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A falecida como ela é
: as obsessões e imagens
recorrentes no processo criativo de Nelson Rodrigues
Enjolras de Oliveira
Para citar este artigo:
OLVEIRA, Enjolras de.
A falecida como ela é
: as obsessões e
imagens recorrentes no processo criativo de Nelson
Rodrigues.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 51, jul. 2024.
DOI: 10.5965/1414573102512024e0203
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A falecida como ela é
: as obsessões e imagens recorrentes no processo criativo de Nelson Rodrigues
Enjolras de Oliveira
Florianópolis, v.2, n.51, p.1-25, jul. 2024
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A falecida como ela é1
: as obsessões e imagens recorrentes no processo criativo de Nelson
Rodrigues2
Enjolras de Oliveira3
Resumo
Este artigo aborda a criação da peça
A falecida
, de Nelson Rodrigues, buscando esboçar as
referências biográficas, literárias, cinematográficas, além das obsessões temáticas do autor,
de analogias, influências, ecos, padrões e ideias recorrentes. Também apresenta uma
autorreferencialidade na construção textual, que foram levados em conta na tessitura da
sua primeira tragédia carioca. Se cria um painel das correlações estruturais, repetições,
recorrências, deslocamentos e situações entre suas peças e as crônicas de
A vida como ela
é…
, assim como breves traços da sua poética e da influência da cidade do Rio de Janeiro na
criação da linguagem.
Palavras-chave
: Teatro. Processo criativo. Nelson Rodrigues.
A falecida
.
A falecida as she is
: the obsessions and recurring images in the creative process of Nelson
Rodrigues
Abstract
This article discusses the creation of the play
A falecida
, by Nelson Rodrigues, seeking to
sketch the biographical, literary, cinematographic references, as well as the author’s
thematic obsessions, analogies, influences, echoes, patterns and recurring ideas. It also
presents a self-referenciality in the textual construction, which were taken into account in
the tessitura of his first carioca tragedy. It creates a panel of structural correlations,
repetitions, recurrences, displacements and situations between her pieces and the
chronicles of
A vida como ela é...
, as well as brief traces of his poetics and the influence of
the city of Rio de Janeiro in the creation of language.
Keywords:
Theatre. Creative process. Nelson Rodrigues.
The deceased
A falecida como ella es
: las obsesiones e imágenes recurrentes en el proceso creativo de Nelson
Rodrigues
Resumen
Este artículo aborda la creación de la obra teatral
A falecida
, de Nelson Rodrigues, buscando
esbozar las referencias biográficas, literarias, cinematográficas, además de las obsesiones
temáticas del autor, de analogías, influencias, ecos, patrones e ideas recorrentes. También
presenta una autorreferencialidad en la construcción textual, que fueron tomados en cuenta
en la tesitura de su primera tragedia carioca. Se crea un panel de las correlaciones
estructurales, repeticiones, recurrencias, desplazamientos y situaciones entre sus piezas y
las crónicas de
A vida como ela é...
, así como breves trazos de su poética y de la influencia
de la ciudad de Río de Janeiro en la creación del lenguaje.
Palabras clave
: Teatro. Proceso creativo. Nelson Rodrigues.
La fallecida.
1 Este artigo resulta em 79% de partes de minha dissertação de mestrado:
A Falecida:
leituras e releituras da
peça de Nelson Rodrigues e do filme de Leon Hirszman. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas)
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2014.
2 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Maria Iraídes da Silva Barreto (
in
memoriam
), professora graduada em Letras (Universidade do Estado de Pernambuco - UPE) e Mestra em
Estudos Linguísticos (Universidade Estadual de Maringá UEM/Paraná).
3 Doutor em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Artes Cênicas pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especialista em Artes Visuais pela Faculdade Venda Nova do Imigrante
(FAVENI). Graduado em Artes Cênicas Habilitação em Direção Teatral pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA). Professor doutor da Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual da Bahia (UNEB).
enjolrasdeoliveira@gmail.com
https://lattes.cnpq.br/6113415357622587 https://orcid.org/0000-0003-4563-9417
A falecida como ela é
: as obsessões e imagens recorrentes no processo criativo de Nelson Rodrigues
Enjolras de Oliveira
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Introdução
Nelson Rodrigues escreve sua primeira tragédia carioca
A falecida
em 19534,
após a experiência com as crônicas de
A vida como ela é...
Nessas histórias,
aproveitava-se das suas memórias, das imagens e situações que se perpetuaram
ao longo da sua vivência, de sugestões e ideias alheias para construí-las. Além da
autorreferencialidade, o escritor canalizava suas experiências no seu processo
criativo por meio de influências literárias e cinematográficas, analogias a obras de
outros escritores, referências, repetições, citações, deslocamentos narrativos,
inversões de padrões no retrato das situações etc.
A falecida
foi influenciada por
quase todas essas potencialidades, que se repetem no seu universo
memorialístico, confessional e ficcional, sendo o humor o principal elemento
dessa nova fase.
Em
A vida como ela é...
, o autor reúne as suas obsessões temáticas e retoma
depois, em seu novo projeto teatral, o que foi desenvolvido em suas crônicas
desde personagens, histórias, enredos, temas, nomes, títulos e situações
dramáticas –, e aprofunda em seus textos teatrais e outras criações literárias,
assim como fez com a peça
A falecida
. Rodrigues costumava dizer que escrevia
sobre fatos ocorridos até quase trezentos anos atrás. São histórias sobre
assassinatos, suicídios, atropelamentos, crimes, adultérios, sedução, ciúme,
desaparecimentos, trapaças, vingança entre outros temas característicos da obra
do autor. Enfim, dizia que recriava todos os sonhos da carne e da alma, mas
sempre afirmava que era a história de uma adúltera, um tratado de traídos. O
cronista passou a ambientá-las no Rio de Janeiro dos anos de 1950 e as histórias
eram permeadas pela atmosfera da cidade. O sucesso foi impressionante e a
coluna era lida nos bondes, nas lotações, no elevador e nas ruas (Castro, 1992). As
crônicas tornam-se inspiração para seus romances e peças, em uma espécie de
desdobramento criativo de seus próprios textos. Magaldi (2010) crê que o autor
4 As dezessete peças do dramaturgo foram organizadas em três ciclos diferentes pelo crítico Sábato Magaldi
nos quatro volumes intitulados O teatro completo de Nelson Rodrigues. O crítico e pesquisador da obra
rodriguiana levou em conta mais a tônica de cada texto nessa classificação, pois são peças difíceis de
enquadrar uma vez que “[...] as várias fases se interpenetram e elementos míticos e de tragédia carioca
nas peças psicológicas, problemas psicológicos e de tragédia carioca nas peças míticas, e situações
psicológicas e referências míticas nas tragédias cariocas.” (Magaldi, 2010, p. 16).
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experimentava um tema em sua coluna diária e como seria a receptividade do
público para, depois, aprofundá-lo no teatro.
