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A encenação de contos de "A vida como ela
é..." de Nelson Rodrigues
Luis Artur Nunes
Para citar este artigo:
NUNES, Luis Artur. A encenação de contos de "A
vida como ela é..." de Nelson Rodrigues.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 4, n. 49, dez. 2023.
DOI: 10.5965/1414573104492023e0103
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Luis Artur Nunes
Florianópolis, v.4, n.49, p.1-21, dez. 2023
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A encenação de contos de "A vida como ela é..." de Nelson
Rodrigues
Luis Artur Nunes1
Resumo
O artigo partiu da experiência do autor com os contos de Nelson Rodrigues
originalmente conhecidos como
A Vida como ela é...
O corpo do artigo
consiste fundamentalmente na sua descoberta dos contos e da
possibilidade de encená-los. Daí resultou um único espetáculo, que foi
remontado várias vezes. A proposta manteve-se sempre a mesma: a
manutenção do texto narrativo, jogando com múltiplas maneiras de
veicular a voz autoral através dos atores. Num segundo momento,
descreve-se e analisa-se o arsenal de recursos de teatralidade explícita
utilizados na ilustração cênica dos contos de Nelson Rodrigues.
Palavras-chave
: Nelson Rodrigues. Teatro rapsódico.
A vida como ela é...
Teatralidade explícita.
The staging of short stories from Nelson Rodrigues's "Life as it
is…”
Abstract
The article derives from the author's experience with the short stories of
Nelson Rodrigues originally known
as Life as it is...
The body of the article
consists fundamentally in his discovery of the tales of the newspaper
column "Life as it is" and the possibility of staging them. This resulted in a
single theatre show, which was re-enacted several times. The conception
however has always remained the same: the maintenance of the narrative
text, playing with multiple ways of conveying the author’s voice through the
actors. The article also describes and analyses the repertoire of resources
of non-illusionist theatricality used in the scenic illustration of Nelson
Rodrigues' short stories.
Keywords
: Nelson Rodrigues. Rhapsodic theatre.
Life as it is…
Non-illusionist
theatricality.
1 Ph.D. em Teatro pela City University of New York. Mestre em Teatro pela State University of New York.
Graduação em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Prof. Da Escola de Teatro e
no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Dentre os
espetáculo que dirigiu, destacamos:
A vida como ela é
(1991), teatralização das crônicas de Nelson
Rodrigues pela qual ganhou o Prêmio Sated/RJ;
A volta ao lar
(1992), de Harold Pinter;
Vestido de
noiva
(1993), de Nelson Rodrigues;
Que mistérios tem Clarice
(1998), teatralização de textos de Clarice
Lispector;
Chico Viola
(1998), escrita por ele mesmo;
O correio sentimental de Nelson
Rodrigues
(1999);
Arlequim, servidor de dois patrões
(2002), de Carlo Goldoni, e
A maldição do vale
negro
(2004), de Caio Fernando Abreu, pela qual ganhou o Prêmio Molière. larthursp@uol.com.br
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La puesta en escena de cuentos de "La vida tal como es..." de
Nelson Rodrigues
Resumen
El artículo partió de la experiencia del autor con los cuentos de Nelson
Rodrigues originalmente conocidos
como
La Vida tal como es
El cuerpo
del artículo consiste fundamentalmente en su descubrimiento de los
cuentos en la columna periodística "La vida tal como es" y la posibilidad de
ponerlos en escena. Esto dio lugar a un solo espectáculo, que se recreó
muchas veces. Sin embargo, la propuesta siempre ha sido la misma.
Inicialmente, el mantenimiento del texto narrativo, jugando con múltiples
formas de transmitir la voz autoral a través de los actores. En un segundo
momento, se describe y analiza el arsenal de recursos de teatralidad
explícita utilizados en la ilustración escénica de los cuentos de Nelson
Rodrigues.
Palabras clave
: Nelson Rodrigues. Teatro rapsódico.
A vida como ela é…
Teatralidad explícita.
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Meus primeiros contatos com a obra de Nelson Rodrigues foram como
espectador de suas peças e dos filmes baseados nelas. Ainda muito jovem, e
apaixonado por teatro, assisti a
Vestido de Noiva
no Theatro São Pedro de Porto
Alegre (1967)2 com direção de Pereira Dias, um diretor “das antigas”, mas que, ao
encenar de forma nítida e articulada aquela complexa tessitura dramatúrgica,
demonstrava uma total compreensão do texto. Os sonhos da memória e da
alucinação, principalmente, representam um desafio para qualquer encenador.
Obedecendo fielmente às indicações do autor, porém, Pereira Dias ilustrou-os de
forma cristalina. Nunca vou esquecer o momento no primeiro ato, em que a
protagonista Alaíde se no cabaré de Madame Clessi com mesas de bar,
prostitutas e fregueses. No momento em que seu delírio a subtrai daquele
ambiente, as pessoas se retiram e as mesas são içadas para o urdimento. Bem
como pede a rubrica. Ao seguir ao da letra as pistas de uma dramaturgia
inovadora, o velho diretor tornava-se, ele também, inovador. É claro que
muitos anos depois pude refletir sobre esse mergulho em Nelson Rodrigues. Na
época foi simplesmente um total alumbramento.
