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Operárias da cena: a participação de mulheres no
ofício cenotécnico teatral
Priscila de Souza Chagas do Nascimento
Para citar este artigo:
NASCIMENTO, Priscila de Souza Chagas do. Operárias da
cena: a participação de mulheres no ofício cenotécnico teatral.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1, n. 50, abr. 2024.
DOI: 10.5965/1414573101502024e0111
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Operárias da cena: a participação de mulheres no ofício cenotécnico teatral
Priscila de Souza Chagas do Nascimento
Florianópolis, v.1, n.50, p.1-27, abr. 2024
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Operárias da cena: a participação de mulheres no ofício cenotécnico teatral1
Priscila de Souza Chagas do Nascimento2
Resumo
O presente artigo discute o apagamento e a exclusão de mulheres cenotécnicas nas
produções teatrais brasileiras, assim como as divisões sexuais presentes nas etapas da
linha de produção desse ofício. Para isso, dialogamos com conceitos teóricos e
metodológicos de autoras do pensamento feminista que contribuem com os discursos
pautados: Perrot (1998), Spivak (2010) e Kilomba (2019). Por meio de análise documental,
apontamos a participação efetiva das mulheres cenotécnicas e a divisão do trabalho
presente nas etapas da produção cenográfica.
Palavras-chave
: Cenotecnia. Mulheres cenotécnicas. Divisão sexual do trabalho.
Epistemicídio.
Scene workes: the participation of women in the theatrical cenotechnical craft
Abstract
This article discusses the erasure and the exclusion of female stage technicians in
Brazilian theatrical productions, as well as the sexual divisions present in the stages of
the production line of this craft. For this, we dialogue with theoretical and methodological
concepts of authors of feminist thought who contribute to the guided speeches: Perrot
(1998), Spivak (2010) and Kilomba (2019). Through documental analysis, we point out the
effective participation of women scenographic technicians and the division of labor
present in the stages of scenographic production.
Keywords
: Cenotechnics. Women Cenotechniques. Sexual division of labor.
Epistemicide.
Trabajadores de escena: la participación de las mujeres en el oficio escenotécnico teatral
Resumen
Este artículo discute el borrado y la exclusión de las mujeres escenotécnicas en las
producciones teatrales brasileñas, así como las divisiones sexuales presentes en las
etapas de la línea de producción de este oficio. Para ello, dialogamos con conceptos
teóricos y metodológicos de autoras del pensamiento feminista que contribuyen a los
discursos orientados: Perrot (1998), Spivak (2010) y Kilomba (2019). A través del análisis
documental, señalamos la participación efectiva de las mujeres escenotécnicas y la
división del trabajo presente en las etapas de la producción escenográfica.
Palabras clave
: Escenografía. Mujeres escenotécnicas. División sexual del trabajo.
Epistemicidio.
1 Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada por Eduardo Santos de Oliveira graduação
em Letras (Universidade Federal de São João dl-Rei, UFSJ) e em Jornalismo (Universidade Federal do
Maranhão, UFMA), com mestrado e doutorado em Linguística (Universidade Estadual de Campinas,
Unicamp).
2 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (PPGAC/UNIRIO) com bolsa CAPES. Mestra em Artes Cênicas pela Universidade Federal de São João
del-Rei (PPGAC/UFSJ). Graduada em Artes Cênicas (licenciatura) pela Universidade Federal de Ouro Preto
(DEART/UFOP). Professora e Cenotécnica. priscilachagasn@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6105434442185302 https://orcid.org/0000-0003-4514-174X
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Apresentação
Sendo assim, demando uma epistemologia que inclua o pessoal e
subjetivo como parte do discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos
de um tempo e lugar específicos, de uma história e uma realidade
específicas não há discursos neutros
(Kilomba, 2019, p.58).
Interessante, mas
acientífico
; interessante, mas
subjetivo
; interessante,
mas
pessoal, emocional, parcial
: “Você interpreta demais”, disse uma
colega. “Você deve achar que é a
rainha da interpretação
”. Tais
comentários revelam o controle interminável sobre a voz do
sujeito
negro
e o anseio de governar e comandar como nós nos aproximamos e
interpretamos a realidade
(Kilomba, 2019, p. 55).
Este artigo é desenvolvido a partir de leituras e discussões sobre a produção
intelectual de pensadoras feministas que possibilitou uma revisão e
reconsideração dos caminhos escolhidos para a investigação do ofício da
cenotécnica trabalhada desde 2019, durante a pesquisa de mestrado3. A
cenotécnica é compreendida como uma categoria profissional teatral que, mesmo
regulamentada pela lei 6.533 de 1978, é considerada um fazer operacional
técnico e distanciada das questões referentes às linguagens visuais estéticas que
envolvem os estudos das artes cênicas. Essa compreensão foi pautada durante a
pesquisa de mestrado, na qual pudemos observar as subordinações do ofício
diante das questões socioeconômicas que são determinantes nos contratos dos
profissionais; também se faz a partir de uma leitura histórico-cultural que
representa os significados dicotômicos dos fazeres teatrais como técnico ou
artístico, execução ou criação. A cenotécnica, como ofício, trata-se de um
instrumento operacional que organiza e orienta um evento cênico, seja ele teatral,
musical, ópera e/ou dança, fazendo parte das funções desempenhadas: a
3 A referida pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Núcleo de Estudos de Técnicas e Ofícios da Cena do
Grupo de Pesquisa em História, Política e Cena (CNPq) do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da
Universidade Federal de São João del-Rei (PPGAC/UFSJ), sob orientação do Prof. Dr. Berilo Luigi Deiró Nosella
e apoio da Capes. Possui resultados presentes nas seguintes publicações: (Nascimento, 2022; Nosella et.al,
2022; Nosella et.al, 2023).
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marcenaria, a serralheria, a maquinaria teatral, a pintura, a escultura, a
administração e a gestão de materiais, espaço e pessoas.
Para pensar a prática do ofício cenotécnico (ainda pouco investigado no
âmbito acadêmico brasileiro), foi fundamental direcionar a investigação para os
sujeitos que a realizam e organizam esse trabalho, tendo esses operadores como
o ponto principal dos estudos que venho desenvolvendo desde o mestrado. É por
meio do método da história oral, da produção de entrevistas, da coleta de
narrativas dos trabalhadores, que a pesquisa constrói um argumento sobre as
seguintes questões: O que é a cenotécnica? O que faz a cenotécnica? Como se
faz o trabalho cenotécnico?
Assim como Gayatri Chakravorty Spivak (2010), que partiu de uma autocrítica
ao seu trabalho vinculado ao Grupo de Estudos Subalternos da Universidade
Cornell para a escrita do livro
Pode o Subalterno Falar?