A partir de
A falecida
, o mundo rodriguiano torna-se objetivo ao mostrar
personagens frustradas e sem grandes perspectivas, mas se cria, nessa fase, um
espaço para o humor, antes considerado indesejável e evitado por seu autor
(Magaldi, 2006; 2010). Nelson Rodrigues acreditava que o teatro para rir era tão
absurdo, tão obsceno, tão idiota quanto uma missa cômica. As personagens, agora,
aproximam-se da realidade cotidiana, sendo esse um dos fatores que mais
provavelmente contribuíram para tornar seu teatro mais popular. Nessa fase o
escritor alcança o sucesso que tanto almejava e preservava um grande afeto por
sua primeira tragédia carioca:
A falecida
não vai morrer nunca. Eu sou um autor que gosta de todas as
minhas peças, jamais desprezei uma única. Mas
A falecida
é a que mais
gosto. Quando a vi pela primeira vez no palco, disse que era uma das
peças do meu coração e pouco a pouco fui me convencendo de que, se
ocorresse uma catástrofe e desaparecessem todos os meus textos
teatrais, ficaria satisfeito se apenas
A falecida
sobrevivesse, pois assim
não teria vivido inutilmente (Rodrigues, 2012c, p. 76).
Sábato Magaldi (2008, p. 29) considera
A falecida
“o melhor exemplar” das
tragédias cariocas. A peça
foi classificada no programa do espetáculo por
Rodrigues como “farsa trágica em três atos” e, quando foi publicada, o autor
definiu-a como “tragédia carioca em três atos”. Nelson Rodrigues (1953
apud
Magaldi, 2010, p. 105) revela o dilema de determinar o gênero da peça, todavia não
deixa de reafirmar a tristeza imanente do texto:
Como definir
A falecida
? Tragédia, drama, farsa, comédia? Valeria a pena
criar o gênero arbitrário de “tragédia carioca”? É, convenhamos, uma peça
que se individualiza, acima de tudo, pela tristeza irredutível. Pode até
fazer rir. Mas transmite, ao longo dos seus três atos, uma mensagem
triste, que ninguém pode ignorar. Os personagens, os incidentes, a
história, o clima, tudo parece exprimir um pessimismo surdo e vital.
O dramaturgo procura afirmar a tragicidade contida no texto e esclarece, no
programa de estreia da peça
A falecida
, que fez suas obras tomando por base
uma tristeza fundamental. Também recorda seu teatro de martírio e desespero,
que de maneira alguma tem a intenção de fazer rir, pois, por inclinação natural e
destino, tende ao gênero trágico. Resquícios do seu
Teatro desagradável
. De
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acordo com Magaldi (2010), Rodrigues sai de um universo trágico em que o
psicológico e o mítico se casam para apresentar o universo dos subúrbios cariocas
a partir dessa fase
“Flor de obsessão”
Diante de suas obsessões temáticas, Nelson Rodrigues afirmava: “Não tenho
o menor escrúpulo em usar duzentas, trezentas vezes a mesma metáfora. Por
que não insistir numa imagem bem-sucedida? Aprendi que as coisas ditas uma
vez, e só uma vez, morrem inéditas” (Rodrigues, 2008, p. 398). E poderia repisar as
mesmas histórias, como dizia, ao longo das gerações5. Ser autor de um único tema
não o incomodava; sua opção em reiterar-se era simplesmente por questão de
livre-arbítrio. Dizia que, quando um autor volta ao mesmo assunto, se repete
de modo relativo. “Alguém dirá que já contei a mesma história umas dez vezes. É
possível. Mas sou ou não sou uma flor de obsessão?” (Rodrigues, 2007, p. 254).
Costumava usar os fatos para criar uma história imaginada. A obsessão em insistir
em um mesmo tema, pode ser vista através do método da psicocrítica, termo que
Cleise Mendes (2008) utiliza de um outro autor, Charles Mauron6, que faz uma
análise literária a partir de associações e agrupamentos de imagens recorrentes e
obsessivas que poderiam contribuir para trazer à tona a “personalidade
inconsciente do autor”. Esse tipo de análise não tem a intenção de fazer um
diagnóstico da neurose do autor, mas apenas proporcionaria beber na fonte de
uma criação literária.
Na criação de uma obra como
A falecida
, a vida do autor revela-se por meio
das suas memórias do tempo em que morou na Aldeia Campista, bairro do
5 “Outra objeção contra o drama e o autor: insistência de um tema que já foi usado em outras obras minhas.
Seria um sintoma de fadiga, um colapso quem sabe se definitivo de imaginação criadora? Não, segundo
o meu suspeito modo de ver as coisas. Aliás, de todos os meus possíveis defeitos, este é o que menos me
preocupa. Ser autor de um tema único não me parece nem defeito, nem qualidade, mas uma pura e simples
questão de gosto, de arbítrio pessoal. Por outro lado, um autor que volta a um assunto, se repete de
modo muito relativo. Creio mesmo que não se repete nada. Cada assunto tem em si mesmo uma variedade
que o torna infinitamente mutável. Sobre ciúme o mesmo autor poderia escrever 250 peças diferentes,
sendo duzentas e cinquenta vezes original. Sobre o amor também. Sobre a morte, idem” (Rodrigues, 2000,
p. 12).
6 “O método psicocrítico de Mauron apoiou-se num levantamento dos trabalhos dos psicanalistas que se
tinham debruçado sobre as obras de Arte que foi desenvolvido no livro Des Méthaphores Obsédantes au
Mythe Personnel: Introduction à la Psychocritique. Trata-se de um ensaio metodológico em que o analista
selecionou as metáforas obsessivas grupos de imagens que sempre retornam e tenta,
psicanaliticamente, interpretá-las através do mito pessoal do autor (Mello, 1994).
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subúrbio carioca, e as situações vividas: os casos de crime e de adultério na Rua
Zulmira, que marcaram profundamente a sua infância e, mais adiante, a sua
literatura. Naquela época, sentia uma compaixão pela figura da mulher infiel.
Quando entrou para o jornalismo, aos 13 anos de idade, afirmava ter uma
compaixão pelas adúlteras que o marido mata ou que acabam se suicidando. E,
desde então, sempre procurou apurar as causas de uma infidelidade sem saber
se era por uma curiosidade compadecida ou perversa.
Outro tema recorrente em Nelson Rodrigues é o da morte: “[...] Parece
incontestável e, sobretudo, necessária. Artisticamente falando, sou mórbido,
sempre fui mórbido, e pergunto: ‘Será um defeito?’ Nem defeito, nem qualidade,
mas uma marca de espírito, um tipo de criação dramática” (Rodrigues, 2000, p. 11).
O autor questionava por que não poderia utilizar a morbidez em sua criação
dramática se a literatura e a pintura repousam seu valor estético sobre uma
“morbidez rica, densa, criadora, transfigurante” (Rodrigues, 2000). Valoriza o lado
mórbido da personalidade em coexistência com os traços normais. Desde a tenra
idade, “o anão de Velásquez”7 era fascinado pela morte. Achava fantástica a chama
das velas; não temia funerais, adorava “peruar enterro”, tinha uma curiosidade
mórbida pelas igrejas e gostava de visitar cemitérios (Rodrigues, 2009).
Rodrigues revela casos de pacto de morte que marcaram profundamente a
sua infância e o tornaram fascinado pelo suicídio. Das lembranças do bairro, a
primeira história que marcou o escritor foi a morte de Carlinhos, que brigou com
a noiva, foi à farmácia e tomou veneno. Rodrigues assistiu à cena, mas foi logo
expulso do lugar por alguém que lhe deu uma palmada (Rodrigues, 2009).