Minhas experiências com teatro rodriguiano até então tinham sido de suas
obras realistas. Na temporada do Teatro do Sete, no mesmo São Pedro, fiquei
boquiaberto diante de
O Beijo no Asfalto
(1963): Fernanda Montenegro, Sérgio
Britto, ítalo Rossi e um jovem, mas já promissor Francisco Cuoco, acompanhados
de um elenco afiadíssimo dirigido pelo grande Gianni Ratto, davam toda a
dimensão de explosiva violência daquela tragédia carioca. Naquele ano vi,
também em Porto Alegre, o
Boca de Ouro
, na produção do Teatro Nacional de
Comédia (TNC), dirigida por José Renato. Tive também o privilégio de chorar com
a Geni de Cleyde Yáconis em
Toda Nudez será Castigada
(1968), sob a batuta de
Ziembinski.
O modo realista era o que pediam os textos, principalmente no tocante à
interpretação dos atores, formados que eram todos nessa escola. No entanto,
na imensa maioria das peças de Nelson, a ação se distribui por uma grande
variedade de locais. Impossível, portanto, com os meios técnicos limitados da
época, oferecer ambientações naturalistas. Na maioria das vezes apresentava-se
2 Todas as datas aqui assinaladas são de quando assisti às montagens, e não as datas das estreias.
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um cenário esquemático, ao qual um ou outro acessório dava um toque de
caracterização. Lembro-me, no
Boca de Ouro
do TNC, da curta cena no
consultório do dentista, em que o Boca manda que este lhe extraia todos os
dentes para substituí-los por uma dentadura de ouro. Num canto de palco havia
somente a cadeira odontológica e, ao fundo, um pedaço de parede em que era
projetado o slide de uma janela dando para a rua. Era a primeira vez que eu via
uma projeção numa peça de teatro.
no cinema, por razões óbvias, deixava de existir o problema da
verossimilhança das localizações. Foi assim em
A Falecida
, de Leon Hirszman,
com Fernanda Montenegro no papel título, no
Boca de Ouro
de Nelson Pereira
dos Santos e em
Bonitinha mas Ordinária
, de J. P. Carvalho, ambos estrelados
por Jece Valadão, e nas adaptações de Arnaldo Jabor (de
Toda Nudez
e do
romance
O Casamento
). Percebi então como aquela sucessão rapidíssima de um
sem-número de espaços internos e externos, mais os saltos de narrativas
viajando para frente e para trás e a ação interrompida, retomada e reencenada,
eram procedimentos que não constituíam problema de transporte para a
linguagem cinematográfica.
Sem dúvida, se disse várias vezes, a composição dramatúrgica de Nelson
deve muito ao cinema. Mas ele não escrevia para a tela, embora adorasse ver
suas obras filmadas. Nada o impedia, aliás. O audiovisual brasileiro estava
então razoavelmente desenvolvido. Mas afora alguns poucos e hoje perdidos -
exercícios de teledramaturgia, Nelson criava exclusivamente para o palco. E
aparentemente pouco se importava se suas propostas tornavam-se desafios
tremendos para os encenadores. Talvez o milagre de Ziembinski em
Vestido de
Noiva
o tivesse convencido de que o palco podia, sim, se tornar dúctil,
metamorfoseável. Entretanto, depois de
O Vestido
, o autor amargou vários anos
em que suas criações foram incompreendidas e rejeitadas. Apesar disso, nunca
desistiu. E, a partir de A Falecida (1953), o sucesso voltou a lhe sorrir.
lá, a tragicomédia de Zulmira mostrava uma realidade feita de tipos
humanos, meio social, linguajar, comportamentos etc. que suscitava uma
enorme identificação com a plateia. Não mais as bizarrices e aberrações do
chamado Ciclo Mítico ou da
Valsa 6
. Era o Rio Zona Norte, o Rio dos
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subúrbios, ali servido como a perfeita fatia de vida naturalista. Mas permanecia o
vertiginoso suceder de cenários e os saltos da ação no tempo. Outras ousadias
viriam a seguir nas próximas obras, como por exemplo, a apresentação de
diferente versões de uma mesma história, dependendo cada uma da perspectiva
de seu narrador (
Boca
), ou brotando da manipulação de um narrador suspeito
(
Bonitinha
).
Nada disso assustava os encenadores, os produtores, o público. Nos
tablados dos teatros e nas telas de cinema as histórias de Nelson gradualmente
conquistaram o Brasil, e ele tornou-se um autor consagrado.
Corta para Nova York, década de 1980. Nelson não vivia mais. Em Porto
Alegre eu desenvolvia uma dupla carreira: diretor teatral e professor no
Departamento de Arte Dramática do Instituto de Artes da UFRGS. E foi graças a
essa trajetória acadêmica, que sempre dialogou - e nunca conflitou - com a
artística, que me tornei detentor de uma bolsa CAPES/LASPAU para cumprir um
programa de doutorado na City University of New York.