(2010), também parto de
uma autocrítica sobre a investigação que realizei durante a pesquisa para a
dissertação de mestrado e os recortes nela determinados. Também partirei da
compreensão dos lugares em que falo e atuo como lugares de trânsito constante
entre “margem” e “centro” (Kilomba, 2019), considerando que, além de realizar o
doutoramento – investigando o ofício da cenotécnica de forma conceitual dentro
do espaço acadêmico, lugar de “centro” –, também atuo em produções
cenográficas desempenhando as funções às quais investigo (lugar de “margem”).
Elaboro aqui uma reavaliação à minha própria pesquisa e proponho um
discurso diferente do que realizei até então. Considero hoje que as mulheres
cenotécnicas sempre estiveram presentes nas coxias, galpões, ateliês e varandas;
o que não estiveram presentes foram a atenção para essa participação e a
importância de compreender que a presença dessas trabalhadoras traduz e
aponta novas questões sobre o entendimento do que é o ofício cenotécnico.
Apagamento e representação: sexo, gênero e classe
Para Gayatri Spivak (2010), a mulher subalterna, por mais que tente, não pode
falar; isso ocorre porque a estrutura hegemônica das formas sociais e econômicas
não permite, assim como os espaços acadêmicos junto às suas produções
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intelectuais são cúmplices “dos interesses econômicos internacionais ocidentais”
(Spivak, 2010, p. 20). São os intelectuais ocidentais, pós-estruturalistas, os
principais materiais de análise e crítica de Spivak para tratar sobre a fala e a escuta
dos sujeitos subalternos, do Outro. Diante disso, a autora considera que, mesmo
que Deleuze e Foucault contribuam para a análise dos sujeitos, eles fazem isso
diante de uma perspectiva de um sujeito universal:
Essa matriz parassubjetiva, entremeada com a heterogeneidade, conduz
ao Sujeito inominado, pelo menos para aqueles trabalhadores
intelectuais influenciados pela nova hegemonia do desejo. [...] Como o
desejo é tacitamente definido com base em um modelo ortodoxo, ele se
opõe unitariamente a “ser enganado”. A ideologia como “falsa
consciência” (ser enganado) foi questionada por Althusser (Spivak, 2010,
p. 28).
Nessa perspectiva, Spivak considera que para Deleuze o objetivo seria
“estabelecer condições nos quais os prisioneiros seriam capazes de falar por si
mesmos” e para Foucault o entendimento seria de que “as massas sabem
perfeitamente bem, [...] eles sabem mais do que [o intelectual] e certamente o
dizem muito bem” (Spivak, 2010, p. 29). Spivak (2010, p. 30) conclui: “Nem Deleuze,
nem Foucault parecem estar cientes de que o intelectual, inserido no contexto do
capital socializado e alardeando a experiência concreta, pode ajudar a consolidar
a divisão internacional do trabalho”. Portanto, a representação estará em dois
sentidos: o representar (
vertreten
), “no âmbito do Estado e da economia política,
por um lado”; e o re-presentar (
darstellen
), na “teoria do Sujeito, por outro” (Spivak,
2010, p. 33). Assim, não é possível falar pelo Outro quando se está impregnado de
desejo e poder nas escolhas e análises do entendimento que se ao Sujeito
este é o Outro pela sombra do Eu.
A análise do Sujeito é questão central nas produções dos conhecimentos
feminista e pós-colonial, e a escrita é tida como ato de resistência. Um dos
estudos de casos trazidos por Spivak (2010) foi o enigma do suicídio da jovem
Bhuvaneswari Bhaduri, de 16 ou 17 anos, encontrada morta em período menstrual
o que eliminava a possibilidade de a jovem estar grávida e, por isso, ter cometido
o suicídio. Para Spivak (2010, p. 123):
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Bhuvaneswari sabia que sua morte seria diagnosticada como o resultado
de uma paixão ilegítima. Ela, então, esperou pelo início da menstruação.
Enquanto aguardava, Bhuvaneswari, a brahmacarini que
indubitavelmente esperava exercer a condição de um espaço, talvez
tenha reescrito o texto social do suicídio
sati
de uma maneira
intervencionista (uma explicação presumível para seu ato inexplicável
tinha disso uma possível melancolia causada pelos repetidos insultos de
seu cunhado pelo fato de ela ser velha demais para ainda não estar
casada).
Neste caso, a escrita deixada pela jovem foi em seu próprio corpo. Nesse
sentido, quais outras escritas podemos escrever em nossos corpos?
Grada Kilomba (2019) considera problemático o posicionamento trazido por
Gayatri Spivak (2010) quando tratado como uma afirmação de que a mulher
subalterna é silenciosa (ou silenciada) e, por isso, não pode falar. Kilomba
argumenta que esse posicionamento “atribui um poder absoluto ao discurso
dominante
branco
”, em que “grupos subordinados se identificam de modo
incondicional com os poderosos e não têm uma interpretação independente válida
de sua própria opressão” (Kilomba, 2019, p. 48, itálico da autora). Portanto, Kilomba
compreende que a leitura de Spivak vem mais forte como uma crítica aos
intelectuais pós-coloniais que romantizam os
sujeitos
resistentes” (Kilomba, 2019,
p. 49, itálico da autora). É apontando o “mito do universal”, “da objetividade” e “da
neutralidade” que Kilomba trará em pauta as determinações do que é considerado
um conhecimento científico e um conhecimento “acientífico”; nas dicotomias
(universal e específico; objetivo e subjetivo; neutro e pessoal; racional e emocional;
imparcial e parcial; elas/eles) há fatos, e nós temos experiências (Kilomba, 2019).
Michelle Perrot (1998) traz à pauta a investigação sobre as condições
históricas das mulheres no espaço público, ou as
mulheres públicas
, assim como
se faz o título do seu livro-entrevista cedida ao jornalista Jean Lebrun, e uma série
de imagens em narração. Buscando “compreender a diferença entre os sexos que
explode na cidade” (Perrot, 1998, p. 7), a autora observa que os homens públicos
(o dia) obtêm valores e espaços distintos das mulheres públicas (a noite);
enquanto o primeiro Sujeito “desempenha um papel importante e reconhecido”
(Perrot, 1998, p. 7), o segundo é visto como criatura que, quando pública, “pertence
a todos”:
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Na sociedade que pensam o político, isso [a diferença do sexo] se traduz
por uma divisão racional dos papéis, das tarefas e dos espaços sexuais.
É o que acontece com a cidade grega ou com a República romana. É o
caso da democracia ocidental moderna. A Revolução Francesa constitui,
sob este aspecto, um tempo forte de recomposição. Ela finda o espaço
público contemporâneo em que nos deteremos (Perrot, 1998, p.9-10).