Rodrigues revela que esse suicida foi quem lhe anunciou a morte e o ensinou a
morrer. Diz que o suicida tem uma nostalgia de voltar às suas raízes mais
primitivas.
Imagens trágicas acompanharam o escritor ao longo da vida e revelam traços
e características presentes na sua obra sobre questões a respeito da vida e da
morte. Da infância vivida no bairro Aldeia Campista, o “pequenino Werther”8
7 Epíteto que recebeu na infância, porque era pequeno e tinha a cabeça grande.
8 Outro epíteto que o próprio Nelson Rodrigues se deu, por causa do livro
Os sofrimentos do jovem Werther,
de Goethe. O livro conta a história de um amor correspondido, mas impossível de se consolidar porque a
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guardou imagens, histórias, acontecimentos e personagens que marcaram essa
fase da sua vida e que, às vezes, reproduzia ao brincar no fundo do quintal da sua
casa. “E, por todo o meu teatro, uma palpitação de sombras e de luzes. De
texto em texto, a chama de um círio passa a outro círio, numa obsessão feérica
que para sempre me persegue.” (Rodrigues, 2009, p. 144). O autor acreditava que
duas mãos postas e a luz de um círio compunham uma cena magnífica.
Rememora em suas crônicas histórias do bairro, batalhas de confetes da Rua Dona
Zulmira. Há também a história em que, certa vez, vizinhas fiéis aos maridos, mas
sem amor e cheias de virtude ressentida, se juntaram contra uma infiel. Quando
questionado sobre tanta amargura diante da vida, justificava-a como elemento
próprio do artista ao proporcionar-lhe uma dimensão fantástica da existência. Para
Márcio Robert (2007, p. 115), o leitor “[…] aprende com Nelson que a vida é também
dor e sofrimento (condensados no elemento morte), no qual nem o elenco, nem
a plateia estão imunes. [...] o trágico urge desta ligação indissociável (e conflituosa)
entre a vida e a morte, o sexo e a morte, o amor e a morte.”9
O escritor, que se considerava um romântico saudosista, também lamentava
a falta das cenas de enterros, como antigamente existia no Rio de Janeiro, com
cavalos de pelos dourados, ornados com penachos de plumas negras na cabeça
e caixões com alças de ouro ou prata: “[...] Achava a morte rigorosamente linda.
Linda pelos cavalos, e pelas plumas negras, e pelos dourados, e pelas alças de
prata.” (Rodrigues, 2008, p. 405). Os funerais ricos e pobres, vistos por Nelson
Rodrigues, eram diferenciados pelos adornos dos cavalos e na quantidade de
cavalos que puxavam o coche. Nos funerais de pessoas abastadas, o féretro era
puxado por dois ou quatro cavalos, enquanto naqueles mais modestos era puxado
por apenas um cavalo. Sabia-se da existência de um enterro em uma rua por
causa da quantidade de excremento deixada pelos cavalos. Em
A falecida,
uma
fala de uma personagem afirmando que belos cavalos de funerais chiques são
odiados, porque soltam fezes pelo caminho. A protagonista diz que: “Antigamente,
amada está prometida a outro homem.
9 Para Nelson Rodrigues, a morte é solúvel porque existe a eternidade; já o amor é insolúvel e, nesse estado,
encontra-se a angústia humana. Acredita que a castidade seria uma forma de acabar com a angústia sexual
do ser humano e ele próprio deveria ter permanecido casto e não ter feito sexo sem amor porque o sexo
corrompe o homem, acaba com sua inocência e o torna infeliz (Rodrigues, 2009).
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8
os enterros eram mais bonitos! [...] usavam-se cavalos nos enterros, com um
penacho na cabeça. Não é mais alinhado cavalo de penacho? Mais bonito? Não
é?” (Rodrigues, 1985, p. 85). Mas a mãe critica e conta-lhe que na morte do avô de
Zulmira, os cavalos “grandes e bonitões” emporcalharam a porta.
Zulmira sonha com um funeral de luxo, sonho recorrente dos protagonistas
de mais duas peças do autor:
Boca de Ouro,
de 1959, e
Bonitinha, mas ordinária,
de 1962. “Das personagens dessas três peças, Zulmira é a mais obsessiva por um
funeral grandioso como compensação para seu ressentimento em relação à vida”
(Matos, 2022, p. 24). Segundo Matos (2022), Rodrigues leva a sua simplificação
(numa espécie de mais é menos) e despojamento para as indicações cênicas e
cria uma personagem delirante que não tem onde cair morta e que alimenta o
desejo de ser enterrada com todas as honras de um funeral luxuoso. Zulmira é
uma personagem angustiada, com compulsão autodestrutiva, e primeira heroína
frustrada da galeria rodriguiana. Seus atos fazem acentuar sua solidão
semelhante a muitos heróis expressionistas (Magaldi, 2010). A influência do
expressionismo em Rodrigues é percebida pela caracterização das personagens
destituídas de sentido existencial. A explosão do grito do artista plástico Edward
Munch, quadro
O grito
, de 1893, como símbolo maior do homem expressionista,
remete a uma desmedida do herói, ao desespero desse diante das injustiças
sofridas. Zulmira deixa-se levar pelo desespero e pela sedução da própria morte
(Rosenfeld, 1996). Vários autores marcam essa sedução tanto do autor, quanto da
personagem pela morte.
Muito se discute o que é que a morte representa na vida deles e como isso
reflete quando se tenta traduzi-la para o palco e para a tela. Rodrigues admirava
a morte pelo seu valor trágico e pela plasticidade que uma morte física pode
causar em cena. A morte é vista como dilaceradora da alma, principalmente numa
personagem como Zulmira e percebe-se como a morte vai consumindo-a, em seu
ideal ascético, na releitura que o diretor de cinema Leon Hirszman fez da peça
(Xavier, 2003). O medo de que seu segredo seja descoberto leva a personagem a
procurar redimir-se com a morte, mas essa não a inocenta do seu “desvio”:
“Contudo, ela não poderia ficar ilesa no universo rodriguiano: seu pecado é
voluntário e necessário, ela obtém dele alguma satisfação, mas deve dar a vida
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para purificar tal desvio” (Facina, 2004, p. 7). O preço que Zulmira paga por sua
traição é com a própria vida.
Nelson Rodrigues dizia que “a morte é uma luminosa e paciente elaboração”,
“a maior dignidade da morte é física”; “o homem é belo quando está morto”; “na
morte o homem revela o seu rosto verdadeiro”; “ninguém é realmente o que
aparenta ser”; “na vida, somos capazes de usar máscaras sucessivas e
contraditórias”; “só a morte revelaria a nossa verdadeira face” e, assim, “a
eternidade e a plenitude estariam asseguradas” (Rodrigues, 2008; 2009). São
afirmações que dão um sentido e um entendimento a muitos das suas
personagens e que podem levar o leitor ou espectador a compreender a obsessão
de Zulmira e o impedimento da sua completa realização. Para o autor, os velórios
deixaram de ser dramáticos, não havia mais acessos de dor colossais. As mães e
esposas não se agarravam ao caixão desesperadamente implorando para serem
enterradas junto ao ser amado. Nelson Rodrigues acreditava que a Zona Norte era
a parte da cidade do Rio que ainda guardava certas tradições onde talvez fossem
possíveis velórios dramáticos, nos quais as mulheres “escoiceavam” e “uivavam”,
possuídas pela dor.