Até ali assistira a inúmeras outras montagens e adaptações
cinematográficas de peças de Nelson Rodrigues. Naturalmente, algumas
melhores, outras piores. Mas seus textos teatrais, que foram surgindo até 1978,
ano de estreia do último,
A Serpente
, não cessavam de me impactar. Lera-os
todos. Confesso que desconhecia os folhetins, escritos muitas vezes sob
pseudônimos femininos (Suzana Flag e Myrna). A única exceção foi
Meu Destino
é Pecar
, de Suzana Flag. Mas quando o li, ainda era guri e não tinha a menor
ideia de que a autora era um homem. Como estava na fase onívora, lendo tudo
o que me caísse nas mãos, cobiçava aquele livro maçudo com capa intrigante na
biblioteca de minha mãe. Pedi-lhe emprestado, mas ela me proibiu a leitura. Era
um livro “muito forte”, não era próprio para crianças, disse-me. Mas alguém
consegue segurar um leitor voraz borbulhante de hormônios da pré-
adolescência? Durante a tarde, sozinho em casa, eu surrupiava o volume e o
devorava escondido pelo cantos, morrendo de medo de ser pego. Mas...
muito tempo depois vim a saber que fora escrito por Nelson Rodrigues!
Nos anos 1980 encenara inúmeras peças em Porto Alegre, porém
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nenhuma delas do meu cultuado dramaturgo. Quando cheguei ao doutorado,
pensava em escrever minha tese sobre algum tema relacionado às experiências
do teatro de vanguarda. Toda a minha curiosidade, naquele momento, se voltava
pra as questões da performance. Mas quem viveu um pouco sabe que na
vida, inesperadamente, pode surgir alguém, uma mão, um olhar, que de repente
nos descortina novos horizontes e nos lança em outras direções. No programa
de pós-graduação da CUNY, o Prof. Dan Gerould ministrava cursos sobre
dramaturgia:
Dramatic Structure and Development
, assim se chamavam. Eu me
interessava por dramaturgia obviamente pelo simples fato de ser encenador. Mas
não era propriamente um estudioso do assunto, e na escola de teatro, como
docente, sempre privilegiara as disciplinas ligadas à encenação. Mas o Prof.
Gerould, passeando por textos de todas as épocas e variados contextos culturais,
me revelou um universo, que sempre estivera ali ao alcance da mão, mas que eu
nunca percebera como era vasto e arrebatador. Ao solicitar os
papers
, ele
sempre me instava a escrever sobre a obra dramática de um autor brasileiro.
Produzi um trabalho sobre Nelson Rodrigues, discutindo questões referentes ao
realismo/naturalismo no teatro, outro sobre Oswald de Andrade, aproximando-o
à estética do expressionismo. Me apertei na hora do simbolismo, mas lembrei-
me do belíssimo
O Marinheiro
de Fernando Pessoa. Não era brasileiro, mas era
Pessoa, isto é: era tudo...
Cumpridas as disciplinas do currículo, chegou a hora fatídica de definir o
tema de minha
Ph.D. Dissertation
. ficara para trás o interesse no
experimentalismo teatral. Estava completamente envolvido com as riquezas da
dramaturgia. E o culpado desta mudança radical era o Prof. Gerould, que seria
meu orientador de tese. Obviamente ele me incentivou a optar por uma questão
relacionada à dramaturgia brasileira. Mas o quê? Um determinado autor? Uma
época, um gênero, um movimento? Vendo a minha paralisia, perguntou-me se
havia algo que me apaixonava realmente neste campo do conhecimento. Não me
lembro mais com que palavras, mas ele me deu a entender que sem paixão é
impossível dar conta de uma empreitada tão exigente. Levei um susto. Para mim,
até então, o trabalho artístico se fazia com paixão, evidentemente, mas o
acadêmico, com reflexão. Ele me fez ver que você até pode produzir um
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paper
, um artigo, uma palestra somente com a reflexão. Mas será muito melhor,
muito mais vivo e mais interessante se o seu leitor pressentir um envolvimento
que, além do intelectual, penetre no afetivo. Nunca esqueci esta lição, e sempre
a repito a meus alunos e orientandos. Dan Gerould então me fez a pergunta:
“Tem alguma coisa da dramaturgia brasileira que lhe desperte paixão?” A reposta
veio automática, sem pensar: Nelson Rodrigues! E o meu querido, meu saudoso
orientador simplesmente resolveu o dilema: “Então escreva sobre Nelson
Rodrigues.”
Municiado por minha paixão, analisei as dezessete peças teatrais de Nelson,
tendo como recorte o aproveitamento feito por ele das tradições do melodrama
e do naturalismo:
The conflict between the real and the ideal: a study of the
elements of Naturalism and Melodrama in the dramatic works of Nelson
Rodrigues
.3
Voltei para o Brasil, retomei meu trabalho na direção teatral e na docência.
Em 1990 transferi-me para o Rio de Janeiro, trocando de universidade, mas
mantendo bem sólidos os meus pilares de atuação. Tendo constituído, com
profissionais do teatro carioca, um grupo teatral que batizamos como Núcleo
Carioca de Teatro, colocava-se desde logo a questão da escolha de uma primeira
realização. Alguém sugeriu um texto de NR, pois todos sabiam que, com meu
doutorado, havia me tornado um “especialista”. Mas um especialista enquanto
estudioso, não enquanto encenador de sua dramaturgia. Veio a inevitável
pergunta carregada de surpresa: “Como é que é? Você até hoje nunca dirigiu
uma peça do Nelson? Por quê?!” Não tive resposta. Medo? Nunca fui de temer
desafios. Meu currículo mostrava um grande número de opções ousadas. Será
que minha reverência pela grandeza de NR era tamanha a ponto de me
paralisar? Resolvi quebrar o encantamento e montar um Nelson!