Identificando essa diferença entre o dia (homens públicos) e a noite
(mulheres públicas), Perrot levanta a seguinte questão: “Por que as mulheres que
conquistaram a igualdade civil, a instrução, a condição de assalariadas, certas
formas da criação, o esporte de alto nível etc., têm tanta dificuldade em chegar
aos comandos da cidade, tanto econômicos quanto políticos? (Perrot, 1998, p.12).
A carpintaria e a pintura de arte são áreas fundamentais que dão origem aos
fazeres cenotécnicos, e ambas representam uma relação binária e antagônica que
se constitui numa arte que se diferencia da técnica e do artesanato. O apagamento
diante do trabalho cenotécnico corresponde a essa perspectiva dicotômica
quando o relacionamos com o produto do espetáculo cênico, pois mesmo que
seus operadores estejam presentes, não são vistos nem conhecidos por aqueles
que assistem seu próprio trabalho. Porém, mesmo diante dessa relação, identifico
que o símbolo divisor de valor que separa os tipos de fazeres (arte x técnica) é
frágil quando trabalhamos com a arte do espetáculo.
“Eu sou quem descreve minha própria história”
Essa citação de Grada Kilomba (2019), que título a esta passagem do
trabalho, traduz que a escrita “emerge como um ato político” (Kilomba, 2019, p.
28); portanto, em busca de não sombrear o Eu da análise, proponho a presente
escrita em primeira pessoa. Trazendo relatos, proponho-me a debruçar sobre
como fui e somos capazes de reproduzir formas que não compactuamos na
intenção de se adequar aos padrões estabelecidos.
O caminho que atravessa a minha formação nos estudos das artes cênicas
fundamenta o discurso que elaboro sobre o silenciamento do trabalho
desempenhado pelos e pelas profissionais da cenotécnica teatral. Venho de uma
formação técnica em interpretação, seguindo de uma graduação de licenciatura
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em Artes Cênicas e, após essa formação superior, de outra formação técnica livre
dentro da linha de estudos em Técnicas de Palco4. É nesta última formação que
passo a conhecer o trabalho da cenotécnica, que hoje representa não apenas meu
objeto de pesquisa, mas também o ofício que desempenho como fonte de renda,
conciliado com o doutorado inicialmente sem bolsa.
Lembro-me que em 2020, quando participei de uma primeira comunicação
oral no
III Seminário de Design Cênico: elementos visuais e sonoros da cena
,
organizado pelo Grupo de Trabalho Poéticas Espaciais, Visuais e Sonoras da
Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas (ABRACE),
senti que, ao mesmo tempo em que o tema da pesquisa parecia interessar aos
participantes, foi extremamente difícil desenvolver um diálogo com os demais
trabalhos apresentados na mesa. Essa sensação me fez migrar para outro Grupo
de Trabalho da mesma associação: o GT de História das Artes e do Espetáculo da
ABRACE.
O trabalho da cenotécnica pode ser considerado uma representação; ele
consegue traduzir o que está no desenho, em escalas menores, para uma escala
real e materializar toda a ideia que o cenógrafo tem mas que, em muitas vezes,
não é capaz de executar. É o cenotécnico quem cria – no sentido de fazer ganhar
forma por meio da manipulação de ferramentas e transformação dos materiais –
toda a estrutura que preenche os palcos e modifica o espaço da cena. Além disso,
ele é responsável por operar e criar formas para realizar efeitos mágicos (como o
voo de Peter Pan e a aparição dos deuses das máquinas na mitologia grega). Essa
relação do sujeito com o meio e os objetos de trabalho foi ponto importante para
entender a dinâmica da cenotécnica, e como este trabalhador manipula
ferramentas de peso e complexas, necessitando de técnicas e criatividades para
modificar os fins e executar o trabalho.
4 Técnico(a) de palco é um termo genérico de mercado muito utilizado para designar aqueles profissionais
que, além da parte construtiva de objetos cenográficos, executam funções na organização do espaço cênico,
por exemplo: contrarregra, maquinista e diretor de palco que, são categorias profissionais regulamentadas.
Essa nomenclatura também foi adotada pela SP Escola de Teatro Centro de Formação das Artes do Palco
para o curso que forma profissionais cenotécnicos e está presente entre os códigos da Classificação
Brasileira de Ocupação do Ministério do Trabalho e Emprego (CBO/MTE).
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Poderia buscar a compreensão da cenotécnica a partir da análise de um
espetáculo este que é resultado final do trabalho que apresenta todos os efeitos
ilusórios por ele gerados. O impacto causado pelo cenário em cena, os efeitos de
manobras como voos, derrocadas e entradas de carros cenográficos são
frequentemente associados ao projeto, ou seja, ao desejo e ideia do cenógrafo,
aquele que cria. Dessa forma, esquece-se daqueles que materializam o tal projeto
e que descobrem formas de fazer acontecer; formas essas que em muitas vezes
não estão descritas no projeto entregue (plantas, desenhos técnicos e digitais,
croquis e maquetes), pois são produzidas na dinâmica do fazer. Como seria
pesquisar um evento considerado marcador do teatro brasileiro, como o
Vestido
de Noiva
encenado em 1943, partindo do ponto de vista da prática cenotécnica e
não da ideia cenográfica, ou até mesmo, da relação do espetáculo com sua
produção e não do resultado apresentado ao público? Como não permitir que se
corra “o perigo de uma história única” (Adichie, 2019)? Garanto que questões como
segurança, jornada e demais condições de trabalho passariam a fazer parte dos
nossos olhares para a historiografia teatral.
Nos estudos cenotécnicos, a representação traduz ambos os sentidos
apresentados por Spivak (2010) partindo da língua alemã. A princípio, trata-se da
representação do objeto, do projeto, do Outro, mas logo parte-se para a
representação sobre os valores e práticas do trabalho. É partindo da representação
de trazer em pauta questões sobre uma prática de trabalho que está entre o
projeto e o espetáculo, entre a ideia e a realização, que abordo os saberes
construídos por esses profissionais que não possuem formação institucional na
área do seu ofício5.
A partir da experiência que tive nos galpões de produções cenográficas,
entendi que não seria necessário pensar o trabalho da cenotécnica tendo como
pauta um evento específico; eu poderia falar dos saberes que abarcam o trabalho
cenotécnico “simplesmente” trazendo os saberes produzidos por esses
profissionais e compartilhados em seus espaços de trabalho, que é a forma
5 As limitações sobre a formação profissional para execução das funções cenotécnicas é uma pauta a ser
discutida em outro momento e que tem sido investigada e elaborada no doutoramento.