O dramaturgo também passou a usar o futebol, alegria do povo, como outro
tema dea sua primeira tragédia carioca. O futebol procura retratar a paixão do
brasileiro e a do próprio escritor. O jornalista e ex-diretor da
Manchete
, Zevi
Ghivelder, perguntou-lhe em 1977 sobre
A falecida
e a ausência do futebol na
criação artística brasileira. Nelson Rodrigues respondeu:
Realmente eu fiz
A falecida
, que é a história de um torcedor do Vasco,
com suas implicações poéticas, etc. Agora vou dizer uma coisa para
vocês. No dia da estreia de
A falecida
eu ia pelo corredor do Teatro
Municipal, no intervalo, quando vejo um rapaz rosnando para a namorada:
“Futebol no Municipal?” A pequena deve ter achado o sujeito um crânio,
um crânio. Ora, o problema é o seguinte: eu faço, farei 200 peças sobre
o futebol sem prejuízo da poesia ou da arte dramática. O futebol é paixão,
é paixão de uma plenitude furiosa. No futebol, se você quer poesia, tem
poesia; se você quer tragédia, tem tragédia; se você quer ópera bufa, tem
ópera bufa. Eu acho que o Municipal, onde levei
A falecida
, deveria levar
outras peças sobre o futebol (Rodrigues
apud
Rodrigues, S., 1986, p. 121).
Rodrigues tinha uma grande experiência com o futebol, escrevia crônicas
para os jornais sobre o tema e trabalhava no programa Grande Resenha Esportiva,
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exibido aos domingos pela TV Rio, em 1964, com comentários, notícias e
entrevistas sobre futebol. O cronista e comentarista esportivo, juntamente com
João Saldanha, Luis Mendes e outros, discutia e tirava dúvidas sobre jogos, lances
e jogadores.
O escritor admite ou insinua que, em suas produções literárias, também
algumas referências, inspirações ou ideias de filmes, notícias, histórias literárias,
frases e cenas que levou para seu processo criativo, afora a recorrência às suas
próprias criações. Mas o dramaturgo não as admite de forma categórica, pois
poderia perder a credibilidade. Nelson Rodrigues admitiu negar os reais fatos de
certas criações suas como fez com
Vestido de noiva
que escreveu em três dias,
mas dizia que levou seis meses para criar porque assim poderiam acreditar no
seu esforço e trabalho hercúleo em um processo de criação (Rodrigues, 2009).
O humor
Quando
A falecida
foi apresentada no Teatro Municipal em 08 de junho de
1953, os espectadores espantaram-se com o tema do futebol, as gírias e as
gaiatices (Castro, 1992). Era como se houvesse “estuprado” o Municipal com um
tema considerado de gosto duvidoso. A peça era extremamente carioca. O cenário
é a Zona Norte do Rio. “[...] para uma parte da crítica, um gênio inconstante, pois
cedia a impulsos autopromocionais e, com as temáticas das tragédias cariocas,
fazia concessões a apelos comerciais, pensando na bilheteria” (Facina, 2004, p. 71).
O autor achava inconcebível a presença do humor na sua dramaturgia, e a
admitiu depois que o diretor da primeira montagem disse-lhe que existia, e,
mesmo assim, após relutar durante algum tempo. “O diretor José Maria Monteiro
declara que, ainda nos ensaios de
A falecida
, foi muito difícil convencer Nelson
Rodrigues de que havia uma veia cômica em sua obra dramatúrgica” (Pereira, 1999,
p. 116). A rejeição inicial do dramaturgo à comédia e depois a inclusão da mesma,
poderia ser explorada mais a fundo por Sábato Magaldi, mas o estudioso verifica
que a existência trágica se faz tão presente no teatro rodriguiano que se torna
difícil associar seus textos diretamente à comédia.
A verdade é que Nelson, depois de repudiar a comédia, por ser-lhe
impossível conceber uma missa cômica, foi aos poucos assimilando um
humor muito particular ao seu diálogo, e esse humor precisa ser
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reintegrado nas cenas que o requerem, sob pena de perder-se dimensão
enriquecedora (Magaldi, 2010, p. 197).
Percebe-se a ânsia de popularidade do dramaturgo na introdução e
concessão do humor em
A falecida
. Ruy Castro (1992) afirma que essa peça era
para rir apesar de Nelson Rodrigues avisar, no programa de estreia, que quem risse
seria por conta própria. Nessa tragédia, o dramaturgo alude à melancolia e ao
pessimismo a que recorreu, mas deixa de citar e admitir inicialmente o alívio
cômico presente nas cenas. Nelson condenou a adaptação de Leon Hirszman para
o cinema, pois o diretor concebeu
A falecida
sob uma ótica mais melancólica e
evidenciou a “tristeza irredutível”, criando uma compaixão pelo sofrimento de
Zulmira (Xavier, 2003).
As crônicas e outras referências
O dramaturgo bebeu da fonte das suas crônicas em uma espécie de
autorreferencialidade contínua em sua obra. Sua primeira tragédia carioca toma
como mote algumas criações de
A vida como ela é...10
Estruturalmente, utiliza o
enredo da crônica
Um miserável
, a história da qual
A falecida
origina. Zuleika é
uma costureira pobre e sem dinheiro, casada com Belmiro, que arde em febre há
dias, sente-se asfixiada e tem vários acessos de tosse, recusa-se a ir ao médico
porque não tem dinheiro nem para os remédios. quando sente o gosto de
sangue na boca e passa a ter a ideia fixa de tuberculose é que resolve procurar o
Dr. Borborema, “velho”, “gagá”, “do tempo de Dom João Charuto” e desacreditado
por Belmiro. Segundo o diagnóstico do médico, Zuleika não tem nada nos
pulmões. Ela, no entanto, acredita que vai morrer e deseja um enterro luxuoso
para impressionar a vizinhança e fazer inveja a uma vizinha antipática.
Zuleika pede para o marido conseguir o dinheiro do féretro com Humberto,
um sujeito que ele conhecia pela arrogância do poder econômico. Quando a
esposa morre, Belmiro conta a Humberto e o marido avisa-lhe sobre o último
desejo de Zuleika antes de morrer. Humberto, comovido, declara que faz questão
de pagar todas as despesas; Belmiro imediatamente procura uma funerária para
entregar-lhe o orçamento de um enterro caro e outro barato. O provável amante
10 Foram lidas 334 crônicas de A vida como ela é... para construir este painel.
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: as obsessões e imagens recorrentes no processo criativo de Nelson Rodrigues
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dá-lhe o dinheiro para o funeral caro, mas o esposo paga pelo barato, sendo que
dias depois o marido o procura de novo para conseguir mais grana para uma missa
pomposa. (Rodrigues, 2011). Além do enredo, o autor também se aproveita do
nome do médico para o mesmo personagem em
A falecida
.
Na crônica
A coroa de orquídeas
, Juventino desesperado pela morte da
esposa tão fiel e dedicada chegar ao velório realizado em casa, pois não
admitia capelinha, uma monumental coroa de orquídeas, como se fosse “para
uma rainha”, e verifica a dedicatória amorosa de Otávio: “à inesquecível Ismênia”.