Mas o quê? Depois do largo e intenso convívio com a totalidade de sua
produção dramática em função da tese, conhecia-a intimamente. E embora, é
claro, sempre tenhamos nossas preferências, eu considerava todas as suas
peças magistrais, fascinantes, apaixonantes, para voltar ao sentimento-matriz.
Um dos colegas do grupo me trouxe, não lembro bem por que, um material que
3 Defendida em 1987 em
The City University of New York
.
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ele havia colecionado: as histórias da coluna “A vida como ela é...”, publicadas de
1950 a 1961 no jornal
Ultima Hora
, que, muito tempo mais tarde, haviam sido
republicadas na revista Manchete. havia ouvido falar na famosa coluna de
Nelson, mas, por morar em Porto Alegre, naquela época era difícil ter acesso ao
que aparecia na imprensa carioca. Por incrível que pareça, eu, o “especialista”,
não conhecia NADA da obra jornalística de Nelson Rodrigues: nem seus contos,
nem as crônicas, nem os folhetins. Muitas das páginas mais brilhantes da
moderna literatura brasileira estavam ali! Agora estão todas publicadas por
importantes editoras, entre as quais a Companhia das Letras, sob a
competente curadoria de Ruy Castro. Mas na época me eram inacessíveis.
Foram aquelas páginas arrancadas à revista Manchete que me abriram as
portas para esse novo território, e lendo os contos de “A vida como ela é...” a
paixão ela sempre novamente me agarrou pelo gasnete. Na verdade, eu
reconhecia ali o universo que me era tão familiar: o mundo dos subúrbios com
sua tipologia, suas obsessões, seu moralismo, seu melodrama. A prevalência
total da paixão (quantas vezes esta palavra vai aparecer aqui?), os gestos
descabelados, a atração inescapável pelo abismo: adultérios, assassinatos,
incestos, suicídios... E na técnica narrativa, as reviravoltas surpreendentes, os
clímaces vertiginosos, os desenlaces espetaculares. O que havia então de
diferente comparado com o teatro? A forma do conto, relato breve, conduzido
por um narrador. Nas peças, a construção dramatúrgica gradual, personagens de
psicologia mais desenvolvida e uma sólida armação da ação dramática facilitam
a naturalização dos excessos, mas no conto as exorbitâncias se sucedem a
galope, acumulam-se, atropelam-se, criando uma espetaculosidade do exagero,
um tom quase operístico – de ópera-bufa, note-se. O que vemos é uma espécie
de
grand-guignol
, onde bonecos desmesurados varrem o palco com sua
gesticulação desvairada e vociferação tonitruante. Em poucas palavras:
teatralidade pura, nua e crua. A incongruência, o absurdo se tornam tão
chocantes que, por vezes percebi com surpresa - chegam a provocar... o riso.
Sem dúvida, em seu teatro, Nelson Rodrigues usa e abusa da ironia, da sátira, do
deboche. O humorista está sempre presente em maior ou menor grau. Mas nos
contos ele ganha proeminência, tanto pelo despudor com que amontoa
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bizarrices, como pelo próprio olhar de zombaria que sublinha o discurso
narrativo, apontando os ridículos da fauna humana.
Essas percepções todas se deram, obviamente, de forma desordenada. Mas
foram fortes o suficiente para me fazer decidir naquele momento que era aquilo
que eu queria montar com o Núcleo Carioca de Teatro. Depois de dedicar meia
vida ao conhecimento e estudo das obras dramáticas, ia escolher, para ser
minha primeira encenação de Nelson Rodrigues, uma seleção de seus contos.
Duas razões me deixavam mais seguro quanto à empreitada. Desde o início
de minha trajetória no teatro, me exercitara muitas vezes na criação de
espetáculos episódicos, feitos de colagens de diferentes textos. Além disso, havia
algum tempo vinha me dedicando a pesquisar a teatralização de textos de
ficção literária, preservando a voz autoral e delegando-a ao ator. Levei ao palco
ficcionistas como Simões Lopes Neto, Érico Veríssimo e Caio Fernando Abreu,
deixando que suas vozes de contadores se ouvissem com clareza. Vim a chamar
este procedimento de Teatro Rapsódico muitos anos mais tarde, ao torná-lo
objeto de investigação acadêmica. Tinha bem clara a compreensão de que o
discurso narrativo, principalmente o dos grandes escritores, era uma riqueza
preciosa demais para ser desperdiçada na operação tradicional da “adaptação”: a
transposição de gênero em que o elemento épico é transformado em diálogo
e/ou rubricas, ou simplesmente desprezado, para encaixar tudo dentro do
cânone do dramático puro. As narrações de Nelson Rodrigues eram cintilantes,
geniais. Portanto, imperdíveis.
Apresentei então aos meus companheiros do Núcleo Carioca de Teatro uma
seleção de dez histórias de “A vida como ela é...”, garimpadas nos recortes da
Manchete
e na cópia xerox da edição de 1961 da Editora J. Ozon, única
publicação em livro até então, de cem contos selecionados pelo próprio Nelson,
de muito esgotadíssima. A cópia me foi gentilmente cedida por Joffre
Rodrigues, a quem devo eterna gratidão.