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tradicional de transmissão e aprendizagem do ofício. Assim, identifico que existe
na feitura dos objetos cenográficos uma produção de saberes aplicados,
compartilhados e que estão presentes em suas funções, ou melhor, em nossas
funções. Identifico também que o baixo número de pesquisas e discussões que
abordam esses saberes representa um projeto político-econômico que aplica valor
inferior aos fazeres manuais, apresentando apenas o que se considera parte de
um fazer pensante. Buscando romper com essa perspectiva que acompanha o
mito da universalidade, imparcialidade e objetividade (Kilomba, 2019), entendo que
aquele que executa uma atividade manual pensa sobre o que ele faz (Senett, 2021).
O trabalho cenotécnico de construção, montagem e operação de cenário é
comparado com o trabalho de um operário de obra da construção civil. De fato, a
dinâmica do trabalho é semelhante, assim como as desigualdades
socioeconômicas presentes sobre esses construtores e os criadores dos projetos
em execução. Essa discussão é pontualmente abordada por Sérgio Ferro em
O
canteiro e o desenho
(2006), percebendo a relação hierárquica em que o desenho
busca ditar o fazer do operário. Porém, essa dinâmica hierárquica e de mercado é
camuflada por algumas produções teatrais que buscam ocultar esse fazer dito
operacional e técnico ou simplesmente defender a ideia de que em suas
produções um trabalho colaborativo no qual todos fazem e sabem tudo. É possível
que essa visão seja coerente com determinados modos de produção teatrais
como, por exemplo, os “teatros de grupo” que propõem desenvolver um trabalho
de pesquisa contínua e coletiva. Mas é de se saber que a presença do cenotécnico
nesses espaços é, em sua maioria, passageira e a diferença é apresentada pelos
valores pagos a cada trabalho. Mesmo em um teatro de grupo, eles acionam
constantemente os serviços do cenotécnico, seja para alguma estrutura de
madeira, metal e adereçamentos, ou para a manutenção e reparos do próprio
edifício ocupado. O cenotécnico é o Outro do espetáculo que participa, porém, não
tem voz e atividade nas tomadas de decisões.
Os saberes e fazeres presentes nas realizações dos eventos cênicos são
maiores e mais complexos do que aparentam nos manuais de cenotecnia
publicados no século passado (exemplos: Acir; Saraiva; Richiniti, 1997; Brasil, 1995
e 1997; Rangel, 1949). O acontecimento teatral é visto a partir de um recorte
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minucioso e necessário, muitas vezes, para possibilitar o seu efeito estético, sua
magia, sua ilusão e a transmissão da mensagem que está sendo passada. Porém,
as técnicas aplicadas para possibilitar todo o efeito mágico presente no espetáculo
é pouco investigada não apenas entre seus apreciadores e críticos, mas também
entre os seus fazedores. Em cena, na perspectiva da visão do espectador, estão
presentes: atores e atrizes caracterizados/as com seus figurinos, maquiagens,
perucas e adereços; os cenários e objetos de cena são movimentados e
manipulados de forma mágica, “sozinhos”; as luzes e suas variações de cores,
sombras e fumaças que aguçam a atmosfera da ação; e, de forma intangível, o
desenho sonoro que transfigura as emoções diante daquilo que se passa. Todos
esses elementos presentes e apresentados são e foram projetados,
materializados, construídos e estão a todo momento sendo
manipulados/operados de formas e em momentos distintos; tudo isso para que
ali pudessem, juntos, tornarem algo único – o espetáculo.
Pergunto então: Quantos profissionais são necessários para preparar um
evento teatral? Quem são esses profissionais? Quais são suas atividades? O que
eles sabem? Como eles sabem? Essas questões são pensadas em busca de
ampliar a percepção comum que temos sobre os profissionais teatrais e, com isso,
de discutir a respeito das relações de trabalho que determinam alguns tipos de
produção. Foi partindo dessas questões que pude abrir a pauta aqui proposta; foi
pensando nas relações profissionais que vão além de papéis atribuídos como
artísticos (encenadoras e encenadores, atrizes e atores, cenógrafas e cenógrafos,
figurinistas, iluminadoras e iluminadores) que apresento, como ofícios teatrais, os
papéis atribuídos como técnicos (operadoras e operadores, cenotécnicas e
cenotécnicos, maquinistas e contrarregras) como objetos/sujeitos centrais de
pesquisa.
No livro
Manual de cenotecnia
, organizado por João Acir, Julio Saraiva e Lídia
Richiniti (1997), observo uma questão chave que argumenta a importância de
refletirmos não apenas sobre a presença de mulheres no ofício cenotécnico, mas
também no apagamento e exclusão desses corpos na elaboração desenvolvida
até então para a compreensão desse ofício, e que reflete fortemente em nossa
língua portuguesa (Kilomba, 2019). Nas páginas iniciais do livro que antecedem o
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sumário, os autores elaboram a descrição dos termos cenotecnia, cenotécnica e
cenotécnico, de forma a separar e atribuir a cada um deles a sua aplicação. Para
a palavra
cenotecnia
, é descrito que se trata do “estudo e instrumentação da
infraestrutura de apoio técnico à realização do espetáculo cênico” (Acir; Saraiva;
Richiniti, 1997, p. 7).
cenotécnica
refere-se aos “instrumentos e maquinarias que
viabilizam a realização cênica”, enquanto,
cenotécnico
“se refere aos aparatos e ao
pessoal que orienta, organiza e manipula a cenotécnica” (Acir; Saraiva; Richiniti,
1997, p. 7).
Essa organização debruçada pelos autores e a questão que levanto sobre tais
definições correspondem ao que Kilomba (2019) chama de problemática da língua
portuguesa diante de sua herança colonial e patriarcal que em outras línguas,
como o inglês (anglo-saxão) e o alemão (anglo-alemã), foram superadas. A
necessidade constante no uso do pronome e a utilização do pronome masculino
como pronome neutro potencializa leituras que contribuem com sujeitos
dominantes, principalmente em espaços sociais de trabalho. Acredito que essa
dinâmica detectada como problemática por Kilomba dificultou a minha análise
sobre o ofício cenotécnico durante a investigação: quando neutralizo a escrita a
partir do pronome masculino para definir o que é a cenotécnica, apago as
mulheres que surgiram durante a pesquisa, e me conduzo à uma leitura parcial do
que é o trabalho cenotécnico.
Um dos registros mais comum sobre a participação de equipes em um evento
teatral apresenta-se como
ficha técnica
. Normalmente, as fichas técnicas são
entregues ao espectador antes do espetáculo, na retirada do seu ingresso, nas
quais constam informações sobre o espetáculo: a sinopse, autorias
(dramaturgos/as), encenação (diretor/a), equipe artística (cenografia, iluminação,
sonoplastia, coreografia), elenco (atores e atrizes) e equipes técnicas de
construção, montagem e operação (cenotécnica, maquinista, produção,
contrarregragem, camarim, técnica e operação de luz, técnica e operação de som
etc.).