Por fim, crava um punhal entre as duas costelas da defunta. É a vingança do
marido que descobre a traição da mulher depois que ela morre, enquanto o
amante lhe paga a coroa mais bonita e cara de todas. O mote de que o marido é
o último a saber ou só descobre a traição da esposa quando ela morre é também
recorrente na obra do escritor (Rodrigues, 2012a). Ou então a justificativa de que o
marido não deve saber nunca da traição da esposa.
Em
Casal de três
, outra crônica, uma fala de um personagem: “– Queres
um conselho? De mãe pra filho? Não desconfia de nada, rapaz. Te custa ser cego?
Olha! O marido não deve ser o último a saber, compreendeu? O marido não deve
saber nunca!” (Rodrigues, 2011, p. 485). Zulmira, da peça
A falecida
, poderia ter
pedido à mãe para conseguir o dinheiro com Pimentel; quem sabe, assim, poderia
ter realizado o enterro dos seus sonhos. Mas Nelson Rodrigues não permitiria tal
satisfação, e o malogro fez-se necessário.
Frases como as proferidas por Zulmira de que “não se pode negar nada a
uma morta”, ou que “a um morto se perdoa tudo”, também estão presentes em
muitas de suas crônicas. Em
A missa de sangue,
a personagem diz: “A um morto
se perdoa” (Rodrigues, 2012a, p. 55). Essa fala é porque a sobrinha casada revela o
nome do amante na hora da morte. Na crônica
Noiva da morte
, o médico,
“depositário” do último pedido de um convalescente, num livro: “a um morto
não se recusa nada”; por conta disso, resolve cumprir seus “desígnios” (Rodrigues,
2012a, p. 59). Na crônica
O inferno
, a seguinte narração, referente ao garoto que
diz para a mãe quando ela amaldiçoa o homem que a abandonou: “Certa vez, na
rua, o garoto ouviu dizer que não se nega nada a quem está morrendo, a quem vai
morrer. O “último” pedido de alguém, justamente por ser o “último”, é alguma
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coisa de terrível e sagrado, que cumpre obedecer, sob pena de maldições
tremendas” (Rodrigues, 2012a, p. 15). Em algumas crônicas, um mosaico de
citações criado pelo próprio autor.
outras crônicas de
A vida como é…
nas quais Nelson Rodrigues apenas se
utiliza dos nomes das personagens ou do perfil delas. Por exemplo, na crônica
Amor mercenário
, existe as personagens Tuninho um torcedor de futebol que
vive infeliz com a esposa e Zulmira. O perfil do torcedor fanático por futebol é
revivido na peça
A falecida
juntamente com o nome de Zulmira.
A falecida
é uma
crônica que o dramaturgo apenas toma o título de empréstimo, para usá-lo em
sua primeira tragédia carioca, sendo que a história não tem nada a ver com o texto
teatral (Rodrigues, 2012b). Na crônica
Mãe e filha
, existe a personagem Zulmira
homônima à peça. A repetição de nomes é uma constante na obra rodriguiana.
Tuninho, nome presente também na peça
A falecida,
fazia parte da família de
Nelson Rodrigues: era o nome do seu cunhado, irmão da sua esposa Elza, a quem
emprestara dinheiro para quitar uma casa na Ilha do Governador. Talvez, quem
sabe, Tuninho não realizou a promessa pagar o empréstimo tomado a Nelson
Rodrigues como o Tuninho de
A falecida
que descumpriu a promessa de um
enterro caro feita a Zulmira?
O nome de personagens é uma recorrência, que se faz presente na literatura
rodriguiana como, por exemplo, o médico Dr. Borborema, que examina Zulmira
em
Um miserável
. “O nome Borborema é o mesmo de um planalto, localizado no
nordeste brasileiro e que impede o ar úmido de chegar ao agreste, fazendo com
que as chuvas não avancem após a barreira natural. Borborema significa terra
infértil, estéril” (Matos, 2022, p. 33). O autor questiona o porquê do nome tão
inusitado e se viria do planalto Borborema. outros nomes que se repetem na
pena do autor, como: Crisálida, Timbira e Glorinha. Magaldi (2010) também afirma
que Nelson Rodrigues vivia exclusivamente da literatura, e costumava repetir texto
com títulos diferentes ou o mesmo título para histórias distintas. Matos (2022) traz
essas referências da repetição de nomes e a retomada de motivos, nomes e
sonhos das personagens de
A falecida
em outras peças do dramaturgo, como:
Os
sete gatinhos, Boca de Ouro
e
Bonitinha, mas ordinária.
A morbidez da personagem principal tinha sido tema de várias personagens
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de Nelson Rodrigues, como Dona Aninha, de
A mulher sem pecado
, Madame
Clessi, de
Vestido de noiva
, Maria das Dores, de
Dorotéia
, Ana Maria que vive quase
como morta em
Anjo negro
e ao final é enterrada num caixão de vidro, Sônia, de
Valsa 6
, que é uma personagem que está morta em cena. Sobre suas peças, os
críticos falavam em reencarnação ou peça espírita por conta dessas personagens.
Para o dramaturgo, esses possuíam a glória invejável de irritar a crítica. Outros,
semelhantes à Glorinha de
A falecida
, também não aparecem em cena, mas
comenta-se sobre eles: Nonô, de
Álbum de família
e a prostituta de 19 anos em
Senhora dos afogados
. Essas referências utilizadas são apenas as anteriores à
primeira tragédia carioca.
Outra ideia recorrente são os conflitos de amigas, irmãs, primas, como
Zulmira e Glorinha, estão ligadas, de certa forma, ao mesmo homem. O triângulo
amoroso que se faz presente de forma explícita em outros textos de Nelson
Rodrigues, em
A falecida,
acontece de forma inconsciente quando Zulmira provoca
o marido a fim de que esse seduza Glorinha, basicamente para desqualificá-la,
para mostrar que ela não é a mulher mais virtuosa do Rio de Janeiro e, como a
própria Zulmira, é capaz de cometer uma transgressão. Glorinha é uma vizinha
fiel, sem amor e ressentida, como uma vizinha das memórias rodriguianas, que
induz Zulmira à morte? Nelson Rodrigues quando não coloca personagens, que
moram sob o mesmo teto, para tirar a tranquilidade de outros, coloca uma prima
e vizinha para tirar a paz de Zulmira.
O escritor também faz uso de citações de locais públicos onde um
cinema, filmes e astros da sétima arte, além de certas inspirações como o crítico
Sergio Augusto exemplifica no site Portal Brasileiro de Cinema. Augusto cria uma
aproximação entre o desejo de enterro luxuoso de algumas personagens de
Nelson Rodrigues e a personagem principal do filme
Imitação da vida
, de 1934,
direção John M. Stahl e com Claudette Colbert no papel da protagonista:
O sonho de um enterro de luxo, com caixão de ouro e penacho,
acalentado, entre outros, por
Boca de Ouro
, Zulmira de
A falecida
e Heitor
de
Bonitinha, mas ordinária
, também era a obsessão da empregada negra
de
Imitação da vida
, folhetinesco entrever o familiar escrito por Fannie
Hurst e filmado em Hollywood duas vezes (1934 e 1958) (Augusto, 2005,
p. 1).