O espetáculo conservou o título da coluna da
Última Hora
, estreou em 1991
no Centro Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro, obtendo um extraordinário
reconhecimento de crítica e de público e vindo a cumprir temporadas em vários
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teatros do Rio e em turnês por capitais do país, que o mantiveram em cartaz,
sempre com sucesso, durante quase três anos.
A vida como ela é...
do Núcleo
Carioca de teatro igualmente foi contemplada com várias premiações.
Figura 1 -
A vida como ela é ...
Direção: Luís Artur Nunes. 2002. Foto: Chico Lima
O espetáculo subiu à cena novamente no Teatro Carlos Gomes, numa
montagem comemorativa, dez anos mais tarde. A intenção da remontagem era
reproduzir o mais fielmente possível a primeira realização. Dos oito atores do
elenco original, conseguimos reunir cinco. Graças às imagens digitalizadas dos
cenários e figurinos de Alziro Azevedo, então falecido, cedidas pelos curadores
de seu espólio, o visual da peça também foi o mais próximo possível. Em 2010, a
“Cia. Teatro Sim... Por Que Não?!!!”, de Florianópolis, chamou-me para produzir
uma versão com eles, mais curta que a do Rio, mas com o mesmo título, que
obteve larga repercussão regional.
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Imagem 1 -
A vida como ela é ...
Florianópolis. Direção: Luís Artur Nunes.
2010. Foto: Cleide Oliveira
Em 2012, no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo, os contos de
Nelson voltaram mais uma vez ao palco por minha mão. Desta vez, mudei o
título para
Rodriguianas: Tragédias para Rir
. A proposta, porém, era a mesma.
Nestas duas últimas versões, a de Florianópolis e a de São Paulo, permiti-me
pequenas variações na composição do roteiro. Os contos encenados
permaneciam em sua maioria os mesmos, mas alguns poucos foram
substituídos por outros novos. Descontadas as mudanças de elenco, de título, de
extensão e as pequeníssimas alterações de repertório, não tenho dúvidas em
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considerar
A vida como ela é...
como um único trabalho.
Ao longo dos anos vim a encenar várias peças de Nelson Rodrigues , assim
como teatralizações de crônicas autobiográficas, de romances de folhetim, e
até mesmo de uma coluna de “consultório sentimental”, que ele assinava sob o
pseudônimo de “Myrna” no jornal carioca Diário da Noite. Todos, trabalhos que
me encheram de satisfação e orgulho. Mas
A vida como ela é...
sempre ocupou
um lugar especial no meu coração de encenador. Foi meu primeiro Nelson, e
este, a gente nunca esquece.
Situada a minha relação de estudioso e encenador com Nelson Rodrigues,
destacando-se dentro dela a aventura vivida com
A Vida como ela é...
, proponho-
me agora descrever, da forma mais acurada que me for possível, como se
configuravam dramatúrgica e cenicamente as minhas recriações dos contos de
NR.
Foram dez as histórias selecionadas para a primeira versão do espetáculo:
“O Aleijado”, “O Justo”, “Noiva para sempre”, “O Desgraçado”, “Uma Senhora
Honesta”, “Despeito”, “Doente”, “Selvageria”, “Noiva da Morte” e “Romântica”.
Nas montagens feitas para São Paulo e Florianópolis, experimentei com “A
Esbofeteada”, “Flor de Laranjeira” e “O Grande dia de Otacílio e Odete”.
Como disse anteriormente, distribui a voz narrativa entre os atores-
rapsodos (para manter a nomenclatura referida), jogando em cada história
com uma forma distinta de narrar. Uma primeira tentativa de sistematização
desses jogos aponta para dois procedimentos básicos: o primeiro, em que a fala
autoral era confiada a atores atuando como narradores exteriores à ação
dramática; o segundo, em que os atores alternavam-se entre a dita atuação
narradora e a interpretativa, dramática. A primeira forma restringia o ator à
postura tipicamente épica de distanciamento entre sujeito narrante e objeto
narrado. Seu olhar incide sobre uma matéria que permanece encapsulada num
outro tempo (passado) e num outro espaço (o da ficção). Ao acumular as
funções de narrador e personagem, no outro caso, o ator-rapsodo ganhava a
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prerrogativa de saltar de um plano para outro, entrando e saindo da história,
viajando entre a atemporalidade do discurso narrativo e a atualidade do discurso
dramático. Este vaivém , este repetido vestir e desvestir de máscaras foi
trabalhado exaustivamente para que resultasse num movimento ágil e natural,
garantindo a fluência da encenação.
Especificando um pouco mais essa sistemática, o ator-narrador em tempo
integral, em certos contos (como no caso de “Romântica”, “Selvageria” e
“Doente”), reforçava a sua exterioridade à ação colocando-se fisicamente fora
dos limites do espaço de atuação dramática, num ponto limítrofe, periférico a
ele. Esse ponto era um
locus
privilegiado pela posição ( no fundo da cena, ou na
esquerda ou direita baixa, por exemplo) e/ou pela iluminação (um foco isolando-
o da área dos personagens). Daí resultava um efeito de oposição entre o(s)
agente(s) da narração e seus pacientes-personagens, efeito esse reforçado pelo
contraste visual entre a imagem neutra e despojada do ficcionador e as figuras
ficcionadas carregadas de signos descritivos: figurinos, adereços, máscaras. Ao
experimentarmos tal solução, fomos surpreendidos pela percepção de uma
carga metafórica não premeditada: diante de nós elevava-se o autor todo-
poderoso, criador de um mundo - mundo imaginário - que ele contempla do
alto de seu Olimpo, regendo e controlando os destinos de suas criaturas. Uma
imagem bem teatral, sem dúvida, pois essa divindade, como no teatro de
bonecos, manipula com poder absoluto, de seu plano superior, os fios dos
pobres seres gerados por sua invenção.