Ao longo de minhas investigações, tenho observado que os trabalhadores/as
cenotécnicos/as compõem uma rede profissional em que os serviços são
distribuídos e as funções aprendidas por indicações. Na dissertação de mestrado
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(Nascimento, 2022), não atentei que, ao “concluir” a escrita, estava também
entendendo que a seleção dos entrevistados e a ausência de mulheres
participantes na pesquisa foi na verdade apagada e esquecida por eles e por mim.
Talvez em algum momento compreendi que bastaria eu, uma mulher preta,
escrever sobre o ofício ignorado pela academia para que vozes femininas fossem
ouvidas. Mas hoje compreendo que não apenas silenciei as vozes das mulheres
cenotécnicas atuantes em São Paulo da década de 1970, como também silenciei
a minha voz diante de questões sobre a relação de trabalho que inicialmente me
eram fundamentais.
Questiono, diante dessa dupla jornada, em espaços aparentemente tão
distintos (o ambiente acadêmico e os galpões com suas oficinas de marcenaria e
serralheria, seus ateliês de adereçamentos e pinturas de cenário, as coxias,
varandas e urdimentos dos edifícios teatrais), como posso transitar nos dois
lugares e me colocar “por dentro” (Kilomba, 2019) de ambos. Busco trazer para o
espaço acadêmico o olhar que tenho de fora dele, assim como busco levar para
os espaços de produções do trabalho cenotécnico as compreensões que
desenvolvo na academia. Não pretendo me ausentar de um nem outro, mesmo
que essa dinâmica não seja favorável diante das condições ideais que precisamos
para a escrita e para as construções e operações cenográficas. Até quando
conseguirei transitar entre centro e margem? Ou é o momento de ir em busca da
superação dessa separação?
Percebo-me um pouco como Stuart Hall sob o olhar de Grada Kilomba:
parece que “estar dentro da besta [Inglaterra] anuncia, de alguma forma, o lugar
de perigo a partir do qual ele [Hall] escreve e teoriza, o perigo de ser da margem e
falar no centro” (Kilomba, 2019, p. 67). Isso se intensifica quando, além de falar no
centro, falamos sobre e, se possível, para a margem:
Considerando-se que a vida material está estruturada de modos opostos
para os dois grupos, a visão de cada um deles será uma inversão da outra.
O capitalista o mundo de modos que confirmam a justiça da posição
capitalista de poder. O trabalhador o mundo de uma perspectiva
diferente que afirma a humanidade essencial do trabalhador e sua
necessidade para o processo produtivo o que inclui a perspectiva limitada
e distorcida do capitalista. Isso é, quem trabalha sabe que da perspectiva
capitalista o trabalhador é simplesmente uma peça substituível do
processo de produção, e sabe que essa é uma distorção necessária da
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humanidade do trabalhador. Como o ponto de vista do trabalhador inclui
a perspectiva do capitalista, e como o ponto de vista do trabalhador é a
base de uma visão de libertação, ele é superior ao do capitalista. Essa
superioridade é epistemológica, bem como política (Longino, 2012, p. 516-
517).
Para Raymond Williams (2011), são considerados deveres significativos a uma
perspectiva de revolução cultural: se opor à subordinação crítica e medidas
compensatórias e à subalternização; ter como inimigos os proprietários,
controladores e distribuidores do conhecimento e decisões privilegiados; ser
contra a apropriação ou expropriação de estratégias e processos sociais de
trabalho geral pela indústria capitalista; ser a favor da emancipação; e,
“diferentemente dos incentivos e reformas para permitir a sua inclusão no
‘planejamento’, deverá localizar-se profundamente entre as mulheres ou, na
prática, não ocorrerá” (Williams, 2011, p. 371).
Prêmio APETESP: imagens de divulgação
A noção de “trabalho feminino” está ligada à ideia que se faz do “lugar
das mulheres. Até mesmo a força física é um critério contestável. No final
das contas, até a aurora do século 19, muitas mulheres trabalhavam na
construção, em canteiros de terraplanagem; encontramo-nas ainda por
volta de 1850, nos canteiros da estrada de ferro, para grande escândalo
de Le Play que aí sobretudo os riscos da imoralidade (Perrot, 2005, p.
248).
Esta citação de Michelle Perrot (2005), extraída do livro
As mulheres ou os
silêncios da história
, publicado em 1998, nos apresenta a fragilidade e potência da
história, do olhar que direcionamos ao passado e seus registros quando
trabalhamos sobre a presença e participação de mulheres em lugares que, até
então, não são ligados a elas. Legitimar tais participação também elabora novas
percepções do presente, orienta e organiza mecanismos de luta e combate contra
essas “noções de trabalho feminino” que estão ligados a um “lugar” estipulado
social e culturalmente para essas mulheres. As categorias premiadas em festivais
e associações que registram a passagem de diferentes pessoas e grupos, assim
como as imagens de divulgação dos espetáculos, tonam-se documentos de
análise histórica (Metzler, 2009).
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Acompanhado por uma política nacionalista e populista no Brasil que, iniciada
nos anos 1930, buscava construir por meio da esfera cultura uma identidade
coletiva, o teatro brasileiro passou a reconhecer e divulgar nomes de artistas
encenadores, dramaturgos, atores e atrizes como personalidades ilustres da
cultura nacional. Essa busca por nomes conceituados do fazer artístico, a
realização de eventos de premiações, teve grande impacto no chamamento do
público assim como no interesse sobre os estudos da cena. Um dos eventos
importantes na compreensão da produção cênica teatral são as premiações, das
quais partiremos como forma de identificar figuras do gênero feminino em funções
do ofício cenotécnico.
Em 1984, a Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de
São Paulo (APETESP) criou o Prêmio APETESP de Teatro, que passou a acontecer
anualmente. Entre as categorias indicadas para as premiações estão: Espetáculo;
Autor; Diretor; Ator; Atriz; Ator Coadjuvante; Atriz Coadjuvante; Revelação;
Cenógrafo; Figurinista; Iluminação; Composição Musical ou Direção Musical ou
Trilha Sonora; Coreografia; Cenotécnico; Produtor Executivo; e Produtor. Segundo
pesquisas e registros do Centro Brasileiro de Teatro para a Infância e Juventude
(CBTIJ-RJ)6, em 1994 a premiação não aconteceu por questões financeiras,
continuando nos anos seguintes (1995, 1996, 1997 até 1998, com sua última
premiação). Observo que a categoria de cenotécnico não esteve presente em
todos os anos em que a premiação aconteceu, pois, segundo as informações
obtidas pelo CBTIJ, a participação de tal categoria ocorreu somente entre os anos
de 1984 e 1993. Ou seja, após a falta de verba e não realização da premiação no
ano de 1994, ao voltar com o evento, em 1995, a categoria de cenotécnico foi
desconsiderada.