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O filme trata da história de uma mulher negra e pobre que guarda dinheiro
durante boa parte de sua vida para realizar o sonho de um enterro majestoso, que
lhe é concedido (Matos, 2022). que Nelson Rodrigues não concorda com o final
do filme, quando frustra esse sonho. Além da influência do cinema, outras são
analisadas e apontadas por diversos estudiosos da obra de Nelson Rodrigues.
aproximações, semelhanças e comparações que são vistas entre a dramaturgia
de Rodrigues e de outros autores. No caso de
A falecida
, Victor Hugo Adler Pereira
(1999) cria uma relação com a peça
Do meio-dia à meia-noite
, de Georg Kaiser,
em que um bancário faz um desfalque no trabalho e aposta o dinheiro em um
estádio de futebol. Tuninho, de
A falecida
, faz a aposta no estádio para se vingar
da esposa. uma crônica de Rodrigues cuja personagem um desfalque no
patrão, porque está cansado de humilhações.
Edélcio Mostaço (1996) ao analisar as grandes matrizes da narrativa de
outros escritores na obra de Rodrigues verifica semelhanças entre Zulmira e
Ersília, personagem da peça
Vestir os nús
do dramaturgo italiano Luigi Pirandello.
Magaldi (2010) e outros autores estabelecem uma relação de proximidade entre
Zulmira de
A falecida
e
Madame Bovary
,
de Gustave Flaubert. Zulmira seria a
Emma Bovary dos subúrbios. Rodrigues (2008) acreditava que muitas senhoras
deixariam de trair na vida real ao defrontarem-se com personagens que traem na
ficção, como as personagens Madame Bovary e Anna Karenina, de Tólstoi.
A falecida
: uma galeria de ressentidos
O texto de Nelson Rodrigues conta a história de Zulmira, uma pobre
suburbana que sonha com um funeral luxuoso. O título da peça anuncia sua
própria tragédia e é bastante objetivo. Zulmira procura uma cartomante que
apenas lhe diz para ter cuidado com uma mulher loura. Sai impressionada e indaga
quem poderia ser essa mulher. Tuninho marido, desempregado e fanático por
futebol – é quem indica a sua esposa que a mulher loura é a Glorinha, sua prima.
Glorinha foi quem a viu de braços dados com um homem no centro da cidade.
Zulmira vive em função do ódio pela prima, possuída pelo ressentimento e passa
a se espelhar no comportamento de Glorinha, buscando ser tão séria quanto a
prima. Sentindo-se humilhada, procura vingar-se através do funeral e do orgulho
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de ter os dois seios, porque Glorinha tem câncer e teve um seio extirpado. Vai a
uma funerária para tomar as providências do próprio funeral e passa a ser
assediada por Timbira, o funcionário que faz o orçamento do enterro de luxo. Logo
passa a sentir uma gripe galopante e acredita que morrerá.
Zulmira, próxima da morte, revela ao marido que um homem, Pimentel,
que poderá pagar por um funeral tão caro. Tuninho procura Pimentel e descobre
que ele é o amante da própria esposa. Através de ameaças e chantagens, Tuninho
consegue extrair uma grana alta de Pimentel. Três homens ficam desencantados
pela mesma mulher, e a disputam: Timbira que se viu desiludido na sua conquista
e na vantagem de vender-lhe um enterro caríssimo, acreditando que era para uma
amiga de Zulmira; Pimentel, pelo término abrupto da aventura, porque a prima de
Zulmira os viu juntos na rua, também frustrado, porque não viu o corpo da amante
pela última vez e impotente diante da extorsão do marido de Zulmira; e Tuninho
que está triste pela morte da esposa, consumido pelo ódio da traição e por saber
que Zulmira o odiava. O marido ressentido vinga-se comprando o enterro mais
barato, faz uma aposta insana num estádio de futebol, onde perde todo dinheiro
da chantagem, e afunda em lágrimas.
Zulmira considera-se “a maior errada de todos os tempos”, “burra que dói”,
dona de uma única “combinação horrível” com um “remendo do tamanho de um
bonde”, uma “pobre-diaba” que vai a um médico “gagá”, espera no calor “37 horas”
para ser atendida, passa por um “exame matadíssimo”, etc. Ela e o marido estão
“na última lona”, está “meio bombardeada” com uma tremenda gripe (Rodrigues,
1985). A vida de Zulmira é humilhante e cheia de sacrifícios; parece que nada
certo para ela. Então o sonho de morte passa a dar-lhe um sentido, e vivencia o
martírio, como outra personagem da crônica
Divina comédia
, Marlene: “[...] uma
mártir, uma Joana D’Arc do tédio [...]” (Rodrigues, 2012c, p. 90). O desejo de Zulmira
vem agora embalado em um enterro tão bonito que faria os outros sofrerem de
inveja.
Zulmira implora só, no quarto, após uma discussão com Tuninho, que se
deve: “Perdoar sempre! Perdoar dia e noite! Morrer perdoando!...” e “A uma morta
não se recusa nada!”. Diante da indagação do marido, a esposa responde que:
“Uma morta não precisa responder...” e suplica-lhe: “Prometeste que eu teria esse
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enterro bonito, lindo... de penacho... 36 mil cruzeiros... Jura outra vez, jura!”
(Rodrigues, 1985). Mas Tuninho não perdoa após saber o motivo por que um
desconhecido lhe daria tanto dinheiro para um funeral. A personagem procura
transcender a miséria de sua vida por meio dos ritos funerários luxuosos que
deseja para si. Zulmira parece que, inconscientemente, procura se unir a alguém
capaz de realizar seu desejo de ostentar, diante dos vizinhos e parentes, alguma
“glória”, nem que fosse em seu último ato: a morte.
Como fuga da vida ordinária, Zulmira passa a trair Tuninho, de certa forma,
para provar a si mesma que não era fria, como o marido afirmava, e porque estava
ressentida desde a lua-de-mel: Tuninho “não fez outra coisa” a não ser lavar as
mãos durante todo o tempo. Nelson Rodrigues observa: “[...] como o ‘irrelevante’,
o ‘sem importância’ influem nas leis do amor e do ódio” (Rodrigues, 2008, p. 62).
Diz que a personagem era realmente fria, porque vivia num mundo sem amor. No
terceiro ato, após a morte de Zulmira, temos a revelação que motivou a traição: o
marido que a acha fria e o ato de lavar as mãos após o sexo. A partir desse
momento, ela sentiu que iria traí-lo devido a um cotidiano que acaba matando as
ilusões e os sonhos. Zulmira vai em busca do desconhecido para tentar escapar
das frustrações da vida suburbana sem perspectivas. Fascinada por um homem
estranho e pelo que ele pode lhe proporcionar, a heroína suburbana expressionista
trai.
A personagem imagina que a traição dela não seria descoberta, e se fosse,
Tuninho havia jurado que perdoaria e cumpriria o desejo da esposa. Enquanto a
personagem Geni, de
Toda nudez será castigada
, tem consciência de que está
sendo punida por ter sido prostituta, resta-lhe o câncer, e o remorso lhe corrói a
vida. Geni é uma personagem de Nelson Rodrigues que ousou romper com os
laços da moral e dos bons costumes. Geni se mata, porque o seu real amor não
se concretiza. Se Zulmira pudesse olhar para trás e purgar todos os
ressentimentos, assim como fez Sônia, de
Valsa 6
que rememora o seu
passado enquanto morta, revendo todos os erros e acertos para poder juntar
todos os pedacinhos e os fragmentos que foram decompostos ao longo da sua
vida – talvez encontrasse alguma paz.