Em outros episódios do espetáculo, porém, era facultada ao ator-narrador
a possibilidade de penetrar fisicamente no espaço da ficção, “narrar de dentro”,
por assim dizer, dividindo - disputando quase - esse espaço com os
personagens, anunciando ou opinando sobre suas ações. Ao descer de seu
pedestal, sua presença parece menos preponderante, mas por outro lado,
impõe-se como uma nítida interferência, emitindo um comentário menos
distanciado e, talvez por isso mesmo, mais incisivo. Trocando a indiferença
olímpica por essa postura interessada, falando muito de perto sobre os
personagens, assumindo atitudes e fazendo gestos alusivos em relação a eles, o
narrador produz um discurso invasivo que abre espaço para a ironia, a
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ridicularização e o desmascaramento. A intenção é claramente maximizar o
julgamento crítico. O resultado é bem mais interessante que a imparcialidade
absoluta de antes. Esse tipo de atuação rapsódica aparecia muito nitidamente no
conto “Despeito”.
O desdobramento do ator em narrador e personagem, utilizado em outros
contos, inevitavelmente conduzia à diluição da presença dominadora do
contador da história. A saída do mundo de invenção, o mundo dos personagens,
para discursar sobre ele abre interstícios na atualidade dramática, congela a ação
por breves momentos para que o rapsodo possa comentá-la ou reorientar seu
curso. Essa técnica servia bem às histórias em que as vozes e os movimentos
dos personagens constituíam a maior parte da matéria encenada. As
interrupções rapsódicas tinham de ser curtas e sucintas o suficiente para não
deter o fluxo da progressão dramática que, nesse caso, se impunha como um
valor maior. Como disse, o ir e vir do ator-rapsodo entre os planos do épico e
do dramático foi trabalhado para que se parecesse a um deslizamento, uma
passagem fácil e azeitada, de modo a evitar qualquer sensação de quebra do
ritmo da cena.
Um último procedimento explorado no espetáculo no tocante à utilização
da voz autoral, era uma variante da divisão do ator entre as funções de narrador
e intérprete da história. Neste caso, eu me permiti uma interferência mais radical
no texto matriz. O relato, que no original dá-se sempre na terceira pessoa, em
alguns contos foi transportado para a primeira pessoa. Essa aparente (ou real)
traição ao autor pareceu-me justificável pela riqueza expressiva que gerava. Ao
contar a sua própria história, o personagem repete as palavras distanciadas do
autor apenas trocando o “ele” pelo “eu”, com as consequentes alterações
morfológicas. Mas graças à interpretação envolvida do intérprete, as mesmas
tinham seu sentido ampliado por essa aquisição - por parte do personagem - de
uma capacidade de autorrevelação, de comentário sobre si e sobre o outro. Tal
virada de ponto de vista, contudo, não destruía de todo o distanciamento épico.
Brecht nos ensinava que, ao narrar um acontecimento vivido nós não o
revivemos. Na realidade, nós o recriamos. Na seleção dos aspectos mais
relevantes da história, na própria escolha das palavras e da sintaxe a partir do
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ponto de vista comprometido do narrador, está implícita uma atitude autoral.
Mesmo que ele seja invadido por memórias e sentimentos que impossibilitam a
neutralidade épica perfeita, sua manobra é por definição um ato de
afastamento: o passado pode ser relatado, nunca revivido. O narrador deita
seu olhar sobre um tempo que não é mais o seu - olhar parcial, portanto,
deformado pelo viés da pessoalidade, mostrando um mundo perdido para
sempre.
O relato na primeira pessoa em
A vida como ela é...
em determinados
episódios ficava a cargo de um único personagem. Podia ser aquele que não
participava da trama, mas que a acompanha na função de coadjuvante. Por
exemplo, o médico da família que a assiste e aconselha em seus infortúnios
(“Noiva da Morte”). Trata-se de uma função de longa tradição na evolução da
literatura ficcional (o
confident
). A posição periférica à ação principal faculta-lhe
uma captação mais objetiva - mesmo que não isenta de opinião - dos eventos
e de suas implicações. Contudo, quando em outros casos era o protagonista do
drama que se incumbia de seu desvelamento, sua emissão vinha
irremediavelmente carregada de uma carga emotiva e de um conteúdo ideativo
que geravam uma apreensão altamente distorcida da realidade. Assim
acrescentando uma sobrecarga dramática, portanto, uma nova camada
semântica ao texto original, o expediente da narração a partir do ponto de vista
do “eu” do herói, produz um redimensionamento da matéria ficcional de ricas
ressonâncias, que, na minha opinião faziam com que o “abuso” valesse a pena.