Para iniciar a questão de gênero diante dessas premiações, destaco que as
categorias Autor, Cenógrafo, Cenotécnico, Produtor Executivo e Produtor são
empregadas unicamente pelo pronome masculino, enquanto as demais, quando
não são neutras (Iluminação, Figurinista, Revelação e Direção), empregam as duas
6 Informações extraídas do site do CBTIJ. Disponível em: https://cbtij.org.br/categoria/premios-
teatrais/apetesp/. Acesso em: 10 mar. 2023.
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concepções de gênero binário como Atriz e Ator. Mais uma vez, destaco que
Grada Kilomba (2019), em carta à edição brasileira do seu livro
Memórias da
Plantação
para o português, indica que um problema na língua portuguesa, a
qual diminui a reflexão que determinadas terminologias produzem diante da
“teorização e herança coloniais e patriarcais, tão presentes”; portanto, ela se viu
obrigada a esclarecer seus significados. Um dos termos que autora precisou tomar
nota para melhor compreensão foi “sujeito”, que na língua inglesa (original da
escrita) “
subject
não tem gênero”, porém, “sua tradução corrente em português é
reduzida ao gênero masculino
o sujeito
-, sem permitir variação no gênero
feminino – a sujeita” (Kilomba, 2019, p. 15).
Em cada categoria são indicados cinco nomes, cada um relacionado a sua
atuação em algum espetáculo apresentado, sendo que apenas um desses nomes
indicados será premiado. Durante os nove anos (entre 1984 e 1993) em que a
categoria Cenotécnico esteve presente na premiação, apenas em 1984 e 1989
nomes de mulheres cenotécnicas aparecem como indicação ao prêmio. Mesmo
com o filtro que nas escolhas dos nomes indicados, a existência do nome de
mulheres nesse filtro rompe com uma suposta ideia de que não havia mulheres
no ofício na década de 1980.
A diretora teatral, atriz e pesquisadora Christina Trevisan é a única mulher
que aparece na categoria de Cenotécnico, indicada ao prêmio APETESP em 1984.
Seu nome aparece em parceria com Júlio Fischer, sobre o espetáculo musical
infantil A Canção de Assis (1984). No site do CBTIJ, imagens digitalizadas dos
cartazes de divulgação junto às páginas das revistas que divulgavam as fotografias
de cada indicado. Nessas páginas, é possível ver, de forma enfileirada, imagens 3x4
(três por quatro) do rosto de cada participante; na apresentação dos indicados à
categoria Cenotécnica, a foto de Christina Trevisan não aparece, contendo apenas
a fotografia do seu parceiro, Júlio Fischer (Figura 1):
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Figura 1 - Revista de divulgação dos indicados ao Prêmio APETESP de 1984 - Fonte: CBTIJ.
Além da categoria de Cenotécnico, a dupla também concorreu a premiação
pela categoria de Produtor Executivo, e é nessa listagem que a foto de Christina
Trevisan surge e a de Júlio Fischer se ausenta (Figura 2), como também, de forma
separada, nas categorias de Autor (Júlio Fischer) e de Diretor/a (Christina Trevisan).
Por se tratar de projetos pessoais e trabalhos colaborativos, é comum que
profissionais desempenhem mais de uma função sobre os fazeres teatrais ou que
compartilhem uma mesma função. Portanto, como eles não dividiram a parceria
sobre a autoria e a direção, compreende-se que ambos executaram juntos a
produção executiva e a cenotécnica.
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Figura 2 - Revista de divulgação dos indicados ao Prêmio APETESP de 1984 - Fonte: CBTIJ.
Mesmo que ambos os profissionais tenham sido excluídos de alguma
representação, seja na categoria de Cenotécnico ou Produtor Executivo, a escolha
de indicar a imagem feminina na categoria de Produção Executiva e a imagem
masculina de Cenotécnico demonstra a escolha por classificar o papel ao qual
cada uma é capaz de desempenhar diante da perspectiva heterogênea do
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mercado que a categoria de Produtor Executivo recebe um número
considerável de representantes mulheres. E mesmo nas demais indicações em
duplas presentes na premiação, é possível reparar na fotografia tirada de ambos
os indicados juntos.
Infelizmente, essas imagens de divulgação não são apresentadas em todos
os anos de premiação pelo site da CBTIJ. Considerando as décadas de 1980 e 1990
fundamentais na produção do conhecimento e na elaboração do pensamento
sobre formação profissional dos saberes e fazeres da cenotécnica, a participação
de mulheres nesse período deve ser pontuada e melhor investigada, pois nos
apresentará novas formulações sobre as constituições que operam e determinam
o trabalho em questão.
A permanência de mulheres no ofício: consciência de si e
reconhecimento
Grada Kilomba (2019) também narra a importância e necessidade de sair de
Lisboa (Portugal), sua cidade natal, onde sofria séries de racismos cotidianos,
sendo constantemente questionada sobre sua qualificação profissional. Ao se
mudar para Berlin (Alemanha), cidade atual, via a possibilidade de
autoconhecimento em movimentos coletivos. Enquanto em Lisboa se negava a
história colonial (e muitas vezes glorificando seus feitos e marcos e históricos), em
Berlin, a história colonial e a ditadura imperial nazista provocavam vergonha, culpa
e responsabilização pelo passado. É nessa diferença do comportamento de uma
nação de negar ou de se responsabilizar pelos eventos cometidos em seu passado
que a autora encontra formas de identificar novas linguagens, e diz: “Só quando
se reconfiguram as estruturas de poder é que as
muitas
identidades
marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de
conhecimento: Quem sabe? Quem pode saber? Saber o quê? E saber de quem?”
(Kilomba, 2019, p.13).
Essa reconfiguração das estruturas de poder tratada por Kilomba (2019) é
resultado final de um processo longo e demorado de consciência e
reconhecimento. Como sua análise parte dos estudos de psicanálise, ela considera
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que um processo de leitura e produção de novas imagens de referências que
merece ser realizado em coletivo. Assim como Kilomba, para Frantz Fanon (2008),
uma de suas referências, o processo de consciência não é tão simples ao trabalhar
a dinâmica psíquica:
Na sua imediaticidade, a consciência de si é simples ser para si. Para obter
a certeza de si-mesmo, é preciso a integração do conceito de
reconhecimento. O outro, igualmente, espera nosso reconhecimento, a
fim de se expandir na consciência de si universal. Cada consciência de si
procura o absoluto. Ela quer ser reconhecida enquanto valor primordial,
desvinculado da vida, como transformação da certeza subjetiva
(Gewisheit) em verdade objetiva (Wahrheit) (Fanon, 2008, p. 181).