A falta de escrúpulos com que Nelson Rodrigues delineia suas personagens
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é notória, e o malogro de tirar alguma vantagem recai sobre todos. Algumas
personagens que aparecem na história acabam tirando algum proveito de Zulmira:
a cartomante tem interesse no dinheiro dela, o doutor Borborema quer ficar logo
livre da consulta, e o agente funerário quer saber de seduzi-la e empurrar-lhe
um enterro bem caro. Característica que aparece em quase toda galeria das
personagens rodriguianas. No último ato, após a morte de Zulmira, Tuninho
descobre o porquê do pudor dela, a obsessão por um enterro luxuoso, o ódio que
sentia pela prima e até a revelação que a própria esposa o odiava após as
revelações de Pimentel, o amante de Zulmira. Então Tuninho vinga-se ao negar a
Zulmira o que prometeu na hora da morte. A vingança acontece por ser um
homem da zona norte, pois, caso fosse da zona sul, como diria a “grã-fina do nariz
de cadáver”11, o marido nem reclamaria.
A agonia das personagens persiste, arrasta-se num círculo vicioso. Elas não
têm direito a obter alguma vantagem ou um final feliz. O choro de Tuninho no final
parece uma catarse da tragédia que viveu e também um alento, uma esperança
para que a personagem possa se redimir do drama vivido e possa internalizar a
dor da sua miséria e solidão. A morte ou juízo final é uma solução para superar a
culpa cristã, que advém do pecado. A tragédia expressa o desejo de superar a
ausência de sentido que lhe é inerente. Autores como Cleise Mendes (2008)
percebem a intencionalidade do dramaturgo em causar o terror e piedade com
essa fase. Rodrigues passou a admitir que essa forma de provocar o público era
para que o mesmo se sentisse mais dilacerado e pudesse receber o mistério do
espetáculo (Rodrigues, 2008). Para o dramaturgo: “[...] a ficção para ser purificadora
precisa ser atroz. O personagem é vil para que não sejamos. Ele realiza a miséria
inconfessa de cada um de nós” (Rodrigues
apud
Facina, 2004, p. 60). Pode-se
perceber que o traço trágico permanece na obra do autor durante toda a sua
criação.
Zulmira sofre, após ser descoberta por Glorinha, quando experimentava uma
vida sexual alegre e furtiva. O sexo é como mola propulsora da vida na obra do
autor, mas também capaz de corromper o homem. É como uma forma de aplacar
a solidão para essas personagens, o que pode acontecer tanto diante do
11 Personagem constante em muitas crônicas de Nelson Rodrigues.
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companheiro, quanto diante do mundo. Zulmira deixa-se ser levada pela morte,
na tentativa de realizar o sonho luxuoso, e também de humilhar a prima, quando
fosse despida na hora dos ritos funerários. Seu propósito é a vingança, alimento
para a alma, que vai sendo construída através de um funeral. Só que seu sonho é
malogrado, pois seu funeral é de “quinta categoria”, com o caixão mais barato que
havia na funerária. As suas tentativas de conseguir algum prazer na vida foram
destruídas, subjugadas ou repreendidas. Tenta reconciliar-se com a sua própria
existência através da “fantasia de triunfo”, mas “a vida acaba lhe pregando uma
peça”.
Para uma personagem aniquilada pela culpa como Zulmira, que sabota o seu
objeto de desejo quando faz o pedido ao marido para que tenha um funeral caro.
Mas ele não realiza o desejo da esposa, pois não perdoa a “canalhice” e o “cinismo”
da mulher. Para Facina (2004), a necessidade de um enterro luxuoso serve para
Zulmira alcançar sua representação de “santa” e poder redimir-se da sua face
“canalha” como esposa. Tuninho também seria o “canalha” e deve ser punido,
porque traiu o desejo da esposa. Segundo a autora, assim como o universo moral
rodriguiano, Zulmira deve ser punida e a morte será a única forma purificadora
para tal transgressão. Nelson Rodrigues afirmava não ser religioso, mas conservava
um espírito cristão. A punição pode vir de um moralismo que o acompanhava ou
do destino trágico a que submete suas personagens. Parece difícil dar uma
resposta definitiva em relação a isso, mas o autor sabe o que quer com suas
personagens: “ZULMIRA
(grave e definitiva)
Deixei de ser mulher!” (Rodrigues,
1985, p. 75). O autor anuncia a paisagem repressora do corpo via religião como
prenúncio da morte. Um corpo que não pode mais desejar, enclausurado em si
mesmo. A personagem renuncia ao desejo como se procurasse redimir-se da
transgressão.
Suburbano irreversível
Nelson Rodrigues considerava-se um suburbano irreversível. São inúmeras
situações na peça
A falecida
que vêm comprovar a familiaridade do dramaturgo
com os costumes da vida suburbana e do cotidiano carioca. Por exemplo, a
apresentação da cartomante, que está “de chinelos, desgrenhada, um aspecto
inconfundível de miséria e desleixo”; seu filho, um “pirralho” que está sempre “com
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o dedo no nariz” (Rodrigues, 1985, p. 57); o fato da cartomante já ter sido presa, as
cartas “ensebadas”, a perda do sotaque quando termina a leitura das cartas para
Zulmira etc. A cartomante avisa a Zulmira que foi presa, provavelmente por
alguém que a denunciou como charlatã, pois faz uma leitura das cartas
totalmente farsesca e, mesmo assim, a pobre suburbana sai acreditando no que
a mulher de chinelos e desgrenhada manda-lhe fazer. A exposição dessas
situações que exemplificam a intimidade do autor com o subúrbio refere-se
apenas a cena do encontro entre Madame Crisálida e Zulmira.
O escritor considerava a classe média, especialmente a suburbana, mais
interessante e mais humana. Ele era fascinado por essa classe ou por uma classe
muita baixa. Os grã-finos já não o interessavam, pois eles precisariam de “vinte e
cinco mil estímulos” para matar enquanto a classe média era mais heroica por ser
capaz de matar e de matar-se. Apesar do dramaturgo retratar mais o cotidiano
nas tragédias cariocas, havia a cobrança sobre a ausência no seu teatro de críticas
sociais, mas situações na peça
A falecida
nas quais se reconhece um certo tom
de crítica social: o desemprego, a forma de aproveitar o tempo livre custeado pela
indenização do trabalho, a fuga da realidade através do futebol e de um enterro
que cause inveja aos vizinhos, a disputa pelo único banheiro da casa, o passar mal
com um pastel de algum boteco sem qualidade, o ressentimento pela falta de um
atendimento médico digno, a canalhice que envolve a personagem ressentida
entre outras.
