas-professoras-pesquisadoras advêm do colonial? Não tenho
precisamente esta resposta. Porém, me questiono sobre o paradoxo que essa
indagação descortina. Sentimos muitas vezes, uma necessidade de
pensar/conceber/criar uma metodologia autônoma para nossas práticas
artísticas-docentes, entretanto, não como negar que estamos reféns de uma
referencialidade difundida das epistemologias hegemônicas ou reinantes da
comunidade científica, onde, majoritariamente, somos negados em várias
instâncias.
O presente texto evidenciou alguns desenvolvimentos de uma metodologia
antirracista, ao focalizar na construção de textualidades escritas por várias mãos
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através dos exercícios pedagógicos propostos, e jogos contracoloniais pensados
pela turma universitária, ao ter como referências atravessamentos e frases
escolhidas das dramaturgias citadas, finalizando na construção de experimento
cênico, que traz em sua textualidade, um racismo massificador em seus discursos
verbais, evidenciando personagens diplomatas e da classe trabalhadora que
disseminam seu ódio e seu lugar de fala. Diante disso, procuramos durante o
processo criativo e ao longo da disciplina, estabelecer uma conexão de apoio para
pensar paragens pedagógicas sobre as relações de raça, gênero e classe social.
Nossa ideia com o experimento cênico, era que o público intervisse na cena,
porém, presenciamos faces de espantos, de revoltas no olhar e negação.
Ninguém se quer se encorajou a interrompeu a cena, isso nos espantou de alguma
forma. Ao final realizamos uma mediação com o público sobre essas percepções.
As epistemologias escolhidas e mencionadas ao longo do texto podem ser
suportes para a construção de uma pedagogia teatral contracolonial, na medida
que possam ser reelaboradas criadas e refletidas outras possibilidades
pedagógicas que partam das subjetividades dos sujeitos, nas quais colocamos em
exercício nossos saberes como centro e recriamos/reinventamos a prática
docente por meio dos exercícios propostos e descritos.
Através das premissas e propostas da turma como pontos de partida,
desvelamos um dispositivo pedagógico teatral de forma expandida e
contracolonial, visto que foi possível descortinar materialidades potenciais com
alto poder significativo para o processo de ensino aprendizagem. Foi a partir das
percepções e algumas reflexões sobre a decolonialidade que se tornou possível
uma reinvenção e valorização de um saber desenvolvido na prática entre docente
e discente.
Rever sistematicamente a pedagogia teatral para além da reprodução é um
desafio que demanda uma ressignificação, para gerar um novo exercício
pedagógico que [re]transforma um viés epistêmico, não negando-o, mas
desenvolvendo e ampliando um novo olhar, para propor uma pedagogia teatral
como dispositivo contracolonial, que surge do ínterim: cosmologia, prática, artística
e filosófica.
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Colocar em prática a recriação/reinventação do saber como centro sugere
aproximações de um dispositivo de confronto ao colonialismo que rompe com as
hierarquias dos saberes, inferiorização de produções intelectuais, artísticas,
pedagógicas ou com o encaixe nas epistemologias coloniais. Por isso, essa
reconstrução e autoafirmação da prática pode ser uma pista para o
desenvolvimento de uma pedagogia teatral contracolonial, que atue no
desvelamento e ato político de reinvenção e existência da valorização do saber
empírico de determinado grupo.
Referências
AKOTIRENE, Carla.
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RIBEIRO, Djamila.
O Que é
: lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.
Recebido em: 11/11/2023
Aprovado em: 01/04/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br