Michelle Perrot (2005) debruça sobre a importância e as mudanças
decorrentes dos estudos voltados para a “história das mulheres”, acreditando que
mesmo levantando reflexões acerca da presença das mulheres nos espaços
públicos e privados, ainda nos anos 1970 e 1980, isso “não mudou nem a atitude
histórica, ainda reservada [dessas mulheres], nem as instituições universitárias,
que opõem-se a lhe dar um lugar, ainda que modesto” (Perrot, 2005, p. 26). Porém,
também compreende que:
Contribuiu para sua consciência de si mesmas, da qual é certamente
ainda apenas um sinal. Nos países em vias de desenvolvimento, onde as
mulheres começam a ter acesso ao reconhecimento individual, é o
acompanhamento frequente de ter um processo identitário, as vezes
contrariado, de que somos as espetadoras cúmplices, ansiosas e
solidárias (Perrot, 2005, p. 26).
Diante dessa consciência de si e da releitura dos documentos levantados na
pesquisa cenotécnica, em busca de novos entendimentos do passado e
ressignificação do ato presente, percebo que, dos 83 nomes de profissionais da
cenotécnica apresentados em um quadro em minha dissertação de mestrado
(Nascimento, 2022), seis são nomes femininos: Celina Yamauchi, Christina
Trevisan, Lili W., Luciene G. Ferreira, Maria Angélica Rocha e Renata Wilmer. Essas
mulheres são cenógrafas, figurinistas e artistas visuais que, na década de 1980,
assinaram como cenotécnicas em espetáculos apresentados na cidade de São
Paulo. Os nomes foram extraídos do levantamento de fichas técnicas em uma
pesquisa sobre os teatros de grupo paulistanos dos anos 1980, desenvolvida pelo
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pesquisador e professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista
(IA-UNESP), Alexandre Luiz Mate (2008).
Como profissional da área, conheço diversas mulheres parceiras de trabalho
que desempenham o ofício cenotécnico atualmente nas produções culturais e
artísticas na cidade de São Paulo. Consciente disso, no início de 2020, quando
iniciei a investigação sobre o ofício cenotécnico, produzi entrevistas com algumas
parceiras de formação e trabalho antes mesmo de delimitar o recorte exato da
pesquisa. Essas entrevistas serviram como preparação metodológica para o
próprio fechamento do projeto de dissertação. Como o recorte se concentrou em
profissionais que iniciaram suas carreiras na década de 1970, acabei não utilizando
essas entrevistas coletadas naquele momento.
As profissionais que participaram e disponibilizaram suas narrativas orais
foram: Andreia Mariano,7 Lívia Baena,8 Raíssa Milanelli,9 Tatiane Alvarenga10, Tayse
Martines11 e Tete Rocha.12 O que liga essas mulheres entrevistadas e o meu contato
com elas é a nossa formação profissional e técnica realizada na SP Escola de
Teatro Centro de Formação das Artes do Palco (SPET), na linha de estudos em
Técnicas de Palco. O curso regular da SPET tem como Artista Formadora Viviane
Ramos, que, com o coordenador José Carlos Serroni, proporciona aos estudantes
da linha de estudo uma formação a partir do saber-fazer. Viviane Ramos é
aderecista e possui um amplo conhecimento sobre a organização e produção
teatral e, com sua experiência, transmite aos estudantes da SPET a importância
de pensar e refletir sobre as condições deste ofício, assim como na realização de
um trabalho benfeito.
7 Técnica de palco e artista visual, coordenadora das equipes de pintura de arte nas produções cenográficas
em espetáculos musicais na cidade de São Paulo. A gravação desta entrevista foi editada e publicada no
canal do Papo da Coxia projeto realizado durante a pandemia da COVID-19, nos anos de 2020 e 2021.
Disponível em: https://youtu.be/S5HWIDp_6yg. Acesso em: 12 mar. 2023.
8 Técnica de palco e produtora executando diversas funções nas produções teatrais.
9 Técnica de palco e, na época, contrarregra estagiária do Theatro Municipal de São Paulo - TMSP.
10 Técnica de palco, atriz e aderecistas atuante em espetáculos na capital paulista e em Taubaté-SP.
11 Técnica de palco, atriz e cientista social.
12 Técnica de palco e artista visual atuante nas produções culturais na cidade de São Paulo.
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Desde 2011, ano de formação da primeira turma, a SPET vem abrindo portas
e caminhos para a inserção e permanência de mulheres no mercado de trabalho
na cenotécnica. Essas alunas que se formam no curso de Técnicas de Palco (com
duração de dois anos) conseguem iniciar suas atividades profissionais de forma
imediata, devido à contribuição do modelo pedagógico da SPET, em que “artistas
formam artistas”. Para isso, semestralmente, durante a formação profissional e
técnica, profissionais da área atuantes no mercado são convidados para ministrar
“componentes curriculares” para as turmas. Esses convidados aproveitam as
atividades para conhecer e convidar as estudantes para trabalharem nas
produções cenográficas que estão executando como estagiárias.
A permanência das estudantes egressas da SPET no mercado profissional
pode ser observada nas últimas fichas técnicas dos espetáculos de peças musicais
na capital paulista. Trazemos para leitura dois espetáculos realizados pela
produtora Atelier de Cultura:
Escola do Rock O musical
(2019) e
Charlie e a
Fantástica Fábrica de Chocolate – O musical
(2020).
Na equipe de cenografia do musical
Escola do Rock
(2019), temos a
participação de: Karen Luizi e Andreia Mariano, na coordenação da pintura de arte
e objetos de cena; Priscila Chagas, Dandhara Shoyanna, Tati Alvarenga, Morganna
Farat, Lívia Baena e Mayara Faustini, na equipe de pintura de artes e objetos de
cena; Tete Martins e Thays do Vale, na equipe de marcenaria; Luciana Conte, na
produção executiva de cenotécnica; e Lara Gutierrez, na produção geral.
Na equipe de cenografia do musical
Charlie e a Fantástica Fábrica de
Chocolate
(2020), temos: Dandhara Shoyanna, Tayse Martinis, Erika Neves e Tais
Santiago, na equipe de cenotécnica; Priscila Chagas, Giovana Guadanholi, Tete
Rocha e Raissa Milaneli, na equipe de marcenaria; Lara Gutierrez, na produção
geral; Andreia Mariano e Karen Luizi, na coordenação de pintura de arte; Lívia Baena
e Morganna Farat, na equipe de pintura de arte; Luciana Conte, nos objetos de
cena; e Juliana Magalhães, na montagem de bonecos.