O que se perdia, em suma, na transposição “infiel” era muito pouco se
comparado ao ganho em expressividade e dramaticidade.
Finalmente, temos a situação em que todos os personagens viram
contadores de suas histórias: em vez de um único, muitos narradores na
primeira pessoa. Assiste-se a uma multiplicação de pontos de vista. A cena dá-
se a ver de uma forma prismática, e a ouvir como uma composição coral,
polifônica. Mas é este um coro dissonante, pois o drama - narrado ou
interpretado - é essencialmente um conflito de forças atuantes, que encontra a
sua harmonia formal no entrechoque das vozes e no embate dos movimentos.
“O Justo” era a cena em que o recurso era utilizado mais fortemente.
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Resta-nos enfocar agora um segundo plano de atuação rapsódica na
montagem dos contos rodriguianos, além deste que acabamos de descrever
como um jogo de diferentes regras aplicadas à veiculação do discurso narrativo.
Ao texto narrado, superpunha-se no palco o texto cênico, que oferecia a
ilustração do relato. Eram poucos os momentos em que esta ilustração
continha-se dentro de um estilo razoavelmente naturalista. Apenas o conto
“Selvageria” acontecia quase que inteiramente como uma cena de teatro
ilusionista, com reduzidíssimas interferências narrativas. Preferi na maioria das
vezes a criação de um tecido imagético que fugisse à reprodução mimética,
buscando formas de visualização anti-ilusionista, cujo potencial de teatralidade
me parecia bem mais fascinante de explorar.
O uso de quadros-vivos - evocativos da história em quadrinhos (HQ) e dos
tableaux-vivants
da tradição melodramática - retirava sua força sugestiva do
exagero da tipificação, da corrosividade provinda do uso da caricatura, do clichê,
do estereótipo. Ironia, sarcasmo, distorção grotesca produzem efeitos
contundentes enquanto comentário crítico. Isso ficava bem demonstrado no
conto “Uma Senhora Honesta” todo ele encenado como uma sequência de poses
estáticas.
Não é difícil deduzir que a ilustração da ação como uma sucessão de
fotografias congeladas em seu momento ápice, pelas razões acima levantadas,
agia como um recurso distanciador. Um outro expediente desse tipo era a
dissociação entre fala e gesto. Recorrendo a uma técnica extraída do repertório
de jogos de improvisação dramática, a “dublagem”, um dos contos do
espetáculo (“Romântica”) colocava alguns atores num semicírculo ao fundo,
circundando o espaço dramático, e os encarregava de apresentar o extrato
textual da peça: no caso, tanto o discurso narrativo quanto as falas dos
personagens. No interior do espaço ficcional, outros atores corporificavam as
ações físicas correspondentes. Deslocamentos, mímica, expressão gestual e
facial desenhavam um contexto ilustrativo, cuja eficácia teatral derivava de sua
adequação perfeita ao que era dito. A ruptura artificial do extratos fônico e
visual corria o risco de produzir um indesejável efeito de fragmentação, de
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dissociação. Mas não deixamos que isso acontecesse. O virtuosismo com que
foram trabalhadas a correspondência dos sentidos, a coincidência temporal e a
harmonização rítmica proporcionavam surpresa e deleite ao espectador.
Completando a descrição dos procedimentos cênicos explorados na
montagem, em dois dos dez contos buscamos inspiração numa imagem
carregada de poderosa teatralidade, aqui referida: a do teatro de bonecos.
Teatralidade épica, é óbvio, uma vez que a operação desenvolvida pelo
manipulador de formas (in)animadas é por natureza anti-ilusionista.
Homúnculos de pau, de arame ou de pano não têm como passar pelo teste do
verismo e, mesmo disfarçada, a presença de um manipulador não pode ser
ignorada. Ilustrações que aludem, sugerem, ao invés de mimetizar, submetidas
ao controle total de alguém que é manifestamente o “dono da história” - não
nada mais intrinsicamente épico do que isso. Ao colocarem-se em cena atores
rapsodos simulando um jogo de manipulação com atores-personagens como se
estes fossem grandes bonecos, armava-se uma tessitura de ostensiva qualidade
narrativa. Num dos contos (“Noiva para Sempre”), os bonequeiros fixavam seus
fantoches em poses estáticas (aqui também, fomos buscar no repertório de
jogos improvisacionais a solução: o jogo de “estátuas”). Nesse processo
ressaltava-se o caráter inanimado das criaturas, totalmente submetidas a uma
condução mecânica, autoritária. Este autor-autoridade-absoluta, representado
pelos intérpretes titiriteiros, obviamente não permitiria que seus comandados
dialogassem. As cabeças dos personagens estavam cobertas por máscaras
fechadas, e eram os seus condutores que produziam eles mesmos as falas,
bem como as inserções narrativas. No segundo conto encenado como teatro de
bonecos (“Doente”), a dominação autoral era suavizada por uma manipulação
que fazia as criaturas executarem não mais poses - mas movimentos,
deslocamentos, gestos. Tal dinamicidade não se presta a um controle tão rígido
como no caso das atitudes congeladas, de sorte que o bonequeiro, na verdade,
apenas sugeria, dava a partida para ações e expressões, cuja definição final -
incluindo a mímica facial - competia aos atores-bonecos. Esse ganho de
autonomia de parte deles permitia-lhes também a emissão em voz alta dos
diálogos, ainda que os mesmos fossem sussurrados nos seus ouvidos pelo
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manipulador. Autonomia demais, afinal, é coisa perigosa: pode terminar em
libertação para os personagens. E personagens atuando livremente, sem estarem
de alguma forma submetidos à autoridade autoral, é a catástrofe do épico e o
triunfo do dramático.