O olhar extremamente observador do autor, com relação aos costumes da
vida no subúrbio e ao cotidiano vivenciado no centro do Rio de Janeiro, nas suas
horas de intervalos de almoço e cafezinho, além da experiência como repórter de
polícia, proporcionaram ao escritor um uso bastante familiarizado com a
linguagem coloquial. Os espaços cariocas encontrados na obra de Nelson
Rodrigues representam uma personagem que está defendendo seu papel. Os
encontros furtivos, secretos e indesejáveis fazem parte do mundo rodriguiano,
como o encontro de Zulmira com o amante em um banheiro de sorveteria. Esse
encontro na Cinelândia proporciona a aproximação de duas realidades distintas: a
da Aldeia Campista e a do milionário Pimentel. O centro da cidade serve de ponto
de encontro e desencontro da zona norte com a zona sul. Rodrigues usa a
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referência do cinema
Odeon
: “Sabe aquela sorveteria da Cinelândia, que fica perto
do ‘Odeon’?” (Rodrigues, 1985, p. 105). outras cenas em
A falecida
que
acontecem na Aldeia Campista, na Praça Saens Peña ou no estádio do Maracanã.
Uma intimidade bem maior do autor com o coloquialismo se faz sentir em
seus modos de expressão nas tragédias cariocas. Além dessa transformação que
ocorre em seus diálogos teatrais, Rodrigues recorre ao grotesco na construção de
suas cenas. Uma das passagens em
A falecida
é a de Tuninho, sentado no vaso à
maneira de
O pensador
de Rodin. Ao mesmo tempo em que, ironicamente, o
dramaturgo revela as condições econômicas da personagem: desempregada,
vivendo à custa da indenização trabalhista e miseravelmente disputando o
banheiro com a mulher em um momento de urgência. Rodrigues revela uma cena
prosaica, absurda e natural que é pensar no trono (Matos, 2022). Cenas triviais
como essa, além de outras como espremer cravos e espinhas, coçar pernas
cabeludas, colocar pau de fósforo no dente, pôr-se de cócoras, botar remédio de
baratas nas gavetas de uma cômoda, fazem parte do grotesco e da vulgaridade
presente na vida das personagens. Uma personagem fala para a outra que o ato
de despalitar os dentes é de uma falta de poesia absoluta. Outra justifica que é
porque um pedaço de comida caiu no buraco de um dente e em cima de um
nervo. Timbira “[...] está quebrando nos dentes um pau de fósforo, cospe-o fora”
(Rodrigues, 1985, p. 114).
Considerações finais
A arte rodriguiana é quase confessional, o que se permite perguntar sobre o
quanto de sentimentos inerentes ao autor são projetados em suas histórias e
personagens (Matos, 2022). Na tessitura da criação de
A falecida
, nem sempre
seus textos foram construídos a partir de uma ideia de originalidade e de
genialidade do autor. Ele próprio costumava mascarar sobre dados das suas
inspirações e reelaborações nos seus escritos12. Na peça, Zulmira e Tuninho vivem
12 Rodrigues dizia que sua grande virtude era não trapacear, não ser “moedeiro falso”, pois seus textos exigiam
todas as coragens que acumulava. No entanto, afirmou ter levado seis meses para escrever
Vestido de
noiva
, porque se assumisse que escreveu rápido seria desmoralizante. Dessa forma, tinha consciência que
estava trapaceando e sendo cínico (Rodrigues, 2009a).
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sofrimentos de mortes, de tristezas, de humilhações, de invejas e de
ressentimentos que fazem parte “da carne e da alma” de diversas personagens
rodriguianas. Todavia guardam uma rebeldia e desconforto com a vida que levam.
As cenas de ruas do Rio de Janeiro – tanto no modo de vida peculiar do subúrbio,
quanto do centro da cidade também proporcionaram o processo criativo do
autor e a renovação da sua linguagem cênica.
As relações no mundo rodriguiano acabam constituindo-se através de uma
forte obsessão pelo sexo e pelo dinheiro. Além de Zulmira,
Boca de Ouro
é outra
personagem direcionada pelo dinheiro e que padece do mesmo mal como forma
de superar uma origem miserável. As duas personagens buscam uma redenção
nem que seja com a morte. Mas Tuninho compra, para Zulmira, o caixão mais
barato, e no necrotério Boca encontra-se desdentado, sem a glória de um enterro
em caixão de ouro. Os objetos de desejos podem ser parentes, vizinhos,
desconhecidos, o futebol, um funeral de luxo ou até por um par de botas para
representar o noivo em
Dorotéia
. O desejo se desloca na obra de Rodrigues para
personagens que se sentem frustradas em suas tentativas de realização. O lugar
da falta, o vazio que precisa ser preenchido de alguma forma, ou a angústia a ser
escoada recaem sobre algo fora do comum, fora da banalidade das vidas a que
se sentem aprisionados.
Nelson Rodrigues apela para amostras da vida ordinária suburbana. Coloca
as personagens em situações sem nenhum pudor ou glamour. O suburbano é
revelado sem poesia. Seu mundo é mesquinho. As cenas parecem ser mostradas
para provocar o derrisório e o absurdo da situação. Verifica-se que Nelson
Rodrigues utiliza das cenas cotidianas de uma vida ordinária como provocação,
repúdio e humor. O “real” e o “natural” fazem parte da obra rodriguiana e a
influência do naturalismo também passa a ser discutida em Rodrigues. O autor
admitia que o considerado mau gosto era primordial na sua literatura e os
“defeitos inevitáveis” deviam fazer parte dela para que pudesse estabelecer a
“seiva indispensável” a toda obra de arte. Além da ironia, do trágico, do grotesco,
das memórias, das referências ao espaço geográfico por onde Nelson Rodrigues
transitava, há também em sua obra uma grande influência do estilo da linguagem
suburbana, com seu ritmo frenético ou ralentado, e que é incorporado aos
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: as obsessões e imagens recorrentes no processo criativo de Nelson Rodrigues
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diálogos, assim como as gírias, as formas gramaticais específicas de um modo de
falar incorreto e os estrangeirismos que auxilia no humor rodriguiano.
A peça
A falecida
traz “composições” que faziam parte da escrita
rodriguiana, que não tem o menor pudor em revisitar a sua própria obra e de
outros escritores, retrabalhar suas obsessões e insistir nas mesmas metáforas,
como espírito libertário e criador como costumava se auto-intitular. Memórias de
infância, referências artísticas e a autorreferencialidade proporcionaram a Nelson
Rodrigues elementos, inspirações e materiais que enriqueceram seu imaginário na
construção da peça. Buscar as semelhanças e aproximações entre as suas
próprias criações e as outras obras, perpassar pelas memórias do autor, história
de vida e também seu universo literário torna-se uma forma de compreender o
processo criativo de uma peça como
A falecida
. muitas críticas sobre ver a
obra de um autor como sintoma da sua vida, como é possível verificar pelo
método da psicocrítica, mas ela pode apresentar-se como válida e pertinente para
a leitura proposta. Essa leitura pode servir de alimento à construção do olhar, da
percepção e da reflexão do leitor a respeito de
A falecida
sob uma perspectiva.
Diversos olhares poderão lançar, cada um à sua maneira, seu ponto de vista sobre
a peça além dos olhares de estudiosos –, mas não se pode deixar de perceber
as marcas que a própria obra apresenta, pois nenhum olhar verá mais do que
A
falecida
dirá sobre si mesma.
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Recebido em: 24/10/2023
Aprovado em: 18/05/2024
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Programa de Pós-Graduação em Teatro
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