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Alguns nomes se repetem, e é na repetição desses nomes e no trânsito deles
nas funções profissionais que identificamos a permanência dessas profissionais
na área. Especificamente, a repetição nas fichas técnicas de espetáculos musicais
produzidos pela produtora Atelier de Cultura e sob gestão cenotécnica de Jorge
Ferreira Silva13 é muito comum, já que há uma parceria entre os profissionais. Um
fator de relação é que todas essas mulheres se formaram na SPET entre o período
de 2011 e 2020 e continuam atuantes no mercado, dando continuidade à sua
formação e alterando a imagem sobre quem executa esses papéis.
A permanência das mulheres apresentadas por essas fichas técnicas
também é efetivada por conta da relação que elas constroem nesses espaços e,
principalmente, com os homens, que são predominantes e detêm o domínio de
tais espaços. As oficinas são espaços de trocas de saberes, de produção de
técnicas, de compartilhamento constante, logo, não é possível se isolar. Por isso,
as mulheres se unem, indicam umas às outras para novos trabalhos; é desta forma
que também se valida a permanência.
Considerações finais de um trabalho sexualmente dividido:
uma busca por organização
Mesmo que seja possível perceber a presença de mulheres no ofício
cenotécnico de forma efetiva, por meio dos documentos levantados, também
identifico que as funções que as mulheres ocupam estão fortemente relacionadas
às áreas de valor acabamento estético (como pintura e adereço) e às áreas de
valor assessorial ou assistencial (como a produção, realizando orçamentos e
compras). Diante da totalidade de profissionais que trabalham nas etapas
estruturais de marcenaria e serralheria, o número de mulheres ainda é baixo
quando comparado ao de homens. Quanto às etapas de acabamento com adereço
e pintura, o número de homens é baixo se comparado ao de mulheres.
13 Jorge Ferreira Silva é uruguaio, atua como cenotécnico na capital paulista e artista convidado (professor) da
SPET. Foi um dos sete profissionais entrevistados para a pesquisa da dissertação (Nascimento, 2022) e autor
de livros autobiográficos, que narram sua trajetória profissional: Os invisíveis do teatro: primeiro ato (2021);
Os invisíveis do teatro: segundo ato (2022).
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Sobre a relação da incorporação das máquinas e o lugar do trabalho das
mulheres, Michelle Perrot (2005, p. 229-230) diz:
A mecanização não tem efeitos unívocos. Às vezes, ela recompõe o
trabalho, requalifica-o e o masculiniza (fiação); outras vezes, ela o
fragmenta, parcela-o e o feminiza (tecelagem). O lugar das mulheres não
é determinado pela técnica, mas por questões de status que
tradicionalmente atribuem aos homens os postos de comando, de
acompanhamento, os instrumentos complicados, e às mulheres, as
tarefas de auxiliares, de assistentes, os trabalhos de execução, efetuados
com as mãos nuas, pouco especializados e até mesmo casuais, e sempre
subordinados. A mecanização, se ela significa a saída da casa da família
e a entrada mais maciça das mulheres no mercado do trabalho industrial,
não implica em sua libertação, nem em sua promoção, ou seu acesso à
técnica. O medo que existe de sua emancipação sexual leva até mesmo
a vigiá-las ainda mais. Na fábrica, a máquina reproduz, e mesmo agrava
a divisão das tarefas e a subordinação feminina, a autoridade do
contramestre ou da religiosa, substituindo a autoridade do pai. E com
isso, ainda mais devido ao ciclo do trabalho feminino, temporário e
intermitente porque determinado pelas necessidades da família, a revolta
é difícil e a organização na maior parte das vezes impossível.
A formação profissional tradicional da cenotécnica acontece pelo fluxo
variante que o/a profissional desenvolve entre os fazeres do ofício, adquirindo
conhecimento múltiplos de toda a etapa do trabalho na construção de objetos
cenográficos. É possível dizer que a permanência de mulheres neste ofício
também ocorre pela possibilidade de variar suas funções de um espetáculo para
o outro, sendo possível devido à influência na formação institucional em Técnicas
de Palco. Para a cenotécnica, esse fluxo é a chave de entrada para o ofício, é ele
que forma o/a profissional para assinaturas em nome do trabalho cenotécnico.
Hoje, na SP Escola de Teatro, a maior parte dos alunos da linha de estudos
em Técnicas de Palco são mulheres, e elas estão ingressando no mercado e
permanecendo. Com isso, um movimento de conscientização e acolhimento
acontece entre as mulheres, e permite que elas continuem exercendo papeis nos
espaços de produções cenográficas. Durante o ano de 2020, foi possível observar
as mobilizações que visavam debater a importância dos profissionais técnicos de
espetáculos e diversões (e muitas mulheres estavam por detrás das coxias). O
movimento SOS Técnica de São Paulo, determinante na inclusão dos profissionais
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técnicos de espetáculos e diversão nos editais da Lei 14.017/2020 (Lei Aldir
Blanc) de emergência cultura, no período de pandemia da COVID-19 –, foi
organizado pela técnica de áudio e microfone Cecília Lüzs. O projeto de lives e
entrevistas Papo da Coxia tinha em sua equipe idealizadora Elisete Jeremias,
Giovanna Kelly, Joana Pegorari, Lívia Baena e Priscila Chagas, e Alício Silva, Erico
Casagrande, Pedro Ferro e Rafael Bicudo. Este mesmo projeto realizou no dia 12
de outubro de 2020 o encontro Mulheres da Coxia, com três técnicas de palco
atuantes na capital paulista: Bruna Lima, Marisis Pacheco e Thays do Valle. As
pautas desse encontro transmitido ao vivo por plataformas digitais visavam
discorrer sobre as condições das mulheres em um espaço predominantemente
masculino. Questões como resistência, reconhecimento e união entre as mulheres
do ofício foram levantadas e discutidas pelas oito mulheres que participaram da
transmissão.
Outro movimento que caracteriza a participação consciente e a busca em
desenvolver uma rede de interesses nos trabalhos técnicos teatrais é um grupo
de conversa criado por Tete Rocha (ex-estudante do curso de Técnicas de Palco
da SPET) em 5 de março de 2020, no qual hoje se concentram 155 mulheres de
diversas áreas técnicas do fazer teatral do estado de São Paulo. O grupo que tinha
o intuito de anunciar vagas de trabalho e oportunidades de projetos, hoje é
também alimentado por perguntas sobre materiais de usos diversos do trabalho,
dúvidas diante de diversas práticas do ofício, solicitação e auxílio sobre compras
de materiais etc. Acredito que neste espaço se formou uma rede organizada de
apoio e indicações, onde mulheres técnicas teatrais ajudam umas às outras,
partindo da consciência de ser a forma encontrada para se manter no mercado e
criar força que resiste ao seu apagamento e exclusão.
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Recebido em: 04/12/2023
Aprovado em: 01/04/2024
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br