Nas versões dos contos de Nelson apresentadas em São Paulo e
Florianópolis, investiguei novas possibilidades de procedimentos rapsódicos. O
conto “O grande dia de Otacílio e Odete”, que fechava a montagem do “Teatro,
Sim... Por Que Não?!!!”, de Florianópolis, é um exemplo. Na realidade ele nem
fora escrito para a coluna “A vida como ela é...” Faz parte da coletânea de
crônicas sobre futebol
À Sombra das Chuteiras Imortais
, mas faria mais sentido
se estivesse na coluna de “A Última Hora”. Seu tema não é o futebol, paixão de
Nelson. Trata-se de uma história de adultério e vingança que tem seu clímax no
dia da partida Brasil X Suécia na Copa de 1958. Explico por que tomei a liberdade
de inclui-lo no espetáculo. O futebol é aqui apenas um pretexto para o
ficcionista compulsivo que era Nelson Rodrigues. Interessa-o, na verdade, o
drama: o marido traído, dilacerado pelo dilema entre matar ou não a mulher
adúltera. Sua agonia é pontuada brilhantemente pelos lances palpitantes do jogo
e as reações delirantes do povo brasileiro, que, pelo rádio e pelos sons da rua,
invadem a intimidade do casal em crise. O marido Otacílio termina abrindo mão
da vingança, tomado pelo êxtase avassalador da vitória. O país em festa, a peça
termina com todo o elenco dançando e cantando a marcha triunfal “A taça do
mundo é nossa”, enquanto agitam serpentinas verde-amarelas.
Era uma maneira de fechar o espetáculo de forma apoteótica. Contudo, a
nova experiencia de narratividade acontecia na primeira parte do conto: a
história de um senador, antepassado de Otacílio, que havia morto a bengaladas
a esposa adúltera. Era uma longa narração que servia de prólogo ao episódio do
casal moderno. havia algum tempo, eu experimentava, em exercícios de
laboratório, com a narração coral: o texto enunciado simultaneamente por um
grupo grande de atores - coisa nada fácil de realizar, diga-se de passagem, que
exigia um intenso trabalho de ensaio. Explorava também com formas de
movimento (locomoção, gestual, posturas) executadas em conjunto, o grupo
agindo como um único corpo. A partir disso, fiz de todo elenco um coro que se
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movia e falava em uníssono para contar a origem sangrenta de um caso que
terminaria em carnaval.
Na montagem de São Paulo investiguei uma outra forma de atuação coral
no conto “Flor de Laranjeira”. Eram dois protagonistas: Carmelita e Cabeleira, um
casal de namorados. Os atores faziam todos a personagem masculina, e as
atrizes, a feminina: dois grupos contracenando, às vezes falando e agindo em
coro, outras vezes permitindo destaque a um ou mais membros dos conjuntos.
No final, quando os conflitos se resolviam no pedido de casamento, formavam-
se vários casais para ilustrar o grande momento romântico dos dois
apaixonados.
Não é possível concluir o relato desta experimentação teatral com um
punhado de textos de “A vida como ela é” feita durante vários anos com
diferentes grupos teatrais de diferentes cidades, sem destacar algumas coisas
que, a essas alturas, devem ter ficado óbvias. Para começar, todos os
procedimentos que aqui descrevemos, tanto em referência às operações
textuais, quanto às soluções de atuação e encenação foram fruto de muitas
horas na sala ensaio testando, examinando possibilidades. A improvisação foi
um recurso fundamental deste processo. Em geral era eu que trazia a proposta a
ser provada num determinado conto: dublagem, HQ, manipulação de bonecos,
atuação coral, narração de fora ou de dentro, na terceira ou na primeira pessoa
etc. etc. Todas essas possibilidades eram improvisadas à exaustão, de modo a
deixar o elenco seguro e confortável com cada uma das diversas linguagens.
então se procedia à encenação do conto.
Mas nenhum desses mecanismos funcionaria se não fosse o imenso
potencial de teatralidade dos relatos de Nelson. Não foi à toa que escolhi este
material para levar à cena, por primeira vez, o dramaturgo que tanto me
arrebatava. Optei por contos, e não por uma obra teatral, simplesmente porque
percebi instantaneamente que Nelson Rodrigues armava suas histórias para
jornal como se fossem cenas de teatro. As pérolas de sua técnica dramatúrgica
estavam todas ali, e de forma tão intensa, tão concentrada, por conta da forma
curta, que pareciam brilhar com mais nitidez ainda. Percebi também que, apesar
de toda a sua carga de naturalismo, as páginas da coluna de “A Última Hora” se
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prestariam aos jogos cênicos anti-ilusionistas, mesmo os mais ousados, por
serem, antes de qualquer coisa, teatro puro, genuíno, teatro na pele, na veia e no
osso. Teatro como ele é...
Recebido em: 22/09/2023
Aprovado em: 04/11/2023
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br